Hoje fui retirado da cama ainda de madrugada por um
telefonema inconveniente. Um amigo jornalista que aparentava desespero e
balbuciava palavras desconexas em um pedido de ajuda. Por um erro tolo,
havia enviado um texto relevante para sua coluna, em um dia que deveria ser
tomado por escritos padronizados e temáticos, afinal era o "Dia de São
Impossível", protetor dos ingênuos e ilógicos. Eu tentava acalmá-lo, mas
não estava surtindo efeito. Ele elevou o tom de voz:
- Você não está entendendo! Já folheou os jornais hoje?
Todos estão escrevendo sobre ele, sobre seus milagres, sua incrível batalha com
o gigante de duas cabeças. Uns estão narrando sua história, os colunistas de culinária
estão ensinando a preparar o "bobó de camarão à la Impossível", mas
eu esqueci da data e escrevi sobre assuntos relevantes.
- Quem disse que relevância é trabalho de jornalista? Liga a
televisão e você vai ver que está todo mundo falando sobre o "Dia de São
Impossível". Amanhã será o "Dia do Corretor de Imóveis", depois
"Dia da Sandália de Dedo", talvez você consiga encaixar um texto
relevante entre Quarta e Sexta, porque no Sábado já será o "Dia do Pão de
Forma". Por sinal, eu não posso esquecer de ir à padaria um dia antes,
pois senão terei que comprar pães somente no Domingo, quando baixar o preço. É
como na Páscoa. Por essa razão, sigo a tradição de meus pais:
estipulo para meus filhos que a Páscoa é no dia seguinte ao que é
comemorado no resto do País. Eles adoram! Ganham o triplo de chocolate que os
seus coleguinhas.
- Quem está falando de Páscoa? Você é de uma
tremenda insensibilidade com os problemas dos outros. Estou aqui desesperado e
você falando tolices.
- Está bem, você está certo. Qual o tema do texto que
escreveu?
- Sobre a ideia absurda de que um prato de farofa, pipoca e
galinha na encruzilhada, possa causar alguma modificação na vida de algum ser
humano. Um estudo científico que comprova que nenhuma maldição pode surtir efeito,
além do psicossomático.
- Essa matéria não atrairá ninguém, amigo. Devia ter escrito
sobre o dia em que "São Impossível" enfrentou o gigante de duas
cabeças e, durante doze horas seguidas, leu para ele "O Grande
Gatsby". Com um material rico desse nas mãos e você foi estimular alguém
a pensar? Esse seu complexo de messias ainda vai te colocar num hospício. Faz o
seguinte, descansa, não dá para resolver mesmo. Recomponha-se e prepare um
texto bem bonito sobre o "Dia do Corretor de Imóveis". Eu conheço um,
você quer entrevistá-lo? Eles ficam em polvorosa nessa época, como velhinho
barbudo em época de Natal.
Ele desligou na minha cara, numa atitude bem deselegante.
Olhei para o relógio, constatei que já estava atrasado para o trabalho.
Apressado, fui para a cozinha e devorei uma deliciosa broa de milho. Cinco
segundos depois me sentia destruído emocionalmente. Como pude esquecer que
naquele dia não se comia broa de milho? Consta no Antigo Testamento: "...
E Malequisec, primo de Zompiratán, sobrinho do Juca "Ervas Finas",
ofereceu uma broa de milho para o sábio no deserto, que negou, argumentando
preferir algo mais indigesto como penitência". Como sinal de respeito ao
sábio, tornou-se uma tradição não comer broas de milho nesse dia.
***
Juca "Ervas Finas", um dos personagens
vergonhosamente ignorados pelos historiadores e teólogos, teve uma infância
dominada por uma crise existencial na Palestina. Inconformado com o
desinteresse de seu povo em acumular ervas finas em suas casas (pois preferiam
utilizá-las em seus alimentos), reuniu alguns simpatizantes de sua causa e
formou, provavelmente, o primeiro fã-clube da história do mundo:
"Meneleu, o Triunfal". O velho pastor de ovelhas Meneleu foi
pioneiro no acúmulo de suas ervas em potes de barro, um ídolo para o jovem
Juca. Ainda adolescente, sua casa foi saqueada por centuriões romanos, que
levaram todos os potes. Juca entrou em profunda depressão, passou a cometer
pequenos furtos nas aldeias próximas. Chegou a apunhalar um comerciante, numa
crise de tédio (algo bastante comum na época). Chegou ao fundo do poço, ao
extremo da degradação humana, porém, decidiu se tornar cantor gospel. Acumulou
fortuna e construiu o primeiro templo de adoração às ervas finas, um point muito
frequentado.
Agradeço ao Padre Carmelito, o Bondoso, pela
inestimável colaboração nessa pequena matéria.
***
Larguei a broa de milho na mesa, como se fosse a adaga
ensanguentada que matou Júlio César. Não podia me perdoar por aquele pecado. O
telefone tocou novamente e o atendi sem emoção, com o olhar perdido no
horizonte de farelos de broa de milho. Escutei a voz desesperada do meu amigo.
- Você não vai acreditar! Fui comprar um pastel na rua, já
que hoje não podemos comer broa de milho, e passei em frente a uma
encruzilhada. Uma oferenda com vela, galinha, pipoca e farofa estava lá
atraindo os pombos. Um mendigo estava muito animado, comendo tudo e lambendo os
dedos.
- E o que eu tenho a ver com isso?
- Só porque hoje é "Dia de São Impossível", aquele
morador de rua teve, pela primeira vez em semanas, um bom café da manhã. Agora
entendo a razão que leva todos a escreverem sobre ele nesse dia. Ele realmente é
milagroso, evoca a bondade no ser humano. Pelo menos, prefiro ver por esse
ponto de vista.
Terminamos a ligação e, em homenagem ao meu amigo, o homem
que me ensinou a ver valor até mesmo nas atitudes mais desgraçadas e
humilhantes do ser humano, com um sorriso e sem medo algum, eu devorei um saco
de broas de milho.
Memórias (Stardust Memories - 1980)
Sandy Bates (Allen), um lendário cineasta famoso por suas
comédias, está cansado de ser engraçado. Em um fim de semana, à beira de um
ataque de nervos, Bates comparece a uma retrospectiva de seus filmes, onde
acaba tendo que se confrontar com o significado de seu trabalho, com as
lembranças de seu grande amor, Dorrie (Charlotte Rampling), e com os méritos de
um relacionamento sério com sua nova namorada, Isobel (Marie-Christine
Barrault).
Dizer que, nesse filme, Allen emula Fellini é chover no
molhado, então prefiro não dizer nada e conceder o espaço para uma
propaganda do nosso patrocinador.
***
"Está cansado de acordar todas as manhãs do "Dia
de São Impossível", procurando saciar sua fome com aquelas deliciosas
broas de milho que o aguardam na cozinha, e sentir aquela frustração ao lembrar
que não pode comê-las? Eu apresento para você o fantástico e revolucionário
"Livro Sagrado Editado Convenientemente". Ele pode ser encontrado em
várias versões, dependendo de seu interesse. Você, rapaz religioso, quer pagar
de moralista bondoso, mas não ficar mal com as mulheres? Seus problemas
acabaram! O "Livro Sagrado Editado Convenientemente" retira todas as
várias menções ao histórico danoso da mulher ao longo da história. Mulheres
submissas, propagadoras de todo mal e culpadas por todos os problemas do mundo?
Nunca mais! O "Livro Sagrado Editado Convenientemente" pode ser
adquirido em qualquer templo de sua rua. Isto é, caso sua rua já não tenha sido
tomada por eles, o que facilitará bastante este processo".
***
No filme, Allen explora um dos aspectos consequenciais da
fama, o arregimentar de um séquito de admiradores, alguns até fanáticos, que
buscam no realizador uma satisfação de seus desejos pessoais. Seu personagem
procura um novo caminho, um desafio artístico, experimentando em gêneros
diferentes, mas seu público o questiona debochadamente e o rejeita. Com certeza
se trata de um desabafo do cineasta após a recepção fria do público com seu
projeto dos sonhos: "Interiores". Seus fãs são retratados pelos
figurantes mais feios e caricatos já reunidos em um único projeto. Eles o
abordam constantemente com argumentos absurdos, analisando suas obras fora de
contexto e interpretando-as da forma mais equivocada ("o humorista é um
símbolo para a homossexualidade"), interrompendo-o em situações rotineiras
para pedir emprego para um parente ou jogando currículos em suas mãos. Até
mesmo seres do espaço descem de suas naves para afirmarem a ele que preferem
seus filmes cômicos de início de carreira. E é nesse filme que Woody solta
aquela que considero sua melhor frase: "Para você sou um ateu, mas, para
Deus, sou uma leal oposição".

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