quinta-feira, 31 de março de 2016

Cine Giallo - Dallamano, Fulci, Martino e Lado


O Que Vocês Fizeram Com Solange? (Cosa Avete Fatto a Solange? – 1972)
Várias moças são brutalmente assassinadas em uma escola feminina. 

Começo dizendo que esse é o meu segundo giallo favorito, depois do “Profondo Rosso”, de Dario Argento. Ao rever o filme pela enésima vez nessa edição impecável da Versátil, confirmei minha paixão por essa obra-prima, que transcende sua importância no gênero, dirigida por Massimo Dallamano, com fotografia de Joe D’Amato. Pra você ter ideia do quanto gosto dele, considero a trilha sonora uma das dez melhores na carreira do genial Ennio Morricone, o que é dizer bastante, levando em conta a qualidade do seu conjunto de obra. Ele transita com segurança de um tema pleno em ternura para a tensão pura e inescapável. É um crime revelar qualquer ponto da trama em um texto informativo que intenciona te fazer buscar conhecer o filme, tenha certeza, a ignorância é uma bênção em nove entre dez gialli. O que posso mencionar aqui é um detalhe que me perturbou quando vi pela primeira vez, o fato de que a tal Solange do título sequer é citada no roteiro até um avançado ponto no segundo ato, algo que se resolve de forma brilhante e totalmente inesperada. O frame que fecha a história consegue transmitir um misto de piedade, terror e doçura, uma grandeza que salienta o valor desse gênero, uma imagem que dificilmente sairá de sua mente. A atmosfera alcançada insinua a predominância da maldade naquela realidade aparentemente tranquila, o elemento que conduz pessoas corretas e equilibradas a perpetrarem atos doentios. Acho fascinante a maneira como o casal, vivido por Fabio Testi e Karin Baal, inicia com sérios problemas no relacionamento desgastado, mas que, no decorrer da trama, sente a reaproximação diante do mistério a ser resolvido, um arco narrativo complexo e executado com eficiência, o que engrandece ainda mais o projeto. Perceba o cuidado com o visual da esposa, como ele se modifica juntamente com as suas atitudes na relação, refletindo o psicológico dela. E perceba também como o protagonista, alguém muito longe de ser um santo, nunca é estereotipado no roteiro, outro ponto pouco usual e que reforça a maturidade emocional da trama.


Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher (Una Lucertola con la Pelle di Donna – 1971)
Mulher é acusada de ter matado sua vizinha, após ter sonhado com o assassinato. 

Como definir o encontro de Florinda Bolkan e Anita Strindberg em uma das cenas mais sensuais do cinema italiano? Não importa que o desfecho da cena seja brutal, o tratamento visual é de uma elegância hipnótica rara, uma prova de que o eclético diretor Lucio Fulci, quase sempre reduzido ao gore de seus filmes de terror, era um competente artesão. É comum ler sobre o caso das raposas vivissecadas, o elemento gore do filme, criadas pelo especialista Carlo Rambaldi, que teve que provar na justiça que não eram reais, uma nota curiosa, mas apenas nota de rodapé, perto do brilhantismo da obra. O diretor, fazendo uso generoso e inteligente da tela dividida, anos antes de Brian De Palma esmerilhar o recurso em “Irmãs Diabólicas”, busca inspiração nos trabalhos de Salvador Dalí e Francis Bacon para elaborar as fantásticas sequências oníricas, com o reforço da fotografia de Luigi Kuveiller, de “Profondo Rosso”. E vale prestar atenção redobrada nesses momentos, já que suas simbologias vão de encontro à resolução do mistério. Sobra até uma homenagem a “Os Pássaros”, de Hitchcock, na angustiante cena do ataque de morcegos. Destaco que o filme tem semelhanças com outra pérola no gênero: “Todas as Cores do Medo”, de Sergio Martino, que torço para que a Versátil inclua em um próximo volume. 


Torso (I Corpi Presentano Tracce di Violenza Carnale – 1973)
Um assassino mascarado mata jovens estudantes, espalhando o terror numa cidade do interior da Itália.

Quando conheci os gialli, em minha fase exploratória adolescente, o principal motivo que me despertou o interesse foi um trecho lido em alguma revista SET, onde o escritor abordava a influência desses filmes na criação dos slashers norte-americanos. Então o pai do Jason Voorhees e do Michael Myers era italiano? Quando efetivamente vi “Torso”, “Banho de Sangue”, entre outros, encontrei mais do que referências, eu percebi que os diretores de obras como “Sexta-Feira 13” e “Halloween” copiaram descaradamente sequências inteiras desses filmes, enquadramentos e símbolos visuais, eles tomaram um banho demorado nessa fonte, adicionando nessa equação a imortalidade dos assassinos, sempre dispostos a afiarem seus facões para as sequências. Dessa chocante constatação nasceu meu amor pela filmografia de Mario Bava, Dario Argento, Aldo Lado, Sergio Martino, entre outros mestres do giallo. O que Martino faz em “Torso”, que prefiro chamar pelo título original: “Os corpos apresentam sinais de violência sexual”, o grande barato do filme é seu total desinteresse por qualquer sutileza, ele faz questão de entregar tudo o que ele sabia que o público pagante desejava ver na tela. De belas mulheres sensuais da cidade grande provocando o povo da cidade interiorana, até a representação crua da violência, ainda mais perturbadora enquanto sugestão, tudo é mostrado de forma intensa. Tudo conspira para um terceiro ato agressivamente maravilhoso, com adoráveis mulheres isoladas em uma locação exótica, sob o olhar atento de um assassino. Os últimos vinte minutos são uma aula de suspense e terror, com destaque para a cena que envolve uma tentativa de se resgatar uma chave por baixo de uma porta, momento realmente inesquecível. E, inserido no contexto, o roteiro também utiliza o microcosmo da relação que se estabelece entre as jovens visitantes e o povo da cidade, como um reflexo do macrocosmo político e social da Itália na época, as tensões de classe, raça e gênero que movimentavam as manchetes dos jornais.


A Breve Noite das Bonecas de Vidro (La Corta Notte Delle Bambole di Vetro – 1971)
Em Praga, um jornalista americano investiga o desaparecimento repentino da namorada. 

Não tenho dúvida alguma que, mais do que coincidência, Stanley Kubrick efetivamente se apropriou do tema trabalhado no filme por Aldo Lado, que demonstra incrível segurança já em seu primeiro projeto como diretor/roteirista, após uma importante experiência como assistente de direção em “O Conformista”, de Bertolucci, trabalhando com ousadia a estrutura alicerçada em flashbacks. A mente de Jean Sorel, assim como a do soldado de “Johnny Vai à Guerra!”, excelente livro de Dalton Trumbo que possivelmente serviu como inspiração, segue ativa e aprisionada em um corpo que foi dado como morto. Interessante pensar que a adaptação cinematográfica do livro de Trumbo, que foi dirigida pelo próprio autor, estreou no mesmo ano. A namorada é vivida pela bela Barbara Bach, seis anos antes de se tornar a bondgirl de “O Espião Que Me Amava”. O que me fascina nesse giallo é que seu tom é único no gênero, o roteiro lentamente te envolve no mistério, nunca pesando a mão naquela violência criativa que pontuaria os títulos mais famosos. E, ao desconstruir a expectativa do público pelo estilo, deixando de lado a espetacularização dos assassinatos e favorecendo o passo a passo investigativo, o roteiro conduz a uma percepção mais profunda desse público pelo conteúdo abordado, a atenção é direcionada para os momentos tranquilos, as conversas aparentemente irrelevantes, tornando a revelação que ocorre no terceiro ato muito mais impactante, e, porque não dizer, ainda mais apavorante. A cena final, sem exagero, eu considero uma das mais fortes e angustiantes que já vi em todos os gialli.






* A caixa “Giallo, Vol.2”, com ótimos documentários, está sendo lançada em DVD pela distribuidora Versátil, com a curadoria sempre competente de Fernando Brito. 

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