"Melhor não termos cinema algum, do que o tipo de
cinema que temos hoje".
Assistir esta obra nos traz reação análoga a que sentiríamos
caso alguém nos atirasse dormindo em uma piscina gelada. O choque inicial,
seguida da terrível sensação de frio, que parece anestesiar nossas mãos e faz
tremer os dentes. Obviamente não é algo agradável, mas é uma experiência que
leva tempo para ser esquecida. A Sétima Arte é uma ferramenta que normalmente
nos ilude. Por meio de um ângulo de câmera que faz o dia virar noite, ou um
truque de luz que pode dar ares de divindade a uma atriz que passou a noite
anterior em claro, mal conseguindo disfarçar seu cansaço. Wenders utilizaria
esta ferramenta de forma lúdica no belo "Asas do Desejo", concebendo
um filme em que anjos enxergam um mundo preto e branco, escutando os
pensamentos dos humanos e aconselhando-os ao pé do ouvido. Porém em "No
Decurso do Tempo" (Im Lauf der Zeit - 1976), a ferramenta expõe a
realidade sem "maquiagem", auxiliada por uma fotografia impecável do
holandês Robby Müller, que a nova geração deve conhecer pelo trabalho com Lars
Von Trier em "Dançando no Escuro". Algumas escolhas podem parecer
gratuitas e ofensivas (como quando o personagem vivido por Rüdiger Vogler
defeca no chão, mediante a perspectiva da câmera), ainda mais se considerarmos
que até alguns anos antes (mais precisamente em 1960, com "Psicose"
de Hitchcock) nenhum filme havia sequer mostrado um vaso sanitário. Esta cena
dá o tom de toda a produção, o que acaba nos fazendo sentir como passageiros na
viagem dos dois personagens, contorcendo-nos em desconforto tanto quanto eles.
O fato de não existir um roteiro, apenas a cena inicial em que os dois se
encontram, corrobora a intenção de Wenders em criar um definitivo "road
movie" (filme de estrada), onde o destino é menos importante que o pó que
é soprado ao vento. Os personagens buscam respostas, mas encontram apenas mais
perguntas.
O alemão Wenders sempre foi apaixonado pelo cinema americano
(especialmente o "Noir") e expressou este sentimento em vários de
seus filmes. Iniciou como crítico em jornais e revistas, porém quando foi para
trás das câmeras, revitalizou o cinema que era feito em seu país, junto com
outros jovens audaciosos, como Werner Herzog. Com o filme que abordo neste
texto, ele "colocou o dedo na ferida", expondo a realidade de muitas
salas de cinema interioranas alemãs da época, decrépitas e amparando-se em
exibições de pornografia barata. Com poucos diálogos e utilizando o
companheirismo forçado entre um desleixado técnico de projetores e um homem
desesperado que havia tentado o suicídio, após ter se separado da esposa, o
cineasta cria uma fábula de desapego e renascimento, sem apoiar-se em nenhum
clichê ou fórmula.
Minha cena favorita na obra representa de forma sensível a
ambição de Wim Wenders como autor: os dois companheiros procuram ajudar um
professor, consertando o refletor de uma sala de cinema, onde será exibido algo
para uma classe de crianças. A demora acaba levando os alunos a iniciarem uma
algazarra, que é interrompida por deliciosas gargalhadas. O professor então
olha para trás e descobre a razão: os dois companheiros (a sombra deles
refletidas na enorme tela) brincando entre si, como nos clássicos filmes mudos
de humor. As crianças aplaudem e interagem com eles, que entram na brincadeira,
para o espanto do professor. Como a lágrima que o personagem de Vogler
"rouba" da garota com quem flertava, o cinema de Wenders não é para
ser somente assistido, mas sim "apropriado" por cada espectador.

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