A melhor forma de assistir uma obra como "Caché" (2005)
é adentrá-la no escuro e ir tateando o caminho até a saída. Caso não tenham
visto, arquivem este texto para uma leitura posterior.
Michael Haneke é um exímio manipulador de imagens. A
brincadeira feita à mesa, por um dos convidados do casal vivido por Daniel
Auteuil e Juliette Binoche, onde o narrador conta uma história inicialmente
desinteressante sobre uma mulher que o abordou trêmula, por tê-la causado uma
lembrança de alguém que ela conhecia, pode ser descrita como a perfeita
exposição da técnica do diretor. O foco sempre é desviado para algo
aparentemente sem importância, pegando o espectador desprevenido. Pode-se
afirmar que a trama do filme é uma ilusão criada para discursar sobre algo
simples: uma crise de consciência culpada. O enredo que é estabelecido com as
filmagens que são entregues para o casal nunca é resolvido. O erro está em
tentar desvendar este mistério. Cada pequena evolução alcançada neste enredo é
apenas uma forma do diretor desviar nossa atenção para o que realmente importa
(um elegante "MacGuffin").
A cena inicial e a cena final são complementares. Em ambas,
alguém está vigiando. O alvo é que difere. Analisando friamente, não seria tão
difícil para o casal descobrir quem estaria por trás daqueles atos. Bastaria
deixar uma câmera ligada e direcionada ao portão de sua casa. A questão não é
quem estaria os vigiando, mas qual seria a motivação. O personagem de Auteuil
mostra-se decidido em não envolver a polícia no caso, causando estranheza em
sua esposa. Estas pistas no roteiro já serviriam para que o espectador
percebesse que está defronte uma mágica com truques tão bem executados, que
escondem um ato simples, fazendo-a parecer grandiosa em função do espetáculo. O
conteúdo das fitas reflete a sofrida auto-regressão do protagonista, buscando
fazer as pazes com seus erros do passado. Quanto mais ele vai se aproximando do
ato mais difícil: reconhecer estes erros, o conteúdo das fitas vai
ficando mais objetivo (ex: passeando pelo corredor e mostrando o número de um
apartamento), como se o próprio inconscientemente quisesse sofrer a punição
atrasada. Obviamente existe também uma metáfora política na relação entre
Georges (francês de classe alta) e Majid (um argelino que vive em Paris). A culpa
que ele sente reflete a culpa do povo francês pelo massacre de 1961 (os pais de
Majid morreram durante a Guerra da Argélia, levando-o a ser adotado pela
família de Georges), como se o teor das fitas fosse uma constante (e necessária)
lembrança indesejada.
O desfecho, que costuma suscitar os maiores questionamentos
sobre seu significado, pode simbolizar o otimismo do diretor. Os olhos atentos
irão perceber a presença do filho de Georges e do filho de Majid, que se
encontram e trocam uma breve conversação. Existe ternura e respeito entre os
dois (algo inexistente na relação entre seus pais), como se o roteiro
vislumbrasse um futuro mais esperançoso entre os povos. Os filhos não persistem
nos erros de seus pais. Enquanto Georges (após todos os acontecimentos, que não
revelarei), uma relíquia de um passado preconceituoso, finaliza seu ato como um
homem derrotado, que se esconde atrás de pílulas e na escuridão de seu quarto,
seu filho corajosamente se reconcilia com o admirável mundo moderno.
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