terça-feira, 31 de março de 2015

Chumbo Quente - "Dívida de Honra"

Link para os textos do especial:


Dívida de Honra (The Homesman - 2014)
É um aspecto comum do cinema, quando tenta criar uma personagem feminina forte, adicionar em sua composição vários elementos compartilhados pelos heróis, invariavelmente masculinizando a mulher, tornando-a bruta e insensível, ao invés de evidenciar a bravura inerente à sua feminilidade. Como a Ellen Ripley, de “Aliens – O Resgate”, ou, num exemplo recente do gênero, a menina da refilmagem de “Bravura Indômita”, ainda que exista uma função dessa atitude em sua origem literária, já que ela adota psicologicamente a personalidade do pai que busca vingar. Já a Mary Bee, vivida por Hilary Swank, é o extremo oposto, um inteligente modelo de construção de personagem. Ela é uma mulher madura que sobrevive sozinha no Velho Oeste, enfrentando o preconceito da sociedade machista, rejeitando a subserviência ao provar competência em seu trabalho, porém, como uma alma sensível, capaz de aliviar as angústias diárias tocando imaginariamente as teclas de um piano bordadas em tecido, ela deseja ser verdadeiramente amada. 

O cenário rude, desolado, reflete metaforicamente a negação da sensibilidade, um berço de homens estúpidos que cospem suas mulheres de suas vidas, ao primeiro sinal de problema, figuras vistas como minimamente humanas, dispensáveis. Ao se dispor à difícil tarefa de conduzir três mulheres que perderam a sanidade, por conseguinte, impiedosamente despejadas por seus maridos, até uma cidade onde irão receber tratamento, Mary ousa vestir o manto de sacrifício por uma causa cujo escopo sequer poderia compreender. A alegoria é potencializada pela brutalidade que Tommy Lee Jones, enquanto diretor, não se intimida de mostrar. Cenas muito fortes, como uma protagonizada por Miranda Otto e um bebê, logo no início, exibem a coragem de um roteiro que não intenciona suavizar o impacto de sua mensagem, infelizmente ainda vergonhosamente atual. A revoltante repetição do ato do estupro com uma das mulheres doentes, incapaz de reagir, enquanto outra, que testemunha a violência, conscientemente silencia, assim como a automutilação, filmada com chocante frieza, ou as tentativas humilhantes da protagonista que tenta se adaptar às pressões comportamentais e encontrar um marido, estão dentro do contexto da época, porém falam diretamente ao papel da mulher hoje, cerca de cento e cinquenta anos depois, vítima de uma balança social que nunca se equilibra, nos mais variados setores. 

O personagem de Jones aparece exatamente na cena seguinte à reza do sacerdote, que pede proteção a Mary em sua árdua jornada, uma resposta certa encaminhada por linhas tortas de caráter, o símbolo máximo, quase caricato, do machismo, alguém que despreza o feminino a ponto de inicialmente rejeitar a hipótese de consumar uma noite de amor com Mary, desprezando-a até como imediatista objeto sexual. Ele não odeia a mulher, apenas sente profunda indiferença. Na cena, ele se despe com desleixo e preguiça, salientando seu total desinteresse em repensar sua conduta. Ela, por outro lado, havia demonstrado na cena em que consegue estabelecer conexão emocional com uma das vítimas, após gentilmente abraçar a ilusão que a mantém viva, a disposição libertária para a mudança de pensamento. Ela, a mulher na sociedade, está aberta à discussão, mais preparada que qualquer homem. Ele, o machista impotente, segue surdo aos pedidos de respeito e igualdade. O faroeste é utilizado então como veículo estético para uma trama que nos conduz à gradual percepção desse homem, o Adão desencantado, que aprende a conviver com o feminino. Evitando revelar muito da trama, vale ressaltar a beleza metafórica da linda cena no rio, que representa o gatilho dessa mudança, um dos momentos mais singelos e bonitos que vi nos últimos anos. Grande parte do mérito se deve também à impecável trilha sonora de Marco Beltrami. 

“Dívida de Honra” é, desde já, um dos melhores filmes do ano.

"Dois Lados do Amor", de Ned Benson


Dois Lados do Amor (The Disappearance of Eleanor Rigby: Them - 2013)
É complicado analisar essa versão truncada, editada a pedido do produtor Harvey Weinstein, visando um maior apelo comercial. O resultado dessa colcha de retalhos não representa a beleza da ousada obra de estreia do promissor roteirista e diretor Ned Benson, dois projetos que exploram um mesmo caso de amor sob duas perspectivas, a da traumatizada esposa, vivida por Jessica Chastain, com clara inspiração nas mulheres enigmáticas do cinema francês da época da Nouvelle Vague, e a do confuso marido, vivido pelo carismático James McAvoy. 

Tendo assistido as três versões, afirmo que o produto que estreia nos cinemas brasileiros é o que tem a execução mais problemática, perdendo toda a fluidez e o senso de silêncio, ainda que seja uma proposta válida e adulta em um gênero tão maltratado atualmente. Quem busca os estímulos adestrados pela banalização dos clichês irá sair frustrado, o roteiro está mais próximo do existencialismo da excelente trilogia romântica de Richard Linklater, com foco na sagacidade dos diálogos, onde os eventos mostrados existem apenas como incitação sensorial ao público, um convite para que cada espectador construa sua própria visão sobre os possíveis significados para esse desaparecimento da protagonista, elemento que se perde no convencional título nacional. 

A jovem que modifica sua aparência radicalmente após uma tragédia, foge do reflexo no espelho, rejeita o homem que amava, desaparecendo em sua autocomiseração. Ao mesmo tempo em que a caracterização do casal não ajuda no investimento emocional do público, o consequente distanciamento fortalece a compreensão de que o que está em discussão, o leitmotiv emoldurado pela linda fotografia de Christopher Blauvelt, é mais grandioso que o óbvio retrato amargurado dos malefícios da autopiedade e o doloroso processo de culpa. Um estudo sobre a impossibilidade de estarmos no controle de nossas vidas, algo que se intensifica exatamente por não sabermos quase nada sobre esses personagens. 

Quando a personagem aguarda a câmera desviar o olhar, para tomar uma decisão drástica, numa das cenas mais impactantes do primeiro ato, percebemos que sua angústia consiste na incapacidade de compartilhar com outrem a sua dor, o que explica tudo o que precisamos entender sobre ela. A riqueza dessa opção consciente pelo sucinto é mérito louvável do diretor. O marido, por outro lado, busca emular uma normalidade possível em seu cotidiano, uma negação da dor. O contraste entre esses dois polos opostos é o que torna o filme um produto superior.

segunda-feira, 30 de março de 2015

TOP - Filmes sobre Vampiros


Desde o início do século passado o personagem foi citado na literatura, por nomes como Samuel Taylor Coleridge, em 1797, e John Polidori em sua obra: “The Vampyre”, lançada em 1919. Porém foi nas mãos hábeis do irlandês Bram Stoker que o mito do vampiro se desenvolveu e imortalizou-se. Lançado em 1897, o seu livro: “Dracula” tornou-se um sucesso imediato em um mundo sem as facilidades tecnológicas atuais. O personagem foi livremente baseado no conde Vlad Tepes que nasceu em 1431 e governou o território que, hoje em dia, corresponde à Romênia. Famoso por sua crueldade para com seus inimigos, ele obtinha prazer em comer perante suas vítimas empaladas, tendo como trilha sonora seus gritos desesperados. O autor criou um amálgama de referências utilizando o verdadeiro conde e o medo que ele incitava na população da época, incluindo também uma crítica às religiões. Drácula foge do crucifixo e teme a água benta, por tratarem-se da representação secular de hipócrita servidão. O vampiro representa a liberdade. Não é de se surpreender que o mito tenha se tornado tão popular ao longo do tempo, pelo simples fato de questionar as crenças divinas e se opor a uma vida solitária, pois ele busca um amor que transcende barreiras de tempo e espaço. Quantos jovens insatisfeitos e rebeldes não simpatizam com esta ideia? Nas últimas décadas, infelizmente o mito se perdeu em meio a muitas cópias descaradas, preguiçosas e sem nenhuma personalidade, até chegar aos recentes fiascos da franquia “Crepúsculo”. Um retrato triste e desolador dos malefícios da infantilização de um mito do horror que existe desde 1797.

Como sempre faço ao preparar essas listas, revejo todos os filmes e tento conhecer novos, buscando positivas surpresas. Algumas vezes, na revisão, acabo percebendo que o tempo não foi generoso, como ocorreu com “Fome de Viver”, de Tony Scott. Alguns entrariam na lista, caso ela fosse um pouco maior, como “Vampyr”, de Dreyer, o sueco “Deixa Ela Entrar”, “Stake Land”, ou o “Nosferatu” de Herzog. Bobagens divertidas como “Vamp”, “Buffy – A Caça-Vampiros”, “Vampiros, de John Carpenter”, o blaxploitation “Blacula”, e os filmes da franquia “Blade”, merecem menção apenas como curiosidade sobre o tema. Vale destacar o conto da antologia “Black Sabbath”, de Mario Bava, baseado em “The Wurdulak”, com Boris Karloff, e “Amantes Eternos”, filme recente de Jim Jarmusch. E, como menção honrosa, pela fidelidade ao livro de Bram Stoker, o filme “Conde Drácula”, feito para a televisão britânica, em 1977, com Louis Jordan.

Esses são os meus treze filmes favoritos sobre vampiros:


13 – Os Garotos Perdidos (The Lost Boys – 1987)
O tempo foi ingrato com a obra dirigida por Joel Schumacher, extremamente datada no pior dos sentidos, com um charme que resiste mais pela nostalgia daqueles que eram adolescentes na época em que passava na “Sessão da Tarde”. É exatamente esse sentimento que justifica sua inclusão na lista. Merece crédito pela boa maquiagem e pelo carisma do elenco.


12 – A Dança dos Vampiros (The Fearless Vampire Killers - 1967)
Roman Polanski quase viu sua carreira ser destruída por este projeto, fracasso de pública e crítica, vale salientar, uma versão severamente cortada pelos produtores. Polanski vive o medroso e desastrado Alfred, assistente do professor Abronsius, um especialista em identificar vampiros. A trama garante um sorriso constante, mas entrega pelo menos dois momentos de causar gostosas gargalhadas: o pouco confortável lugar que o vampiro bonachão, vivido por Alfie Bass, e "sem-teto" escolhe para se abrigar durante a noite e a falta de atenção de Alfred com seu mestre, deixado ao relento e entalado em uma janela. Gosto bastante de uma cena pequena onde o vampiro judeu, ao surpreender sua vítima ostentando um crucifixo em sua direção, simplesmente afirma: "Oh, você pegou o vampiro errado".


11 – Drácula – O Demônio da Noite (Dracula – 1974)
Dirigido por Dan Curtis, esse filme feito para a televisão, pouco conhecido até entre os fãs do gênero, teve muitas de suas ideias, inclusive cenas inteiras, copiadas por Francis Ford Coppola em seu famoso “Drácula, de Bram Stoker”, como o momento altamente simbólico em que o vampiro, vivido de forma imponente por Jack Palance, faz a jovem Mina beber seu sangue de um corte no próprio peito. O roteiro de Richard Matheson, de “Em Algum Lugar do Passado”, foi o primeiro a tratar o personagem com certa simpatia, inserindo a noção de que ele, um trágico apaixonado, estava buscando sua amada reencarnada.


10 – Drácula (Dracula – 1931)
Bela Lugosi. Apenas esse nome já bastaria para indicar a importância dessa obra na história do cinema de horror. O primeiro filme falado a lidar com um tema sobrenatural, responsável por tornar o “Universal Studios” uma referência no gênero, superado apenas pela “Hammer”, décadas depois. Como adaptação, possui falhas, como o fato de minimizar a personagem Lucy (Frances Dade), que se torna uma figura de decoração, e a equivocada alteração do Dr. Seward (Herbert Bunston), que se torna o pai da trágica Mina (Helen Chandler). O roteiro, no entanto, acerta com o personagem Renfield (Dwight Frye), que dá o pontapé inicial na trama (papel de Jonathan Harker, no original literário) transformando a esquisita caricatura imaginada por Bram Stoker em alguém tridimensional. É um teatro filmado, uma obra importante para o gênero, porém com execução bastante problemática.


9 – A Sombra do Vampiro (Shadow of The Vampire – 2000)
Com uma premissa inteligente, trabalhando a possibilidade do protagonista do clássico mudo “Nosferatu” ser, na realidade, um vampiro, o roteiro reimagina o processo de filmagem da obra, misturando realidade e ficção, colocando em confronto o enigmático Max Schrek de Willem Dafoe, e o obsessivo diretor Murnau, vivido por John Malkovich. O diretor E. Elias Merhige, responsável pelo perturbador conto de horror visual, ainda que pouco conhecido, “Begotten”, de 1990, consegue estabelecer um clima de constante opressão, favorecido pelo tom sépia e marrom escuro da fotografia de Lou Bogue. É uma obra verdadeiramente única no gênero.


8 – A Hora do Espanto (Fright Night – 1985)
Visualmente datado como “Os Garotos Perdidos”, porém o tempo foi mais generoso com sua trama, tão eficiente hoje quanto na época de sua estreia. A primeira vez que me lembro de ter sentido medo com um filme do gênero foi aos cinco anos, assistindo na televisão a cena onde Evil Ed (Stephen Geoffreys) é perseguido pelo vampiro (Chris Sarandon), caindo em um beco sem saída. Eu provavelmente nem estava entendendo a trama, mas a aparição do vampiro atrás do garoto me fez pular da cadeira. O diretor Tom Holland conseguiu realizar uma inteligente homenagem ao gênero, com esperto senso de humor, modernizando a figura do vampiro com muita personalidade, inserindo ele no cenário urbano.


7 – Drácula, de Bram Stoker (Bram Stoker’s Dracula – 1992)
Normalmente superestimado em revisões modernas, o que prova o baixo nível do tema na indústria atual, o filme de Francis Ford Coppola esbanja pretensão, porém, na mesma medida, exibe total desequilíbrio no ritmo. É indefensável a apatia de Keanu Reeves, um dos elementos que enfraquecem o primeiro ato, sem alma, frio, arrastado. O segundo ato, com a inclusão do Van Helsing vivido por Anthony Hopkins, ganha ânimo e, com exceção do excesso melodramático na subtrama do romance entre o vampiro (Gary Oldman) e sua amada (Winona Ryder), melhora consideravelmente, justificando sua posição na lista. Apesar de sugerir, pelo título, fidelidade ao livro original, o roteiro foge completamente da trama, num caso clássico de propaganda enganosa. Vale destacar a fotografia, com o intenso uso da cor vermelha, uma clara homenagem a Mario Bava.


6 – Entrevista Com o Vampiro (Interview With the Vampire: The Vampire Chronicles – 1994)
Com direção de Neil Jordan, a adaptação da obra de Anne Rice ganha ainda mais elegância, sensualidade, refinamento e lirismo. Um nome já seria suficiente para colocar a obra nessa alta posição na lista: Philippe Rousselot, um dos melhores diretores de fotografia da indústria, capaz de retratar algo grandioso, extravagante, com uma pegada realista, verossímil, em um de seus trabalhos mais bonitos. Vampiros, enquanto almas torturadas, em um clima depressivo, traduzindo a tristeza da imortalidade solitária.


5 – Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn – 1996)
Essa pérola descompromissada do diretor Robert Rodriguez, com roteiro de Quentin Tarantino, só melhora a cada revisão. A estrutura que se desconstrói no segundo ato, conduzindo o que parecia ser uma obra realista policial aos píncaros do gore absurdo, engana o espectador, que, desarmado sensorialmente, não consegue evitar ser tragado, junto com a dupla de criminosos, vividos por George Clooney e Tarantino, para o doentio cenário do cabaré demoníaco de beira de estrada. Você inicia o filme odiando os criminosos, porém, acaba torcendo por eles, quando os verdadeiros monstros aparecem. É o filme do gênero feito por mentes criativas estudiosas e apaixonadas pelo horror, com diálogos que nasceram para serem memorizados e repetidos.


4 - A Máscara de Satã (La Maschera del Demonio – 1960)
A estreia do diretor italiano Mario Bava, deixando um pouco de lado o personagem de Stoker, ele se baseou no conto vampiresco russo: “The Vij” de Nikolai Gogol. A atriz Barbara Steele e seus enormes e lindos olhos ficaram para sempre impressos nas retinas dos fãs de horror. Ela interpreta uma bruxa que, ao ser assassinada pela inquisição, tendo recebido a máscara de tortura, coberta de pregos, por seus algozes, retorna após duzentos anos como uma vampira para tomar o corpo de sua descendente. Um fator curioso é que, na versão inglesa, omitiram a relação incestuosa da princesa vampira com o irmão, Javutich.


3 - O Vampiro da Noite (Horror of Dracula – 1958)
Ainda que as presas do vampiro, símbolo máximo do personagem, tenham aparecido pela primeira vez em um obscuro filme turco da década de cinquenta, foi com Christopher Lee que se imortalizou a imagem, potencializada pelo vermelho berrante do Technicolor no sangue que pingava das presas. Hoje em dia é difícil mensurar o choque que o elemento da cor causou no gênero, mas era algo que deixava os censores desorientados. Essa novidade que era vendida já no trailer, levava muitos a pensarem que não passava de uma irresponsável glamourização da violência, um deleite culposo para os olhos. O público estava acostumado a ser poupado nos momentos mais grotescos. O desfecho de um duelo de espadas em preto e branco poderia muito bem ser conduzido para as sombras dos corpos na parede, minimizando o efeito visual da espada que atravessa o corpo do vilão. Em “O Vampiro da Noite”, a câmera se aproxima para captar o gorgolejar do sangue que explode do corpo, após a estaca ser enfiada no peito da vítima.


2 – Nosferatu – Uma Sinfonia de Horror (Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens – 1922)
Um fator que considero fundamental para entender a importância desse filme é ele ter sido responsável por uma das regras essenciais no eterno mito do vampiro (pelo menos, até “Crepúsculo” aparecer e destruir o conceito): a aversão à fatal luz do dia. O diretor F.W. Murnau sabia que corria risco de ser processado pelo escritor Bram Stoker, já que iria realizar uma cópia de “Drácula”, então sabiamente decidiu modificar o desfecho da trama. Em vez do embate com Van Helsing e sua estaca, o vampiro seria destruído pelo contato com os raios solares. Incrível imaginar que esse e outros elementos do filme que seriam amalgamados ao mito, não nasceram de qualquer impulso criativo consciente, mas apenas do medo de não serem flagrados cometendo o crime de plágio. E fracassaram no intento, o que é ainda mais fascinante.


1 – Martin (1977)
Obra-prima de George Romero, perfeita do início à última frase dita, já nos créditos finais. Injustamente pouco conhecida pelo público geral, considero a mais inteligente utilização do tema, amalgamando em sua essência todas as qualidades sobre o mítico personagem que expus no parágrafo introdutório desse especial. Há a clara crítica aos preceitos religiosos, na figura do primo mais velho do jovem, porém existe um aspecto que poucos percebem, evidenciado na cena do ataque inicial, no vagão do trem. Um livro, mostrado em destaque, um par de vezes: “Beyond Freedom and Dignity”, “Para Além da Liberdade e Dignidade”, do filósofo B.F. Skinner, título inspirado nos trabalhos de Nietzsche e Freud, um estudo sobre como a chamada liberdade tradicional é limitada, propondo então uma definição que fugisse do senso comum de condições que impediriam os sujeitos de conhecer os inúmeros determinantes envolvidos no controle dos comportamentos chamados de livres e dignos, um trabalho que define os anseios do protagonista, vivido por John Amplas, que afirma ter oitenta e quatro anos, apesar de sua aparência jovial, e que bebe o sangue de suas vítimas. Ele não possui presas pontudas e debocha da figura caricatural do vampiro, como na cena em que assusta o primo mais velho, vestido como o conde da Transilvânia. Com a utilização de flashbacks, inserindo o jovem na realidade que ele defende, o roteiro deixa a dúvida sobre a sanidade mental do personagem, alguém que busca se encaixar na sociedade. 

* O filme "Martin" faz parte da caixa "Obras-Primas do Terror 2", lançada pela distribuidora "Versátil", contendo também, além de vários extras: "O Ciclo do Pavor", "Lisa e o Diabo", "A Mansão do Inferno", "Pelo Amor e Pela Morte" e "Terror nas Trevas".

sexta-feira, 27 de março de 2015

Cine Noir - "A Dama Fantasma" e "Mortalmente Perigosa"


A Dama Fantasma (Phantom Lady – 1944)
O projeto do alemão Robert Siodmak, baseado na obra de Cornell Woolrich, envolve o espectador em um clima sombrio de pesadelo, mérito da fotografia de Elwood Bredell, que faria, dois anos depois, com o diretor, o excelente: “Assassinos”. A trama simplista, como em todo Noir, serve apenas como motivação básica para o criativo exercício de estilo, enfrentando o baixo orçamento apostando no poder da sugestão.

O personagem, vivido por Alan Curtis, encontra uma enigmática mulher enquanto tenta afogar as mágoas no bar, após uma briga com a esposa. O desejo dela é que a ignorância se mantenha sobre a identidade de ambos, estranhos solitários na noite de um dia qualquer. Ela aceita o convite dele, a companhia despretensiosa em um espetáculo que desperta o único interesse de desviar a atenção dele, por algumas horas, acerca dos problemas conjugais. A despedida é comum, fugaz, estabelecendo com eficácia a tensão que invade as cenas seguintes. Ao voltar para casa, três homens o aguardam, há a esperta sugestão de que são perigosos, confundindo o público, e, no quarto, ele descobre o corpo da esposa estrangulada.

Os detalhes visuais são preciosos, como a escultura das mãos no alto do armário de um dos personagens, elemento recorrente, capaz dos atos mais carinhosos, como o afagar de um bebê, o salvamento de um afogado, porém, capaz de cometer também as maiores atrocidades. A imprensa destrói o nome do marido, numa crítica à irresponsabilidade do jornalismo enquanto juiz e condutor do linchamento público. Vale destacar a ótima cena, com forte conotação sexual, mostrando o encontro da bela Ella Raines, uma personagem que me remeteu à de Margaret Tallichet em “O Homem dos Olhos Esbugalhados”, com o baterista, vivido por Elisha Cook Jr., em uma confinada jam session de Jazz.


Mortalmente Perigosa (Gun Crazy – 1950)
Com um roteiro, coescrito pelo extremamente competente Dalton Trumbo, de “Johnny vai à Guerra”, que não pôde assinar por estar na lista negra, essa obra-prima do diretor Joseph H. Lewis é normalmente lembrada por sua inovadora sequência de assalto a banco, filmada em um só plano de cerca de sete minutos, colocando o espectador no banco traseiro do carro da dupla de criminosos, momento que inspirou Jean-Luc Godard em seu “Acossado”. O filme é muito mais que essa cena, é um estudo psicológico com espaço para uma crítica, infelizmente atual, ao culto das armas na sociedade americana. Vale até uma sessão dupla, com o documentário “Tiros em Columbine”, de Michael Moore.

Os personagens vividos por Peggy Cummins e John Dall, a despeito de estarem envolvidos em um frenesi de perseguições cinematograficamente estimulantes, refletem uma discussão subliminar menos dependente da catarse sensorial, a clássica questão do determinismo, que diz serem todos os fatos baseados em causas, contra a crença de que suas atitudes são o extravasamento natural de uma índole espinhosa. Eles são definidos por suas ações, ou são, em essência, frutas podres? A cena introdutória da femme fatale, num ângulo baixo, mostrando sua perícia como atiradora em uma atração circense, consegue injetar uma alta dose de sensualidade, culminando numa finalização ao estilo de “O Grande Roubo do Trem”, com a personagem atirando na direção do espectador, no caso, o protagonista, de certa forma, antecipando o destino trágico do rapaz. 

* Os dois filmes estão sendo lançados pela distribuidora "Versátil", na caixa "Filme Noir - Vol. 2", contendo ainda, além de extras, "O Justiceiro", "Os Corruptos", "Pecado Sem Mácula" e "Ato de Violência". 

quarta-feira, 25 de março de 2015

"Uma Aventura LEGO", de Phil Lord e Christopher Miller


Uma Aventura LEGO (The LEGO Movie – 2014)
Antes de me perder em uma análise, com óbvios spoilers, sobre a complexidade dos temas abordados, acho importante ressaltar que a maior qualidade da obra é ser extremamente divertida, inteligente enquanto roteiro de ação e eficiente enquanto sátira dessa estrutura desgastada, um projeto que transcende seu público-alvo e seu gênero, excelente naquilo que se propõe a ser. O roteiro dos diretores Phil Lord e Christopher Miller, brilhante, constrói minuciosamente um universo, composto de vários mundos totalmente distintos, que refletem elementos de vários subgêneros cinematográficos, nascido da fantasia de uma criança, que, como todos nós, busca no escapismo criativo uma forma de enfrentar uma realidade decepcionante, no caso do menino do filme, uma figura paterna austera, controladora e distante, vivida por Will Ferrell.

A trama deixa pistas sutis, desde o início, sobre sua natureza metalinguística, como as relíquias procuradas pela personagem Mega Estilo, objetos que uma criança normalmente esquece no baú de brinquedos, entre eles, um band-aid usado. O fio improvisado que possibilita o levitar do fantasma, ou, o que considero o mais sensível, os efeitos sonoros provenientes da boca do menino, que emolduram breves trechos em que o véu da fantasia é levemente rasgado.  O emocionante desfecho de “Toy Story 3” tratou esse sentimento de melancolia nostálgica com muita ternura, porém, “Uma Aventura Lego” opta ir além, inserindo um embrião Orwelliano na subtrama sobre totalitarismo, inspirando uma reflexão direta sobre o consumismo, numa interessante autocrítica. “Everything is Awesome”, como as canções imediatistas que a indústria fonográfica despeja de tempos em tempos, com prazo de validade curto e estratégias de marketing que as vendem como fenômenos, numa clara manipulação do público menos criterioso, possui um refrão que gruda no córtex cerebral. O sucesso dela, especialmente na cerimônia do Oscar, fez, numa ironia deliciosa, com que o sistema aplaudisse um produto que o critica duramente.

O personagem do homem comum, Emmet, inicia a obra acreditando desejar intensamente ser aceito, ele quer fazer parte de uma equipe, não há interesse algum na individualidade. Ele segue as instruções diárias, porém, segue sozinho, tendo apenas uma planta como amiga. O sistema em que ele vive rege que, para alcançar a felicidade, é preciso negar a individualidade. Ele é levado a desejar algo inútil, exatamente como nós, estimulados, por noções tortas de status, a tomar o café mais caro ou utilizar roupas de marca, sem haver uma razão lógica para essa atitude. É muito mais fácil controlar uma massa, visualmente e ideologicamente, uniforme. Ao longo de sua jornada, que nos remete aos trabalhos literários de Joseph Campbell sobre o mito do herói, ele irá aprender a beleza inerente à anarquia, ao individualismo, onde todos são especiais e capazes, de diferentes formas, de modificar positivamente seu ambiente. São as diferenças que nos fortalecem.

Somente essas reflexões que o roteiro propõe já seriam suficientes para afirmar que a animação é acima da média, porém, num toque carinhoso, o roteiro reserva generoso tempo para abordar a atual questão da padronização do entretenimento infantil. O enfraquecimento da imaginação na equação das brincadeiras das crianças modernas, que, ao invés de ganharem livros de seus irresponsáveis pais, recebem tablets. O menino da trama é repreendido pelo pai por misturar brinquedos de vários segmentos em uma mesma aventura. Os personagens são levados a forçar a criatividade na construção improvisada de rotas de fuga, a rejeição do óbvio, despertando possibilidades estimulantes. E é exatamente essa pluralidade que entretém o público, constantemente surpreendendo-o. É preciso que a criança seja conduzida pelos pais a criar mundos sem regras, sem fronteiras, a partir de um quarto vazio, ao invés de entregar um mundo medíocre pronto e limitado, como forma de compensar a ausência parental na vida do filho. O belo desfecho do filme celebra essa esperança. 

segunda-feira, 23 de março de 2015

Hitchcock - "Rebecca - A Mulher Inesquecível"


Rebecca – A Mulher Inesquecível (Rebecca – 1940)
O filme é uma prova da teoria que rege a influência dos gênios do sistema na criação do mito de Hollywood. É um projeto com a digital do produtor David O. Selznick, que tinha acabado de lançar “... E o Vento Levou”, onde fica visível a luta de Hitchcock para inserir os elementos que o destacaram no cinema inglês, a ponto de chamar a atenção da indústria americana. Numa atitude tola, o produtor altamente rigoroso e egocêntrico decidiu interferir em praticamente todas as etapas da produção, ao invés de deixar o mestre do suspense com total liberdade criativa. Essa batalha é perceptível no produto final, que, sendo muito elegante e tecnicamente impecável, não esconde certo enfado e um estranho distanciamento, um retrato longo e frio sem o indefectível toque de humor peculiar presente nos filmes anteriores do diretor.

Selznick ganhou o Oscar principal da noite, mas Hitchcock não levou o de diretor, o que não surpreende, já que o diferencial dele, aquilo que o tornou uma referência até hoje, pouco se vê na obra. O primeiro tratamento do roteiro, provavelmente contendo a identidade criativa do mestre, foi desprezada pelo produtor, que exigiu que fosse retrabalhado radicalmente em uma adaptação fiel, com atos muito definidos, do livro de Daphne du Maurier, com exceção de um detalhe importante, censurado pelo Código Hays, que impossibilitava a impunidade para um assassino, no caso, Maxim de Winter, vivido por Laurence Olivier. Aliado a isso, a inexistente química entre o casal, Olivier e Joan Fontaine, não facilita a imersão, especialmente no fraco primeiro ato. “Rebecca” é um ótimo filme, caro leitor, não me entenda mal, apenas não representa as potencialidades do talento do seu diretor, que afirmava publicamente seu descontentamento com o resultado.

O maior mérito, além do clima estabelecido na gótica mansão Manderlay, está na composição da governanta Sra. Danvers, interpretada por Judith Anderson, que poderia constar nas galerias de ícones do horror, com sua doentia obsessão pela falecida esposa do patrão, e, numa clara e subversiva insinuação homossexual, perpetrando sua tortura psicológica na simplória jovem sem nome, símbolo da inocência, aquela que ousa tomar o lugar de Rebecca. A onipresença perturbadora desse fantasma, construída para o público através de pistas deixadas pelos personagens, sufoca a câmera, gradualmente optando pela claustrofobia. 

* O filme está sendo lançado, em versão restaurada e com um documentário sobre a produção, pela distribuidora "Versátil", na caixa "O Cinema de Hitchcock", contendo também: "Quando Fala o Coração", "Interlúdio", "Os 39 Degraus", "Correspondente Estrangeiro" e a primeira versão de "O Homem Que Sabia Demais".

quinta-feira, 19 de março de 2015

Razzle Dazzle - "Música, Divina Música!"

Link para os textos do especial:


Música, Divina Música! (They Shall Have Music – 1939)
O filme, dirigido por Archie Mayo, já emociona nos primeiros segundos, com um intertítulo avisando que a obra é dedicada às escolas de música. A sociedade da época, imersa na Grande Depressão, encontrando a redenção através da música clássica. O conceito, por si só, envolvendo crianças carentes lutando contra o fechamento da escola, toca diretamente o coração de qualquer indivíduo minimamente sensível. É lindo perceber o encanto nos olhos da criança, vivida por Gene Reynolds, que abandona uma rotina de pequenos crimes, ao assistir, por engano, um concerto de violino. 

O grande violinista lituano Jascha Heifetz, que abrilhanta o filme em vários momentos com seu talento, foi escolhido pelo produtor Samuel Goldwin, que já estava tentando há anos encontrar o projeto certo para ele. Quem não conhece esse músico lendário, não perca mais tempo, recomendo que assista o documentário “Jascha Heifetz, o violinista de Deus”, de 2011. Alguns podem acusar o roteiro de ser sentimental em excesso, o que não seria um equívoco total de análise, mas é importante contextualizar a trama em sua época. Os americanos necessitavam entrar na sala escura e, duas horas depois, saírem acreditando que ainda havia esperança para o mundo. Essa inteligência temática é, por exemplo, um dos problemas da cinematografia brasileira, incapaz de encontrar ressonância emocional com o público. 

Vale destacar a excelente fotografia do mestre Gregg Toland, que faria “Cidadão Kane” dois anos depois, um refinamento evidenciado já na sequência que abre o projeto, estabelecendo a pobreza de uma forma bastante crua e sombria, o que torna os interlúdios musicais ainda mais reconfortantes.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

terça-feira, 17 de março de 2015

Sábio Silêncio - Parte 11

Links para os textos anteriores do especial:



Diário
13 de Janeiro – 1920 – 19:30

A minha visão ficou turva por alguns segundos, as imagens se embaralhavam, um forte zumbido atravessava de forma lancinante meus ouvidos, achei que iria desmaiar. Forcei minha mão no estofado do sofá, como que lutando para focar minha atenção no presente que estava vivenciando, evitando que a loucura da situação tomasse conta daquela realidade. Eu estava transpirando muito, Edison gentilmente me perguntou se eu estava me sentindo bem. Tentei sorrir o mais naturalmente possível, antes de pedir licença e ir até a janela. O ar noturno deveria acalmar meus nervos. Ao meu lado, admirando seriamente a paisagem, o homem mais gentil que conheci nessa aventura. Ele se virou para mim, sorriu, e eu gelei.

- Olá, rapaz. – Assustado com minha expressão, ele continuou. – Você está se sentindo bem?

Eu estava a ponto de cometer um terrível equívoco, mas a providência novamente se mostrou vigilante. Naquele momento no tempo, Stan Laurel ainda não havia sequer assistido seu primeiro trabalho com o parceiro Oliver Hardy: “The Lucky Dog”, filmado meses antes de nosso encontro, mas que seria lançado somente no ano seguinte. Ele era apenas um esforçado ator, começando sua carreira, com alguns trabalhos de pouca expressão, dirigidos quase sempre por Hal Roach. E, ainda assim, o projeto não simbolizava o verdadeiro início da química irresistível da dupla, algo que só aconteceria cerca de sete anos depois. Ele estava naquela festa, de certa forma, com a atitude de alguém que busca atrair a atenção de possíveis empregadores, querendo se destacar numa multidão de jovens sonhadores, o que o colocava numa posição similar a minha, facilitando nossa interação. Eu respirei fundo, contendo o desejo de extravasar minha admiração pelo trabalho dele, olhei de volta para os convidados que caminhavam pelo salão, antes de responder.

- Essa é uma visão incrível, concorda?

Stan olhou para o salão, aproximou seu rosto do meu e disse em tom de segredo:

- Você acaba se acostumando. – Voltou então para sua posição, apoiado na janela. – Alguns são mais humanos que outros, como Charlie, que conheci anos atrás na trupe de Fred Karno. A maioria aqui não possui nada por baixo desses brilhantes. – Ele então olhou dentro dos meus olhos. – Eu percebi que você estava quase reverenciando todos aqui, não se engane, você é tão, ou mais valoroso, que qualquer um nesse salão.

Eu fiquei chocado com a ternura dele, a sinceridade em seus olhos, Stan era o tipo de cara que dedicava tempo a aconselhar estranhos, com uma humildade que eu não havia visto igual nem no meu próprio tempo. Não é de causar surpresa sua trajetória de sucesso e o carinho que todos da área sentiam pelo jovem inglês. Stan era grande, antes mesmo de se tornar um astro. Eu percebi que não teria como planejar o rumo do papo, então, pela primeira vez naquela noite, eu realmente aproveitei a festa, como se tivesse encontrado um velho colega de escola. Ele, para minha surpresa, não comentava sobre filmes ou sobre aquele universo. A conversa se estendeu por uma viagem nostálgica à adolescência dele na cidade de North Shields, sobre como ele sentiu a ruptura de ter se mudado, aos quinze anos, para a Escócia. Stan falava com tanta paixão daquela cidade, seus olhos azuis brilhavam com uma empolgação que desarmou qualquer intenção minha de desviar o assunto. Acredito que ele via em mim um reflexo dele, um estrangeiro naquele mundo exótico.

Não pude contabilizar o tempo, mas fomos interrompidos por Charlie. Era notório que Stan nutria profundo carinho por Chaplin, algo que transcendia a admiração profissional, já que ambos se conheceram antes do sucesso. Ele segurava uma taça já quase vazia, quando deu um amigável tapinha no rosto do meu novo amigo.

- A noite está mais longa que o normal, preciso sair um pouco. Querem me acompanhar? – Chaplin estava levemente alterado pelo álcool, mas era um convite irrecusável.

Mary Pickford acenou para mim, enquanto nós atravessávamos o salão em direção à porta de entrada. Stan tomou a frente, já no lado de fora, preocupado com o amigo.

- O que houve? – Stan acendeu um cigarro. – Mildred?

Chaplin suspirou, tentando disfarçar. Senti que minha presença o impedia de realmente tocar no assunto. Stan também sentiu, então mudou o tema.

***

Chaplin estava prestes a se separar de Mildred Harris, após o trágico falecimento do filho do casal, por má formação intestinal, com apenas três dias de vida. Ela era uma jovem de caráter discutível, que havia inicialmente mentido sobre sua gravidez, como forma de segurar a relação e forçar o casamento. Em Abril, ela daria início aos procedimentos de divórcio.

***

O álcool havia deixado transparecer algo que angustiava Chaplin há meses, um assunto que ele evitava comentar, por pura raiva. Stan, com muita elegância, apagou o cigarro que mal havia iniciado, percebendo que o melhor era manter o amigo ocupado dentro da mansão. Após uma breve anedota improvisada sobre a influência do clima no efeito da bebida, Stan conduziu Chaplin de volta à festa. E, mais uma vez, fiquei impressionado com as atitudes daquele artista, que, hoje posso afirmar sem medo, respeito ainda mais como o incrível ser humano que foi.

Continua...

domingo, 15 de março de 2015

"A Falta Que Nos Move", de Christiane Jatahy


A Falta Que Nos Move (2009)
Cinco atores chegam à casa da diretora do filme para vivenciar uma experiência cinematográfica. São filmados ininterruptamente, sem deixar de seguir roteiros e cenas. Ficção e realidade se entrelaçam em meio a histórias de uma geração que viveu à deriva e que agora se defronta com uma ausência que move suas ações.


Eu simplesmente não consigo conceber a atual situação da relação entre o público brasileiro e seu próprio cinema. Acabo de assistir pela terceira vez o excelente “A Falta Que Nos Move”, obra dirigida por Christiane Jatahy, que não foi indicada a você pelos protagonistas das novelas, experimentando a mesma catarse que senti na primeira vez.

Os atores: Pedro Brício, Cristina Amadeo, Dani Fortes, Marina Vianna e Kiko Mascarenhas, realizam o sonho de todo ator, vivenciando uma experiência incrivelmente estimulante. A melhor forma de assistir essa desconhecida obra-prima é adentrar na casa junto com os atores, sem conhecer o truque, por essa razão evitarei comentar muito sobre o que ocorre. O mérito maior da equipe foi ter construído um produto que não perde valor enquanto mágica revelada, somente instiga ainda mais, levando-nos a procurar entender que aquele microcosmo reflete perfeitamente o macro. O choque de constatar que somos todos atores em tempo integral, seguindo mediante a aceitação de nossas fragilidades e frustrações, aprendendo a lidar com a inexorável aproximação do fim. Somos parte de uma experiência, independente que a façamos ser prazerosa ou plena em autocomiseração, escolhemos rotas conforme os limites da estrada nos são revelados. Como pode um filme tão rico ser ignorado pelo seu próprio povo?

O filme foi lançado em DVD, porém você não foi informado por propaganda na televisão. Busque nas locadoras e lojas, assista e seja surpreendido. Entenda que o cinema nacional produz filmes ótimos, medianos e ruins, como toda filmografia do mundo, mas, infelizmente, depende exclusivamente do seu interesse em conhecer e desbravar esses talentos.

"Riscado", de Gustavo Pizzi


Riscado (2010)
De vez em quando encontramos um filme que nos renova as esperanças, seja na cinematografia nacional, seja em nós mesmos. Esse é o caso dessa obra, uma carta de amor para todos aqueles que tentam viver da Arte, que se expõem aos riscos, que se dedicam a sonhar o sonho impossível.

O diretor Gustavo Pizzi emula de maneira lúdica o italiano Federico Fellini, tendo em Karine Teles sua amada Giulietta Masina. O roteiro simples e eficiente, escrito por ambos, retrata a realidade vivida por muitos artistas que buscam seu lugar ao sol, sem se deixarem nunca abalar pelos vários obstáculos e decepções, inerentes nessa árdua jornada. Novamente citando Fellini, em alguns momentos o filme me lembrou “Noites de Cabíria”, não tanto por sua trama, mas no amor que a câmera demonstra por sua protagonista. Karine vive Bianca, uma atriz como muitas com que nos deparamos na vida, aceitando todas as oportunidades que aparecem e não firam sua dignidade. Acreditando que cada uma delas, por ínfima que seja, como bater palmas para um estranho em seu aniversário, possa ser um meio que a leve a algo melhor, ao sonhado reconhecimento de seus talentos. Cenas como a da jovem se apresentando como Marilyn Monroe em uma festa de aniversário e enfrentando o preconceito da filha do aniversariante, ganham em emoção devido à veracidade que os olhos de Karine transmitem.

No elenco de apoio também encontramos forte sustentação, que não somente nos ajuda no processo de imersão na narrativa, como a impulsiona. Saliento especialmente Lucas Gouvêa, como Filipe, que se mostra um talento a ser descoberto pelo grande público, conseguindo em todos os seus momentos roubar a cena, mesmo fazendo um tipo desprezível, um personagem que em mãos menos capazes poderia se tornar simplista, caricato. “Riscado” é o Brasil mostrando que sabe ousar, tratando de um tema fascinante que cativa o público, especialmente aqueles que trabalham de alguma forma com a Arte. Uma obra simples, rodada com baixo orçamento e com muito coração.

sábado, 14 de março de 2015

"O Duplo", de Richard Ayoade


O Duplo (The Double - 2013)
Existem excelentes adaptações de clássicos literários, como o recente “O Homem Duplicado”, de Denis Villeneuve, baseado em obra de José Saramago, com uma temática similar, mas são verdadeiros oásis num deserto de projetos como o que abordo nesse texto. A novela de Dostoiévski não é um de seus melhores trabalhos, como o próprio afirmava, mas as falhas do filme não se resumem aos equívocos de adaptação, existe muito pouco do livro no roteiro de Avi Korine, que tem no currículo apenas o fraco “Mister Lonely”, e do diretor Richard Ayoade. 

A ambientação é, sem motivo algum, Orwelliana, com direito até a uma espécie de Big Brother, “O Coronel”, mas com todo jeito de quem folheou as obras no Reader’s Digest. O ato de rejuvenescer o protagonista, vivido com desnecessária apatia por Jesse Eisenberg, acompanha a tendência da indústria americana, um texto escrito para o público adolescente, que desconhece a obra do autor, tampouco irá se interessar em conhecê-la após a sessão. Interessante que todos os colegas do emprego são muito mais velhos que ele, tornando a opção ainda mais bizarra. O ator ignora as nuances de comportamento do personagem literário, optando pela confortável apatia, como maneira simplista de contrastar com a arrogância, tão caricatural quanto, de seu duplo. Há também a sempre desnecessária inclusão de um interesse romântico, a personagem de Mia Wasikowska, que não tem serventia alguma na evolução da trama. 

O humor que existe nas páginas do livro se perde na transposição, com situações criadas para o deleite da garotada imediatista, com piadinhas tolas, defendidas por adultos infantilizados, transformando o protagonista existencialmente multifacetado em uma variação do Adam Sandler. Como exemplo, cito a reação dele ao descobrir seu duplo em seu ambiente de trabalho, um momento importante no livro, que é filmado como uma cena genérica de qualquer comédia adolescente. Ao cercar o protagonista com coadjuvantes bobos, como os dois detetives que agem de forma infantil, por conseguinte, inverossímeis em suas funções, o roteiro banaliza qualquer questão mais profunda que pudesse ser sublinhada. Vale ressaltar, como exceção, uma ótima gag recorrente envolvendo portas que sempre se fecham para ele. O exemplo de adição inteligente que é coerente às questões propostas no original, sendo também funcional para o público moderno. 

Como reflexão válida, acho interessante o estado atual da indústria americana, que insere super-heróis dos quadrinhos em realidades austeras adultas, enquanto escolhe diluir Dostoiévski em um universo infanto-juvenil. 

"Livre", de Jean-Marc Vallée


Livre (Wild - 2014)
O roteiro de Nick Hornby insere os fragmentos de memória da personagem, inteligentemente evitando o erro de querer explicar tudo, elaborando cenas que parecem intencionar confundir a percepção do público sobre as suas possíveis motivações emocionais, falhando apenas no excesso de narrações e em algumas soluções visuais convencionais. Outro problema da produção é a atuação de Reese Witherspoon, que convence nos momentos que precedem sua jornada, como em sua interação com a mãe, vivida por Laura Dern, mas não consegue expressar a turbulência mental, as variações psicológicas de alguém que é levado ao extremo, deixando a impressão de que estamos assistindo uma “Barbie no Deserto”, cujo corpo maquiado nunca se queima com o sol. Uma versão light e inverossímil do excelente “Na Natureza Selvagem”, de Sean Penn.

O projeto foi trabalhado na medida para o reconhecimento da Academia, mas a necessidade de colocar cada atitude em sua aventura em contexto com o passado da personagem acaba travando qualquer conexão empática. Existem exceções, como a bela analogia simbolizada na cena em que a jovem luta desesperadamente para ficar de pé, aguentando o peso de sua mochila, como um bebê que aprende a andar, ela terá que reiniciar todo o seu sistema pessoal, reaprender a enxergar a vida utilizando seus instintos mais primais, como forma de expurgar seus erros. O tom da cena é, de forma canhestra, cômico pastelão, mas prefiro relevar e acreditar que existia uma ambição metafórica nela. Mas, infelizmente, o diretor Jean-Marc Vallée opta na maior parte do tempo pela tradicional câmera que minimiza a atriz na imensidão do cenário, talvez, por saber que seria arriscado manter o foco no rosto dela, ficando dependente de seu talento limitado. A intensa transformação interna que ocorre ao final existe apenas em teoria, somente porque a personagem nos informa disso, já que não há nada no filme que evidencie estarmos diante de alguém narrativamente mais maduro/evoluído.

Os perigos que a jovem encontra, de cobras a tentativas de estupro, são apresentados de forma preguiçosa, sendo facilmente esquecidos pelo roteiro, e, por conseguinte, pela personagem, com uma canção melodramática, virando a página para um novo obstáculo, sem nunca sentirmos realmente que ela está em perigo. A ideia de uma pessoa, sem nenhum conhecimento básico sobre acampamento, aparentemente incapaz de fritar um ovo e esquentar água, decidir se aventurar em uma caminhada solitária por três meses, atravessando os locais mais inóspitos possíveis, por mais que seja a adaptação de uma autobiografia, soa incrivelmente estúpida. Ao invés de reutilizar as tradicionais tomadas lúdicas do amplo cenário, sequências que constam no manual de como se filmar uma jornada de autodescobrimento, o filme poderia se aprofundar nas consequências emocionais de cada obstáculo superado, construindo alguém tridimensional com quem o público pudesse se identificar. 

"Busca Implacável 3", de Olivier Megaton


Busca Implacável 3 (Taken 3 - 2014)
O que esperar de um filme que, no desespero de lucrar mais alguns dólares, subverte a função do próprio título? A única razão lógica para o “Taken” é como símbolo do valor do ingresso e do precioso tempo que nos são tomados, enquanto tentamos não perceber que o diretor não possui a menor noção de ritmo. Ao invés de acompanharmos a caçada do personagem de Liam Neeson, o fraco roteiro, de Luc Besson e Robert Mark Kamen, copia a estrutura de “O Fugitivo”, um plot twist que já soaria previsível na década de noventa. A execução transparece o desânimo geral, faz parecer que nenhum profissional está realmente motivado a participar do projeto. 

O primeiro ato é especialmente ruim, moroso, com furos agressivos e alívios cômicos constrangedores, como a longa piada com o protagonista e o urso de pelúcia, uma forma canhestra de estabelecer novamente o personagem como uma figura paterna carinhosa, e, pior ainda, a cena que envolve o detetive, vivido por Forest Whitaker, e um delicioso Pretzel. É um senso de humor tolo, antiquado no gênero, até para os padrões das produções recentes de Steven Seagal. A montagem excessivamente caótica nas cenas de ação tenta construir um senso de perigo que é inexistente, com a estética de destruição maximizada sobrepujando a lógica narrativa, desrespeitando o desenvolvimento do personagem, transformando o herói reativo em um inconsequente matador, como um Jason Voorhees que é capaz de explodir um prédio lotado de famílias, para eliminar um vizinho chato. 

O filme original era eficiente, tinha ideias convencionais, mas tinha um protagonista motivado e era bem executado. Já essa bomba, caso fosse lançada fora da franquia, provavelmente seria distribuída direto no mercado de vídeo. 

"Antes de Dormir", de Rowan Joffe


Antes de Dormir (Before I Go To Sleep - 2014)
O cinema adora trabalhar o tema da perda de memória. O problema é que o roteirista/diretor Rowan Joffe parece sofrer da mesma patologia de sua protagonista, esquecendo subtramas e deixando no caminho várias pontas soltas, conduzindo a um desfecho narrativamente incoerente e intelectualmente insatisfatório, um anticlímax desnecessariamente meloso. As tentativas de manipular o público em direções erradas, elemento importante em obras de mistério, falham essencialmente por serem fundamentadas em atitudes totalmente inverossímeis, inconsistentes. Uma experiência estranhamente misógina, ainda que adaptado do livro de uma autora, que, numa leitura mais profunda, de alguém muito interessado em filosofar sobre a letargia, trabalha metaforicamente a odisséia traumática da protagonista como um torto julgamento moral, uma punição para o adultério.

Com execução simplória de especial para televisão e soluções que caberiam melhor em uma novela, é impressionante tentar compreender a razão que fez Nicole Kidman, Colin Firth e Mark Strong assinarem seus contratos. A trama prefere a repetição, durante o segundo ato, mostrando ad nauseam o marido explicando para a esposa sua situação, ao invés de se aprofundar no desenvolvimento dos personagens, solidificando as motivações, intensificando o desespero de alguém que esquece tudo a cada despertar. Algumas questões interessantes, como a reflexão comportamental sobre as atitudes que tomaríamos com alguém, caso soubéssemos que a pessoa iria se esquecer de tudo no dia seguinte, as decisões que nos mantém íntegros e corretos, são esquecidas em prol de cenas formulaicas de sustos e outras bobagens. 

Com um diretor mais ousado, interessado em trabalhar as metáforas de forma visual, poderia ter resultado em um produto melhor. O amadorismo de Joffe, sem elegância alguma, destruiu qualquer potencialidade que havia na adaptação da obra da autora S.J. Watson. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

"O Abutre", de Dan Gilroy


O Abutre (Nightcrawler – 2014)
O primeiro trabalho como diretor do roteirista Dan Gilroy é simplesmente brilhante. A melhor sequência, dentre várias que poderia destacar, representa a esperteza do roteiro em inserir o espectador na pungente crítica que direciona ao jornalismo baixo e imediatista que é realizado nos dias de hoje. Como eu sempre digo: a sociedade não cria os abutres, ela os alimenta. Na sequência do crime na mansão, Gilroy nos convida a seguir os passos do protagonista Lou Bloom, vivido impecavelmente por Jake Gyllenhaal, uma longa travessia por corpos ensanguentados, num crescendo de horror que, por incrível que pareça, não suscita reação alguma no rosto do jovem que manipula sua câmera como uma arma. A frieza dele, planejando cada passo, até mesmo modificando elementos na cena, objetivando captar o brutal cenário da forma mais cinematográfica, por conseguinte, mais atraente para a sua cúmplice na estação de televisão, vivida por Rene Russo, sua alma gêmea na total ausência de caráter e ética.

Um sociopata se define pelo comportamento antissocial, sem amarras morais, podendo apresentar tendências criminosas. Bloom é mostrado em seu cotidiano como alguém que rega sua plantinha, ou registrando suas participações na televisão, porém, fora isso, ele parece não ter amigos, namorada, em suma, ele carece de empatia e vive uma rotina sem nenhum apego com a sociedade. A sua atitude arrogante, que consiste em, invariavelmente, e de forma cínica, manter o foco da atenção em suas ações, uma imagem distorcida de autoavaliação, que transparece uma segurança fora do comum. A sua interação com os outros é limitada a frases rápidas, abordagem direta, como um titereiro habilidoso, resultando em relacionamentos intensos e instáveis, objetivando apenas sua ambição impulsiva de momento: crescer na indústria do telejornalismo, aproveitando a brecha dos profissionais sem escrúpulos e a fome de um público, os abutres, que consomem esse sensacionalismo barato. Quem se opuser a esse caminho, será simplesmente eliminado.

Ele sabe que quanto mais demorar sua exploração, melhores serão os números de audiência, o espectador chocado terá tempo de avisar o vizinho, os familiares, os colegas de trabalho. O momento mais inteligente ocorre quando ele adentra o quarto do bebê. Nós não sabemos absolutamente nada sobre aquela família, apenas visualizamos um quarto decorado de forma infantil, com um berço posicionado no centro. É quando o roteiro implacavelmente nos insere na crítica. O personagem se aproxima lentamente do berço, fazendo com que nós compartilhemos o mesmo frenesi daqueles que perdem vários minutos na frente da televisão acompanhando uma perseguição de carro ou um sequestro em tempo real. Nós, os abutres que somos alimentados por esse jornalismo cretino. Nós que não conseguimos desviar os olhos, numa mistura de sentimentos humanamente ambíguos, por um lado, desejando que o bandido seja preso logo, por outro, desejando que ele consiga driblar a polícia por mais tempo, para que aquela emoção da caçada nos tire de nosso cotidiano apático.

É exatamente o sentimento odioso que mantém programas sensacionalistas policiais no ar, com tanta audiência, invadindo as casas dos brasileiros até mesmo na hora do almoço. Voltando à cena, o diretor corta antes de revelar o interior do berço. A intenção é nos estimular a repulsa por algo que não vimos. O espectador comenta com sua companhia na sessão: “Nossa, ele filmou até o bebê morto, que monstro insensível”. Alguns minutos depois, como que com um sorriso sarcástico de quem provou sua tese com louvor, o filme revela que não havia bebê algum no berço, aquele quarto, provavelmente, estava sendo preparado para uma criança que ainda não nasceu. E, mais além, descobrimos que a mansão era de traficantes de drogas.

Todo o investimento emocional do espectador, tanto o real, quanto o do noticiário na obra, foi manipulado pela irresponsável estação de televisão, que, numa atitude coerente à podridão de todos os atos anteriores, decide se negar a evidenciar essa conclusão. O mais importante para um jornalismo imediatista é que o público, resumido a números numa conta bancária, se mantenha na frente da televisão, ou folheando as páginas do jornal, pelo maior tempo possível. Contar a eles que a pobre família vítima dos assassinos era, na realidade, um bando de criminosos, iria afastar o público. Quando o jornalismo perde o senso de moral, ele se torna uma busca desesperada por manchetes sensacionalistas, simplificando qualquer discurso a imagens de impacto, visando o choque, nunca a reflexão. Essa longa sequência é apenas um dos motivos que fazem com que o filme seja uma obra espetacular, pensada para adultos, com uma coragem que faz falta na indústria.

Razzle Dazzle - "Grease - Nos Tempos da Brilhantina"

Link para os textos do especial:


Grease – Nos Tempos da Brilhantina (Grease – 1978)
O primeiro contato que eu tive com o filme foi, por volta dos nove anos, através de sua adaptação literária, escrita por Ron de Christoforo e lançada pela editora Record, um dos livros que meu avô materno guardava em sua casa na região serrana, onde eu costumava passar as férias escolares. Um detalhe nele que me intrigava era a chamada na capa: Ilustrado com fotos do filme. Eu folheava com toda atenção, mas nunca encontrei sequer uma ilustração. Falha do livro, que instigou ainda mais minha curiosidade. Era uma época sem internet, vale ressaltar. Nessa época, eu não conhecia as músicas, nunca tinha assistido qualquer cena. Conheci a trama de uma forma totalmente desassociada da relevância da obra na cultura pop. Eu não imaginava as canções sendo entoadas nos momentos específicos nas páginas, apenas embarquei naquela história nostálgica de amor.

Os anos foram passando e eu acabei escutando as canções mais famosas, enquanto estava bebendo generosamente da fonte de Elvis Presley e dos Beatles, apaixonado por aquele período histórico que é celebrado no projeto. Fiz minha mãe me levar na loja de CD’s do Shopping Center, quando ainda eram templos enormes do bom gosto, para adquirir a trilha sonora. A vendedora brincou comigo, achou esquisito aquela criança com interesse em um “filme tão antigo”, como ela disse. Quando eu inseri o CD no computador, uma grata surpresa, uma faixa multimídia com trechos das canções interpretadas no filme. Eu, enfim, iria assistir algo daquele universo que povoou minha imaginação desde a leitura do livro. É difícil transmitir a sensação, mas eu me lembro de sentir angústia, já que nenhum trecho estava completo, exibia apenas alguns segundos. “Hopelessly Devoted to You” iniciava depois do refrão, “Greased Lightning” terminava antes dele, era terrível. Nenhuma locadora tinha o VHS, torcia para que passasse na televisão. Acabei assistindo pela primeira vez e gravando numa fita que viria a se deteriorar, se não me falha a memória, numa “Sessão da Tarde” global. O resultado: Imitei os trejeitos de Danny Zucko pelo resto do ano na escola. Quando alguns poucos colegas se reuniam em volta de mim na hora do recreio, por qualquer motivo, eu me imaginava cantando “Summer Nights”. Na aula de educação física, tentava correr mais rápido que os outros, para impressionar minha Sandy, uma linda menina que nem sabia que eu existia.

A abertura, ao som de “Grease”, cantada por Frankie Valli, em animação, já coloca o espectador no clima perfeito, demonstrando que a caricatura é o tom escolhido pelo diretor Randal Kleiser, elemento captado inteligentemente nas coreografias de Patricia Birch e simbolizado no desfecho com o carro voador. A química entre John Travolta e Olivia Newton-John carrega a produção nas costas, disfarçando bem o fato de que são adultos interpretando pré-adolescentes que se comportam como pré-adolescentes. Qualquer outro casal poderia ter estragado a imersão. A trilha, fundamental, acerta ao apostar nos clássicos: “Blue Moon”, “Hound Dog”, deixando espaço também para referências metalinguísticas ao próprio cinema, como “Love is a Many Splendored Thing”, tema de “Suplício de Uma Saudade”. “Sandy”, entoada melancolicamente por Travolta, sentado em um balanço, nos remete diretamente a uma vertente clássica do rock, as canções que homenageiam no título as musas que fizeram o roqueiro descobrir que tinha coração, após percebê-lo despedaçado. Como esquecer “Beauty School Drop-Out”? Uma bonita homenagem a um dos grandes símbolos da era dos filmes de praia, como “Beach Party”, Frankie Avalon, que sempre fazia par com a adorável Annette Funicello.

É interessante a forma como o roteiro trabalha o arco narrativo da personagem Sandy, conduzindo-a durante todo o filme como um estereótipo clássico das heroínas dos musicais grandiosos de Hollywood, educada e gentil, para transformá-la ao final em uma rebelde grosseira e sexy, uma crítica divertida às resoluções dos musicais da era de ouro do rock, que, em teoria, adotavam uma atitude rebelde, porém, na realidade, sempre davam um jeito de adequar os protagonistas ao padrão comportado da sociedade. Os personagens rebeldes de Elvis, por exemplo, podiam começar o filme arrebentando bares e tocando o terror, mas, inevitavelmente, acabavam como os genros que toda mãe queria para suas filhas. Sandy joga fora seu vestidinho de boneca e entra pra gangue da jaqueta de couro, transformando o líder dos rapazes, o arrogante falastrão dos T-Birds, em uma donzela em perigo. Até o gestual de Travolta, no início da ótima “You’re The One That I Want”, pode ser considerado, de forma proposital, exageradamente efeminado. 

terça-feira, 10 de março de 2015

Sétima Arte em Cenas - "Hannah e Suas Irmãs"

Link para os textos do especial:


Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sisters – 1986) 
A filha mais velha de um casal de artistas, Hannah (Mia Farrow) é uma dedicada esposa, mãe carinhosa e atriz de sucesso. Uma leal defensora de suas duas confusas irmãs: Lee (Barbara Hershey) e Holly (Diane Keaton), ela é também a espinha dorsal de uma família que parece se ressentir de sua estabilidade quase tanto quanto dependem da mesma. 


Na cena mais bela do filme, a que justifica sua inclusão nesse especial, Woody Allen captura aquela que considero a melhor explicação para a vida. Seu personagem acreditava estar prestes a morrer, entristecido também pela impossibilidade de sua esposa engravidar, sem paixão com relação ao futuro, então ele caminha pela cidade sem rumo por algumas horas, guiado apenas pela centelha de esperança que se recusa a ceder perante a doença fatal que acredita ter. Ele chegou a apontar o cano de um rifle para a própria cabeça, acreditando não haver motivação alguma em sua existência. Nada parecia fazer sentido, até que ele entra numa sala de cinema e, mesmo naufragando em um oceano de depressão, ele se surpreende sorrindo com uma comédia dos Irmãos Marx. 

O personagem conclui que, mesmo a vida sendo um passeio numa montanha-russa de mais baixos que altos, que aqueles breves momentos de conforto e alegria valem o preço do ingresso. E o elemento desconhecido inerente a todos nós, que o perseguia com tantos questionamentos, nunca seria plenamente revelado, independentemente do quão insistentemente perguntasse. Ele então relaxa na poltrona, com todos os seus conflitos internos sucumbindo ao peso daquele leve entretenimento, e se permitiu o prazer da diversão. O ânimo adquirido naquela sessão motivou seu espírito a enfrentar mais um dia. E, um ano depois, envolvido em uma relação muito mais feliz com outra mulher, num ato inesperado do destino, ele se emociona por ter realizado o sonho de ser pai.

Tesouros da Sétima Arte - "Nenette, a Meia-Irmã"

Link para os textos do especial:


Nenette, a Meia-Irmã (Demi-Soeur – 2013)
Nenette é uma senhora que tem a idade mental de uma criança de oito anos. Após a morte de sua mãe, ela parte em busca do pai, mas acaba conhecendo seu meio irmão Paul, um farmacêutico ranzinza.


Essa adorável comédia é injustamente pouco conhecida, sequer foi lançada em DVD por aqui. O projeto, comandado e protagonizado por Josiane Balasko, de “Les Bronzés”, ótima produção de 1978, também pouco conhecida pelos brasileiros, diverte o espectador com uma trama simples, até previsível. O roteiro toma liberdades surreais, utilizando pastilhas de ecstasy como um artifício saído de uma obra de Frank Capra, capazes de modificar totalmente o caráter de um personagem. É tolo, inverossímil, assim como a união da protagonista com uma banda de metaleiros, o evento nesse road movie que dá o gatilho para o plot twist, mas a execução é encantadora.

E funciona exatamente por causa do carisma de Balasko, com visível inspiração em Jacques Tati e na obra de Lewis Carroll, acompanhada de sua inseparável tartaruguinha, transmitindo toda a pureza de uma criança no corpo de uma senhora. Michel Blanc, que vive o sistemático meio-irmão farmacêutico, evidencia em sua interpretação a solidão como conforto imposto após vários traumas que a trama inteligentemente não revela. Ele rejeita o carinho exagerado de sua meia-irmã como forma de evitar o sofrimento de uma nova entrega emocional, uma proteção que é quebrada com a adição da droga em seu organismo. Em sua interação com o filho, o roteiro insinua que ele já foi um excelente pai, ainda que o jovem tenha se acostumado com a faceta negativa dele.

Odiado pela crítica internacional em sua estreia, que apontou apenas falhas, esse belo filme merece mais atenção por seus méritos.