Acordando com o balançar do automóvel, eu me surpreendo com minha fraqueza, sentindo-me quinze anos mais velho. Como me deixei levar pelo
sono em aventura tão fantástica? Antes mesmo de me acostumar com a paisagem, o
veículo diminui sua velocidade e um novo passageiro entra com um gesto de
refinada mesura, sentando-se à minha frente. A aparência era de um bancário
daqueles filmes de faroeste que eu assistia quando criança. Ainda buscando
despertar totalmente, eu evito iniciar uma conversa, continuando a admirar a
vista pela janela. O homem que não devia ter mais que quarenta anos, parecia
bastante ansioso e mantinha os joelhos em movimento, o que causava um som
irritante. Minutos depois eu percebi que não conseguiria concentrar-me em
meu desinteresse, voltando então meus olhos para o homem, que sorriu e
começou a tagarelar. Entre o que eu consegui apreender de sua vida,
chamava-se Carl, era casado com Nancy e estava a caminho de uma festa
organizada por Samuel Goldwin, onde iria reencontrar seu velho amigo Harry
Aitken. Enquanto ele se gabava de seus refinados contatos e perdia-se em sua
própria arrogância, eu forcei minha mente para tentar de forma oportunista
lembrar a conexão que havia entre Aitken e meu objetivo. Não poderia perder aquela
oportunidade, já tendo total conhecimento de que nada era por acaso.
***
Harry Aitken e seu irmão Roy, genuínos pioneiros do sistema
de estúdios americanos, fundaram em 1915 a Companhia Triangle Motion
Picture. Entre aqueles que trabalhavam para eles, estavam D.W. Griffith e Mack
Sennet. A Companhia foi a responsável pela criação dos cômicos Keystone
Cops, além de ter realizado o conturbado “O Nascimento de Uma Nação”, que
causou problemas por toda a América, com sua temática racista e apoio à Ku
Klux Klan. Por volta de 1918, após graves problemas financeiros, a Companhia
foi comprada por Samuel Goldwin. Harry fundou também, em 1912, os estúdios Mutual,
onde Chaplin viveu seu período mais fértil em criatividade e experimentação.
***
A providência é incrível, pois eu estava indo tentar a sorte como um
figurante em direção ao set da produção de Harold Lloyd, quando aquele homem
apareceu do nada e modificou totalmente meu plano. Decidi então que iria
tentar ser convidado a acompanhar meu forçado amigo na festa, onde encontraria, caso o homem não estivesse apenas deslumbrado em excesso, não apenas Mack
Sennett, como também Mary Pickford e Lillian Gish, o que talvez me levasse mais
próximo ao meu sonhado encontro com os mestres da comédia muda. Nada poderia
me preparar para o que a providência havia me guardado para a hora seguinte.
Como eu fui ingênuo a ponto de acreditar que cada passo meu nessa jornada não
estava milimetricamente traçado a meu favor. O meu tímido pedido foi recebido
com um estrondo pelo falastrão, que via naquela situação uma possibilidade
eficiente de demonstrar para mim a intimidade dele com os figurões que lá
estariam. Utilizando a prepotência do homem a meu favor, eu agradeci gentilmente e fechei os olhos alegando cansaço, porém, minha mente manteve-se
trabalhando durante o resto do trajeto.
O destino era Massillon, Ohio, e à minha frente impunha-se o
refinado titã de mármore Lincoln Theatre, fundado em 1915, pela
Companhia de Harry Aitken. O próprio Harry veio me receber ao lado do meu novo amigo,
porém, demonstrando muito pouco daquela afeição tremenda que o homem havia me insinuado na viagem. Carl era provavelmente mais um dentre tantos chapéus e
bengalas que o anfitrião recebia com elegância. Disfarçando seu embaraço com a
frieza do “grande amigo”, Carl evitou o meu olhar, refugiando-se próximo a um
grupo que gargalhava alguma piada política da época, cujo significado eu não
compreendi. Eu estava sozinho naquele ambiente lotado de rostos
desconhecidos, sem nenhum plano estabelecido. Quando estava praticamente
desistindo da empreitada e preparava-me para continuar meu caminho previamente
estipulado, ao encontro de Hal Roach e Harold Lloyd, um rosto familiar
destacou-se na multidão. Escutando uma voz masculina que chamava seu nome, o
elegante homem virou-se para trás e cumprimentou de forma efusiva o anfitrião
da festa. Eu então tive a confirmação, aquele que estava a doze passos de
distância de onde eu procurava manter-me calmo, era David Wark Griffith.
***
Harry havia tido grande importância na carreira de Griffith,
pois o ajudou em seu início chamando-o para os estúdios Mutual. Quando o
épico “O Nascimento de Uma Nação” ultrapassou todos os custos de produção, ele
acreditou no trabalho do jovem e trabalhou o filme de forma independente. Mesmo
com todos os problemas que o tema causou, foi um enorme sucesso financeiro,
como nunca antes havia sido visto na indústria que se formava.
***
Chegando próximo dos dois, eu consegui escutar uma breve
conversa onde Griffith mencionou alguns casos curiosos de sua recente filmagem:
“The Greatest Question”, assim como salientou sua satisfação com os resultados
da obra anterior “O Lírio Partido”. Consciente de estar na presença da história
viva, pulsando a poucos passos de distância, eu procuro uma forma de atrair a
atenção deles e conseguir estabelecer o contato. No exato momento em que
intencionava abrir a boca e chamar Harry pelo nome, uma mão suave e enluvada
toca meu ombro. Era Mary Pickford, que me estendia a cigarrilha aguardando que
eu a acendesse.
Continua...
Continua...
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