sexta-feira, 31 de março de 2017

Tesouros da Sétima Arte - "A Fúria dos Justos", de Mark Robson


A Fúria dos Justos (Trial - 1955)
Um tesouro que precisa ser garimpado, nunca lembrado quando se escreve sobre os filmes de tribunais, “A Fúria dos Justos” é dos melhores no tema já feitos, incrivelmente atual no cenário político brasileiro. O projeto chamou atenção à época por ter sido o primeiro a ter um juiz negro, vivido por Juano Hernandez.

Inspirado no caso conhecido como “Sleepy lagoon murder”, que chocou a opinião pública na Califórnia de 1942, o roteiro brilhante de Don Mankiewicz não força suspense algum sobre a inocência do adolescente mexicano acusado de homicídio, o espectador sabe desde o início, assim como seu advogado de defesa, interpretado por Glenn Ford, que o rapaz não matou a menina norte-americana na praia. Ela tinha sérios problemas cardíacos, os dois estavam namorando, o júri não teria dificuldade em agir com sensatez. O problema é que o homem que contratou o advogado não está interessado em liberar o garoto, ele quer um mártir para seu discurso comunista. O personagem, vivido por Arthur Kennedy, realiza comícios festivos para, supostamente, angariar recursos para os custos legais, quando, na realidade, faz fortuna para o partido com a mesma lábia torpe dos pastores neopentecostais, chega até a converter a mãe da vítima, vivida por Kathy Jurado, utilizando o show como plataforma política.

É interessante analisar a cena do julgamento, quando Barney (Kennedy), ao sentir que está perdendo terreno, passa a tentar de todas as formas desestruturar o ambiente, provocando o juiz com insinuações racistas, a estratégia comunista de incitar a guerra, dividir para conquistar, cortina de fumaça na intenção de prolongar o anúncio do veredito o máximo possível. David (Ford), um professor de direito que abraça a causa por senso de ética e amor à justiça, percebe rapidamente a espetacularização promovida pelo seu colega e se revolta, com plena consciência de que está colocando tudo a perder. Sem prática nos tribunais, inserido no esquema para não prejudicar os planos nefastos do seu superior, ele vai provar que não há força que subjugue um caráter íntegro.


* O filme está sendo lançado em DVD, com opção de dublagem em português, pela distribuidora "Classicline". 

quinta-feira, 30 de março de 2017

"Ghost in The Shell", de Mamoru Oshii


Ghost in The Shell (Kôkaku Kidôtai - 1995)
Antes de você perder tempo com a adaptação norte-americana que está estreando hoje em nossos cinemas, dirigida por Rupert Sanders, do terrível “Branca de Neve e o Caçador”, eu recomendo que conheça o genial material original, o mangá de Shirow Masamune (pseudônimo de Ota Masanori), de 1989, e a animação dirigida por Mamoru Oshii, em 1995. É importante estabelecer inicialmente o contexto da obra, que remete diretamente ao livro “O Fantasma da Máquina”, escrito por Arthur Koestler, lançado em 1967, que critica o comportamentalismo de B.F. Skinner e o dualismo cartesiano de Descartes. Não há distinção de mente e corpo, o “fantasma” é o id na casca (shell), que nessa sociedade futurista dominada pela inteligência artificial pode ser substituída a qualquer momento.

A protagonista, Motoko Kusanagi, ciborgue que comanda a força-tarefa da Seção 9, apresentada nos quadrinhos com leveza e muitos toques de humor até os complexos capítulos finais, ganha contornos mais sóbrios no filme, uma introspecção coerente com o pouco tempo disponível para trabalhar todos os temas. Ela pode se comunicar através de cabos no pescoço, conceito pioneiro, muitos anos antes da existência no mundo real do usb e wi-fi, elemento que, dentre muitos outros, seria reverenciado generosamente (para não dizer copiado) em “Matrix”. O perigo é representado na figura do mestre dos fantoches, um software hacker com consciência, logo, que se considera uma forma de vida, passível de asilo político, ao invés da prisão por seus crimes. Quem, como eu, ama “Blade Runner” e aprecia a literatura cyberpunk, o mestre William Gibson e a trilogia formada por “Neuromancer”, “Count Zero” e “Mona Lisa Overdrive”, vai encontrar terreno fértil para discussões filosóficas na trama. O que é ser humano? Quais os malefícios da inescapável perda de individualidade? Uma memória implantada no cérebro causa a mesma emoção de uma experiência real? Um computador pode ter “alma” (o fantasma)? Se a vida consiste na preservação da informação, o software não pode ser reduzido a qualquer objeto inanimado. A solução encontrada para o problema também inspirou vários projetos posteriores, até mesmo videogames como a brilhante trilogia “Mass Effect”, que, em um dos desfechos possíveis no terceiro jogo, propõe o próximo passo evolutivo, a síntese entre homem e máquina.

A belíssima animação dedica tempo precioso ao silêncio em uma sequência que evidencia a dependência tecnológica na cidade, ajudando a compor o clima com a trilha sonora minimalista de Kenji Kawai. É possível encontrar também uma referência visual ao “Persona”, de Ingmar Bergman, na cena de “diálogo” entre Motoko e o mestre dos fantoches, o espelhamento no enquadramento dos rostos, refinamento pouco usual. "Ghost in The Shell", mangá e animação, obras-primas que somente melhoram em revisão. 

segunda-feira, 27 de março de 2017

"Übermensch", meu primeiro curta, está disponível na plataforma "Looke"


Link para o filme no Looke:

Sinopse: A angústia de um escritor desempregado tentando lidar com a perda da mulher amada em meio a uma invasão alienígena.

Elenco: Ademilson Júnior, Teresa Cristina Oliveira, Octavio Caruso, Andréa de Oliveira Barbosa e Bruna Oliveira Sampaio.

Trilha-Sonora: Mário PC.

Argumento, Roteiro e Direção: Octavio Caruso.

sábado, 25 de março de 2017

"Fragmentado", de M. Night Shyamalan


Fragmentado (Split - 2016)
Os últimos segundos do filme transformam o que era até aquele momento um bom suspense, eficiente e acima da média em diversos aspectos, em uma épica e surpreendente proposta de construção de universo cinematográfico. O recurso banalizado atualmente em produções direcionadas ao público infanto-juvenil, fórmula desgastada, recebe uma injeção de adrenalina no peito. Sem estragar a experiência, afirmo que M. Night Shyamalan encontrou novamente o caminho autoral, após mais de uma década desperdiçada em bobagens mainstream como “Fim dos Tempos” e “Depois da Terra”.

O grande problema de sua persona como cineasta é ter incutido no espectador o desafio de representar um enigma a ser decifrado em cada obra, a existência obrigatória da reviravolta final prejudica a imersão e, invariavelmente, faz qualquer solução do roteiro ser menos interessante que as mil possibilidades que nós, detetives informais na sala escura, ficamos conjecturando no decorrer da trama. Não há nada pior no cinema que a expectativa, exatamente por isso Hitchcock inseria sua aparição em cena logo nos primeiros momentos de seus filmes, evitando assim que o público deixasse de prestar atenção na história para ficar buscando ele na tela. O roteiro brinca, de certa forma, com a comparação estabelecida a partir de “O Sexto Sentido” entre o indiano naturalizado estadunidense e o mestre britânico, “Psicose” e a dupla personalidade de Norman Bates, referências óbvias, apesar de James McAvoy ser um ator muito mais competente que o saudoso Anthony Perkins. É impressionante como ele consegue abraçar várias identidades emocionalmente antagônicas em uma mesma tomada, sem o auxílio de vestuário, maquiagem ou objetos de cena, as linhas do rosto insinuam, em questão de segundos, a personalidade dominante.

Anya Taylor-Joy, um dos grandes méritos do recente “A Bruxa”, entrega vulnerabilidade e resiliência na mesma medida, algo difícil quando suas motivações são gradualmente reveladas. Ela vive uma das três adolescentes que são capturadas pelo perturbado protagonista, numa espécie de variação do tema da preservação da pureza trabalhado no livro “O Colecionador”, de John Fowles, e, posteriormente, na adaptação dirigida por William Wyler em 1965. O seu envolvimento potencializa o importante elemento de fábula, que, felizmente, evita rompantes demagógicos na conclusão de seu arco narrativo, uma opção que merece ser salientada. 

Com "Fragmentado", Shyamalan volta a ser relevante na indústria após um longo inverno.

sexta-feira, 24 de março de 2017

"Eu, Daniel Blake", de Ken Loach


Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake – 2016)
Ken Loach tem uma filmografia muito coerente, confesso que o estilo dele não me agrada muito, mas “Eu, Daniel Blake”, o mais recente, apresenta o cineasta britânico em sua melhor forma, o protagonista me conquistou já nos primeiros minutos. Um carpinteiro experiente, vivido com brilhantismo pelo comediante Dave Johns, que sofre um ataque cardíaco e fica impedido de trabalhar pelos médicos. O sistema, no entanto, faz com que ele entregue currículos diariamente na tentativa de conseguir o auxílio financeiro. Ele enfrenta a ausência de empatia dominante no reino dos burocratas, com vários diplomas na parede, porém, ignorantes no básico, incapazes de tratar com humanidade o indivíduo. 

Vivemos a era da aparência, da teoria, o que importa é inserir uma melodia tranquilizante no call center, os atendentes agem como máquinas, complicando ao máximo cada etapa do processo na esperança de que a paciência do cliente resista pelo maior tempo possível, longas ligações representam cifrões. A praticidade, a gentileza, a habilidade de se colocar no lugar do outro, valores que se perdem a cada cidadão que se revolta e decide silenciar, como o vizinho jovem que encontra uma forma fácil de lucrar com tênis importados da China, sem os impostos, tirando proveito da situação. É a estratégia do “cada um por si”, a malandragem, vendendo escalpos retirados sem esforço de índios explorados e assassinados. Abraçar a causa e lutar por ela dá trabalho. A analogia é válida, já que as engrenagens cruéis operam destruindo aqueles mais necessitados. 

Katie, a mãe solteira, vivida impecavelmente por Hayley Squires, passa fome para conseguir alimentar suas crianças. No auge de seu desespero, quando tenta roubar uma loja de conveniência, ela acaba se tornando vítima de funcionários sem caráter, que aliviam seu crime, na esperança de que ela os ajude financeiramente em um esquema de prostituição. Não há altruísmo nesse mundo podre, não há solidariedade, até as vítimas se canibalizam, Loach então propõe que a união é o único caminho. A atitude rebelde de Daniel, grafitando sua revolta, expressão primitiva, quase selvagem, em resposta à moderna acessibilidade virtual que tanto o perturba, a única vitória possível, tão simbólico quanto o grito por humanidade de John Merrick em “O Homem Elefante”, o testamento em vida de pessoas que, conscientes da derrota, insistem em resistir. Como o discurso no desfecho evidencia, o protesto é mais importante que o personagem, os alívios cômicos, a impagável cena do aprendizado na utilização do computador, recursos importantes para adocicar a experiência panfletária, a proposta é política. 

O relacionamento de amizade formado entre Daniel, Katie e seus filhos, elemento que brota naturalmente a partir de um simples gesto de carinho dele com a jovem, um olhar atento quando todos fingiam não perceber sua presença, proporciona momentos de linda delicadeza e refinado simbolismo, como a estante feita à mão na esperança de que suporte no futuro o peso dos livros acadêmicos da amiga, a salvação pela cultura. 

quarta-feira, 22 de março de 2017

"Ser Ou Não Ser", de Ernst Lubitsch


Ser Ou Não Ser (To Be or Not to Be - 1942)
Falar do diretor alemão Ernst Lubitsch sem citar o famoso “Lubitsch Touch” (Toque Lubitsch) seria impossível, pois faz parte de sua mitologia. A expressão que busca descrever o estilo único do diretor tem sido discutida, através das décadas, por cinéfilos e profissionais da crítica. Dentre as várias definições já elaboradas, cada uma mais criativa que a outra, esta é a minha favorita: “O elegante uso da piada sobreposta. O roteiro já serviu a piada ao público, que sorri satisfeito. Então o roteiro apresenta na sequência uma piada ainda mais engraçada, que o público não esperava”. Billy Wilder, um dos maiores fãs dele (em seu escritório havia uma placa que dizia apenas: “O que Lubitsch faria? ”), definiu a arte de seu ídolo: Sempre surpreender o público. Algo que o pupilo aprendeu muito bem e fez uso em seus trabalhos, como no clássico e inesperado: “Ninguém é perfeito”, no desfecho de seu “Quanto Mais Quente Melhor”. Eu definiria de forma um pouco diferente, pois acredito que a genialidade do diretor residia na sua incrível capacidade de manter suas obras simples e acessíveis, mesmo envoltas no maior refinamento. Os temas podiam ser sofisticados, os diálogos muito inteligentes, mas sua forma de apresentá-los era humilde e generosa. Como um bom anfitrião, ele queria que todos se divertissem em suas festas.

Utilizar o nazismo como pano de fundo para uma comédia era algo bastante arriscado na época. Chaplin havia enfrentado Hitler dois anos antes, em “O Grande Ditador”, o seu filme era um drama com toques de humor, onde o ponto alto consistia em um belo e sério discurso humanista. Lubitsch gargalhou na cara dos nazistas sem nenhum subterfúgio. A sua ousadia foi tanta que causou o fracasso da obra em sua estreia, com o público se recusando a pagar para rir de algo tão ameaçador quanto os nazistas. Frases ditas no filme, como a sensacional resposta do oficial alemão quando perguntado sobre o ator, vivido por Jack Benny, causaram polêmica: “Eu o conheço, ele protagonizou uma vez em Hamlet. O que ele fez com Shakespeare, nós estamos fazendo com a Polônia”. Para os jovens cinéfilos que estão iniciando nesta maravilhosa jornada, reflexos deste filme podem ser percebidos em “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino. Em ambos, o nazismo é vencido ludicamente pela arte.

Os componentes da companhia teatral estão em constante disfarce, utilizando o talento como arma contra a violência bestial. Eles começam procurando vencer o medo com humor, satirizando Hitler em suas apresentações, acabam descobrindo que a gargalhada apenas adia ou enfraquece o medo, não o subjuga. O medo do personagem vivido por Jack Benny é compartilhado por quase todos os atores: A rejeição. A sua esposa, vivida por Carole Lombard, que viria a falecer logo depois das filmagens em um desastre de avião, marca encontros furtivos com um jovem nos bastidores, enquanto seu marido defende o clássico e longo monólogo de Shakespeare. Ele percebe que o jovem se levanta enquanto ele inicia o solilóquio, mas mesmo após descobrir a razão, ele ainda se questiona sobre sua capacidade de entreter seu público. Esta piada já estabelecida ao longo da obra entrega, na cena final, um impagável clássico símbolo do “Lubitsch Touch”.


* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Obras Primas do Cinema".

"A Bela e a Fera", de Bill Condon


A Bela e a Fera (Beauty and The Beast - 2017)
Fábulas são fontes de inspiração que vão sendo retrabalhadas ao longo do tempo, “A Bela e a Fera”, escrita por Gabrielle Suzanne Barbot de Villeneuve e publicada em 1740, passou pelas mãos criativas de vários escritores, a história foi sendo moldada, expandida, modificada, mas a essência se manteve. E são eternas exatamente por abordarem temas fundamentais na formação dos alicerces psicológicos do indivíduo. No cinema, duas versões se tornaram inesquecíveis, o maravilhoso clássico em preto e branco dirigido pelo francês Jean Cocteau em 1946 e, adaptada como musical, na animação dos estúdios Disney dirigida por Kirk Wise e Gary Trousdale em 1991.

Os adultos de hoje que viveram aquele momento mágico na infância, cantando a versão brasileira das canções compostas por Alan Menken, Howard Ashman e Tim Rice na escola, a primeira animação a ser indicada para o prêmio de Melhor Filme no Oscar, estão tendo a oportunidade preciosa de compartilhar a experiência emocionante hoje na sala escura com seus filhos pequenos. “A Bela e a Fera”, dirigido por Bill Condon e protagonizado por Emma Watson e Dan Stevens, trata a história com reverência nostálgica, reproduzindo fielmente até os enquadramentos de certas sequências, e, vale ressaltar, com muita ternura. Duas sugestões: Se for levar crianças, prestigie a altíssima competência da equipe de dubladores nacionais e evite o 3D, o recurso prejudica tremendamente a iluminação tão ricamente pensada pelo diretor de fotografia.

Bela (Watson) é uma doce menina que valoriza a literatura, o ato rebelde de buscar cultura em uma época em que a sociedade reduzia a mulher aos afazeres domésticos. Naqueles tomos empoeirados ela viaja para outros mundos, conhece novas possibilidades, compreende que a beleza está na rosa que pede que seu pai (Kevin Kline) traga em todas as suas viagens. Esse gesto aparentemente simples evidencia o traço mais marcante de sua personalidade. As outras damas do local pensam apenas no enfeite que irão utilizar para conquistar a atenção dos bons partidos, maquiagem, vestidos deslumbrantes, elementos artificiais para serem notadas por machistas artificiais, estúpidos como Gaston (Luke Evans), narcisista insensível que toma por capricho a missão de se casar com Bela, a estranha misteriosa que ousa ignorar diariamente seus galanteios.

A simbologia da rosa é importante na trama, as pétalas encantadas que caem dentro do vidro que protege sua pureza do cruel mundo externo, terra de violência, feras, doença e morte. A necessidade de o amor verdadeiro quebrar o encanto antes da queda da última pétala, a resistência poética daqueles que corajosamente enfrentam o embrutecimento da sociedade, cada vez mais interessada no enfeite, desprezando a simplicidade da rosa. Uma atitude preconceituosa do príncipe outrora havia sido a responsável pelo seu castigo. Quem pode amar uma fera? Quem pode olhar nos olhos da dor e sorrir, agradecendo o aprendizado? Tarefa que demanda maturidade, sincera empatia e desapego pelo conceito da vaidade.

Somente Bela, alguém capaz de se apaixonar por letras harmoniosamente unidas no papel, valorizando a inspiração dos escritores, conseguiria enxergar além da imagem, tocando delicadamente o humano gentil por trás da besta, a mãe carinhosa por trás da chaleira (Emma Thompson), o generoso bonachão por trás do relógio (Ian McKellen), o romântico inveterado por trás do candelabro (Ewan McGregor). O retorno à humanidade desses personagens depende da resistência da menina, contra todas as probabilidades, sendo forçada a revisitar memórias tristes, fazendo as pazes com o passado e, num ato de linda generosidade, liberando o angustiado pai da culpa que o atormentava desde o falecimento de sua amada esposa.

A Fera (Stevens) reconhece pela primeira vez o seu antigo reflexo no espelho da vida ao encarar a jovem impetuosa. Ele inicialmente a rejeita, ele já estava se acostumando com sua condição, apreciando a solidão e resignado a eventualmente desaparecer esquecido nas trevas de seu castelo. O relacionamento que se estabelece entre os dois ganha toques ainda mais bonitos nessa nova versão, uma nova canção (“Evermore”) defendida pelo personagem em seu momento mais amargurado agrega camadas de interpretação, a sua tragédia é comum a muitos de nós, a identificação é parte essencial, reconhecer que há beleza até mesmo no amor que não é correspondido, a ausência dela seguirá alimentando sua inspiração. Ele a liberta, com plena consciência das tristes consequências, a esperança vã de seu retorno o manterá são até o último segundo.

Uma história que seguirá se renovando nas próximas gerações, apesar de todo discurso de ódio, fome, medo e catástrofes naturais, um romance que continuará a emocionar pais e filhos no mundo todo, enquanto houver a doce resistência de uma flor que rompe o asfalto. 

"Os Viúvos Também Sonham", de Frank Capra


Os Viúvos Também Sonham (A Hole in The Head - 1959)
Tony Manetta (Sinatra) é um viúvo dono de um hotel decadente em Miami. Seus problemas são, em grande parte, por culpa dele, pois é um irresponsável que só pensa em mulheres. A única pessoa na vida dele capaz de colocá-lo nos trilhos é Ally (Eddie Hodges), seu filho de apenas 12 anos de idade. Endividado, Tony pede ajuda ao irmão Mario (Edward G. Robinson), que coloca algumas condições: ele deverá desistir do filho Ally ou se casar com uma mulher decente que ele indique. Só assim ele poderá ajeitar a vida e prosperar. É quando surge Eloise Rogers (Eleanor Parker), uma encantadora mulher que poderá mudar os rumos da vida de toda essa família.

Ao contrário dos tipos sonhadores idealistas usuais na filmografia de Frank Capra, como o Jefferson Smith de “A Mulher Faz o Homem”, ou o George Bailey de “A Felicidade Não Se Compra”, Tony Manetta é apenas um tolo iludido, um vagabundo mulherengo que deseja abrir um parque temático sem ideia de como vai conseguir a verba para seu objetivo. Os clássicos personagens defendidos por James Stewart lutavam por uma sociedade melhor e mais justa, mas não há nobreza alguma no viúvo hoteleiro vivido por Frank Sinatra, ele visa apenas o lucro. Esse era o desafio que estimulava o diretor, encontrar o encantamento por trás de uma trama sem heróis, inserir o difícil relacionamento entre pai e filho, com o pequeno demonstrando maturidade emocional e o adulto agindo frequentemente como criança. O mais próximo de um personagem adorável é o irmão mais velho, vivido por Edward G. Robinson, que parece ter prazer em ser desagradável com todos.

O estilo relaxado de Capra nas filmagens, absorvendo a experiência como parte do público, incentivava o elenco a encontrar nuances cômicas novas no texto em cada tomada, olhares, gestos, a recompensa era a risada que eles escutavam atrás da câmera. Uma sequência genial, praticamente teatro filmado, reunindo Thelma Ritter, Sinatra e Robinson no quarto, um jogo de cadeiras com longos diálogos sem corte, evidencia o timing único do diretor em seu penúltimo projeto, após vários anos afastado da função. O terceiro ato investe no melodrama, com a entrada da belíssima Eleanor Parker, uma viúva que pode simbolizar a salvação financeira do protagonista. É quando o roteiro, adaptado da peça de Arnold Schulman, responsável por “Funny Lady”, perde fôlego e conduz para um desfecho irregular, um final feliz que não soa crível, orgânico, mas que não prejudica o todo. Vale destacar que “High Hopes”, composta por Sammy Van Heusen e Sammy Cahn, cantada em uma linda cena por Sinatra e o menino Eddie Hodges, venceu o Oscar de Melhor Canção.






* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

domingo, 19 de março de 2017

Cartazes do curta "Nocebo" atualizados com a passagem pelo FESTin, de Portugal.

"Nocebo" foi selecionado para a Mostra Brasileira de Cinema, do FESTin - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa (2017). Arte dos cartazes: Laísa Roberta Trojaike. 


sexta-feira, 17 de março de 2017

"O Inquilino" e "O Marido Era o Culpado", de Alfred Hitchcock


O Inquilino (The Lodger: A Story of the London Fog - 1927)
Hitchcock considerava esse filme como o ponto de partida em sua carreira, uma pérola do cinema mudo que segue eficiente hoje. É perceptível o fascínio dele pelas experimentações na linguagem, colocando em prática tudo o que aprendeu durante sua fase nos estúdios alemães, o expressionismo absorvido com segurança por alguém com forte senso autoral. A trama é inspirada nos casos de Jack, o Estripador, algo consideravelmente recente no imaginário popular da época. A histeria coletiva que incrimina um inocente, tema que se tornaria recorrente na obra do mestre do suspense, emoldurada por uma utilização altamente criativa dos cenários, com destaque para a celebrada sequência em que a câmera nos mostra os passos do protagonista, vivido por Ivor Novello, filmados sobre um chão de vidro, potencializando a preocupação dos moradores no andar de baixo com a enigmática presença do hóspede. O desafio de contar a história sem diálogos provou ser enriquecedor para o jovem britânico, que pôde flertar com simbolismos visuais, o triângulo que reflete a estrutura dos relacionamentos trabalhados na narrativa, além, claro, das vítimas loiras que se tornariam cada vez mais frequentes. A estética usual do teatro filmado silencioso dava lugar ao jogo de imagens do cinema moderno. Vale destacar que a ideia inicial preservava o mistério sobre a autoria dos assassinatos, mas a escalação de Novello, ídolo jovem muito querido pelas adolescentes, impossibilitou a dúvida, ninguém queria correr riscos nas bilheterias.


O Marido Era o Culpado (Sabotage - 1936)
Quando conheci o filme na adolescência, em uma exibição televisiva no “Cine Vida”, da “Rede Vida”, apresentado por Brancato Júnior e pelo crítico José Tavares de Barros, eu me lembro de ter ficado assustado com a crueza de Hitchcock. De certa forma, considero “O Marido Era o Culpado” mais ousado que os posteriores “Cortina Rasgada” e “Frenesi”. A temática do terrorismo fez com que o filme fosse banido em alguns países, o tom sombrio refletia a complicada situação política na Europa, com a ameaça nazista espreitando nas sombras. O nível impressionante de tensão na sequência em que acompanhamos o passeio do menino que, sem saber, carrega uma bomba pelas ruas da cidade, uma aula que une elementos da montagem soviética de Eisenstein e Vertov ao senso de humor macabro do diretor. Inspirado levemente no livro “O Agente Secreto”, de Joseph Conrad, essa pérola da fase britânica merece maior reconhecimento, especialmente pela coragem. O mundo ficaria chocado com o assassinato da personagem de Janet Leigh na primeira meia-hora de “Psicose”, em 1960, mas Hitchcock já subvertia todas as expectativas aqui, eliminando brutalmente a criança no ato terrorista, a pureza sendo a primeira vítima do medo.


* Os filmes estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito, no digistack "A Arte de Alfred Hitchcock", que contém também um documentário sobre a fase inglesa do mestre do suspense e os filmes "Jovem e Inocente" e "A Estalagem Maldita".

quarta-feira, 15 de março de 2017

"Superman e os Homens-Toupeira", de Lee Sholem


Superman e os Homens-Toupeira (Superman and The Mole Men - 1951)
Há uma cena no “Superman 2”, de Richard Lester, que resume o significado do personagem enquanto símbolo. Lex Luthor, traído pelo General Zod, fica aliviado ao ver o herói vivo do lado de fora da janela do Planeta Diário. Ele sabe que não pode contar com a palavra de um homem sem escrúpulos. E, por mais que ele odeie Superman com todas as forças, sabe que está lidando com alguém íntegro, que será justo. Quando vejo os filmes recentes dirigidos por Zack Snyder, não consigo enxergar esses valores, os roteiros falham no básico, não compreendem o personagem.

A criação de Jerry Siegel e Joe Shuster representa a esperança, os quadrinhos originais da década de trinta buscavam resgatar o ânimo de um país que lutava para se restabelecer da recessão econômica, o povo desempregado juntava moedas para adquirir naquelas páginas a coragem de seguir em frente. A ação e os superpoderes fazem parte das histórias, mas são as atitudes sensatas que forjaram o herói, a capacidade de agir corretamente nas situações mais complicadas, sem nunca desrespeitar seus princípios. Christopher Reeve alcançou essa intenção nobre no clássico da década de setenta, mas creio que nenhuma versão live action foi mais competente nesse sentido que a protagonizada por George Reeves. O projeto, em preto e branco, foi o primeiro produzido com o personagem para o cinema, após os dois seriados protagonizados por Kirk Alyn. Reeves, que havia voltado da guerra, encontrava papeis apenas em títulos de baixo orçamento, aquela parecia ser uma boa chance de conquistar público. Superman acabaria se tornando o papel de sua vida. O roteiro tratava o elemento alienígena com reverência similar à de “O Dia em Que a Terra Parou”, lançado no mesmo ano, uma postura radicalmente diferente dos sci-fi da época, que sempre traziam o diferente como algo a ser temido, uma metáfora para o temor comunista.

Os repórteres Clark Kent (Reeves) e Lois Lane (Phyllis Coates) decidem investigar as estranhas aparições que passam a ocorrer em uma cidade após o trabalho de uma mineradora. Vale destacar a postura de Reeves em seu disfarce, mais sério e nada desajeitado, uma presença digna e que impõe respeito, longe da caricatura cômica que seria trabalhada décadas depois no filme de Richard Donner. Como os efeitos especiais não permitiam uma utilização excessiva do herói uniformizado, Kent protagonizaria na maior parte do tempo, uma entrega mais crível facilitava a identificação com o público. Em “Superman e os Homens-Toupeira”, os vilões são os humanos movidos pelo ódio, aqueles que julgam sem conhecer os fatos. Os seres do título, moradores do subterrâneo que, pela cobiça do homem, são forçados a conhecer a superfície, e, eventualmente, perseguidos por serem diferentes.

sábado, 11 de março de 2017

Presente inesquecível de meus avós maternos

Faço questão de compartilhar com você, que carinhosamente acompanha meu trabalho, essa carta de meus avós maternos, escrita em dezembro de 1991. Eu tinha acabado de completar oito anos de idade, já intensamente apaixonado por cinema, lendo e escrevendo como um louco (risos), vencendo concursos de poesia na escola e sonhando com os livros que eu escreveria no futuro. Empolgados, meus saudosos avós Newton e Haydê prepararam o melhor presente de Natal: A máquina de escrever que meu avô utilizou por vários anos em seu escritório de advocacia. Fico feliz que ele tenha vivido para ver meus primeiros passos profissionais como escritor/crítico de cinema. E minha avó, que faleceu oito anos depois dele, viu o lançamento do meu primeiro livro. Saudade dos dois.


sexta-feira, 10 de março de 2017

Nos Embalos do Rei do Rock - "Loiras, Morenas e Ruivas"

Link para os textos anteriores do especial:
http://www.devotudoaocinema.com.br/p/criticas_14.html


Um fiapo de roteiro que faz todos os seus filmes anteriores parecerem “Cidadão Kane”, a trama pode não ter um antagonista, mas “Loiras, Morenas e Ruivas”, a despeito do péssimo título nacional, produzido por Ted Richmond (que seria responsável por “Papillon”, em 1973), prova que o carisma de Elvis Presley conseguia operar milagres.


Loiras, Morenas e Ruivas (It Happened at The World's Fair - 1963)
Após dirigir o cantor em três sucessos de bilheteria (“Saudades de Um Pracinha”, “Feitiço Havaiano” e “Garotas, Garotas e Mais Garotas”), o veterano Norman Taurog conseguiu o que parecia impossível, transformar um projeto de baixo orçamento pensado apenas como divulgação da Feira Mundial de Seattle, na recém-construída Seattle Center, evento movido pela temática da Era Espacial, em um filme emocionalmente funcional. 

Elvis vive Mike Edwards, um piloto de avião que faz todo tipo de bico com o sócio Danny (Gary Lockwood, que viveria anos depois um dos astronautas de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”), um jogador inveterado que perde tudo nas cartas. Os dois chegam por acidente em Seattle, pegando carona com um chinês vendedor de maçãs e sua pequena sobrinha, Sue-Lin (Vicky Tiu, que não trabalhou mais no cinema e depois foi primeira-dama do Havaí). Quando o tio desaparece, a menina pede ajuda ao piloto. Tiu afirmou em entrevistas posteriores que nunca irá esquecer o carinho que Elvis tinha por ela, ajudando, inclusive, em uma cena difícil em que precisava chorar. O colega, vendo que a menina não estava conseguindo finalizar e estava envergonhada, acenou para o diretor e disse sorridente: “É isso, por hoje é só, a pequena dama e eu iremos lanchar, amanhã continuamos”. Ele a acalmou, no dia seguinte a cena foi completada sem atraso.

É interessante notar que, pela primeira vez na filmografia dele, o roteiro explorava a relação de amizade entre o adulto e a criança, um aspecto que ajudava a definir a imagem comportada do cantor no cinema. Até mesmo o figurino dele evidencia esse objetivo, ternos elegantes que se assemelham mais com o deboche perpetrado por Steve Allen no programa televisivo de início de carreira, quando o jovem engravatado teve que cantar "Hound Dog" ao lado de um cão. Na trilha sonora, três canções são direcionadas nesse sentido: “Cotton Candy Land”, “Take Me to The Fair” (que chegou a ser cogitado como o título do filme) e “How Would You Like to Be”. Ver Elvis entretendo a menina, tentando fazê-la dormir, ou buscando animar ela depois de sofrer uma decepção, momentos que podem parecer demagogia sacarina em teoria, mas a execução é tão terna e o sentimento transmitido é tão puro que encantam o espectador. As canções do filme são fracas, com exceção da bela balada “They Remind Me Too Much of You”, inserida na cena como reflexão imaginária, algo que não havia sido tentado ainda em seus filmes, composta por Don Robertson, um dos preferidos do cantor. “Beyond The Bend”, que toca nos créditos iniciais, “One Broken Heart for Sale”, com seu hilário coral de aposentados viciados em jogo, “Happy Ending”, que conduz a trama para o desfecho, simpáticas, inofensivas, assim como “I’m Falling in Love Tonight”, “World of Our Own” e “Relax”, uma lista acima da média, mas apenas uma canção verdadeiramente marcante, o que já mostrava a dificuldade crescente dos produtores em fornecer material para a quantidade absurda de roteiros. E, para piorar, a MGM havia solicitado que as gravações no estúdio fossem desprovidas de qualquer eco, destruindo a ambiência natural, garantindo uma estética artificial, ao invés do swing improvisado que marcava as gravações do cantor para a RCA. Vale destacar que a interpretação de Elvis conseguia dar dignidade até para a mais tola composição.

O interesse romântico da vez, Diane, uma enfermeira que sonha em trabalhar para a NASA, papel vivido por Joan O’Brien, cantora de sucesso na década de cinquenta que tentava se firmar em Hollywood. O ator Kurt Russell, de “Os Aventureiros do Bairro Proibido” e “O Enigma de Outro Mundo”, grande fã de Elvis, faz uma ponta hilária como um menino que é pago para chutar a canela do protagonista, que buscava um motivo para se reencontrar com a enfermeira. O filme é muito divertido, o humor funciona, mas é perceptível que a indústria já não estava mais se importando em inserir o artista em algo minimamente relevante, o interesse era apenas agradar seu público adolescente. Como ponto positivo, a coreografia das lutas nunca esteve melhor, ajudadas pela montagem dinâmica. Uma sequência perdida no meio da trama, o encontro romântico do piloto com uma belíssima Yvonne Craig, que teria papel de destaque no ano seguinte em outro projeto de Elvis: “Com Caipira Não Se Brinca”, mas ganharia fama mundial como a “Batgirl” da série protagonizada por Adam West, sintetiza a falta de cuidado. Não há preocupação em preparar um terreno crível para que as canções sejam defendidas, ele simplesmente solta a voz em qualquer situação. Esse desleixo foi o alvo principal das críticas da época. 

A Seguir: "O Seresteiro de Acapulco" (Fun in Acapulco)

"Koza", de Nuri Bilge Ceylan


Koza (1995)
É fascinante o apreço de Nuri Bilge Ceylan pelo silêncio, que ele considera uma forma de expressão mais sincera do que o espetáculo de palavras usualmente lapidadas pela necessidade de se viver em comunidade. A essência pura, a nudez de sentimentos, a verdade que não se permite ser filtrada pelos plugins intelectuais, a selvageria instintiva que nos obriga a encarar a origem de tudo. A experiência dele como fotógrafo facilita o impacto da síntese imagética que propõe na simplicidade narrativa de “Koza”, o seu primeiro curta-metragem. Ele utiliza seus pais, Mehmet Emin e Fatma Ceylan, na composição desse retrato poético, sem diálogos, que pode parecer incrivelmente impenetrável em uma análise superficial, porém, reserva para os espectadores mais dedicados um sabor residual intenso e verdadeiramente agradável, apesar de abordar temas existencialmente espinhosos.

A breve experiência humana como um casulo temporário, a sensação de se estar confinado permanentemente a um corpo frágil em progressiva degradação, a mórbida lucidez que cruelmente se mantém admirando o reflexo cada vez menos reconhecível no espelho, a dificuldade de se compreender as necessidades do outro, o peso do tempo nas atitudes impensadas, a dor de se submeter às consequências. Ao optar iniciar mostrando antigas fotografias, ele salienta o conceito do aprisionamento, o leitmotiv mais forte, reduzindo décadas de vida a momentos captados em alguns segundos por uma máquina. O ser humano percebido como objeto. Vemos o homem e a mulher, da vaidosa juventude, passando pelo ritual frio do casamento, a cumplicidade amorosa no toque dos braços, até o desgaste na relação, simbolizado pela separação dos corpos e pelos braços cruzados, refletindo insegurança diante do mundo.

A porta que se fecha diante da esposa, cena que antecede o título e remete ao desfecho de “O Poderoso Chefão”, o mais próximo que chegamos de uma explicação sobre a razão da ruptura emocional, a perda da cumplicidade em algum momento do relacionamento a dois, simbologia que encontra rima visual numa cena posterior, como que enfatizando para a personagem a qualidade cíclica da desilusão amorosa, a lágrima que desce de seu rosto na cama, elemento cênico usualmente conectado ao desejo, o amadurecimento desfazendo naturalmente o ímpeto sexual da paixão e abraçando a lúcida amizade entre duas pessoas no crepúsculo de suas vidas. Ao potencializar conscientemente os sons diegéticos, como o rangido de uma porta que soa como um trovão, Ceylan demonstra seu bom humor e, especialmente nas sequências ao ar livre, salienta o abismo que se abriu entre o marido e a esposa, entre ele e a própria natureza, entre aquele menino despreocupado de outrora e o adulto solitário que encontra dificuldade para expressar um simples sorriso. É quando o filme insere a exploratória aventura do menino na floresta, a memória que se recusa a ser esquecida.

O pequeno aborrecido, vivido por Turgut Toprak, caça pássaros com seu estilingue, mas não há sinal de alegria em seus atos, ele corre na grama, enquanto sua contraparte mais velha é mostrada frequentemente emoldurada pela janela de sua casa, escondida nas sombras do quarto, aprisionada em estado contemplativo, aguardando o inexorável fim. O menino se revolta diretamente com sua versão adulta, numa metáfora bonita, quando derruba o caixote com abelhas, prejudicando sem razão alguma o trabalho alheio, o revide do espírito vigoroso que reside no homem e que não aceita as limitações físicas da idade.  Com o estilingue ele tenta obter controle, mas a implacável natureza se encarrega do trabalho, o gato é visto se alimentando e, no segundo seguinte, aparece morto, o vento que leva a foto do casal, o filhote de pato que enfrenta seu primeiro desafio ao nadar, a mulher que retorna para casa e se assusta ao ver a figura abatida do homem que amava, em suma, ele não tem poder algum.

O reencontro apenas resgata lembranças ruins, ela é mostrada aprisionada com ele na moldura da janela. Incapaz de modificar aquela situação, ela retorna para casa. Ele tenta se aquecer na solidão de seus pensamentos, o fogo na madeira que ele próprio cortou, a aceitação silenciosa de que está vivendo as consequências de seus próprios erros. “Koza” pode tratar da amargura no processo de compreensão da finitude na nossa viagem pela estrada tortuosa da vida, mas a caligrafia sensível de seu realizador emociona ao insinuar que o segredo pode estar na percepção da beleza que quase sempre se perde na paisagem da janela do carro em movimento.

* Texto escrito para o catálogo da Retrospectiva "Imagens da Turquia - O Cinema de Nuri Bilge Ceylan", que foi exibida de 07 a 12 de Março, na Caixa Cultural Rio de Janeiro.

terça-feira, 7 de março de 2017

"Logan", de James Mangold


Logan (2017)
Eu tenho uma relação forte com o personagem Wolverine, a revista em quadrinhos lançada pela Editora Abril em 1992 foi a primeira que acompanhei na infância desde o primeiro número, aguardava ansiosamente os capítulos de sua aventura solo em Madripoor, quando ele era conhecido pelo apelido “Caolho”. Naquela época, antes mesmo da série animada dos “X-Men” estrear no programa matinal TV Colosso, eu sonhava com um filme do carcaju. Os anos passaram, a indústria de cinema deu um abraço apertado na nona arte e Hugh Jackman, uma aposta nada convencional do diretor Bryan Singer, defendeu o personagem no primeiro filme da equipe mutante. Eu tinha quinze anos, já estava afastado do universo dos quadrinhos, vivendo aquele período em que tolamente recusamos ser associados com qualquer produto que nos remeta à infância. Mas eu me lembro de ter ficado feliz com aquela versão, o problema era o timing daquele projeto na minha vida.

“X-Men 2”, fantástico, uma das melhores adaptações de quadrinhos de todos os tempos. A frustração então virou uma constante com os projetos seguintes, atingindo seu ápice no horroroso “X-Men Origens: Wolverine”. A ironia é que, na época de seu lançamento, eu já estava atuando profissionalmente como crítico, então cobri a coletiva de imprensa do ator no Brasil, já esbanjando a simpatia que atualmente está sendo celebrada nas redes sociais. Ele está vivendo o personagem há dezessete anos, um feito digno de nota, creio que somente Christopher Reeve, no que tange quadrinhos no cinema, conseguiu estabelecer uma ligação tão forte de carinho com o público. E ele, tragicamente, não teve a mesma sorte que Jackman, a sua carta de amor para os fãs foi rasgada pelos executivos da Cannon na bomba “Superman 4 – Em Busca da Paz”.

“Logan” é um bom filme, mas longe de ser a obra-prima que muitos estão enxergando, o hype e o efeito manada são parte importante na estratégia de marketing das produtoras, alguns críticos são praticamente alçados ao posto de assessores de imprensa não-remunerados do filme. Os seus problemas prejudicam a imersão plena, então vou me ater inicialmente a eles, antes de tecer os elogios. Sem revelar muito, os vilões são absurdamente desinteressantes, não há sequer um nome que tenha ficado em minha mente minutos após o fim da sessão, não há peso em suas atuações, não há sensação orgânica de ameaça. O mais importante, aquele que em teoria representa o metafórico confronto do homem com sua finitude, com o ato do envelhecimento, literalmente é jogado na trama e não recebe um mínimo de atenção, por conseguinte, enfraquece terrivelmente um dos momentos que deveriam ser emocionalmente devastadores. O protagonista fala diversos palavrões logo nos primeiros minutos, como aquele adolescente que deseja chocar os mais velhos, um recurso que soa forçado, como que para deixar claro para os espectadores adolescentes que eles estão vendo um filme “para maiores”. Há sangue, há brutalidade nas cenas de ação, mas não há nada na trama que justifique a mudança na classificação etária, existe mais maturidade narrativa em animações da Pixar.

O arco narrativo de Logan não é desenvolvido, ele não muda com os acontecimentos vividos, por mais que a última cena insinue algo nesse sentido, não soa crível. A emoção nasce do sentimento que foi estabelecido entre o público e o protagonista nesses dezessete anos, não é mérito do texto, ou das escolhas criativas do diretor. E há um problema imperdoável, total desleixo, um vídeo gravado em celular, espécie de found footage que serve como elemento expositivo, mas editado de forma impecável, com direito até a uma narração em off. Se isso fosse mostrado rapidamente, ainda dava para engolir, mas a cena é longa, não é possível que ninguém percebeu como aquela sequência destoava da estética realista que o filme tenta estabelecer desde o início. A referência ao clássico faroeste “Os Brutos Também Amam” é inserida com mão pesada, talvez um pouco de sutileza seria mais elegante e respeitaria mais a inteligência do espectador, demonstrando segurança em sua louvável ambição dramática. Quando o foco está na interação entre Logan, Xavier (Patrick Stewart) e a pequena Laura (Dafne Keen), o roteiro flui muito bem, porém, a subtrama com Caliban (Stephen Merchant) quebra o ritmo ao tentar forçar uma relevância emocional que o personagem não carrega no universo cinematográfico, apesar de ter sido recorrente nos quadrinhos dos anos oitenta, ele teve apenas uma ponta no recente “X-Men: Apocalipse”, interpretado por outro ator.

O roteiro acerta ao não revelar o que aconteceu no período de tempo entre os dias de glória e esse futuro opressivo, a imaginação sempre realiza um trabalho melhor que a computação gráfica. Algumas dicas são dadas em diálogos, há muita amargura e culpa no peso das palavras, o heroísmo parece existir apenas nas páginas dos quadrinhos lidos pela menina, um toque genial, assim como o boneco do Wolverine que aparece nas mãos de uma criança, ressaltando a importância desses símbolos mitológicos na formação de um indivíduo. Dafne Keen impressiona pela facilidade com que trabalha a ferocidade incontrolável e a vulnerabilidade doce de sua personagem, por vezes, na mesma cena, sem dúvida, ela é o ponto alto do filme. Stewart entrega a dignidade de sempre, ainda que o roteiro não forneça grandes momentos para ele. Jackman está envolvido de corpo, alma e coração no projeto, isso é perceptível e agrega emoção. O corpo cansado, envenenado pela própria condição que o permitiu se tornar uma máquina de guerra, os olhos vermelhos, o andar trôpego, uma composição visualmente impecável, ideia inspirada pelo arco “Old Man Logan”, escrito por Mark Millar e ilustrado por Steve McNiven. Vale destacar o trabalho primoroso de Isaac Bardavid na versão brasileira, até pelo peso da idade, ajudando a dar veracidade ao lamento constante que rasga o peito do personagem.

“Logan” é uma despedida digna para o ator, uma respeitosa carta de amor para os fãs, o filme que finalmente me resgatou a sensação da importância que o personagem teve em minha infância. Os problemas existem, não há obra perfeita, mas o tratamento dos quadrinhos pela indústria cinematográfica está tão preguiçoso atualmente, diversão despretensiosa e uma fórmula irritantemente inofensiva, que considero revigorante a maneira como o desfecho evoca uma emoção madura, sem concessões. 

segunda-feira, 6 de março de 2017

"Máquina Mortífera" e "Máquina Mortífera 2", de Richard Donner


O quarto filme foi decepcionante, exagerando nos elementos cômicos que já haviam prejudicado o terceiro, mas os dois primeiros seguem eficientes em revisão. A explosiva união de Shane Black, Richard Donner, Mel Gibson, Danny Glover e Joe Pesci, o ápice do cinema de ação norte-americano dos anos oitenta. 


Máquina Mortífera (Lethal Weapon - 1987)
O segredo do sucesso do roteiro está na criação de um protagonista à beira de um colapso mental, um homem que perdeu a esposa em um acidente de carro, alguém que lida diariamente com a pulsão suicida, o policial Martin Riggs (Mel Gibson). Ele foi se tornando mais socialmente aceitável nas sequências, mas no original ele está pedindo para ser liquidado por seus oponentes. A ideia do criador dos personagens, o roteirista Shane Black, conduzia Riggs para a morte no desfecho do segundo, porém, por compreensíveis razões financeiras, os produtores se recusaram e o autor se afastou do projeto. É inesquecível a clássica cena em que o policial tenta persuadir um suicida a desistir do ato pulando junto com ele do alto do prédio, o que conduz à sequência mais forte da franquia, uma aula de atuação de Gibson, provando para o colega que ele é realmente capaz de tirar a própria vida, que as suas atitudes radicais não eram uma forma de conseguir pensão da instituição, uma maneira genial do roteiro quebrar as expectativas do público.

A trilha traz Michael Kamen, Eric Clapton e David Sanborn, uma identidade sonora de personalidade, você escuta um riff e a sua memória afetiva já te leva para aquele momento no tempo. Eu vi pela primeira vez aos seis anos, em VHS, na casa de um tio, mas só fui apreciar de verdade na época do lançamento do segundo nas locadoras de vídeo. A estreia do segundo teve ampla cobertura nas revistas SET, Cinemin e Vídeo News, acompanhei com mais consciência cinéfila. O terceiro foi marcante, gravei na exibição do primeiro “Tela Quente” do ano, devo ter visto umas cinco vezes só naquela semana. É curioso constatar que o aspecto humano que move a franquia prevalece sobre a violência, as crianças da década de oitenta se apaixonavam por esses filmes, puras e sensíveis, captando esse coração nas tramas. É, acima de tudo, uma história de amizade, cumplicidade e amor pelo conceito de família. A questão racial nunca é levantada, outro ponto importante, já que o projeto similar: "48 Horas", lançado anos antes, era alicerçado nos estereótipos, Eddie Murphy vivia o criminoso falastrão, o malandro de rua. 

Os heróis do gênero à época simbolizavam o positivismo bélico da era Reagan, corpos esculpidos, máquinas perfeitas de destruição. “Máquina Mortífera” introduzia nesse contexto um louco e um parceiro cinquentão cansado, aposentado, um certinho homem de família, Roger Murtaugh (Danny Glover). O encontro desses dois opostos garantia o charme que até hoje a indústria tenta, sem sucesso, igualar. A essência emocional também era diferente de tudo que estava sendo produzido, a importância da família, representada na subtrama de vingança de Michael Hunsacker (Tom Atkins), após o assassinato da filha, ou no instinto protetor de Murtaugh com sua filha mais velha, mas, especialmente, na relação que se estabelece entre Riggs e Murtaugh, a forma como o veterano o acolhe em seu lar. Outro fator importante que não foi superado nas continuações é a figura do vilão Joshua, a imponência visual de Gary Busey, a briga noturna na chuva iluminada pelo holofote de um helicóptero, cena responsável por apresentar o Jiu-Jitsu brasileiro ao mundo.


Máquina Mortífera 2 (Lethal Weapon 2 - 1989)
Evitando repetir o tema do primeiro, o combate às drogas, o roteiro aposta em diplomatas sul-africanos que utilizavam sua imunidade para cometer crimes, com Riggs e Murtaugh sendo enviados para uma missão aparentemente simples, manter a segurança de Leo Getz (Joe Pesci), um contabilista especializado em lavar dinheiro para a máfia. O personagem se tornaria um alívio cômico irritante no terceiro e no quarto, mas ele está na medida no segundo, hilário! Novamente, o filme não disfarça isso, a trama serve apenas como desculpa elegante para que a relação da dupla se desenvolva em sequências maravilhosas como a estreia da filha de Murtaugh em uma propaganda televisiva de preservativo, ou a impagável bomba no vaso sanitário. O tom do humor é potencializado, o texto, mérito de Jeffrey Boam, nunca esteve tão esperto, ágil, tão bom que parece que foi improvisado no ato da gravação. Patsy Kensit é tão linda, que é perdoável sua pouca habilidade na função e a existência desnecessária de uma subtrama romântica para Riggs, algo que apenas quebra o ritmo da ação, repetindo preguiçosamente a motivação da vingança, forçando a barra ao estabelecer conexão entre os vilões e a morte de sua esposa, e, por conseguinte, conduzindo para a cena mais absurda, a destruição de uma casa de palafitas por um automóvel. A trilha sonora entrega “Cheer Down”, composição de George Harrison, altíssima qualidade que se manteria no filme seguinte, com “It’s Probably Me”, de Sting, Eric Clapton e Michael Kamen. “Máquina Mortífera 2” é diversão genuína, uma das melhores sequências da história do cinema. 

sábado, 4 de março de 2017

A irrelevância do Oscar enquanto parâmetro de qualidade

O grande problema do Oscar é ter se tornado, aos olhos do mundo, o símbolo maior de tudo o que representa o cinema. Na realidade, a premiação não diz quase nada sobre a beleza da sétima arte. O brasileiro médio, aquele que não valoriza filme como algo mais que entretenimento fútil, aproveita a farra que antecede o evento, participa de bolões, chega até a discutir na roda de amigos sobre os filmes indicados. No dia da cerimônia, na falta de estofo cultural sobre o tema, ele perde mais tempo analisando os vestidos no tapete vermelho, as gafes cometidas, a plástica no rosto da atriz, os memes nas redes sociais, enfim, tudo o que não é cinema. Quase sempre, sem interesse genuíno, dorme antes da metade da exibição.

O tema nesse ponto já perdeu o valor como status de elegância, aquilo já é assunto de ontem, não irá nem comentar no trabalho. Como analogia, perceba a forma como a Rede Globo trata o evento, transmitindo no dia seguinte um compacto que elimina discursos de agradecimento, edita segmentos, extrai toda a emoção, entregando um resumo medíocre preenchido de opiniões vazias. A emissora está apenas respondendo ao estímulo de grande parte do povo. A sétima arte volta a ser, para esse brasileiro, simples futilidade que ele adquire nas bancas dos camelôs, para assistir quando não tiver nada melhor na televisão, entretenimento inofensivo para passar o tempo, enquanto aguarda a chuva estiar. Um longo ano irá se passar até que ele volte a se interessar.

Eu sou apaixonado por filmes desde os quatro anos de idade, meu primeiro livro é intitulado: “Devo Tudo ao Cinema”, então não consigo compreender uma cerimônia que estabelece competição entre artistas envolvidos em roteiros com propostas totalmente diferentes, quase sempre, antagônicas. Não vejo cinema como uma corrida de cavalos, creio que o Oscar deveria ser uma celebração anual da indústria, ao invés de um jogo de azar. Mas, claro, o elemento da disputa é exatamente o que atrai essa parcela expressiva do público. E Oscar é um entretenimento televisivo movido por lobby que necessita de bons índices de audiência.

Essa máquina movimenta os negócios, aumenta e diminui salários da noite para o dia, promove redenções e empurra para o ostracismo, em suma, não tem valor algum enquanto parâmetro de qualidade. Boa parte dos projetos selecionados estreiam em períodos mercadologicamente propícios. Os produtores que investem na premiação colocam seus atores nos talk-shows noturnos e nos programas matinais, toda demonstração de simpatia é bem-vinda, sorrisos que simbolizam cifrões, qualquer possibilidade de polêmica é afastada, faz parte do jogo. Mel Gibson, por exemplo, conhecido por ser combativo ideologicamente, apareceria até rindo de fratura exposta nos últimos meses. Poderiam até ter xingado a mãe dele, que o australiano mostraria os dentes. Ele não é bobo, sabe que a indústria está oferecendo mais uma chance. O filme é o que menos importa na equação do Oscar.

A seleção de filmes nesse ano foi qualitativamente superior, um reflexo da controvérsia racial despertada na cerimônia passada. A justiça foi feita, algo raro, “Moonlight” é impecável em todos os sentidos, porém, creio que venceu como parte do ataque aberto que a indústria está desferindo contra o presidente Trump. A Academia escreveu certo por linhas tortas. O texto defendido pelo apresentador Jimmy Kimmel, opção equivocada que deu o tom morno da noite, deixou clara já nos primeiros momentos essa linha política. E, apesar de poucas homenagens rasas aos clássicos, estamos testemunhando uma tentativa agressiva de renovação, o espetáculo é direcionado à satisfação imediatista dos espectadores adolescentes, um tiro no pé. O início musical, com aquela animação artificial de festa infantil, os doces caindo de pequenos paraquedas na plateia, a tola pegadinha nada orgânica com os turistas “inesperados” (tão crível quanto os reality shows televisivos), o desleixo supremo ao inserir a imagem de uma produtora viva no segmento “In Memoriam”, a gafe absurda no desfecho, tudo leva a crer que estamos vivendo o crepúsculo criativo dessa brincadeira cara.

Warren Beatty jogou a bomba na mão da colega, Faye Dunaway não teve culpa, tiros argumentativos para todo lado, a mídia busca agora problematizar cada detalhe, manchetes sobre maus-tratos do produtor com o astro idoso, celebração da atitude do mesmo produtor que tirou de letra o vexame, Emma Stone imaturamente incitando teoria da conspiração nos bastidores, enfim, muito barulho para nada. Um simples envelope errado expôs a ferida, os deuses sangram, o ídolo é de barro. O constrangimento, o gosto amargo ao final, espero que isso sirva como ensinamento. O cinema não merece ser reduzido à essa desajeitada festa anual fracamente roteirizada. Viva intensamente a realidade, não aplauda a caricatura.

Sobre as premiações, creio que se confirmou a tendência “coração de mãe” da Academia. Ninguém sai triste, todos recebem, no mínimo, um respeitoso tapa nas costas. O filme não precisa nem ser bom, “Esquadrão Suicida”, por exemplo, recebeu a estatueta por Maquiagem e Penteados. Os adolescentes ficam felizes, comentam no Twitter, isso é o que importa. A fotografia impressionante de James Laxton (“Moonlight”) perdeu para a obviedade acachapante de Linus Sandgren (“La La Land”), decisão que só pode ter sido tomada pelos jurados em uma disputa de palitinhos. Até imagino a discussão na reunião da cúpula. Na dúvida, Melhor Trilha Sonora, entrega obviamente para o único filme musical, ainda que a soma de suas composições bonitinhas não resvale sequer na qualidade artística do melhor disco do Guilherme Arantes.

O trabalho de Nicholas Britell (“Moonlight”), primoroso em suas nuances sonoras, merecia o justo reconhecimento. Melhor Filme Estrangeiro, o alemão “Toni Erdmann” é superior, mas vamos dar mais um golpe no Trump? Ah, entrega para o iraniano “O Apartamento”, para garantir o discurso emotivo de protesto. Se o diretor se recusar a comparecer, melhor ainda! O roteiro de “O Lagosta” é o único realmente merecedor, uma proposta verdadeiramente ousada, mas “Manchester à Beira Mar” tem mais cara de ser importante, aquele pretensiosismo dramático de roupa nova do rei. Pouco importa que a execução do roteiro seja ruim, com a trilha sonora excessivamente intrusiva banalizando a experiência. Temos que distribuir os afagos, não queremos rostos tristes na volta para casa.

Viola Davis merece todos os elogios por seu trabalho no teatro filmado “Um Limite Entre Nós”, assim como Denzel Washington, um dos maiores atores de sua geração, que precisou engolir seco e aguentar Casey Affleck agradecer o prêmio. Emma Stone é adorável em “La La Land”, mas precisa comer muito arroz e feijão para poder ser comparada à Isabelle Huppert e Meryl Streep. Mas o público adolescente sequer viu “Elle”, o que importa é satisfazer a garotada. O Melhor Diretor não comandou o Melhor Filme, algo que nunca compreendi bem. Como você pode executar o melhor trabalho na cozinha, sem preparar o melhor prato do restaurante? Damien Chazelle, jovem talento promissor. Todos os seus competidores são melhores que ele na função. 

Denis Villeneuve, Mel Gibson, Barry Jenkins e Kenneth Lonergan. Entregue uma câmera na mão deles e verá como conseguem operar mágica em diversos gêneros. Chazelle faz filmes dinâmicos, fast food inofensivo, “La La Land” caiu no gosto dos jovens nas redes sociais, não pensem muito, entreguem a estatueta para ele. Melhor Filme? Não, temos que abrir uma exceção, não podemos desperdiçar a atenção dos olhos do mundo, vamos matar dois coelhos com uma cajadada só: atacamos Trump e respondemos aos que nos criticaram ano passado pelo “Oscars So White”. A justiça ser feita, a premiação por mérito da obra é acidente, ponto fora da curva. É triste, mas é assim que a banda toca.