O diretor alemão Rainer Werner Fassbinder nutria pelo livro
homônimo de Alfred Döblin (considerado por alguns literatos como o equivalente
alemão da obra “Ulysses”, de James Joyce) uma profunda admiração, enraizada
desde sua juventude. Inspiração expressada inclusive em seu primeiro filme: “O
Amor é mais Frio que a Morte” (1969), em que viveu um personagem com o mesmo
nome do protagonista da obra. Ao longo de sua carreira, sempre procurou buscar
aprofundar-se nas razões que moviam personagens rejeitados pela sociedade,
emulando a forma como Döblin trabalhou seu livro, desnudando camadas
psicológicas de todos os elementos que compunham o dia a dia do anti-herói
Franz Biberkopf, incluindo todas as pessoas com quem se relaciona. O sonho
antigo de capitanear o hercúleo esforço de transpor o livro para a linguagem
que dominava, realizou-se no final da década de setenta, com um projeto em
larga escala (quinze horas e meia) para a televisão. Composto por treze
capítulos e um epílogo, “Berlin Alexanderplatz” será analisado em uma série de
breves textos (da mesma forma que farei posteriormente com “Decálogo”, de Krzysztof Kieslowski),
onde procuro essencialmente incentivar o desejo no leitor de conhecer este
belo trabalho.
Capítulo 1 – O Castigo Começa
Ficamos conhecendo Franz (Günther Lamprecht) no exato
momento em que ele é levado a reintegrar-se à sociedade, ainda com suas pernas
trêmulas e uma fotossensibilidade que reflete o choque do pássaro ao ver aberta
sua gaiola. De início não conhecemos as razões que o levaram ao confinamento
forçado, somente nos envolvemos empaticamente com sua fragilidade emocional,
evidenciada pela forma com que grita seu angustiado silêncio. Um olhar para seu
esperançoso recomeço é o bastante para que suas pernas procurem o conforto da
prisão, com suas paredes que oprimem e nas quais já havia se acostumado a
amparar em longos quatro anos. A sua expressão é de uma criança cuja ingenuidade
havia sido corrompida pela maturidade. Os seus primeiros passos são desajeitados,
mas sua convicção mostra-se firme: ele deseja apenas fazer o bem, nunca mais
errar.
Personagens começam a confrontá-lo em seu caminho, como o
judeu atencioso que procura motivá-lo com um conto inspirador (que se mostra
bastante realista em seu infeliz final). O curioso é notar que enquanto a
narração percorre pelas conquistas de seu herói, Franz demonstra abalo e
tristeza, porém no momento em que a trama adentra os percalços e a tragédia, o
homem parece reviver em si mesmo. Ao ver-se na miséria do protagonista do
conto, Franz passa a acreditar que sua redenção é possível, que a esperança
pode alcançar até mesmo os mais falhos e medíocres. Com sua moral parcialmente
restabelecida, ele busca agora reafirmar-se como homem (sexualmente), porém
não logra sucesso nos braços de uma prostituta, que debocha de sua impotência.
A narrativa até este momento já havia apresentado uma cena muito rápida e
eficiente, que explica este fracasso amoroso, assim como insinua a razão que o
levou ao encarceramento.
Quando em um de seus passeios ele vislumbra uma foto
de uma jovem seminua, a ágil edição intercala duas breves cenas: o seu beijo
apaixonado em um pescoço e, radicalmente oposta, um violento bofetão, desferido
no rosto da mesma garota, Ida (Barbara Valentin). Posteriormente encontramos
uma foto da jovem emoldurada na casa de sua irmã Minna (Karin Baal), que recebe
uma inesperada visita de Franz, fazendo-a relembrar a relação que mantinham
outrora. Ele revive Ida em sua irmã, retomando sua confiança sexual. Segue-se
uma narração fria de como o ato de violência no passado havia sido cometido,
estabelecendo o assassinato como algo facilmente compreendido (simplificado)
pela resolução de uma equação física (que aparece em forma de intertítulos).
O final do episódio representa a gênese de um homem
renovado reintegrado em sua sociedade. Após reencontrar um velho amigo (fazer
as pazes com seu passado) e conquistar o apreço de uma bela jovem (reafirmando-se
como homem), consegue até mesmo reverter um difícil obstáculo: tido pelas
autoridades policiais como uma ameaça à sociedade, ele recebe oficialmente um aviso
de que não pode transitar livremente em seu país. O Franz do início do episódio
teria desistido, mas não é o que ocorre. A solução que encontra: manter-se
trabalhando, sendo monitorado de perto pelas autoridades. O caminho não será
fácil, mas sua obstinação o conduzirá adiante. Ele enfim sente-se seguro para
gargalhar...
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