domingo, 22 de abril de 2018

"Submersão", de Wim Wenders


Submersão (Submergence - 2017)
É um fardo terrível para qualquer cineasta competente a expectativa de seu público e, principalmente, da crítica especializada. Wim Wenders está sofrendo nos projetos recentes críticas pesadas, adjetivos como "decepcionante" são comuns nos textos dos veículos norte-americanos sobre "Submersão". Se você entende que cada filme representa um momento específico de seu realizador, tendo a maturidade de enxergar a obra sem o ingrato peso do legado, vai aplaudir a sensibilidade elegante que domina esta adaptação do livro de J.M. Ledegard. Há problemas de ritmo no segundo ato, consequência das opções da montagem, mas os méritos merecem maior destaque.

A trama, em essência, aborda o romance entre uma cientista (Alicia Vikander) e um engenheiro/espião (James McAvoy). Eles se esbarram durante a estadia em um hotel na costa francesa. Indivíduos com experiências muito diferentes, a atração física logo dá lugar ao suprir de carências mais profundas. Ele, idealista, vai ser capturado em missão por jihadistas do Estado Islâmico, sofrendo todo tipo de tortura em um ambiente sufocante. Ela, corajosa pesquisadora, vai desbravar as zonas abissais do oceano em um submarino, consciente de que as chances de sair viva são poucas. Os dois ficarão incomunicáveis, isolados da civilização, as lembranças tão simples do romance breve serão ressignificadas neste processo, com o roteiro inserindo questionamentos interessantes sobre o conflito entre ciência e religião.

A primeira hora é impecável, estabelecendo as motivações emocionais e psicológicas dos protagonistas. Quando o amor envolve o casal, a química entre Vikander e McAvoy transborda verdade, duas almas solitárias que se complementam às vésperas dos momentos mais importantes de suas vidas, encontro inesperado que verdadeiramente define suas personalidades. A fotografia de Benoît Debie, de "Irreversível", compreende muito bem o que está em jogo, potencializando o efeito da clausura determinante no terceiro ato ao optar por planos muito abertos e iluminados no início.

Em um diálogo aparentemente trivial, o texto revela o leitmotiv trabalhado por Wenders. O rapaz, exaurido em cativeiro, pensa em voz alta: "Eu ainda sou eu". O que nos torna humanos? A jovem também metaforicamente busca na escuridão absoluta das desconhecidas profundezas oceânicas a confirmação de sua identidade, algo muito mais importante do que qualquer reconhecimento profissional. Não é uma história de amor. "Submersão" utiliza o amor como muleta para explorar a fragilidade de nossas verdades absolutas e a efemeridade da vida. 

sexta-feira, 20 de abril de 2018

"Crimes no Paraíso 2", de Robert Harmon


Crimes no Paraíso 2 (Jesse Stone: Death in Paradise - 2006)
O projeto anterior, "Night Passage", que ainda receberá texto, havia sido um prequel adaptando o livro de estreia do personagem, escrito por Robert B. Parker, então escolho esta excelente terceira aventura, co-roteirizada pelo próprio Tom Selleck, como a melhor maneira de reencontrar o angustiado policial, logo após os acontecimentos retratados em "Stone Cold".

Adaptando-se ao seu papel como o novo chefe de polícia da cidade de Paradise, Massachusetts, Stone (Selleck) investiga o brutal assassinato de uma adolescente problemática encontrada morta boiando em um lago da cidade. Ele logo descobre que a garota era uma estudante exemplar e que, de alguma maneira, acabou no caminho da autodestruição, o que eventualmente levou à morte prematura.

Na subtrama mais interessante, uma dona de casa espancada regularmente pelo marido bêbado busca ajuda policial. O fato de Stone estar lutando contra o alcoolismo agrega camadas em sua compreensão do caso, potencializando o conflito com seus demônios internos. A oficial Molly (Viola Davis) questiona o óbvio, a razão que a impede de se separar do agressor. A resposta é repulsiva: "Sou católica, não posso me divorciar". Ela se submeteu à humilhação dentro de seu lar, ganhou peso, perdeu sua autoestima e, o pior, acredita que é culpada por seu fardo. A crítica aos dogmas estúpidos da religião organizada é algo que dificilmente o gênero defende, quase sempre escravo das rasas motivações por vingança.

Outra demonstração de coragem pode ser encontrada na trama principal dos pais da adolescente morta, uma crítica contundente à necessidade tola de se adequar aos moldes da sociedade. O pai, incomodado com as atitudes da menina, preocupado com o que os outros diriam dele, decidiu expulsar ela de casa. A direção de arte evidencia na sala do casal a artificialidade, pinturas genéricas e objetos que não combinam com nada, mas que são muito valiosos, além de um senso de limpeza/organização exagerado, típico de quem se preocupa mais em arrumar sua casa para impressionar outrem, ao invés de buscar o conforto no dia a dia. Ao ser questionado por Stone, o pai afirma sem titubear: "Eu mantenho altos padrões nesta casa". Os verdadeiros vilões da história, adultos irresponsáveis e sem qualquer vocação para paternidade e maternidade.

Excelente telefilme que somente melhora em revisões, o roteiro de "Crimes no Paraíso 2" é melhor que o de muitos projetos de alto orçamento que são despejados nas salas de cinema todas as semanas. 

quinta-feira, 19 de abril de 2018

"Quase Memória", de Ruy Guerra


Quase Memória (2016)
Com “Quase Memória”, o veterano diretor Ruy Guerra realiza um experimento surrealista sobre a fluidez da memória, adaptando o livro homônimo de Carlos Heitor Cony.

Em cena, o jornalista, dividido em sua versão jovem (Charles Fricks) e idosa (Tony Ramos), busca compreender as transformações em sua vida e, principalmente, enxergar de forma mais justa o legado de seu falecido pai (João Miguel). O diálogo estabelecido entre os dois é irônico, o conformismo frequentemente entrando em choque com a rebeldia, auxiliado por uma direção de arte que encontra formas criativas de driblar o baixo orçamento.

Mas o resultado é prejudicado por uma encenação que obedece a linguagem do teatro, inclusive cometendo o equívoco grosseiro de subestimar a inteligência do público já nos primeiros minutos, quando o roteiro explica que os dois atores vivem versões de um mesmo personagem. É constrangedor ver a técnica da mímica sendo utilizada, o recurso excessivamente didático toma um tempo considerável na cena e causa riso involuntário.

Outro problema é o texto defendido pelo elenco, nada soa minimamente natural, apesar da competência inegável dos artistas. Em alguns momentos é perceptível como o desconforto acaba atrapalhando a execução de falas teoricamente simples, destruindo a imersão emocional na narrativa. As tentativas de alívio cômico são engessadas, não funcionam exatamente porque são afinadas no mesmo diapasão.

As sequências de flashback, os fragmentos de memória envolvendo o pai e a mãe (Mariana Ximenes), são visualmente interessantes, com cores vibrantes propositalmente antinaturais e uma utilização inteligente da iluminação. A ótima cena da mesa de jantar, em que os focos de luz direcionam a atenção do espectador para o ponto de vista de cada personagem, apesar do histrionismo circense irritante na atuação, opção discutível, demonstra o potencial desperdiçado pela obra.

Excelente peça teatral filmada, porém, mediano e sonolento exercício enquanto cinema. 

* Crítica publicada no Caderno B do "Jornal do Brasil" (19/04/18).

"7 Dias em Entebbe", de José Padilha


7 Dias em Entebbe (7 Days in Entebbe - 2018)
No filme, Jose Padilha entrega seu trabalho mais fraco, apático, desorientado, narrativamente preguiçoso, inspirado na história real ocorrida em 1976, o sequestro do Air France Flight 139, que ia de Tel Aviv a Paris. Com apenas uma semana para cumprir o ultimato dos terroristas, após o pouso forçado em Entebbe, na Uganda, o governo de Israel deve tomar uma decisão crítica: negociar ou iniciar uma missão de resgate aparentemente impossível.

A estrutura deste thriller político é repetitiva, apesar dos esforços consideráveis do sempre competente editor Daniel Rezende, especialmente na utilização metafórica da dança contemporânea no ponto alto do filme, arrastando personagens caricaturais em uma sucessão de sequências desgastadas.

A tentativa de estabelecer um tom de sobriedade respeitável é boicotada porque não há investimento emocional, o espectador fica refém dos instintos mais básicos, logo, dependente do desfibrilador que o reanima pela tensão. O problema é que o ritmo é irregular, o senso de entretenimento se perde na retórica excessiva, não há suspense, não há catarse.

É louvável o roteiro evidenciar que o maniqueísmo só serve em histórias infantis, propondo uma análise justa e isenta do conflito entre Israel e Palestina, mas seriedade não é necessariamente sinônimo de frieza. Pouco coração e muitos letreiros. Em teoria, a trama é conduzida por cenas de ação, na prática, as soluções se sucedem de forma incompreensivelmente convencional e entediante.

Quando lembramos que Padilha injetou frescor no gênero com “Tropa de Elite”, qualidade que atraiu a atenção dos produtores norte-americanos, a sensação de frustração somente aumenta.

* Crítica publicada no Caderno B do "Jornal do Brasil" (19/04/18).

terça-feira, 17 de abril de 2018

TRAILER do média-metragem "SACRIFÍCIO" (Roteiro/Direção: Octavio Caruso)


Sinopse: A mulher há muito adiou o doloroso resgate de suas memórias. A vida decide oferecer uma última chance. Ela está pronta para seu maior sacrifício?

Roteiro/Direção: Octavio Caruso
Direção de Fotografia: Sihan Felix
Produção: Teresa Cristina Oliveira
Trilha Sonora Original: Sihan Felix
Arte do cartaz: Laísa Trojaike
Som Direto: Júlia Sotello
Fotos dos Bastidores: Vanessa Caruso

Elenco: Zaira Zambelli, Rosa Felix, Mônica Foroni, Tereza Filardy, Graça Felix, Eduardo Doria, Teresa Cristina Oliveira e Patrick Modenesi.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

TOP - Obras-Primas do Cinema Mundial Que Você Não Deve Ignorar - Parte 4 (para o site norte-americano "Taste of Cinema")


In continuing the gold mining for obscure films around the world, and learning about different cultures through their rich artistic expressions, I’ve selected these 10 titles that deserve greater recognition.

An Innocent Witch (1965)
Japanese director Heinosuke Gosho has never crossed the border as his celebrated colleagues Kurosawa, Ozu, Mizoguchi and Miyazaki, among others, though his career is as consistent as that of all those cited, with a particular dedication to seek the beauty behind the sadness of common characters, an element that guarantees his best films an aura of fascinating melancholy. And it is worth noting, in this beautiful work produced by Shochiku studio, its language has survived impeccably to the arduous test of time.

The plot begins on Mount Osore, the entrance to hell, with the trepidant steps of an old woman seeking a blind shaman to help her get in touch with her deceased daughter. In flashback, we meet Ayako (Jitsuko Yoshimura), a naive girl from the interior who ends up having to work selling her body in the late 1930s, on the eve of the war, sacrificing her own life to feed her parents.

Upon arriving at the brothel, it attracts the attention of a repulsive older man who pays for the exclusivity of her services. The camera in the claustrophobic photograph of Shinomura Sôzaburô reinforces the confinement of prostitutes, often filming them through vertical wooden beams that simulate the bars of a prison.

Without revealing much about the development of Hideo Horie’s script, she will indirectly become involved in three client deaths linked by a family bond, something that will awaken in the hypocritical, sexist and ignorant society at the time; the fame that it is possessed by demons.

The intense third act displays a brave criticism of organized religion, highlighting the psychological damage that dogmas and ritualistic lies have caused the protagonist, who, believing herself to be guilty of all that has happened, agrees to go through the ruthless and stupid ceremony of supernatural purge.

Ayako, a pure flower of gentleness who was unable to respect the rigid code of never surrendering her heart to work, suffers humiliated before a bunch of arrogant, deluded and superstitious priestly vipers.

The Troops of Saint-Tropez (1964)
“An agent of order is always unpopular.” The phrase said austerely by police officer Cruchot, played by Louis de Funès in the first film of the franchise, synthesizes his hilarious devotion to work. When the dream of his troubled colleagues is shown in a moment of leisure, he is the only one who does not seek the pleasures of the flesh, only the heroic fulfillment of his function in society.

The French actor who charmed the audience with their faces and mouths is best known for “The Mad Adventures of Rabbi Jacob,” but I think his most relevant contribution is in the six projects of the Gendarme (police), especially in the first and third, addressed in this text, enriched by the killer chemistry of the protagonist with his superior in command, Gerber, played by the impeccable Michel Galabru.

“The Troops…” is uneven but has unforgettable sequences, such as the frenetic transition from black and white to color at the beginning, a troubled nun-driven car ride, and the police odyssey to arrest a group of nudists at the beach.

After several disastrous onslaughts, injured by a watchman sitting on the branch of a tree, the officers receive an embarrassing lecture by Cruchot, who outlines the most stupid strategy, something that might well have come out of the mind of Inspector Clouseau: training the men without uniforms, so that they come near naked from the place.

Without raising suspicions, they fight against time while they dress in their costumes, approach the nudist mourners, and in an ingenious touch of the script, ask for their documents.

Many Wars Ago (1970)
Francesco Rosi is almost never mentioned in lists, but his set of works is spectacular, having influenced names like Oliver Stone, Costa-Gavras and Gillo Pontecorvo, in addition to being quoted with much admiration by Francis Ford Coppola and Martin Scorsese.

Choosing to adapt the book “Un anno sull’altipiano” by Emilio Lussu, the director joins the author’s blunt speech, denouncing the insanity of war with a personal analysis of power relations in male groups, courageously confronting political clarity and questioning the interventionism.

Everything beautifully framed by the photography of Pasqualino De Santis (who would make Visconti’s “Death in Venice” the following year), creating unforgettable moments like the soldiers’ march through the smoke of the bombs, and especially the bluish night illuminated by the explosions in the war of trenches.

The plot approaches the despair of demoralized soldiers, led by a general (played by Alain Cuny) who’s willing to sacrifice his men even in unnecessary situations, by simple egocentric whim. Riot is a only a matter of time, when the nails that keep the monstrous and stupid machinery of war running end up realizing that death is a more dignified condition than the subhuman reality of existence.

The Brute and the Beast (1966)
Italian director Lucio Fulci is recognized worldwide for his work in horror (works such as “Zombie 2” and “Dark Horror”), but he made some westerns, with “The Brute and the Beast” being his first and best work in the genre.

Franco Nero (coming from the recent success in “Django”) is associated with Uruguayan George Hilton (who would establish itself in the genre, including interpreting the mythical “Sartana”) in one of the best sequences of action already captured in the Spaghetti Western genre, which is only one of the qualities of this work.

The excellent soundtrack (by Coriolano Gori, with the theme song sung in English, as usual by Sergio Endrigo) and the violent whipping scene suffered by the hero were not only spared by the cruel action of the time, but managed to keep their efficiency intact. The comic relief in the figure of the smart digger (played by Chinese actor Tchang Yu) will induce the viewer to laugh with the same skill.

Inspired by the psychological western of Raoul Walsh, “Pursued,” the film was a watershed for the director (who would attract the attention of producers) and his two protagonists. Nero would confirm with this success with his lucrative charisma (replacing Giuliano Gemma in the eyes of the fans), while Hilton would build a career thanks to this supporting role, which eclipses the protagonist.

The high point (including inspiration for filmmaker John Woo) is the final shootout, where the show of destruction (prior to “The Wild Bunch,” which Sam Peckinpah would make in 1969) disrespects any verisimilitude, with Nero leaping acrobatically and already falling while shooting.

The images I keep in mind after the session are those in which the duo clearly amuses themselves while performing their revenge, exchanging arms with each other. The camaraderie between people who respect each other (even with differences), uniting in a common goal.

The Experiment (2001)
Director Oliver Hirschbiegel adapts Mario Giordano’s novel and turns it into a distressing cinematic experience. Knowing that this is a real story helps to keep our eyes from blinking as we get sucked into the plot.

A team of scientists summons 20 men from different backgrounds to a psychological experience in exchange for a cash prize. The participants are placed in a prison and randomly divided into two groups: eight of them play the role of guards and the other 12 of inmates. Prisoners must obey the rules imposed by colleagues who represent authority figures.

At first, comradeship reigns in the environment. But in a short time, the false guards change their behavior and violence (even if forbidden) fills in the gaps. The inmates become increasingly submissive and the guards increasingly aggressive.

A psychological study of unprecedented human behavior and a work that will hardly get out of your mind. At the end of the session, it is very clear that we only really know one person after giving them power.

Razor in the Flesh (1969)
Brazilian director Braz Chediak was able to establish an oppressive atmosphere that is practically unbearable, beginning with closed plans and long planes-sequence, with a wise use of silence that goes beyond the almost 30 initial minutes only with diegetic sounds.

The corrosive text of Plínio Marcos, defended in a naturalistic way by the trio: Jece Valadão/Glauce Rocha/Emiliano Queiroz fills and consumes the claustrophobic environment, the fetid and disorganized room that serves as a microcosm of a hypocritical society.

The conflicts originated by acts of pure pettiness cause gratuitous aggressions, like a cancer that slowly spreads out of the organism. The pimp who takes pleasure in humiliating his prostitute, extravasating with physical and psychological violence, a coined homosexual desire, an element suggested in several scenes, pointing with sadism the signs of precocious aging in the woman who lives in the appearance.

In this pension room, collective hatred, born of social dissatisfaction and natural weariness in the face of empty rituals, brings the characters to the edge of resistance. Silence throughout the first act, more than a resource of style, also serves, with its unnaturalness, to emphasize the metaphorical characteristic of each subsequent dialogue.

All feelings are meticulously potentialized, for it is not a simple case that could stamp the headlines of a tabloid newspaper, but an existential poplar, tired beings trying to avoid imminent extinction due to natural evolution. They purge the truths from their lips, their words like sharp knives, like razors in the flesh, for they know that in that corrupt society in formation, only the lie would survive.

The Truth (1960)
“The Truth” delivers good doses of sensuality in flashbacks, but in essence it’s a flawless courtroom drama. The actress had for the first time a material that truly challenged her. She plays the rapturous Dominique, who is accused of murdering her lover, played by Sami Frey, who was engaged to her timid sister. As we accompany her judgment and witness testimony, we are presented with the journey that has led her to that dreadful destiny.

The script was written by Clouzot and his wife, Vera Gibson-Amado, who would die soon after. The touch of genius is to make the viewer’s view of the young person change to each new situation revealed; the text urges us to judge every action on screen in an untimely manner, just as society does in the macrocosm, trying to reduce the complexity of feelings of humans to an easily identifiable pattern.

The girl is good or bad, without shades of gray. And the plot involves this simplification with the mantle of cruelty, the denial of empathy, the arrogant detachment from the vain figures of authority, lawyers, judge and jury, who see the girl as statistic, as one more case among many.

What matters, at the end of the day, is to be superior; defense and prosecution lawyers seek respectability, and as the clash lasts until the final hammer, the two defend only the money in the account. Whether or not the young woman will be condemned to death, other clients will come.

In a brilliant scene, the two professionals, in the heat of the silent battle arena, consciously omit for convenience snippets of a letter being read, shaping the facts without any remorse. It’s part of the job. What does truth matter to them?

Dominique stole her sister’s fiance with the clear intention of assaulting her, always so courteous and sweet, but the boy also acted wrong: he did not care about the bride’s feelings. After achieving his goal, she became disinterested in him, returned to his routine of parties and much flirting; the boy rebelled and became jealous.

It is here where the film delivers one of its most beautiful scenes, one of strong symbology. He is a conductor, he lives in music and in art, he likes to control everything. She, a force of nature, detached from social norms, free. Abandoned, the one who laughed in the face of conservatism, the one who believed to be so self-sufficient, enters hidden in its place of work and cries stupefying to see him ruling.

The greatness of that sound, so unlike anything she used to hear, activates something within her that had never been stimulated. Genuine love, not caring for child competition for attention, a feeling that does not go away by not being reciprocated, since it does not depend on acceptance. It simply exists. This moment further magnifies the brutal outcome of the work, adding precious layers, highlighting how fragile the concept of judgment is.

The journalists who covered the case, even before the last words were spoken, have already left the place. What matters is the headline, and what matters is to be the fastest to deliver the matter. The human material in this equation is garbage.

8. Westfront 1918 (1930)
Radically different from what happens in the overestimated “All Quiet on the Western Front,” released that same year, which exhibited the anguish of World War I with a showy lacquer, the eye of the director GW Pabst, demonstrating security in his first foray into spoken cinema, is directed at the courageous de-romanization of combat, denying all possibilities of solving scenes by empowering action as a facilitator of any emotional catharsis, failing to exploit any moment that has violence as the main factor in the narrative.

He refuses the formulas of films of the genre, with his static camera capturing the destruction without aesthetic pretensions, also avoiding the common place that always inserts the military experience as defining element of the character of the soldiers.

The script, based on Ernst Johannsen’s book, shows that all those men would have made much more money if they had stayed in their homes; that war is stupid, a tremendous and absurd waste of time. Even the few moments of necessary fun that the film tackles in its first act, naive vaudeville presentations, are shown at a slow pace, evidencing the feeling of emptiness and disorientation.

The photograph of Fritz Arno Wagner, who had been responsible for Murnau’s “Nosferatu,” helps to give realism to the episodically structured scenes of the trenches, following the adventures of four soldiers placed in a grotesque reality, obeying orders to annihilate others strangers, but equal, who already consider themselves dead in life. It is also interesting how the script treats the desperate reality of the women of the soldiers, who were forced into prostitution, evidenced in the scene that shows the flagrance of a betrayal.

It’s beautiful the way the work ends, putting two dying enemy soldiers side by side. One no longer breathes, while the other recognizes no reason for the hatred that put them in that situation.

The strong message that remains in the mind after the session: to feel the presence of death, hand in hand, two victims in a simple need, the satiate of thirst. But the most powerful image remains that of the soldier collapsing emotionally on the battlefield, uttering a terrifying cry, contemplating the whole dimension of human insanity.

Tattooed Life (1965)
One of the biggest inspirations for Tarantino’s “Kill Bill.” That’s what you normally write when you approach this movie. It’s a tremendous injustice to reduce this spectacular masterpiece to the position of being an influencer of a smaller, yet popular and entertaining project.

Without revealing much about the plot, so as not to spoil the experience, it was the first time that Seijun Suzuki received an alert from his superiors about having gone too far in his style, which by itself already would be reason enough to arouse his interest and make him redouble his attention, especially in his magnificent outcome.

The story prompts emotional investment, something that is not usual in his filmography, so I consider it an excellent starting point. The second act has an intelligently slower pace, precisely to establish carefully the relationship between the brothers, especially their antagonistic motivations, which favors the psychedelic catharsis that occurs in the third act.

There is even less room in the script for a romantic subplot. “Tattooed Life” shows Suzuki mastering the perfect balance between his authorial inventions and the need to deliver a product of commercial value.

The Diamond Arm (1969)
The idea is a satirical blend of James Bond films, which were extremely popular at the time, with a devious insight into the way of life of the Soviets. But what really stands out is how the libertarian script subverts the film conventions from the initial credits, which promise a prologue, division into parts and epilogue, an epic pretense that is already broken in the first sequence.

There is no prologue, there is no epilogue, and the second part is announced after an interval just minutes before the end. It is understandable the fame of the work in some countries: it is not a simple comedy, as it embraces varied strands, from slapstick to the more refined humor usually found in British films. The duo of Yuriy Nikulin (who was a circus clown) and Andrey Mironov lavishes charisma, especially in the superior third act.

Writer/director Leonid Gayday has some bright moments, like the scene of the young man who “walks on water.” He admired Chaplin, so the inspiration is clear in the clever use of silence.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

"Antes Que Tudo Desapareça", de Kiyoshi Kurosawa


Antes Que Tudo Desapareça (Sanpo suru shinryakusha - 2017)
O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa é especialista em explorar os limites dos gêneros, subvertendo expectativas, algo que faz com inteligência em “Antes Que Tudo Desapareça”. Analisado no contexto de sua filmografia, o projeto entrega uma nova tese sobre a importância da reconstrução constante dos sentimentos que alicerçam os relacionamentos amorosos.

Ele já tocou no tema pela perspectiva do horror e do thriller policial, mas opta desta vez pela moldura fantástica das invasões alienígenas, buscando inspiração nos clássicos norte-americanos da década de cinquenta: “A ameaça que veio do espaço” e “Vampiros de almas”. Na trama, três extraterrestres se infiltram na sociedade, inclusive um que utiliza o corpo de um jovem como hospedeiro, para o choque de sua esposa. O objetivo é compreender melhor a raça humana, seus hábitos diários e suas motivações emocionais, para que uma possível invasão futura venha a acontecer sem maiores problemas.

O toque genial do roteiro é fazer com que estes seres necessitem utilizar poderes psíquicos para extrair conceitos que não consigam entender, como o amor, a possessividade, trabalho e família. Ao esvaziar um personagem de seu sentimento de posse com relação à sua casa, os bens materiais, o alienígena enxerga a irrelevância daquilo, enquanto a vítima descobre a felicidade desacorrentada dos grilhões de status social, empolgada com as possibilidades desta nova experiência.

A frase que sintetiza a mensagem do diretor nasce na cena menos pretensiosa, uma simples conversa que pode passar despercebida na desnecessariamente longa duração do filme. “Humanos são engraçados, acreditam que governam seu planeta. Mesmo que não invadíssemos, vocês morreriam daqui a uns 100 anos”. A ideia de que a destruição da raça humana, ou a reinvenção deste conceito a partir do zero, pode ser tida como benéfica é, por trás da fantasia metafórica, extremamente contundente. Temos que reaprender os sentimentos mais básicos, como empatia.

Kurosawa atinge o ponto nevrálgico, um alerta de proporções mundiais cada vez mais atual, apesar de optar no terceiro ato por um viés melodramático exagerado que enfraquece o resultado.

* Crítica publicada no Caderno B do "Jornal do Brasil" (12/04/18).

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Cine Bueller - "O Último Americano Virgem", de Boaz Davidson


O Último Americano Virgem (The Last American Virgin - 1982)
Começo dizendo que este é um daqueles filmes que fizeram todos os garotos introvertidos da década de oitenta sonharem em trabalhar como entregadores de pizza. Vários projetos seguiam esta tendência. Você, com sorte, seria praticamente estuprado por alguma milf ninfomaníaca sensacional como a Carmelita, vivida pela Louisa Moritz. E quem não sonhou em namorar a Karen (Diane Franklin)? Claro, ela provavelmente iria partir seu coração sem piedade, mas o processo até o desfecho valeria a pena.

Antes de continuar, um breve agradecimento, creio que represento todos os brasileiros neste momento: Grato eternamente, SBT, por ter apimentado as nossas tardes com nudez gratuita e todo tipo de pilantragem. Escutar o Mario Jorge dublando o gordinho, improvisando alopradamente e melhorando consideravelmente o material original, faz eu ter pena desta criançada de hoje, refém das bobeiras dos youtubers teens. E, mesmo com a emissora cortando várias cenas mais fortes, como aquela em que as meninas cheiram carreiras de açúcar, tolinhas, solução encontrada pelo trio de amigos para mantê-las interessadas na paquera, boa parte das ousadias temáticas passavam tranquilamente.

O filme é uma refilmagem quase que idêntica do israelense "Sorvete de Limão", dirigido pelo mesmo Boaz Davidson, acompanhando as aventuras sexuais de três rapazes. O mais tímido e respeitador, Gary (Lawrence Monoson), acaba se apaixonando perdidamente pela garota que está saindo com o cara popular da escola. Ela despreza o garoto, até que, após ser abandonada grávida, encontra nele seu refúgio. Ao som de "I Will Follow", do U2, o rapaz vende tudo que tem, faz o diabo para conseguir levantar a grana do aborto, depois de ter oferecido moradia provisória para a menina se esconder dos pais, sacrifício tremendo que culmina na sequência final mais triste do cinema adolescente do período. Posso estar exagerando, mas até hoje, quando escuto "Just Once", do James Ingram, sinto vontade de tacar uma pedra na televisão. Eu, obviamente, sentia forte identificação com o Gary, logo, aquele flagra na cozinha me traumatizou. Que garota miserável! Naquele momento ele realmente perdeu a "virgindade", a pureza, a crença na bondade humana. O mundo é injusto.

O primeiro ato focado nas estripulias adolescentes é divertido, mas é similar a tantos outros de sua época, como "Porky's". O coração do filme é o que mantém ele relevante até hoje, sobrevivendo muito bem na revisão. 

terça-feira, 10 de abril de 2018

Sétima Arte em Cenas - "Nazaré", de Manuel Guimarães


Nazaré (1952)
Manuel Guimarães, falecido em 1975, é um dos cineastas mais injustiçados do cinema português, praticamente esquecido hoje em sua própria terra, ele foi vítima da censura política salazarista e da inveja de seus colegas.

Em uma década marcada pela preguiça criativa em sua indústria, ele ousou produzir sem recursos, por exemplo, experimentando com a utilização da cor, dos 70mm e, com o divertido "A Costureirinha da Sé", a grandiosidade do CinemaScope. Ainda jovem, trabalhou como assistente de direção do grande Manoel de Oliveira em "Aniki Bóbó", pérola que frequentemente resgato no blog. Após o curta "O Desterrado", decidiu arriscar voos mais altos com o longa-metragem "Saltimbancos", mas foi com "Nazaré", seu segundo trabalho, com roteiro de Alves Redol, que ele potencializou o viés da crítica social, desconstruindo o folclórico paradigma heroico, esperançoso e nacionalista relacionado ao mar, utilizando a estética neorrealista para mostrar o sofrimento dos pescadores e de seus familiares na pobre comunidade de Nazaré. Ao contrário das obras de cineastas conterrâneos, como Leitão de Barros, não há hipócrita senso de honradez na miséria, ou qualquer tentativa de mistificar a rotina excruciante do povo. Os homens marginalizados no filme de Guimarães lutam para sobreviver contra todas as probabilidades, exatamente a imagem realista e pessimista que o regime do Estado Novo desesperadamente queria esconder debaixo do tapete.

O tom trágico é estabelecido já nos primeiros segundos, com o lamento devastador de uma mãe que encontra o corpo sem vida de seu filho estirado na areia da praia. Os melhores diálogos envolvem desabafos de pescadores sobre a escassez de peixes, tentativas frustradas pela falta de sorte. Há ternura na interação entre avô e neto, com o pequeno demonstrando curiosidade pelas aventuras de outrora, mas o texto evidencia nas entrelinhas que o mais velho conscientemente reveste de magia suas palavras, transformando ludicamente a dor em aventura, evitando destruir tão cedo o fascínio do menino.

A realidade cruel é mostrada na forte sequência que ocorre aos quarenta minutos, quando o grupo de pescadores luta para vencer as ondas revoltas em um bote frágil, enquanto que, à distância, toda a comunidade sai correndo de suas casas em direção à praia, orando de joelhos, aos prantos, impotentes. A montagem insere então a desesperadora imagem das mulheres tentando abrir caminho através das grades que isolam o barco salva-vidas. E, intercalado com o pavor dos homens diante da morte certa, vemos a massa humana que literalmente carrega nos ombros com extrema dificuldade a salvação. A cena bebe da fonte de Eisenstein, mas o coração é puramente português. 

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Sobre os fervilhantes acontecimentos políticos do final de semana...


O sistema político brasileiro é podre, reflete de forma cristalina o modus operandi de grande parte do povo. Após décadas em estado de coma, preocupado apenas com futebol e novela, o gigante acordou e saiu tropeçando em tudo. A internet ajudou, o "público" que antes se resumia aos vizinhos, familiares próximos e colegas de trabalho, aumentou sobremaneira. Com péssima interpretação de texto, poupou tempo e se acostumou a dissertar sobre qualquer tema a partir das manchetes, inclusive as falsas. Nunca subestime a estupidez humana, saiba que existem pessoas alfabetizadas e diplomadas neste momento elaborando planos para provar que a Terra é plana.

Ao negar a lucidez, abriu-se espaço para o sentimento mais rasteiro e fácil, o ódio. A discussão política foi ganhando tons cada vez mais agressivos, logo, os perigosos extremos foram potencializados. Adultos infantilizados acreditam em qualquer teoria da conspiração e enxergam "heróis" e "vilões" sem tons de cinza, nunca foi tão fácil posar de indivíduo consciente, basta participar de manifestações e, claro, postar várias fotos das esfuziantes caminhadas nas redes sociais. A intenção é boa, mas não há como amadurecer o sonolento pensamento crítico político em poucos anos, faz parte do processo agir de forma apatetada. Vista a bandeira do país pela manhã nas ruas e passe o restante do seu dia somando no coro rancoroso e desafinado dos vigilantes sonâmbulos, esbravejando frases de efeito e piadas de duplo sentido, continue encarando a vida como uma revista em quadrinhos de super-heróis, defenda que não há tempo para o hábito da leitura enquanto acompanha por horas as fofocas divertidas nos seus duzentos grupos de Whatsapp. É exatamente de pessoas como você que o sistema necessita para se manter podre.

Finalizo com uma objetiva reflexão sobre os acontecimentos históricos do final de semana. A defesa apaixonada de um político em nossa sociedade é puro NONSENSE. É atitude para ser estudada com atenção, já que membros de seitas são propensos ao comportamento de mulher de malandro. Lula é o primeiro ex-presidente brasileiro preso por crime comum, inegável constatar que a força simbólica disto é monumental. O clássico "no Brasil tudo acaba em pizza", que a minha geração cresceu escutando, finalmente parece que está sendo reavaliado. O discurso de vitimização daqueles que endeusam seu guru é constrangedor, não há como sustentar a tese da inocência messiânica com um pouco de sensatez e uma dose generosa de vergonha na cara. O caso do triplex é, ao que tudo indica, o menor dos problemas. Ele responde por quatro tipos de crime em outros seis processos: corrupção passiva, lavagem de dinheiro, organização criminosa e tráfico de influência. Al Capone tocou o terror em sua época, mas só conseguiram prender ele por sonegação de impostos. E, com certeza, tinha gente que também achava que ele havia sido injustiçado.

Não é momento de alegria, muito longe disto, estamos atravessando momentos de profundo luto, apesar de haver esperança no horizonte, testemunhamos nos últimos anos e, especialmente, nos últimos dias, a incontestável falência de uma nação. Mas, nas palavras de Nietzsche: "Como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?". É hora de, apoiado no cajado da lucidez, o povo brasileiro decidir amadurecer.

domingo, 8 de abril de 2018

"Desencanto", de David Lean


Desencanto (Brief Encounter - 1945)
Não é exagero inserir esta obra-prima do diretor David Lean em uma lista dos filmes mais românticos de todos os tempos. Adaptado da peça de Noël Coward, o tema foi absurdamente corajoso para o conservadorismo dominante da época, abordando o caso de amor proibido que desabrocha entre uma dona de casa (Celia Johnson) e um médico (Trevor Howard), ambos casados, em sucessivos encontros furtivos em um café na estação de trem. A infidelidade conjugal, questão espinhosa, nunca foi tratada com tanta sensibilidade e honestidade.

Ao reconhecer que o coração encontra maneiras de suprir suas necessidades, músculo incapaz de ser domado, o roteiro desarma o espectador de seus preconceitos e retira o manto de ilegalidade que, por si só, já evidencia o caráter antinatural do ato de tentar controlar o complexo sentimento com um contrato. O cenário dos encontros é pleno em simbolismo, reforçando a satisfação imediatista de cada olhar trocado. Algo que se inicia sem pretensão alguma, pura amizade, acaba evoluindo suavemente para o abraço de dois náufragos. O casal reconhece que é impossível sonhar com mais do que aqueles preciosos momentos, mas a experiência basta, a intimidade conquistada a partir do real interesse pelo outro, não a cumplicidade artificial acumulada em anos de convivência com um estranho. A angústia na voz da mulher, cuja narração nos conduz na trama em uma confissão silenciosa, revela implicitamente que, apesar de estar em uma situação financeira confortável, o padrão familiar desejado por todos, ela se sentiu em algum momento na necessidade de se adequar existencialmente na vida a um aquário menor, o brilho em seu olhar, quando percebida pelo médico, reflete a esperança que se recusa a morrer em seu interior. O seu marido (Cyril Raymond) é gentil, divertido, nobre, não deixa faltar nada, mas os diálogos deixam transparecer sutilmente o desinteresse, travestido de cordialidade excessiva. Ele a agrada para manter o relacionamento vivo na sociedade. E, como o filme mostra, o amor não é despertado somente pela ausência/carência, pode surgir naturalmente, sem estar sendo procurado, sem motivo aparente, como precioso diamante lapidado na rocha.

A emoção profunda do rápido toque de um dedo secretamente acariciando a mão do outro, a incerteza encapsulada em cada despedida, David Lean pode ter entrado para a história do cinema por seus épicos, como "Lawrence da Arábia", "A Ponte do Rio Kwai" ou "Dr. Jivago", mas ele ganhou meu coração na adolescência com esta pérola minimalista inesquecível. 

"Fuga de Sobibor", de Jack Gold


Fuga de Sobibor (Escape from Sobibor - 1987)
Baseado em uma história real, adaptado do livro de Richard Rashke, o filme aborda a fuga de prisioneiros de um campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Sobibor, conhecido como "máquina da morte", é um dos três campos de concentração localizado na Polônia oriental. Um grupo de prisioneiros é temporariamente poupado para poder trabalhar no acampamento, sob condições degradantes impostas pelos oficiais nazistas. Relembrando o destino desumano de cada dia, os prisioneiros planejam o impossível.

A premiada produção feita para televisão ganha pontos pela fidelidade ao evento, resistindo à tentação de se debruçar num viés melodramático, pecado usual em obras tematicamente similares. Quando Jack Gold foi sondado para dirigir, este foi um aspecto fundamental, ele temia entregar mais um "filme sobre o Holocausto" típico, lucrando com a exploração do grotesco. Como retratar com fidelidade jornalística os horrores sem esbarrar na censura televisiva? Em sua mente, transformar o sofrimento dos judeus em um novelão, como em "Holocausto", de 1978, não era apenas grosseiro, como também zombava da memória do povo. 

O fator crucial em sua mudança de atitude foi o comportamento dos prisioneiros de Sobibor, não apenas o plano de fuga, mas a força de espírito impressionante dos judeus que, reconhecendo que a morte era inevitável, decidiram tomar o controle da situação. É uma imagem inspiradora. Indivíduos, em sua maioria, sem qualquer treino militar, mulheres, crianças, idosos, pessoas comuns que enfrentaram seus algozes. Outro elemento importante foi o senso de realismo, o campo havia sido destruído pelos nazistas, mas a reconstrução do cenário foi meticulosa, assim como a preparação dos figurinos, com o auxílio de relatos dos sobreviventes. A fotografia de Ernie Vincze opta inteligentemente por cores esmaecidas, agregando à pegada de documentário, já que o material de registro da época era ínfimo. A presença de Alan Arkin traz mais densidade às cenas, mas é o carisma de Rutger Hauer que emociona. 

A incrível sequência da fuga do grupo, que tomou cinco dias da equipe, teve a participação de um dos sobreviventes reais, Thomas Blatt, falecido em 2015. O diretor conta que ficou tremendamente emocionado quando, ao final do dia, o senhor foi trazido desorientado por alguns moradores da região. Ele reviveu tão intensamente o evento, captado com extrema autenticidade, que acabou se perdendo na floresta após correr por horas, amedrontado de verdade. 

sexta-feira, 6 de abril de 2018

"Only Yesterday", de Isao Takahata


Only Yesterday (Omohide Poro Poro - 1991)
A trama de "O Gotejar da Memória" (tradução literal do japonês), adaptada do mangá de Hotaru Okamoto e Yuuko Tone, desprovida quase que completamente dos elementos fantásticos usuais nos projetos do estúdio Ghibli, acompanha a poética jornada de Taeko, uma jovem que sempre nutriu fascínio pela simplicidade do campo. Solteira aos vinte e sete anos de idade, ela é tida pela sociedade machista como alguém que desperdiçou sua vida e se tornou irrelevante. Tirando férias do trabalho burocrático na cidade grande, ela viaja para as fazendas rurais de Yamagata, ajudando nos negócios de sua família. Durante sua estada, perturbada por lembranças de sua transição da infância para a adolescência na década de sessenta, entre as tentativas frustradas de aprender matemática e o primeiro amor, a ascensão dos Beatles e a febre das ousadas minissaias, ela é acompanhada por sua contraparte infantil e busca fazer as pazes com seu passado, enquanto enfrenta o horizonte incerto em seu futuro. 

O minimalismo nos traços e nas cores, coerente ao tom bucólico do roteiro, elemento que seria trabalhado pelo diretor posteriormente no espetacular “O Conto da Princesa Kaguya”, pode ser percebido germinando nesta obra injustamente pouco celebrada. O aspecto que me encanta é a forma como Takahata extrai emoção de momentos simples, como quando a família da menina em flashback cuidadosamente saboreia pela primeira vez um abacaxi trazido pelo pai, após algum tempo tentando entender como comer aquela fruta tão diferente de tudo que eles conheciam. O tempo dedicado a cada pequeno gesto, o corte em pedaços, a alegria da menina ao sentir o cheiro na casca retirada, a mágica ternura da família reunida à mesa. E, injetando um toque cômico que subverte o tom melancólico da cena, finaliza com a reação pouco agradável ao sabor, mostrando o esforço da pequena Taeko em terminar seu pedaço apenas em respeito à atitude generosa do pai. A delicadeza ao tratar da primeira menstruação, tema que prejudicou a distribuição do filme no mercado exterior pela Disney, sem evitar situações cômicas envolvendo a reação apatetada dos meninos da classe, reforça a pegada adulta e realista do resgate emotivo. 

A protagonista percebe que abdicou de muitas experiências importantes para se adequar ao sistema, perdendo contato com sua essência e com os simples prazeres da vida no campo, ela aprende ao longo da viagem que até mesmo os eventos mais frustrantes, constrangedores ou aparentemente inofensivos foram fundamentais no processo de formação da sua personalidade, constatação que injeta lucidez na aceitação de um terreno desconhecido, outrora temido, a vida adulta. O belíssimo desfecho é de uma sutileza impressionante. Ao retornar de trem para a cidade grande, ela enxerga no desespero sem sentido de um passageiro desconhecido o vazio de sua existência. O voo da borboleta no vagão representando a maturidade enfim alcançada. Emoldurada pelos créditos finais, ao som da canção "Ai wa hana, kimi wa sono tane" (O amor é a flor, você é a semente), Taeko toma a decisão mais corajosa e importante de sua vida. Veja e se emocione com a arte eterna do mestre Isao Takahata.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

"Covil de Ladrões", de Christian Gudegast


Covil de Ladrões (Den of Thieves - 2018)
Christian Gudegast estreia na direção, trabalhando com charme, porém, sem muita criatividade, o subgênero dos filmes de assaltos a banco. Na trama, um ladrão planeja o crime perfeito enquanto tenta ocultar um tenebroso segredo: ele pertence a duas facções rivais e sua sobrevivência depende que essa informação nunca chegue aos líderes destes movimentos.

O roteiro, escrito por Gudegast e Paul Scheuring, criador da série “Prison Break”, acerta ao incitar forte crítica aos excessos cometidos pelas figuras de autoridade policiais, liderados pelo personagem vivido por Gerard Butler, existencialmente perdido após ser afastado de suas filhas em um dolorido processo de separação conjugal, ressaltando a linha tênue que os separa daqueles que oficialmente são tidos como ameaças para a sociedade.

O problema é que a ausência de camadas de interpretação deixa um rastro de furos, algo que pode não incomodar os fãs inveterados de um estilo de ação mais despretensioso, mas, considerando a desnecessária longa duração, será altamente frustrante para o público em geral. Há interesse em apresentar os conflitos internos, emocionais, mas as caricaturas são pintadas em tintas fortes, especialmente o ladrão vivido por Pablo Schreiber, prejudicando a imersão e, por conseguinte, a compreensão de suas motivações e do desenrolar dos planos.

Outro ponto fraco é a maneira retrógrada e preguiçosa que a história trabalha as mulheres, parece que entramos numa máquina do tempo e saímos no auge de Charles Bronson e seus projetos do início da década de oitenta, cheio de strippers, damas em perigo e donas de casa unidimensionais. Pensada dentro do contexto atual, a obra já nasceu com o prazo de validade vencido.

Se comparado a “Fogo contra fogo”, de Michael Mann, fonte óbvia de inspiração em diversas cenas, “Covil de ladrões” chega a ser constrangedor em sua incoerência narrativa, diversão rasa para pouco mais de um par de horas, caso você não tenha nada melhor para fazer no dia. 

* Crítica publicada no Caderno B do "Jornal do Brasil" (05/04/18).

quarta-feira, 4 de abril de 2018

"Um Lugar Silencioso", de John Krasinski


Um Lugar Silencioso (A Quiet Place - 2018)
Começo o texto com uma observação importante sobre a experiência de se ver o filme na sala de cinema. "Um Lugar Silencioso" depende da educação do público. O conceito do silêncio trabalhado na trama, reforçado pela trilha sonora inteligente de Marco Beltrami, pode ser muito prejudicado pela deselegância habitual dos brasileiros. Não há imersão que se sustente quando o coletivo é incapaz de respeitar a experiência, risinhos fora de hora, engraçadinhos carentes de atenção, esfomeados atacando saquinhos de biscoitos a todo momento, luzes de celulares espocando de todos os lados, a beleza da proposta da obra pode ser destruída em questão de minutos. Então, eu torço para que você tenha a sorte de pegar uma sessão vazia.

O gênero do terror consegue mais uma vez entregar uma pérola inestimável a partir de uma ideia simples: o planeta foi invadido inexplicavelmente por monstros extremamente ágeis que são atraídos por barulho, logo, para manter-se vivo você precisa ficar em silêncio. O roteirista/diretor John Krasinski, que também protagoniza junto com Emily Blunt, sua esposa na vida real, acerta inicialmente ao se esquivar de qualquer contextualização, apostando na eficiência do medo potencializado pelo design de som e, principalmente, na metáfora defendida pela filha mais velha, vivida por Millicent Simmonds, atriz mirim que perdeu a audição aos doze meses de vida. A menina se culpa pela morte do irmão mais novo e é impedida pelos pais de visitar o sótão da casa, local em que estão armazenadas matérias em jornais sobre o fenômeno. A família é privilegiada por este diferencial, já que consegue se comunicar bem por sinais, habilidade que facilitou a adaptação nesta situação extrema.

E, sem revelar muito sobre a trama, vale destacar que a mensagem da superação ser alcançada pela aceitação da fragilidade/deficiência é potencializada no terceiro ato. A opção pela imagem que finaliza a obra pode ser tida por muitos como um tremendo desperdício, mas ela enfatiza o real interesse de Krasinski em estabelecer que a coragem precisa vencer o medo, ao invés da catarse cinematograficamente sedutora que qualquer produção similar entrega. O diretor aposta também em elementos hitchcockianos brilhantes, como quando avisa o espectador sobre o perigo que os personagens ainda desconhecem, construindo um suspense verdadeiramente angustiante com objetos de cena ínfimos e aparentemente inofensivos, como um prego solto no degrau de uma escada.

"Um Lugar Silencioso" é, desde já, um dos melhores filmes do ano. 

terça-feira, 3 de abril de 2018

"O Selvagem", de László Benedek


O Selvagem (The Wild One - 1953)
O corajoso Stanley Kramer produziu esta versão livre do famoso incidente ocorrido na pacata cidade de Hollister, Califórnia, que chocou os pais em 1947, após várias gangues de motoqueiros invadirem um evento festivo, tocando o terror por dois dias, exibindo generosas doses de vandalismo. 

Jovens marginalizados que haviam voltado da guerra e, sem grana, adaptaram suas surradas jaquetas de couro, trocando os nomes de seus aviões nas costas pelos símbolos de seus grupos de motociclistas. A imagem forte transmitia inegável ameaça, especialmente considerando o nível de caretice dos adultos norte-americanos da época. É claro que a imprensa lucrou alimentando os abutres, exagerando e até mesmo fabricando registros assustadores em fotos que estampavam as manchetes. O cinema não perdeu tempo, o clássico sacramentou o nome de Marlon Brando no panteão dos grandes atores mundiais. O curioso é que, apesar de ser um alerta crítico moralista que apontava a desilusão dos encrenqueiros como reflexo de suas angústias existenciais, o roteiro acabou incitando a garotada à rebeldia contra os pais e contra o sistema. O uniforme dos personagens atravessou fronteiras, influenciando até mesmo os adolescentes brasileiros, que, em pleno calor tropical, portavam seus canivetes, faziam cara de mal, apostavam rachas nas estradas e suavam em bicas tentando imitar seus ídolos. 

A cena inicial, após um letreiro imposto pela censura do Código de Produção enfatizando a desaprovação da conduta dos personagens, seguindo a narração de Johnny Strabler (Brando), com as motos vindo rapidamente na direção da câmera, dá o tom de perigo que nem mesmo a óbvia projeção traseira, emoldurada pelos créditos, consegue anestesiar. O grupo chega na cidade e, com os rostos impassíveis, atravessam calmamente a pista de corrida, obrigando o biker competidor a frear assustado. E, claro, minutos depois o troféu é roubado na cara dura por um dos rapazes. Não há tentativa de aliviar a responsabilidade de seus atos colocando a culpa em outrem, ou nas condições em que vivem, o roteiro evidencia a todo momento que a baderna faz parte da índole dos rapazes. Atitude selvagem, subversiva, indomável, que serviria de inspiração imediata para James Dean, Elvis Presley e a geração rock'n'roll, mas também desembocaria dezesseis anos depois no inesquecível "Sem Destino", de Dennis Hopper, até ser revisitada como pastiche no musical "Grease - Nos Tempos da Brilhantina", protagonizado por John Travolta e Olivia Newton-John, em 1978. 

"O Selvagem" está longe de ser perfeito, a subtrama romântica é rasa, prejudicada pela inexistente química entre Brando e a bela Mary Murphy, que vive uma garçonete comportada, antítese que irá representar a redenção do líder da gangue no terceiro ato. A trama envelheceu razoavelmente bem, mantendo seu charme. Mais que um simples filme, o gatilho para muitas das maiores mudanças culturais dos últimos cem anos. 

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Sobre "Nada a Perder" e a triste situação do Brasil...


Eu fui questionado em 2016 por um leitor no Facebook sobre “Os Dez Mandamentos”. Respondi que gostava demais da trilha sonora de Elmer Bernstein e da atuação sempre imponente do grande Charlton Heston, mas que não era um fã do diretor Cecil B. DeMille, ainda que considere este o seu melhor projeto. O leitor enviou então um ponto de interrogação e um bonequinho coçando a cabeça. E, tropeçando nas letras, explicou que estava se referindo ao projeto nacional que estreava naquela semana. Não acreditei no que estava lendo, não era possível. Será que ele não sabia que eu sou um crítico de cinema? 

Tem outros profissionais gabaritados em crítica televisiva, crítica de reality shows e até mesmo gente que é paga para flagrar as subcelebridades tossindo na rua. Eu não era a pessoa certa para aquele questionamento, então expliquei isto gentilmente para o rapaz, ressaltando que analiso também filmes feitos para televisão, mas que, em hipótese alguma, eu perderia tempo analisando um remendo extraído de mais de 150 capítulos de uma novela, especialmente uma com o padrão de qualidade da emissora que esbanja hoje o lucro advindo de décadas de ofertas de pobres coitados, um dinheiro maldito conquistado em uma nação em que a inacreditável isenção tributária nas igrejas possibilita todo tipo de absurdos, como o poder milagroso do paletó abençoado, da fogueira santa, da chave ungida, da meia e das vassouras consagradas. E não é uma piada. Eu tenho nojo destes malandros que se aproveitam do analfabetismo científico do povo mais humilde, eu não poderia, em sã consciência, cogitar a hipótese de valorizar qualquer tipo de entretenimento que seja financiado por este coletivo de canalhas aproveitadores. 

Como artista, compreendo que meus colegas aceitem trabalhar em projetos da emissora, a vida não está fácil para ninguém, mas eu não aceitaria qualquer proposta que viesse deles. Eu não vou nem comentar os atos que causam vergonha alheia, muitos deles propagados na mídia, sobre a compra de ingressos e as salas quase vazias, sinal óbvio de lavagem de dinheiro, isto é o mínimo que se pode esperar de uma iniciativa tão grotesca. Vergonha alheia sempre foi uma especialidade desta rede de profissionais talentosos na arte do trambique. Escrevo tudo isto sabendo que estou atingindo apenas aqueles que já têm esta consciência. O público da novela, aqueles que buscam nas sessões evangélicas neopentecostais a cura de enfermos, não se interessa em ler críticas de cinema. Estes entregam até a chave de casa para os pastores, eu não preciso citar aqui os muitos casos tragicômicos que ilustram as manchetes dos jornais. A perfeita massa de manobra, indivíduos incapazes de praticar o raciocínio lógico, o questionamento crítico, doutrinados na prática da dissonância cognitiva, zumbis esfomeados, um gado que vive para enriquecer um sistema podre que cresce assustadoramente, com tentáculos que dominam perigosamente até a política. 

Agora, o novo “sucesso de bilheteria” das salas vazias é “Nada a Perder”, cinebiografia do líder da organização. Como sempre digo, sou contra qualquer tentativa de censurar arte, filmes de todas as ideologias devem existir. É óbvio que o roteiro visa unicamente santificar a figura do homenageado, o objetivo é atrair mais fiéis, para que mais malas de dinheiro sejam retiradas de helicóptero dos cultos. A proposta da obra é odiosa, celebrar uma figura pública que enriqueceu explorando a fé alheia, eu tenho todo direito de repudiá-la, apesar de respeitar sua existência. Ninguém obriga o indivíduo a entrar na igreja, podemos apenas tentar compreender o impulso que leva alguém a acreditar em exorcismos de endemoniados em 2018. E, analisando lucidamente, eu enxergo neste “fenômeno” o sintoma de um problema grave. Na esteira da onda conservadora que está tomando o país, estes estelionatários dos templos encontram público sedento por seus discursos rasteiros de ódio e segregação. 

O Brasil está entregue na garra dos lobos, aplaudidos por um povo que se afasta cada vez mais da literatura. Um povo que lê pouco e escreve mal, suja as ruas e destrói o transporte público que utiliza. O governo é o reflexo cristalino do inconsciente coletivo do brasileiro. Os absurdos se acumulando, o silêncio alarmante dos omissos ficando cada vez mais constrangedor, os espertos conquistando cada vez mais espaço nos veículos. A única esperança reside na educação, no amor pela cultura, no desejo constante pelo autoaprimoramento.

sexta-feira, 30 de março de 2018

"Tem na Netflix?"


A pergunta aparece com frequência em comentários de postagens sobre cinema, mas enxergo nela mais do que apenas o elemento precioso da curiosidade.

O indivíduo verdadeiramente interessado busca estar minimamente antenado, costuma alimentar o hábito da leitura de críticas, gosta de conversar sobre o assunto, por conseguinte, sabe quando o texto é sobre um projeto que está sendo lançado nas salas, ou aborda uma produção da década de 90 que já passou na televisão umas mil vezes. Numa comparação simples, o torcedor que é apaixonado por futebol sabe a escalação atual de seu time do coração.

Eu vivi o período das trevas, sem internet, caçando filmes em locadoras de vídeo, sonhando com imagens de obras retratadas em revistas de cinema, aguardando meses para conseguir um título raro em VHS, arqueologicamente procurando em sebos e bibliotecas as informações sobre os artistas e suas filmografias.

Aprofundando a reflexão, o ato de perguntar publicamente algo cuja resposta pode ser encontrada em questão de segundos pela própria pessoa em alguns toques na ferramenta de "Busca" da plataforma, corrobora o argumento da preguiça intelectual, logo, a tentativa de disfarçar o desinteresse galopante posando de cinéfilo devotado nas redes sociais. Como sempre reforço, a valorização do "parecer ser", ao invés do mais trabalhoso "ser". E, como crítico, creio que há conexão entre este comportamento virtual e, por exemplo, a constatação da deselegância e do desrespeito do público brasileiro na experiência coletiva da sala de cinema.

Enquanto a cultura for consumida cegamente apenas como fast-food, tapa-buraco, tolo passatempo, nós iremos dividir sessões com toques ininterruptos de celulares, conversas animadas sobre parentes exóticos de estranhos e uma quantidade absurda de lixo acumulado nas poltronas, em suma, variações terríveis da ausência de educação e empatia.

"Jogador Número 1", de Steven Spielberg


Jogador Número 1 (Ready Player One - 2018)
O livro original escrito por Ernest Cline, que também assina o roteiro, junto com Zak Penn, é puramente divertido, conectado com os anseios da juventude geek, mas possui muitos problemas, entretenimento leve que é esquecido pouco tempo depois de finalizada a última página.

A história ambientada em 2045 se passa parte em Columbus, Ohio, e parte no mundo virtual do jogo OASIS. O jovem Wade (Tye Sheridan), órfão e sonhador, dedica sua vida a procurar o easter egg criado pelo idealizador deste mundo virtual, James (Mark Rylance em atuação exagerada), que irá conceder o controle do jogo, além de uma considerável fortuna. Ele vislumbra na realidade fantástica a satisfação imediatista que o cotidiano nunca seria capaz de entregar. A crítica é atual, a sociedade vive mentiras confortáveis em busca de um prazer ilusório, o povo opta conscientemente pelo constante estado de anestesia geral.

O primeiro desafio do diretor Steven Spielberg em “Jogador número 1” (Ready player 1) foi se reencontrar com seu senso criativo despretensioso, após vários projetos narrativamente densos e, na maior parte das vezes, frios. A experiência recente com a animação “O bom gigante amigo” foi frustrante e a última aventura de Indiana Jones, lançada dez anos atrás, mostrou que a mágica se perdeu.

O segundo desafio foi evitar que a trama intensamente dependente da nostalgia de quem viveu a cultura pop das décadas de oitenta e noventa se tornasse enfadonha para o público geral. Se você não identifica as várias referências presentes nas cenas, ou constata que estas não justificam o seu investimento emocional, o único elemento que resta é o inegável espetáculo técnico, o show de luzes que não falha em entreter.

O longa apresenta obstáculos. Alguns clichês desgastados, como a rasa e quase sempre desnecessária subtrama romântica que apenas prejudica o ritmo, os diálogos absurdamente expositivos, além do fraco desenvolvimento dos arcos dos personagens, reduzem o escopo do filme à simples passatempo, facilmente substituível por qualquer produção de super-heróis, robôs e monstros que a indústria despeja semanalmente nas salas.

Apesar destes problemas, vale destacar que é surpreendente perceber que o mestre Spielberg retomou com extrema competência a energia de seus primeiros projetos, aquele brilho no olhar do garoto que tomou o mundo de assalto com “Tubarão”.

* Crítica publicada no Caderno B do "Jornal do Brasil" (29/03/18).

terça-feira, 27 de março de 2018

Cine Bueller - "Felizes Para Sempre", de Francesco Rosi


Felizes Para Sempre (C'era Una Volta - 1967)
Este conto de fadas adulto contrasta bastante com o tom do restante da obra do diretor Francesco Rosi, respeitado à época como uma das vozes mais importantes do cinema realista e pessimista italiano, por seu trabalho sociopolítico relevante em filmes como "As Mãos Sobre a Cidade" e "O Bandido Giuliano". Anos depois ele entregaria pérolas como "Cristo Parou em Éboli" e "A Vontade de Um General". Em sua essência, "Felizes Para Sempre" é um projeto do produtor Carlo Ponti feito sob medida para divulgar no mercado norte-americano a beleza estonteante de sua esposa, Sophia Loren, auxiliada em cena pelo carisma de Omar Sharif, logo depois de "Dr. Jivago".

Analisado em retrospecto, sem o peso da expectativa, o roteiro escrito pelo diretor com a ajuda de Tonino Guerra, Raffaele La Capria e Giuseppe Patroni Griffi, segue charmoso, onírico, leve, coerente com a proposta temática. Já começa com uma sequência musical com fumaça colorida que parece uma viagem lisérgica, depois estabelece rapidamente a metáfora do relacionamento do casal, com o príncipe tendo dificuldade em domar um cavalo selvagem, até que ocorre uma guinada surreal encantadora que conduz o espectador a uma tomada aérea do santo voador José de Cupertino, vivido pelo respeitado ator inglês Leslie French.

Vale destacar que um dos méritos mais valiosos da trama é que ela se leva a sério a todo momento, não é um pastiche do gênero, algo similar ao que Jacques Demy faria tempos depois em "Pele de Asno", que costuma ser mais lembrado e que não envelheceu tão bem quanto a fantasia de Rosi. Ver o filme nesta versão remasterizada lançada pela distribuidora "Classicline" me traz lembranças gostosas da infância, quando ele era transmitido na "Sessão da Tarde".  


* O filme está sendo lançado em DVD, com opção de dublagem em português, pela distribuidora "Classicline".

segunda-feira, 26 de março de 2018

Breve reflexão e um questionamento sobre a polêmica tola envolvendo a série "O Mecanismo"



Qualquer pessoa tem o direito inalienável de ser imbecil. Boicotar uma obra de ficção livremente inspirada em um caso político, promover o cancelamento das assinaturas, espernear como crianças mimadas, tudo isto faz parte do conceito de liberdade de expressão. Eu sou totalmente CONTRA qualquer tentativa de censurar arte. Considero fundamental que existam projetos que defendam todo tipo de ideologia. Aproveitando o ensejo, tendo visto os episódios e constatado a alta qualidade da produção (roteiro, atuação, fotografia, direção), faço questão de perguntar para aqueles que estão disseminando o ódio neste momento:

Você, crítico medíocre que não aprendeu ainda a sua função, incapaz de analisar uma obra sem contaminá-la com elementos externos e irrelevantes na equação, conseguiria enxergar os méritos de "O Mecanismo", caso sua trama abordasse o mesmo caso, só que pelo viés da demonização da Lava Jato? Tome vergonha na cara e se profissionalize. Você precisa ser imparcial, para que não cometa o equívoco grosseiro de ser injusto com qualquer obra. Respeite seu público e as equipes envolvidas nos filmes, aprenda que o crítico de cinema tem que avaliar com seriedade "O Mecanismo" e "Lula, o Filho do Brasil", "Aquarius" e "Polícia Federal - A Lei é Para Todos". Sem preconceito, sem infantilidade. Pare de passar vergonha!

sexta-feira, 23 de março de 2018

"A Melhor Escolha", de Richard Linklater


A Melhor Escolha (Last Flag Flying - 2017)
Neste novo trabalho do diretor Richard Linklater, de “Boyhood” e “Antes do Amanhecer”, mestre da simplicidade naturalista nos diálogos, ele retorna com a leveza habitual ao tema do comportamento humano, respeitando como sempre a inteligência do público.

Na trama, adaptada do livro homônimo de Darryl Ponicsan, que continua a história já levada para o cinema em “A última missão”, dirigida por Hal Ashby, trinta anos depois de servirem juntos na guerra do Vietnã, o ex-marinheiro Larry (Steve Carell, fora de sua zona de conforto cômica), consumido pelo sentimento de culpa, reúne seus antigos amigos, o irreverente Sal (Bryan Cranston) e o reverendo Richard (Laurence Fishburne), para enterrar o seu filho, um jovem que morreu durante a Guerra no Iraque.

A jornada intimista do trio conduz a reflexões preciosas sobre os efeitos do conflito em suas psiques, a fragilidade alimentada por suas escolhas e renúncias ao longo da vida, com Richard representando a muleta da fé ponderada, enquanto Sal, anestesiado em sua rotina como dono de bar, trabalhado no roteiro também como alívio cômico, prefere o caminho imediatista do instinto. Os três encontraram, ao longo do caminho, formas distintas de lidar com seus traumas.

Quando os amigos se permitem resgatar lembranças divertidas da ingenuidade de outrora, como a noite em que Larry perdeu a virgindade, o filme encontra o tom perfeito de saudosismo e camaradagem, favorecido pela química certeira entre os atores, com destaque para a extrema competência de Cranston em operar as várias nuances de um personagem complexo que vive o processo do luto.

A filosofia nunca pretensiosa no texto de Linklater vai direto na ferida exposta, com utilização sensível do silêncio como forma de potencializar a dor nos rostos em planos fechados. A mensagem crítica contra os alicerces mentirosos do belicismo é poderosa, especialmente considerando o contexto político atual norte-americano.

* Crítica publicada no "Jornal do Brasil" (22/03/18).