Peça minúscula em Um Ato: Angústia de um Escritor
CENA: Quarto de um escritor, com uma cesta de lixo
repleta de bolas de papel amassado, uma mesa com um computador, uma xícara de
café frio e alguns livros empilhados de forma desorganizada. Ao lado da mesa,
uma cama com aparência de que nunca foi usada, como aquelas que decoram as
lojas de móveis. O escritor caminha de um lado para o outro, com uma expressão
angustiada, passos pesados.
ESCRITOR: Ninguém se importa. Eu devia aceitar o
conselho do meu sábio tio Nogueira, que sempre me disse que propagar cultura no
Brasil é o mesmo que tentar vender cosméticos no deserto. As pessoas podem até
achar bonitinho, mas sabem que irá derreter com o tempo. Eu devia escrever
sobre assuntos idiotas, criar bordões estúpidos e ficar martelando na cabeça
dos leitores todos os dias. (direciona-se para o público com um largo
sorriso e começa a falar supervalorizando cada sílaba) Judia de mim, “tô”
tetralouco! (de forma exagerada, estala os dedos e corre para o seu
computador na mesa, sentando-se e começando a teclar) Genial! Tenho
certeza que logo depois que eu postar esta frase no meu perfil, eu receberei a
atenção de todos. Quem sabe aproveito o vácuo e coloco logo em seguida o texto
que me manteve acordado toda esta madrugada. Vai dar certo!
(Uma figura de luz faz-se presente como que por mágica no
quarto, lentamente tomando a forma de uma mulher) * O efeito pode ser
alcançado por um truque de espelhos, simples lanterna, ou jogando a atriz com
cuidado em cena.
ESCRITOR: O que você está fazendo aqui? Nós terminamos
já faz mais de um ano. Desde quando você participa do “Cirque du Soleil”?
EX-NAMORADA: Eu percebi que você precisava da minha
ajuda e pedi permissão à suspensão de descrença de quem nos assiste, para que
fosse transportada para cá com um desnecessário esbanjamento técnico, ao invés
de simplesmente tocar a sua campainha. Este simples detalhe pode fazer esta
peça ser vista pelos pseudointelectuais como algo transcendental, com várias
camadas de interpretação. Então me agradeça, ingrato.
ESCRITOR: Eu não tenho nada a agradecer, muito pelo
contrário. A sua intrusão está fazendo este texto ficar enorme, o que
provavelmente já desmotivou a leitura em 80% de meus leitores. (várias
pessoas da plateia se levantam e deixam o teatro) Está vendo? Eles estão
indo ver as fofocas quentinhas da Madame Bijou ou indo coletar fotos de bebês e
árvores para enviarem aos amigos, para posarem de bonzinhos.
EX-NAMORADA: Você realmente anda muito descrente, não
percebe aquele casal na primeira fila? Eles não desgrudam os olhos do palco.
ESCRITOR: São meus pais! Você viveu comigo durante
quatro anos e não se lembra da fisionomia deles?
EX-NAMORADA: Sou um facho de luz, não seja tão
exigente. (aproximando-se dele e sentando-se ao seu lado)O que está
angustiando você? Os comentários que, por mais que você saliente o quanto são
importantes, a maioria não dedica trinta segundos para escrevê-los? Ou o fato
de que estas mesmas pessoas provavelmente não o façam por estarem ocupadas
comentando sobre a novela, os últimos eliminados do reality show, os
possíveis alienígenas em Marte ou o sertanejo pop bacharelado? Trinta segundos
são trinta segundos, querido. Quantas quentinhas da Madame Bijou podem ser
lidas em trinta segundos? Os seus textos normalmente são enormes, quatro
parágrafos, tenha dó. Você acha que o mundo gira em torno de cultura? Escreva
sobre sexo, assassinatos, envie PowerPoints com imagens antigas da
cidade, incrível como isto fascina até mesmo aqueles que pouco respeitam a
imagem atual. Sujam as ruas, mas deixam rolar lágrimas ao verem fotos da cidade
limpa em preto e branco. Já pensou em propor aos leitores algo que ainda não
tenha feito?
ESCRITOR: É o que estou fazendo neste momento, mas se
você olhar para sua direita, verá mais uma fileira de pessoas se levantando e
indo embora do teatro. Você está vendo aquela cesta de lixo e estes livros aqui
na mesa? Eu me dedico vinte e quatro horas por dia, para entregar a eles textos
de qualidade, mas sinceramente não sei se vale a pena. Você não entenderia,
pois também me largou pelo mesmo motivo. Você nunca deu valor ao meu trabalho.
Engraçado pensar em como éramos apaixonados no início. (a ex-namorada
demonstra tristeza, levanta-se e começa a caminhar de um lado ao outro do
quarto) Lembra quando íamos ao cinema e eu não conseguia entrar caso o
filme tivesse começado? Você nunca entendeu a razão. O respeito que eu sinto
por aquele ambiente.
EX-NAMORADA: Na casa da minha mãe, no dia do
aniversário dela, você chegou quarenta minutos atrasado. Quer falar de
respeito?
ESCRITOR: Ela não aceitava meia-entrada. A questão não
é esta, temos gostos e prioridades diferentes, isto é normal. O anormal é não
tentarmos aparar estas arestas, chegar num meio-termo. A nossa relação me faz
lembrar muito a de Alvy Singer e Annie Hall em “Noivo Neurótico, Noiva
Nervosa”. Claro que você não entenderia esta analogia, já que nunca se
interessou em assistir os filmes do Woody Allen. Sempre se referiu a eles como
“coisa sem pé nem cabeça”.
EX-NAMORADA: Nunca entendi a graça que você vê nele,
com aqueles óculos enormes e fazendo sempre o mesmo personagem.
ESCRITOR: Claro que você não entende. Da mesma forma
que eu não entendo como você consegue achar tão interessante acompanhar
quatorze novelas por dia, sabendo que no final de todas haverá estouro de
champanhe, casamentos e nascimentos, arcos narrativos sendo concluídos às
pressas, com o vilão levando a melhor, por ter sido o mais popular neste país
de valores invertidos. Neste filme do Woody Allen que eu citei, ele faz
referência a Norman Rockwell e Sylvia Plath, quais as referências que são
feitas nas novelas que você assiste?
EX-NAMORADA: (assumindo uma postura mais humilde) Concordo
que são públicos-alvo diferentes. Acho louvável que tenha tentado durante o
tempo em que ficamos juntos, alimentar-me de cultura geral. Mas o ser humano
não gosta de mudanças, entenda isto. Eu preferi deixar você e ficar com alguém
parecido comigo, que gosta de xingar o atacante do time adversário quando faz
um gol, ficar repetindo os bordões das novelas. Sou mais feliz agora.
ESCRITOR: (levantando-se e pegando carinhosamente a mão
da ex-namorada) Então eu também fico feliz.(retorna para a mesa e atualiza
a página de seu perfil) Não falei? Aquela frase que postei já está com
cento e cinquenta curtidas e quarenta e sete comentários, que vão desde pontos
de interrogação e “kkk´s”, até breves discursos existenciais. Onde este povo
estava escondido? Vou postar no vácuo o texto que escrevi na madrugada. (somente
então ao tornar a olhar para sua ex-namorada, percebe que ela não está mais
presente)Foi muito bom vê-la novamente e constatar que continua a mesma, assim
como eu. Motivo suficiente para admirar esta mágica que nos fez tão feliz
juntos por tanto tempo. Continuarei insistindo, pois preciso dos ovos. (ele
então sorri) Você nunca entenderia esta referência. (ele olha para a
plateia quase vazia por alguns segundos, depois volta seus olhos para a tela do
computador e gargalha). Impressionante, apenas três curtidas e um comentário. (olha
sorridente novamente para a plateia, apontando para os poucos que restaram) Foram
vocês, não é? (emocionado ele conclui) Muito obrigado! (cai o
pano)
Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall – 1977)
A obra mais popular do diretor, laureada com o principal
Oscar da Academia, além de justos reconhecimentos à atuação de Diane Keaton e
à direção de Allen. O ápice na fase inicial de sua carreira, que começaria no
ano seguinte a tomar caminhos mais ousados, com o inseguro autor acreditando
cada vez mais em sua capacidade, arriscando mostrar para o público que não era
apenas um excelente comediante, mas também um pensador existencialista, seguindo
os passos de seu grande ídolo: o sueco Ingmar Bergman. O estilo mais sóbrio já
demonstra a mudança de atitude logo nos créditos iniciais, título em fonte
Windsor branca, contrastando com o fundo preto, adotando o formato que viria a
acompanhá-lo pelas décadas seguintes.
QUANTA SERIEDADE! VOCÊ REALMENTE PRETENDE ADOTAR ESTE ESTILO
NOS PRÓXIMOS TEXTOS DO ESPECIAL, CARO ESCRIBA? EU ACHEI QUE FOSSE ENCONTRAR
AQUI TEXTOS COMPLEMENTARES E BEM HUMORADOS, NÃO AQUELA MESMA ESTRUTURA “SINOPSE
DE TRÊS PARÁGRAFOS + OPINIÃO DE UM PARÁGRAFO” QUE ENCONTRO EM QUALQUER OUTRO
LOCAL. EU NÃO QUERO QUE VOCÊ ME CONTE A HISTÓRIA COMO SE EU FOSSE UM BEBÊ.
INSTIGUE-ME, SURPREENDA-ME. (LEITOR ANÔNIMO)
Depois de brincar com o futuro e o passado da sociedade, subvertendo
como caricatura, Woody, pela primeira vez, se mostra como um personagem com o
qual o público pode se identificar. Existe muito dele próprio no roteiro,
tornando ainda mais interessante acompanhar seus relatos sobre sua infância, em
especial a ótima sequência em que seus colegas de classe revelam o que se
tornarão quando adultos, incutindo uma analogia simples e muito eficiente: a
casa em que cresceu ao som das brigas dos pais, sob uma montanha-russa. Porém, meu momento favorito é quando Allen encontra um chato na fila do cinema, que
berra sua pretensa cultura cinematográfica ao tentar impressionar sua namorada.
Quem nunca passou por isso? Aquela pessoa que fala alto, por si só, um sinal de
deselegância, na fila: “Todos os filmes desse diretor são
uma droga” (quando na realidade a pessoa sequer conhece sua filmografia), ou “Só
você mesmo para me arrastar para ver uma chatice em preto e branco” (da mesma
empresa que trouxe até você as célebres frases: “de triste, já basta a vida” e
o insuperável “putz, estes atores todos já morreram”).

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