Andarilhos do Deserto (El-haimoune - 1986)
Um jovem professor é enviado a um vilarejo perdido no tempo
e acaba envolto em um mundo de misticismo, onde um homem (Assam) passa
cinquenta anos cavando as areias à procura de um misterioso tesouro e uma maldição
antiga tira os jovens de suas casas e os fazem caminhar pelo deserto
eternamente (metáfora para a confusão social e política no mundo árabe moderno),
entoando um lamento (representativo do receio pelo futuro). A jornada do
professor, este exílio, torna-se uma eficiente metáfora. Ele chega de ônibus e
em pouco tempo irá confrontar seus hábitos refinados àquela esquecida realidade
de seu povo. Ele terá que reconfigurar seu condicionamento, aceitando entender
como funciona a mentalidade destes homens.
Nos filmes que compõem a bela homenagem de Nacer Khemir à
cultura árabe, o deserto é um personagem. Isolado da sociedade, o povo do
vilarejo parece saído diretamente das páginas das "1001 Noites" (material
que influenciou o roteiro), fazendo com que não exista uma divisória entre o
mítico fantástico e a medíocre realidade, que se alternam garantindo o aspecto
mais fascinante da obra. Aquelas pessoas necessitam alimentar-se de suas
tradições, suas lendas. Um belo momento que simboliza o objetivo do cineasta é quando
o professor questiona o sábio ancião a respeito do misterioso tesouro, que
andava despertando a ganância dos homens: "não é um tesouro, mas sim uma
crença, o destino".
Minha cena favorita ocorre quando um jovem acorda no meio da
noite ao lado de sua avó, percebendo temeroso que ela está passando mal. O
menino corre a pedir a ajuda de Hassan (que até o momento havia sido mostrado
como as águas de um poço, com quem o menino conversava e se aconselhava), que
toma a forma de um homem de turbante, que sai do poço e atende o apelo do
jovem, deixando-o na mesma posição (deitado ao lado da avó) e despedindo-se
dizendo: "um sonho deve manter-se um sonho". As palavras não fazem
justiça à beleza poética da cena, que em sua simplicidade é o ponto alto da
obra.
No ato final, a entrada de um enérgico oficial de polícia
que representa o mundo moderno (ele chega a chamar o povo da vila de
"homens das cavernas") salienta o olhar nostálgico do diretor com a
grandeza mística daquela civilização esquecida. Sua intenção parece ser querer
"disciplinar" aquele povo à força, porém sua ambição é fadada ao
fracasso, pois enquanto houver crianças dispostas a acreditarem na lírica
fantasia, que quebrarem espelhos na intenção de protegerem seu jardim ou
travarem diálogos com gênios da lâmpada, estará seguro no planeta o maior
enigma de todos.
"O único enigma é o tempo..."
O Colar Perdido da Pomba (Tawk al Hamama al Mafkoud - 1991)
Esta segunda produção conta a história de um príncipe que
estuda a arte da caligrafia árabe com a ajuda de seu mestre. Após encontrar um
fragmento de um manuscrito, ele procura incessantemente encontrar as peças
faltantes, acreditando que, ao encontrá-las, terá revelados os segredos do
amor. Tudo envolto em uma trama fantasiosa (com referência às "1001
Noites") onde homens disputam jogos de xadrez à distância (comunicando-se
através de mensagens trazidas por pombos correios) e um menino espera o retorno
de seu pai (um Djinn: espírito também conhecido como "Gênio"), para
que ele faça com que um pequeno macaco seja novamente transformado em príncipe.
No cinema, assim como na música, procuramos
identificarmo-nos com o que vemos e ouvimos. Seja uma pré-adolescente que acaba
de ser traída por seu namorado e se tranca em seu quarto aos prantos, cantando
a letra de uma canção depressiva (pois sente como se houvesse sido escrita
pensando nela), um jovem que assiste as lutas de boxe em "Rocky" e transfere-as
para sua própria "batalha" do dia a dia (buscando inspiração para
superar seus limites) ou um idoso que se emociona ao assistir um clássico que o
remete à sua infância, todos buscam na arte um reflexo de suas próprias vidas.
Porém filmes como os que integram a "Trilogia do Deserto" de Nacer
Khemir mostram uma realidade muito distante daquela que vivemos no mundo
ocidental. Exatamente neste abismo que nos separa é que reside seu fascínio
maior: como se embarcássemos por uma hora e meia em uma viagem em que o
inesperado fizesse-se presente em cada olhar e gesto dos personagens. Gestos
como o do pequeno Zin (Walid Arakji), em uma simples e bela cena (minha
favorita na obra), onde se aproxima de um vaso com uma rosa e move rapidamente
suas mãos como se tentasse conduzir seu aroma para mais próximo de seu rosto.
Quando questionado sobre o que estava fazendo, ele responde: "a rosa está
sonhando e eu estou roubando seu sonho". Nestes poucos segundos, somos
convidados a conhecer a forma de pensar desta cultura tão diferente e tão rica.
O diretor também aproveita para criticar sua sociedade em
pelo menos dois momentos. Logo no início vemos um ancião propagando as palavras
de um profeta: "as três coisas que mais estimo na Terra: perfume, a mulher
e a oração. No perfume está o segredo da mulher, na mulher está o segredo do
amor, no amor está contida a grande oração do universo". Logo em
seguida descobrimos que ele na realidade está tentando vender o tal perfume
para aqueles que lhe cruzam o caminho. A segunda crítica mostra-se mais para o
final, quando o príncipe Hassan (Navin Chowdhry) reclama com um vendedor de
livros ganancioso e avarento, que não o deixa desfrutar do conhecimento contido
em seus livros. Ele então afirma: "você não poderá levar tudo consigo para
o paraíso. Perceba à sua volta, como a morte está sempre à espreita". Khemir
deixa clara a importância de compartilharmos o conhecimento, não o
monopolizando em pessoas ou instituições (que utilizam este "poder"
em prol de si mesmas). Somos passageiros de um trem cuja viagem transcende
qualquer fronteira conhecida, portanto, saibamos ceder o lugar àqueles que
buscam hospitaleiro conforto, assim como inspiremos naqueles acomodados o
desejo de aproveitar a beleza da viagem, descerrando a cortina que os impede de
admirar a beleza da paisagem.
Baba Aziz - O Príncipe que Contemplava sua Alma (Bab´Aziz -
2005)
"Existem tantos caminhos que levam a Deus, quanto almas
na Terra".
Este é o melhor filme da trilogia, com cenas que ficam
passeando em sua memória por muito tempo, como a dança da jovem Ishtar e seu
avô no deserto e a forma como a narrativa se aproxima claramente das "1001
Noites", com o avô (como Sherazade) contando a fantástica história do
príncipe por partes, para entreter a menina, que vai ficando cada vez mais
fascinada. O roteiro (escrito pelo diretor em parceria com Tonino Guerra, que
também escreveu "Amarcord" e "Blow Up") é fundamentado na
dignidade e na devoção do nobre Baba Aziz, que sabe estar com a morte à
espreita, fazendo com que procure passar seu conhecimento para sua neta
espiritual, que o acompanha na viagem.
Assim como no primeiro, temos um personagem que representa o
mundo contemporâneo. Um jovem de jaqueta jeans e boné (cuja primeira aparição
cria um choque, contrastando com a aparência "fabulesca" da trama)
que encontra o Baba Aziz (Parviz Shahinkhou) e sua jovem neta Ishtar (Maryam
Hamid), enquanto caminhavam nas areias do deserto à procura do local da grande
reunião de dervixes (monges muçulmanos nômades), que só ocorre a cada trinta
anos. O jovem se faz presente inicialmente pelo som do seu canto, o que nos
conduz ao primeiro momento de rara beleza na obra. Questionando o ancião sobre
qual o caminho a seguir, o sábio lhe responde: "você deve apenas caminhar".
Preocupado em se perder na vastidão ondulante, escuta da menina: "aquele
que tem fé, nunca se perde". O Baba então entrega uma bela simbologia:
"cada um utiliza seu dom mais precioso para encontrar seu caminho, o seu é
a voz, então cante meu filho, que o caminho se mostrará a você". Ele segue
cantando até sumir no horizonte.
A mensagem essencial que o diretor Nacer Khemir quer nos
passar é representada de forma lírica no discurso final do moribundo ancião:
"Caso dissessem a um bebê preso na escuridão do ventre de sua mãe, que lá
fora existe um mundo iluminado, com altos picos montanhosos, infindáveis
oceanos, planícies ondulantes, belos jardins florescendo, riachos, um céu
composto por uma miríade de estrelas e um sol escaldante, o bebê sem conhecer
estas maravilhas, não acreditaria que tais coisas pudessem existir. Assim como
nós, quando enfrentamos a morte. Esta é a razão do medo".
Na visão de Khemir, a procura por "Deus" ("a
verdade para chegar a Deus está no próprio interior do homem" - Agostinho)
é um incessante anseio pelo autoconhecimento e pela valorização do ser humano,
em busca de um sentimento cristalino e um desapego material. A "Trilogia
do Deserto" é rica em simbolismos, linda de se admirar e com uma riqueza
filosófica poucas vezes vista nesta Sétima Arte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário