Keoma (1976)
Rejeitado desde criança e abraçado pela conselheira “mãe
morte”, que lhe concedeu uma segunda chance, o pequeno mestiço sobreviveu ao
massacre que dizimou sua família. Com um generoso estranho, encontrou abrigo e
uma nova família. O ciúme corrompeu seus três novos irmãos, que dedicavam a ele
lancinante desprezo. Anos depois, cruel destino foi reservado ao bondoso pai,
que testemunhou a derrocada de caráter de seus herdeiros e a ausência do único
elemento íntegro remanescente em seu legado. Keoma (Franco Nero) retorna após a
Guerra Civil e encontra uma abominável realidade: o povo de sua cidade natal,
escravizado pelo medo. O vil Caldwell (Donald O´Brien), auxiliado pelos três
irmãos, alimenta a indústria da “praga” que assola os cidadãos. Os medicamentos
são proibidos de entrarem na cidade, com a conivência sórdida dos preguiçosos
dignitários da região, satisfeitos com a miséria confortavelmente administrada
e o sorriso malicioso e sem dentes de suas cortesãs. O antigo ídolo do jovem
mestiço, o escravo (vivido por Woody Strode) de seu pai adotivo, que outrora
esbanjava coragem em suas demonstrações com o arco e flecha, vive agora bêbado
na sarjeta, acostumado com a dor. Aquele generoso estranho que lhe presenteou
com uma nova vida, agora vive recluso e desesperançado. A cidade que nos é
apresentada na bela obra de Enzo G. Castellari reflete um “macrocosmo”
facilmente identificável nos dias de hoje (assim como o era na época de seu
lançamento). Administram um salário de miséria a um povo, negando-lhe cultura.
Felizes e desdentados aceitam o “pão e circo” que lhes é emprestado (a duras
penas), enquanto os “pistoleiros” que criam as leis banqueteiam-se em palacetes
de ouro branco. Uma vida de migalhas consentidas por cada jovem que aceita
calado, por cada adulto que desiste.
“Keoma” é um símbolo do poder crítico deste gênero, que em
sua brincadeira de “caubói” fala muito mais ao coração da corrupção humana, que
muitos projetos declaradamente panfletários (normalmente hipócritas,
emoldurando o problema, sem apontar soluções). Político e incisivo, ele ousa
ainda refletir em seu protagonista, a imagem de um novo “Cristo”, que novamente
irá pagar caro por ser ético, sofrendo nas mãos daqueles por quem se
sacrificou. Os seus atos libertaram seu povo, porém os olhos turvos deles, após
décadas sendo manipulados, não perceberão a ausência da venda que lhes
obscurecia a visão. O mestiço resgatou em seu pai adotivo e em seu velho amigo
escravo, a bravura que por anos escondia-se por trás do medo, levando-os a
unirem-se a ele no emocionante ato final. Aquele arco empoeirado voltaria a
zunir suas flechas, fazendo novamente o velho ídolo ser visto com orgulho pelo
seu jovem amigo.
A obra é permeada de símbolos (a “mãe morte”, a jovem
grávida que dará vida ao “futuro livre” daquele povo, entre outros) e contém
uma trilha sonora (de Guido e Maurizio De Angelis) muito interessante, que
funciona como um “coro grego”, pontuando e por vezes, narrando o que ocorre em
cena (como a consciência do protagonista). Visualmente é comparável aos
melhores filmes de John Ford, com uma clara influência de Sam Peckinpah na
construção das cenas de ação. Keoma entrega o “filho” que simboliza o
futuro (agora) livre de seu povo, nas mãos da “mãe morte” (que também
representa uma das “Moiras”, deusas do destino, na mitologia grega), dizendo a
frase que expressa de forma perfeita o leitmotiv da trama: “O homem
que é livre, nunca morre”.
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