Os negros nas primeiras décadas do cinema (e no teatro,
desde muito antes, como nos minstrels shows) eram brancos pintados de preto,
uma caricatura ofensiva que variava entre selvagens canibais africanos e
criados submissos. Na década de sessenta, com o Movimento de Direitos Civis (e
boicotes organizados por entidades como a NAACP, a Associação Nacional para o
Progresso de Pessoas de Cor), reduziu-se bastante o problema. Obviamente que o
revide artístico viria eventualmente (ainda que já houvesse o guerreiro
solitário Oscar Micheaux em décadas anteriores, pioneiro muito pouco lembrado),
com o que ficou sendo chamado de "Blaxploitation". Fenômeno que
continua exercendo influência e inspirando homenagens, como as conduzidas por
Quentin Tarantino (o diretor insinuou em entrevistas, que seus personagens em
"Django Livre": Django e Broomhilda Von Shaft seriam antepassados do
personagem "Shaft"). Com trilhas sonoras regadas por muito
funk/soul/jazz e devolvendo aos brancos na mesma moeda (colocando-os quase
sempre como personagens caricaturalmente ofensivos). E tudo começou com Melvin
Van Peebles e seu altamente experimental: "Sweet Sweetback´s Baadasssss
Song".
Sweet Sweetback´s Baadasssss Song - 1971
Enfrentando a recusa de todos os estúdios, que não aceitaram
investir em um filme com predominância de atores negros, o jovem Melvin Van
Peebles (que havia dirigido a interessante e ácida comédia "A Noite em Que
o Sol Brilhou" - Watermelon Man) bancou sozinho o financiamento (com
empréstimo de amigos como Bill Cosby) da produção, em que também dirigiu,
editou, roteirizou e protagonizou. Todos os méritos da iniciativa
corajosa não o tornam um bom filme, prejudicado ainda por uma fotografia excessivamente escura,
aliada aos experimentos com psicodelismo (comuns na época), tomadas com cores
negativas e repetições por diferentes ângulos, que parecem buscar causar enjoo
no espectador. O roteiro também não parece ter sido escrito por alguém no total
controle de suas ações (o que muito provavelmente era o caso), tornando-o muito
confuso, difícil de acompanhar até mesmo para os padrões de David Lynch. Pouco
ajuda que os componentes do elenco falem atropelando gírias e o som abafado não
facilite a compreensão. Muito de seu sucesso se deve às cenas de sexo
praticamente explícitas (incluindo a que envolve um adolescente Mario Van
Peebles e uma mulher mais velha) e o conceito libertário já expresso em seus
créditos iniciais: "o filme é dedicado para todos os irmãos e irmãs que já
aguentaram o suficiente do homem branco".
Shaft (1971)
Melvin Van Peebles buscou durante um tempo ligar o sucesso
de "Shaft" ao seu trabalho, dizendo que se tratava de um típico filme
de ação policial com um protagonista branco, mas que devido ao seu filme, teria
sido modificado ainda na pré-produção, numa tentativa de capitalizar nesta nova
tendência que havia se provado lucrativa. A realidade é que o filme do diretor
Gordon Parks já havia escalado seu protagonista (Richard Roundtree) antes mesmo
da estreia de "Sweet Sweetback´s...". A bilheteria generosa salvou a
MGM da falência, além de dar o pontapé inicial na produção de vários outros
similares. O roteiro berra: "atitude", desde os primeiros segundos.
Emoldurado pela excelente trilha sonora de Isaac Hayes (que queria protagonizar),
acompanhamos os passos confiantes do detetive John Shaft pelas ruas de Nova
York. A letra da canção é espirituosa, objetiva e nada glamourosa ("ele é
um tremendo filho da... - *voz feminina* cale a boca! - mas eu estou falando do
Shaft - *voz feminina* então está limpo"), praticamente a antítese das
canções nos filmes de James Bond. Ficava clara em várias cenas a manipulação de
diálogos, que enfatizavam a diferença entre os detetives brancos que Hollywood
já havia nos apresentado e esta força da natureza, disposta a xingar qualquer
um que o encarasse com arrogância.
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