sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Faces do Medo - "Terror nas Trevas"

Link para os textos do especial:


Terror nas Trevas (E tu vivrai nel terrore! L'aldilà – 1981)
A melhor maneira de enxergar essa obra de Lucio Fulci, inspirada em “A Mansão do Inferno”, de Dario Argento, além de “A Sentinela dos Malditos”, de Michael Winner, realizada com baixo orçamento e filmada em cinco semanas, é como um perturbador pesadelo. A trama é simples: um hotel é construído sobre um dos sete portões do inferno, algo que a nova proprietária, vivida pela inglesa Catriona MacColl, acaba descobrindo ao entender que um velho bruxo havia sido assassinado décadas antes, crucificado em uma das paredes do local. O roteiro é uma desculpa para o diretor exercitar sua macabra criatividade, elaborando cenas sangrentas surrealistas, como o ataque de aranhas em uma biblioteca, o rosto de uma mulher sendo derretido lentamente pelo ácido, ou o devastador terceiro ato passado teoricamente no hospital, com o herói portando um revólver de munição infinita.

A realidade que poucos críticos percebem é que o casal jamais deixou o hotel. Os últimos vinte minutos são a forma encontrada por Fulci para retratar o além (l’aldilá). O casal tenta fugir adentrando um elevador, apenas para descobrirmos que eles acabaram voltando para o mesmo ambiente, a sala de autópsia. O que pode ser tido como um erro de continuidade, eu prefiro entender como mais uma maneira de confundir o público, deixando claro que naquele pesadelo, tempo e espaço são conceitos indomáveis. O homem percebe que seu revólver ficou sem munição, porém, exatamente como num sonho, ele segue atirando. Os personagens descobriram mais do que deviam, sendo penalizados com a descida ao inferno, culminando com a exposição da cegueira. Eles já estavam nas trevas durante todo o terceiro ato, fazendo-nos entender o tipo de existência maldita que Emily, presa na escuridão desde o incidente no passado, e a jovem ruiva enfrentavam. Os terrores vividos por eles, profetizados no livro de Eibon, dão vazão à obsessão do diretor com os olhos, um gore impactante, mérito do mestre Giannetto De Rossi, e que nos remete a Luis Buñuel e seu “Um Cão Andaluz”. O final melancólico, abrupto, difícil de esquecer, estabelece o terror do casal como uma realidade que está apenas começando.

Priorizando a atmosfera, lição que os cineastas modernos do gênero falham em entender, Fulci desorienta constantemente o espectador, utilizando a carnificina, focando na desintegração da carne, como uma maneira metafórica e espiritualista de filosofar sobre a fragilidade do corpo. O deserto que descobrimos ao final, um horizonte sem fim de desesperança, uma visão depressiva do além. 

* O filme está sendo lançado pela distribuidora Versátil, na caixa "Obras-Primas do Terror 2".

Kung-Fu Fighting - "A Fúria do Dragão"

Link para os textos do especial:


A Fúria do Dragão (Jing Wu Men – 1972)
Quando Chen Zhen descobre que seu venerado mestre foi morto em circunstâncias misteriosas, decide viajar para Xangai, para participar do funeral, mas logo começa a investigar as causas da morte, deparando-se com uma intriga, envolvendo escolas de artes marciais, lutando violentamente até conseguir vingar-se dos assassinos.


Considero essa produção da Golden Harvest o melhor trabalho de Bruce Lee, aquele que melhor transmite sua habilidade como ator e como artista marcial, com um roteiro correto e uma direção elegante de Lo Wei, além de um desfecho profundo em simbologia e que resume a essência de sua importância na história da Sétima Arte, a coragem de um jovem que seguiu seu sonho e, em pouco tempo, fez o mundo reverenciar seu talento. Seu personagem, baseado em Liu Zhensheng, principal aluno do tradicional herói chinês Huo Yuanjia, pressionado a se render às autoridades, diferente da atitude de seu personagem no anterior “O Dragão Chinês”, ele decide que irá sair de cena atacando sem medo, exatamente como viveu, coerente aos seus princípios até o fim. Como a letra da empolgante música-tema sublinha, assim que ocorre o freeze frame, aquela era a despedida de um herói que representava o renascimento dos conceitos ultrapassados de honra e cavalheirismo, algo muito próximo da filosofia do próprio Lee. Um momento emocionante com forte inspiração no desfecho clássico de “Butch Cassidy”, lançado alguns anos antes.

O sucesso do projeto foi o responsável pelo despertar definitivo do Kung-Fu como fenômeno popular na América, que lucrou com o tema em diversos formatos, como na série de David Carradine, pensada inicialmente como um veículo para Lee. Até mesmo nos quadrinhos, com o personagem: “Mestre do Kung-Fu”, um dos motivos principais que me fazia correr até a banca para comprar o gibi “Superaventuras Marvel”. Nunca me esquecerei da sensação ao assistir pela primeira vez a cena, sem cortes, do confronto entre Lee e os estudantes na escola rival, um marco no gênero, que redefiniu a direção das coreografias de luta. A intensidade que ele conseguia transmitir ao estalar os ossos da mão, deixando transparecer que havia uma razão forte para que ele estivesse agindo daquela forma, aliada à agilidade de seus movimentos, criaram o mito. Muitos tentaram copiar, sem sucesso. 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

"Gloria", de John Cassavetes


Gloria (1980)
Jack Dawn é contador da máfia. Sob a suspeita de estar passando informações para o FBI, Jack e a família são eliminados. No entanto, o filho de seis anos, Phil, consegue escapar e foge com Gloria, uma vizinha que namorou um dos mafiosos. Gloria e Phil serão perseguidos por Nova York porque o garoto tem em mãos algo que os criminosos querem.


Uma chance de ver o diretor/roteirista John Cassavetes mostrando que conseguia fazer o jogo da indústria, mantendo a impressão digital autoral de seus melhores filmes independentes, metendo o pé na porta do mainstream, sendo ajudado por uma excelente atuação de sua musa Gena Rowlands. Um filme policial de primeira grandeza, com uma protagonista que revela na sutileza dos olhares e das reações que ocorrem nos momentos em que o foco da cena está no menino, vivido por John Adames, todo o contexto pregresso de conflitos que a trama inteligentemente não aborda. A opção por esconder seu rosto com o cabelo, no importante momento em que o garoto beija pela primeira vez sua face, como se a colocasse numa posição de submissão, como se ela não se sentisse merecedora daquele gesto de carinho, contrastando com todas as cenas em que ela se coloca arrogantemente como superior a ele. Um toque eficiente: a ideia de Gena, reforçada pelo diretor, de que ela continuasse tratando o menino da mesma forma ríspida, com as câmeras desligadas.

Os trajes sempre formais do menino, fazendo-o parecer um adulto no corpo de uma criança, representando a maturidade forçada que ele precisou forjar após o assassinato dos pais e da irmã mais velha. O fato de o menino ser porto-riquenho agrega o elemento do preconceito na protagonista, uma loira nova-iorquina que deixa claro se considerar de uma casta superior da sociedade. É interessante a transição de Gloria, sem o apelo fácil do sentimentalismo, narrativamente indo de uma mulher independente, capaz de largar a criança sozinha no mundo, sem olhar para trás, a uma loba totalmente dependente da companhia do garoto, simbolizada na cena em que ela o deixa na rua e vai beber no bar. O pano de fundo, que envolve a violência da máfia e toda a ação essencial ao gênero, é menos importante que a forma sensível como é retratada a relação da dupla. Como já havia tratado em outros projetos, esse é mais um estudo de Cassavetes sobre o destino de pessoas comuns envolvidas no mundo do crime e, especialmente, a formação da unidade familiar. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil".

Blaxploitation - "Super Fly"


Super Fly (1972)
A trama é simples. Um traficante do Harlem, Youngblood Priest, vivido por Ron O’Neal, espera fazer uma última venda para converter toda a sua cocaína em dinheiro e começar uma vida nova longe do crime. Sempre me pergunto se os veículos que organizam listas de “melhores filmes” verdadeiramente assistem os selecionados ou apenas seguem o senso comum. “Super Fly” normalmente aparece no topo das listas sobre Blaxploitation, porém, com exceção da excelente trilha sonora de Curtis Mayfield, o melhor trabalho do músico, que carregou a obra nas costas até hoje, nada se salva no projeto, fraco até para os padrões medianos do gênero. O roteiro falha em empolgar até mesmo na sequência final, uma briga equivocadamente filmada em câmera lenta, com ângulos que deixam aparente o punho que não chega nem perto do rosto do oponente.

A mesma preguiça pode ser percebida na longa cena de sexo na banheira, emoldurada por uma trilha que sublinha uma sensualidade que não é captada pela câmera do diretor Gordon Parks Jr., filho do responsável pelo projeto que iniciou o fenômeno: “Shaft”. Mas nada é menos eficiente que a sequência de montagem de fotos, tiradas pelo pai do diretor, onde apenas a canção “Pusherman”, apresentada na íntegra pela segunda vez, consegue evitar que a atenção seja desviada para longe do fiapo de trama. É hipnotizante a junção da guitarra e os bongôs, com o vocal em falsete, amalgamando o soul e o funk, em letras espertas que não glorificam a criminalidade, entregando a complexidade que não conseguimos enxergar nos personagens unidimensionais. No ano seguinte, O’Neal decidiu voltar, dirigindo a sequência “Super Fly T.N.T.”, que consegue ser ainda pior, indefensável. 

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Faces do Medo - "O Ciclo do Pavor"

Link para os textos do especial:


O Ciclo do Pavor (Operazione Paura – 1966)
Eu posso citar duas cenas, das várias espetaculares na trama, que justificam a presença desse filme em qualquer lista respeitável de melhores do gênero. 1) O momento em que a pequena Melissa, vivida pelo garoto Valerio Valeri, induz outra jovem ao suicídio, representado na imagem que emoldura a postagem. 2) A sequência onírica em que o protagonista, o médico vivido por Giacomo Rossi-Stuart, percebe que está perseguindo a si próprio num ambiente que se repete a cada atravessar de uma porta. Aliás, vale ressaltar que essa cena impressionante serviu de inspiração para o clímax de “Twin Peaks”, de David Lynch. Em outros aspectos da trama, como a relação da baronesa com sua filha falecida, podemos notar a inspiração para o primeiro “Sexta-Feira 13”. É fácil notar também a influência da atmosfera deste, com a batalha entre o racional/médico e o sobrenatural/superstições, em “O Homem de Palha”, de 1973.

Filmado em apenas doze dias, com pouquíssima verba, o mestre italiano Mario Bava consegue estabelecer um clima gótico de intensa inquietação, acertando ao apostar na sutileza, o medo que é sugerido na cena e alimentado na imaginação do espectador. É incrível a facilidade com que a fotografia nos insere numa espécie de limbo temporal, indefinido, tornando a subversão desse tempo, no terceiro ato, totalmente desconcertante para os personagens e para o público. O detalhe da bola da menina sendo usado como totem de sua presença, como na ótima cena da escadaria em caracol, é um exemplo perfeito de como esconder o monstro é sempre mais eficiente. Federico Fellini assistiu com atenção essa obra, copiando a imagem da menina fantasmagórica em “Histórias Extraordinárias”, de 1968. Por mais que muitos acreditem que foi uma homenagem, o próprio Bava afirmava, com ressentimento, que havia sido plagiado.

Como o orçamento acabou antes das filmagens acabarem, o diretor precisou utilizar trechos das trilhas de seus filmes anteriores, algo que trabalhou a favor do resultado, acentuando o clima de estranheza, um pesadelo elegante. Como esquecer a câmera em pêndulo, logo no início, refletindo o balançar da menina que, onisciente, vigia os habitantes do vilarejo amaldiçoado? 

* O filme está sendo lançado, em versão restaurada, pela distribuidora Versátil, como parte da caixa "Obras-Primas do Terror 2", que também traz: "Lisa e o Diabo", "A Mansão do Inferno", "Martin", "Pelo Amor e Pela Morte" e "Terror nas Trevas", além de vários extras fantásticos. Essencial para os fãs do gênero.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Entrevista com André Luiz Mazzaropi

O filho do coração de Amácio Mazzaroppi, André Luiz, dedicado responsável por carregar o legado do cineasta para as novas gerações, carinhosamente aceitou responder algumas questões sobre o empreendedor que chegou mais perto de construir uma indústria auto-sustentável de cinema no Brasil. Um sonho utópico que parece estar cada vez mais distante. 



O - Um dos aspectos mais fascinantes em Mazzaropi é que ele lotava salas de cinema sem uma máquina como a Globo Filmes por trás. Hoje em dia as comédias nacionais fazem público porque são divulgadas durante toda a programação da emissora. Fale sobre a inteligência empresarial de Mazzaropi, sobre essa facilidade que ele tinha de se comunicar com seu público, inclusive, ditando as datas de estreias, mesmo que elas batessem de frente com a grande indústria americana.

A - O primeiro aspecto é que o Mazzaropi começa sua carreira aos 17 anos e com 19 já estava no Teatro, primeiro Oberdan, cantando Cansoneta Napolitana, e depois Colombo, sendo a partir de lá sucesso de publico, pois após as primeiras aparições cantando, decidiu mudar sua característica artística se tornando o personagem Jeca em 1931, imitando o "Irmão Sebastião", que fazia dupla com Genésio Arruda; A partir dali se apresentou em grandes teatros com grandes nomes daquela época, como Dercy Gonçalves; Em 1941 chega ao rádio, tornando-se, entre 1942 e 1952, o mais conhecido comediante brasileiro neste período da Radio Tupi de São Paulo e Radio Nacional do Rio de Janeiro; O Rádio dos anos 40 e 50 era infinitamente mais poderoso promocionalmente do que a Rede Globo de hoje; (a TV Globo atinge hoje aproximadamente 44% da população), pois toda a população do país só tinha como informação e entretenimento o rádio, que atingia em torno de 95% da população, e ele era líder de audiência dentro das duas maiores Rádios do país; Mazzaropi ainda fez Televisão entre os anos de 1950 e 1952, quando saiu do Rádio e da Televisão para ir para o Cinema, a Cia Cinematográfica Vera Cruz; Levado pelas mãos do diretor Abílio Pereira de Almeida, Mazzaropi já tinha construído seu grande publico no Rádio e os levou para o Cinema junto com ele. 

Os primeiros filmes foram produzidos por duas das maiores produtoras de cinema brasileiro, Vera Cruz, de Franco Zampari, e Cinedistri, de Oswaldo Massaini; Ele só foi enfrentar as distribuidoras americanas quando criou a sua própria empresa: PAM Filmes, em 1958, quando já era sucesso, recordista de publico e de bilheteria, soube como ninguém enfrentar as distribuidoras americanas; No Brasil existiam, segundo o Cardex da PAM Filmes, 11.648 salas de exibições de cinema; Embora as grandes distribuidoras fossem americanas, as salas de cinema eram de grandes proprietários brasileiros e ele, na sua inteligência e sabedoria empresarial, soube cativar cada dono de sala de cinema desse país afora; por isso criou a Amácio Mazzaropi Produtora e Distribuidora de Filmes Cinematográficos PAM Filmes, isso fez toda a diferença. Quanto às datas de lançamento dos filmes, ele pediu no inicio ao Franco Zampare (Vera Cruz) que o lançamento de seus filmes fossem em todo aniversário de São Paulo, e assim se fez em todos os filmes; ele amava São Paulo, a cidade o amava.

O - Amácio capitalizava em cima dos temas que estavam fazendo sucesso no mundo, transportando aquela temática para o universo de seu personagem. É o caso de "Jeca Contra o Capeta", que aproveitava o sucesso mundial de "O Exorcista". Os cineastas nacionais não apreciam trabalhar com gêneros, mas Mazzaropi utilizava esses gêneros de uma forma muito autoral, com muita personalidade. Como é o caso das homenagens ao faroeste, "Uma Pistola para Djeca", por exemplo. Fale um pouco sobre essa questão da importância de não rejeitar o cinema de gênero.

A - O grande sucesso dele, o Jeca era um gênero, real à sua época, porem um gênero; O Brasil colônia fora formado em sua gigantesca zona rural e dos anos 30 à 70 vivia plenamente o êxodo rural, trazendo para as cidades as figuras rurais, entre elas o Jeca; Mazzaropi, ao longo de sua trajetória no cinema, teatro e circo, aprendeu a falar a linguagem desse personagem do nosso povo. Em toda sua carreira ele fez um só gênero, variações de seu próprio Jeca. Inicialmente o personagem foi imputado por Abílio e Oswaldo, aquele Jeca que eles conheciam, o Jeca urbano, da cidade ou que foi morar na cidade, isso durou até seus primeiros dois filmes na PAM, até chegar ao "Jéca Tatú", a partir daí o Jéca Tatú de Monteiro Lobato; entre o "Jéca Tatú" e "O Grande Xerife", até que se redescobre em sua própria versão, uma mistura de tudo isso que ele viveu; e a partir de "Um Caipira em Bariloche", até "O Jéca e a Égua Milagrosa", seu próprio Jeca.

Mazzaropi não era cinéfilo; portanto seu conhecimento sobre o cinema vem da produção cinematográfica e não dos filmes de grande sucesso produzido pelo mundo, ele emprestou ao cinema sua arte circense teatral. Ele aprendeu no Rádio estar sempre ligado à mídia, uma das razões de seu sucesso. Ele aprendeu a produzir cinema com gente grande, como ele se referia a seu patrão Zampari e, principalmente, ao húngaro Rodolfo Icsey, considerado à sua época, e até os dias de hoje, um dos maiores fotógrafos cinematográficos do mundo; ambos produziram cinema na Itália e em Hollywood; tendo Rodolfo Icsey participado de centenas de produções; por esse motivo os gêneros sempre estiveram presentes em seus filmes. Como ele dizia: "O segredo do meu sucesso é falar a língua do meu povo".


O - Quando ele dizia que pensava seu cinema objetivando o público, não a crítica, ele dava uma aula que ainda hoje não foi aprendida por aqui. Não há maneira de se criar uma indústria de cinema somente com projetos autorais e pretensões existencialistas. É preciso entregar, com qualidade e alguma ousadia, aquilo que o público quer ver. Como você analisa essa postura dele?

A - Quando decidiu fazer seu próprio cinema, ele só deu ouvido a seu povo, seu público, não a critica que sempre o tratou com desprezo, e eram na rua, nas praças, mercados, nos bares, que ele nunca frequentou, nas vendas de roças, vilas rurais, pequenas cidades onde, em suas milhares de viagens para realizar seus shows de circos, conversando com as pessoas comuns é que ele criava suas histórias e personagens, encontrando também pessoas que iriam ajudar, profissionais extremamente qualificados. Vou citar apenas dois companheiros que foram seus roteiristas e que eu conheci : Gentil Rodrigues e Rajá Aragão. Nomes como Argeu Ferrari, João Batista de Souza, Carlos Garcia e esse que vos fala, André Luiz de Toledo. No primeiro momento ele alugava todos os equipamentos necessários da Vera Cruz, depois acabou comprando esses equipamentos, além de uma fazenda em Taubaté, a Fazenda da Santa, que transformou em seu estúdio. Em 1974 ele construiu o mais moderno estúdio cinematográfico da América Latina, terceiro do mundo, onde hoje é o Hotel Fazenda Mazzaropi. Depois de produzir os filmes, ele não descansava, sentava na sala do Art Palácio, em São Paulo, escondido do público que sempre lotava os cinemas, assistindo o filme e saindo da sala uns cinco minutos antes de acabar. Ao escutar a gargalhada do povo, ele sabia que havia feito o melhor que podia.

O - Como era a mente criativa dele? Ele seguia um roteiro com disciplina, ou improvisava as cenas? Como o Mazzaropi pensava o cinema? Sei que sua grande paixão era o circo. Quais eram as referências dele no cinema?

A - Quando empregado, aliás, contratado como ele dizia ser, a disciplina e dedicação ao estudo do roteiro eram impecáveis, porém, após o primeiro filme, vieram os primeiros improvisos, a criação da sua arte, muito própria dele. Mazzaropi não pensava no cinema, pensava exclusivamente em seu cinema; por isto o tornou uma indústria cinematográfica. Sua grande paixão artística estava no circo; O cinema foi sempre seu grande negócio comercial, apenas isso. Ao longo de toda vida assistiu poucos filmes, muito poucos, por isso não tinha nenhuma referência no cinema mundial ou brasileiro; mas através da mídia conheceu Charles Chaplin. Ele dizia que, se fosse americano, seria certamente Chaplin. E, de certa forma, ele foi o Chaplin brasileiro.

O - Eu acredito que a música era um fator importante em sua mente criativa. Que tipo de música ele escutava em casa?

A - De tudo, pois só ouvia música no rádio, de casa ou no carro, Amácio era um homem rico e de bom gosto, de caipira só tinha o personagem, tinha certa simpatia pela musica clássica orquestrada; mas não tinha paciência de assistir a um concerto musical. A música entra em seus filmes desde o inicio não por sua iniciativa, mas a arte cênica teatral e cinematográfica vivia a seu tempo o teatro de revista e de grandes musicais, por isso a importância da música em seu cinema; para sua sorte , ele conheceu ainda na Vera Cruz o músico/compositor Elpídio dos Santos, que vivia em São Paulo, mas era de São Luiz do Paraitinga, que se tornou berço cinematográfico de Mazaroppi; com ele cantou os seus maiores sucessos: A Dor da Saudade e Fogo no Rancho, entre outras.


O - Ele tinha alguma mania ou método peculiar durante a preparação e a filmagem de seus projetos?

A - Amácio era perfeccionista, fazia tudo com muito cuidado, com muito zelo, pois sabia que só assim faria o melhor.

O - Fale sobre a importância de Pio Zamuner nos filmes de Mazzaropi.

A - Para falar de Pio Roberto Zamuner, é preciso falar de Rodolfo Icsey, porque Pio veio jovem ao Brasil, pelas mãos do já experiente Icsey; e foi assim que começou sua trajetória com Mazzaropi; Do primeiro ao último filme que produziu com ele, entendeu muito bem o que o ítalo brasileiro Amácio Mazzaropi queria dizer ao seu público, fazendo com que isso os ligasse; tinham a mesma identidade ideológica e social, ambos vinham de colônias italianas pobres e conheciam bem o sofrimento de seu povo, o caipira de Amácio tinha muito do caipira italiano. Zamuner encontrou em Mazzaroppi a estrutura técnica e financeira para desenvolver o bom cinema que ele havia aprendido com Icsey,  e essa união foi ótima para o público. É preciso falar também de Virgilio Roveda, o Gaúcho, seu assistente de câmera; muito provavelmente, sem Virgilio, o Mazzaropi não teria conseguido segurar a barra com o Zamuner. O Gaúcho era o ponto de equilíbrio entre os dois.

O - Você acredita que no panorama cinematográfico nacional atual existe a possibilidade de um fenômeno como Mazzaropi existir? O maldito politicamente correto, em sua opinião, está abortando possíveis gênios do humor?

A - NÃO. Não acredito, porque no Brasil os comediantes atuais são forjados por diretores de televisão, comédia não hilária, instantânea nos teatros, os grandes comediantes mundiais vinham do circo, e este acabou. Quanto ao cinema, aqui não temos mais nenhuma escola de cinema, adotamos, como a maioria dos países do mundo, o audiovisual como material cinematográfico, o que é uma pena; cinema é cinema e audiovisual nunca será cinema; Outro problema é que perdemos, faz tempo, o parque exibidor. Em  1981, eram 11.648 salas. Hoje, dados da Ancine informam algo em torno de 1340 salas, sendo 1100 em shopping centers; perdemos pelo menos três gerações de cinéfilos que deixamos de formar; Nossa produção de filmes, faz tempo, é de audiovisual, o que não qualifica ninguém para o cinema, muito menos o produtor. O poder público continua interferindo na produção e não tem ação nenhuma na distribuição/exibição. Acabei de produzir dois longas ("O Filho do Jeca" e "O Mensageiro de Deus"), ambos audiovisual para dois mercados gigantescos dentro do Brasil, o popular e o gospel, e não consigo sequer agendar com os distribuidores. A Ancine adotou uma linguagem que só eles entendem, com certeza com o único objetivo de favorecer a Globo, porque só ela tem a mídia na mão. Cota de tela não existe, só para eles.

O - Meus filmes favoritos dele são "Jéca Tatú", "Sai da Frente" e "O Jeca Macumbeiro". Quais são os seus filmes favoritos?

A - Antes de falar do meu preferido, vamos falar dos preferidos dele, que dizia que não tinha preferência, que eram como filhos, mas te revelo que era mentira. Mazzaropi era apaixonado por "Jeca Tatu", "Portugal, Minha Saudade" e "Betão Ronca Ferro", esse último por causa do seu amor pelo circo. Eu acho que o melhor filme dele é o "Jeca e seu Filho Preto", não só porque participo dele; fiz entre 1983 e 2014, cerca de 1614 "Mostra de Cinema Mazzaropi", assisto todos os filmes; esse e "Betão Ronca Ferro" são os que mais me encantam. Para o público atual, o filme "Jecão... Um Fofoqueiro no Céu" é o preferido, assim como "Casinha Pequenina", que, sozinho, levou 74.000.000 de pessoas às salas de cinema, entre 1961 e 1981. Ele, com seus 24 filmes, levou 206.779.311 pagantes às salas, entre 1958 e 1981. Os filmes venderam 90.000.000 de cópias de DVD's, de 2006 a 2012.

O - Você poderia deixar uma mensagem para os meus leitores, os cinéfilos que amam o legado de Mazzaropi?

A - Aos fãs de Amácio Mazzaropi, deixo aqui minha eterna gratidão. Antes dele ir embora, ele me disse numa noite que o seu público jamais o iria deixar; e assim está sendo até hoje; muito obrigado.

Star Wars - O Retorno de Jedi

Link para os textos anteriores:


O Retorno de Jedi (Return of The Jedi – 1983)
A ideia inicial do roteirista Lawrence Kasdan, de matar Han Solo logo no primeiro ato, em um gesto de sacrifício pela rebelião, poderia ter resultado em uma trama verdadeiramente interessante. Diferente do anterior, não há um senso de perigo real para os personagens, um problema narrativo intensificado pela excessiva atenção dedicada aos adoráveis Ewoks. Ao invés de seguir naturalmente o tom estabelecido após vários eventos traumáticos, George Lucas optou por abraçar a necessidade de mercado, em detrimento da coerência de sua história, entregando um produto infantilizado. O original era uma aventura adulta, com referências de seriados de cinema infanto-juvenis, enquanto “O Retorno de Jedi” era pensado totalmente para o público infantil, um direcionamento que já vinha sendo sinalizado nas versões em quadrinhos da Marvel, com destaque para o famigerado coelho gigante verde Jaxxon.

Após trinta minutos focados no resgate de Han, sequência arrastada que ficou pior ainda na versão mais recente, com a inclusão do terrível interlúdio musical em CGI: “Jedi Rocks”, o segundo ato peca por não ter ritmo algum, com a revelação do parentesco entre Luke e Leia fazendo uso generoso de diálogos expositivos, o impacto da morte de Yoda sendo ofuscado por uma genérica aparição de Obi-Wan Kenobi, reafirmando o que já havia sido estabelecido minutos antes. Até hoje não entendo como Boba Fett não reconheceu Lando infiltrado no palácio de Jabba. São detalhes que enfraquecem a necessária conexão emocional. O conceito de reutilizar a Estrela da Morte, uma cópia preguiçosa da fórmula do original, torna todo o plano do Imperador ainda mais incoerente. A ideia de stormtroopers sendo abatidos com pedrinhas em atiradeiras pode funcionar teoricamente, como uma metáfora da natureza primitiva se voltando contra a tecnologia, mas na prática soa absurda demais até para os padrões de uma fantasia espacial.

O pouco experiente diretor Richard Marquand, um honorável laranja na produção, não tinha pulso firme para conter os arroubos criativos do criador da obra. Qualquer peça no tabuleiro que pudesse prejudicar a venda de brinquedos era rejeitada, como o desfecho melancolicamente solitário de Luke e a visão inicial para os Ewoks, que seriam asquerosos reptilianos, porém acabaram se tornando uma variação dos ursinhos carinhosos. A única seção do filme que realmente funciona no nível dos anteriores é o derradeiro confronto entre Luke e seu pai. Um momento épico que infelizmente é minimizado, equivocadamente inserido em uma confusa sequência de eventos, com a emoção sendo brutalmente interrompida para que possamos admirar as peripécias dos ursinhos atrapalhados, essa turminha do barulho que apronta altas confusões em Endor. Essa escala grandiosa acabou sendo repetida, anos depois, no desfecho de “A Ameaça Fantasma”, mostrando que o diretor não aprendeu com o erro. A verdadeira nova esperança é que, com os próximos filmes construídos longe de seu criador, o público possa ser, enfim, surpreendido com tramas que capturem o senso de aventura do original e o senso de perigo de “O Império Contra-Ataca”.

*** 


A editora Aleph, que irá lançar várias obras do universo expandido de Star Wars, iniciou essa parceria em grande estilo, com o ótimo “Herdeiro do Império”, o primeiro volume da consagrada trilogia escrita por Timothy Zahn, contando o que ocorreu cinco anos após os eventos mostrados em “O Retorno de Jedi”. O livro é essencial na estante de todos os fãs da saga de George Lucas. 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"O Jogo de Emoções", de David Mamet


O Jogo de Emoções (House of Games – 1987)
A psiquiatra, vivida por Lindsay Crouse, autora de sucesso, aparenta ter dificuldade em lidar com suas próprias emoções, com sua voz monocórdia, um rosto lívido e movimentos robóticos, como se existisse apenas nas aventuras narradas por seus pacientes. O controle de emoções é o elemento principal no roteiro brilhante de David Mamet, que dirige com total segurança seu primeiro longa-metragem. Quando conhece o vigarista interpretado por Joe Mantegna, ela exala a arrogância de uma profissional que valoriza demais sua imagem na sociedade, algo que o roteiro pontua no momento em que, num acesso de raiva, a primeira coisa que ela destrói é seu diploma emoldurado na parede.

Diferente dela, o vigarista faz pouco de sua habilidade, algo que enxerga apenas como um trabalho, ainda que seja o melhor no que faz. Ela se corrompe, expõe sua ética frágil, abandonando seus pacientes, embarcando na mesma obsessão compulsiva que repudia em seu livro, enveredando em uma busca por uma emoção transgressora que sempre desejou na vida, mas que nunca teve coragem de abraçar. Ela tenta ensinar seus pacientes a tomarem o controle de suas vidas, porém sempre foi incapaz de fazer o mesmo. Ela sempre rejeitou a diversão como parte de seu cotidiano, focada apenas em se tornar aquela imagem que projetava no espelho profissional. O livro era sobre a própria autora, uma cleptomaníaca que sofre de intensa claustrofobia, elementos que o roteiro insere de forma sutil em várias cenas.

E quando o vigarista aponta essa falha de caráter estrutural nela, a mulher reage com o ódio de quem tem plena consciência do erro. No impactante desfecho, com sua descida ao inferno existencial, ela finalmente aceita suas compulsões, deixando para trás um rastro de sangue. A vilã é reinserida na sociedade, sem culpa alguma, desconhecendo qualquer senso de moralidade. O vigarista, o verdadeiro herói da trama, aquele que se mantém fiel aos seus princípios e seu código de conduta até o fim, retirou o verniz de hipocrisia que havia na personagem. 

* O filme está sendo lançado em DVD, em versão restaurada, pela distribuidora "Versátil".

"Birdman", de Alejandro González Iñárritu


Birdman (2014)
É um desserviço tentar menosprezar a importância da metalinguagem na eficácia do resultado final. A angústia de um ator que tenta provar sua competência ao reflexo do espelho e aos seus colegas, tentando sobrepujar seus problemas pessoais, já foi contada diversas vezes pelas lentes do cinema, não é algo novo. Os aspectos técnicos, a fotografia de Emmanuel Lubezki, os planos-sequência, as trucagens visuais, são um deleite de impecável execução, mas a real beleza está em seu conteúdo. O que torna o filme especial é estar sendo lançado para a apreciação de uma geração que acompanhou a carreira de Michael Keaton, um comediante que ganhou a atenção do mundo ao interpretar um dos maiores heróis dos quadrinhos, um papel que marcou sua trajetória e eclipsou qualquer outro esforço posterior. O que “JCVD” fez com Van Damme, guardadas as devidas proporções, “Birdman” faz com Keaton. 

Quando Iñárritu se inspira no “Stalker” de Tarkovski, fazendo o protagonista mover objetos com o poder da mente, nós podemos imaginar a disputa interna de um ator que anseia ser levado a sério, vivendo o pesadelo de estar inserido em uma realidade de uma indústria que prioriza obras defendidas por personagens superpoderosos de trajes exóticos. O indisfarçável sentimento de culpa, em conflito constante com a gratidão profissional, por ter contribuído para que esse gênero passasse a ser respeitado e tido como lucrativo pelos executivos. A voz interna que o acompanha, no rouco inverossímil típico de um universo onde a presença dos óculos disfarça a identidade de um herói, clama que ele vista novamente o traje e abrace o lucro certo de uma nova produção. O roteiro inteligentemente critica a indústria, apontando o dedo para algo que estamos presenciando, atores veteranos que estão evitando o risco, retornando aos seus papéis populares clássicos, ao invés de estarem experimentando novas emoções, reinventando-se sem a preocupação com o aplauso do público, o que é essencial para um ator. 

Como é explicitado nos intertítulos que iniciam a obra, tudo se resume à necessidade de se sentir querido. Esse é o real vilão da trama, o Coringa do Birdman: o desejo de se sentir amado, não somente pelo público, mas também pela filha problemática, vivida por Emma Stone, alguém cujo relacionamento foi prejudicado pela rotina profissional que ele escolheu. A busca pelo carinho dos outros, o reconhecimento artístico, que acabou afastando-o daqueles mais próximos. Outra antagonista é representada pela crítica teatral, vivida por Lindsay Duncan, uma faceta odiosa que generaliza a função do crítico como um parasita cruel que não tem nada a perder, porém é capaz de destruir em um texto o produto dos riscos de outrem. É uma visão simplista, mas, infelizmente, não muito distante da verdade em alguns casos. Existem maus profissionais em todas as áreas, aqueles que verdadeiramente analisam com pedantismo, sem interesse em críticas construtivas, sem estofo cultural. O erro do filme, ainda que compreensível narrativamente, é generalizar essa imagem. “Ratatouille”, por exemplo, conseguiu trabalhar esse tema de forma muito mais justa. Um pequeno equívoco em um projeto que prima pelos acertos.

A crítica à sociedade, um ambiente que o protagonista não consegue aceitar, pode ser simbolizada na excelente cena que acompanha sua corrida, trajando apenas uma cueca, em plena Broadway. O evento bizarramente onírico, o que realça o contexto metafórico, conduz o personagem a descobrir que ele pode se esforçar em sua Arte por toda sua vida, arriscar nas mais diversas interpretações, que nada disso irá se igualar ao sucesso popular obtido pelos incríveis acessos nas redes sociais advindos de uma tolice qualquer. Vivemos em um período onde a vergonha alheia recebe atenção no horário nobre da televisão, enquanto os verdadeiros artistas morrem esquecidos. Essa melancólica constatação potencializa ainda mais o conflito interno do protagonista. E, celebrando o trabalho meticuloso do diretor, sem correr risco de soltar spoilers, sinalizo para que redobrem a atenção ao desfecho, onde, pela primeira vez, o diretor opta por uma construção convencional, com cortes tradicionais e iluminação comum, como se, enfim, a fantasia tivesse sido abraçada pelo filme. A questão que fica ao final é: o público prefere a fantasia ou a realidade? Há uma função lúdica para a utilização predominante dos planos-sequência e, por conseguinte, a opção por modificar essa estrutura ao final. 

"Boyhood", de Richard Linklater


Boyhood - Da Infância à Juventude (Boyhood - 2014)
Parafraseando John Lennon, a vida é aquilo que acontece enquanto você está ocupado com outros planos. A breve e cruel experiência do aprender a desapegar, necessitando superar obstáculos que nos surpreendem nos momentos mais improváveis. Uma sucessão de erros e acertos cometidos por estranhos seres complexos que se descobrem compartilhando um mesmo universo de incertezas, unidos em uma sinfonia diária de perguntas cujas respostas nunca são encontradas. O diretor Richard Linklater ousou tentar decodificar esse enigma existencial em um projeto ambicioso em escala, mas com uma sensibilidade minimalista, capturando ao longo de quase doze anos as mudanças na vida do protagonista, a jornada fascinante que o leva da inocência de sua infância à maturidade precoce em sua juventude. 

O período de 2002 a 2013, por sorte, abraça a era em que a tecnologia avançou em largos saltos, artifício utilizado inteligentemente no roteiro como metáfora visual, expondo de forma latente o desconforto de uma geração inserida em um tempo de modificações profundas e constantes, além daquelas, tão profundas quanto, que ocorrem internamente. A evolução rápida dos jogos, a obrigatória adaptação ao admirável mundo novo oferecido pela popularização da internet, elementos inovadores que contrastam com os resquícios de atitudes ligadas ao lado primitivo do ser humano, como a natural disputa territorialista entre irmãos ou a agressiva busca pela autoafirmação entre colegas de escola. 

A ideia de não seguir uma trama específica, optando por uma colagem de incidentes variados, ajuda a compor de forma mais coerente e fluida o panorama de eventos que moldam a vida de uma pessoa. É brilhante a sutileza utilizada para sublinhar os pontos de ruptura psicológica no cotidiano, como a rápida cena em que vemos o padrasto ainda no controle de seu vício pelo álcool, evitando que as crianças e a esposa percebam sua prática, até sermos conduzidos à poderosa cena do almoço familiar, onde constatamos a degradação total daquele homem, completamente dominado pelo vício e pela subentendida frustração profissional, incapaz de reconhecer a si próprio no reflexo do espelho. Sentimos também nesses pontos de ruptura o lento forjar da natureza íntegra do menino, que enfrenta com coragem os atos inconsequentes dos adultos desastrosos que deveriam supostamente ajudar em seu aprendizado, mas que se mostram incrivelmente despreparados. Ele demonstra resiliência ao aguentar a implicância dos colegas da escola, após ter seu longo cabelo implacavelmente cortado pelo padrasto machista e rancoroso. E é bonita a forma como o roteiro insere o escapismo que o garoto encontra na fantasia, como força auxiliadora em seus conflitos. 

Podemos reconhecer também os danos daquela conturbada relação na esposa, vivida impecavelmente por Patrícia Arquette, percebendo sua mudança física naqueles poucos anos, seu ganho de peso e a constante troca de cortes de cabelo, deixando claro seu desconforto existencial e um gradual desleixo ideológico, que será remediado quando a encontrarmos novamente, anos depois, já livre daquele tormento, como professora de psicologia. Existe um simbolismo forte nisso, já que ela retomou o foco de sua vida, tomando com segurança emocional o controle de suas decisões. O leitmotiv do amadurecimento não é exclusivo do menino, vivido com competência por Ellar Coltrane, mas também de seus pais. Ethan Hawke, como a figura paterna que só consegue se comunicar de forma eficiente com os filhos através da música, começa sendo mostrado como alguém perdido em seus próprios sonhos artísticos, sobrevivendo a uma fragilidade econômica simbolizada pelo longo uso do mesmo carro simples, denotando uma estagnação profissional, que dará lugar eventualmente a uma considerável mudança de atitude e estilo, um amadurecimento tardio. 

O filme é impressionante na forma como nos faz refletir sobre nossas próprias vidas, sem apelar para os recursos emocionais tradicionais, resultando em um lindo e único retrato proustiano das várias etapas na formação do homem.

"O Jogo da Imitação", de Morten Tyldum


O Jogo da Imitação (The Imitation Game - 2014)
Com o filme recebendo maior atenção por causa de suas indicações no Oscar, acho válido ressaltar a importância do nome Harvey Weinstein nessa equação. Sem os usuais trambiques do produtor nas campanhas de bastidores, essa produção receberia a atenção comum de um bom drama biográfico, defendido por uma atuação correta de Benedict Cumberbatch, com mais características de comportado telefilme, apenas isso. É compreensível essa condução esquemática, já que o diretor Morten Tyldum tem muita experiência em projetos televisivos. 

O roteiro, ponto mais deficiente, é escrito por Graham Moore, que tem no breve currículo o curta “Piratas Vs. Ninjas”. Não há nada na execução que estimule o interesse, uma trama não se sustenta sozinha, ainda mais quando a estrutura convencional apela para todos os clichês estabelecidos em produções baseadas em histórias reais. O espectador atencioso antecipa cada solução, como na apresentação da personagem de Keira Knightley. A única mulher na turma, que chega atrasada e, com todo o elenco abusando dos diálogos expositivos, vira alvo do preconceito dos rapazes, para que, minutos depois, ela surpreenda a todos sendo a mais eficiente. Ao invés de tornar os personagens críveis, com sólidas motivações, o roteiro os trabalha como caricaturas, soltando frases de efeito de livro de autoajuda. 

O símbolo dessa deficiência é a repetição tola do mantra sobre as pessoas que fazem coisas que ninguém consegue imaginar, com poucos minutos de diferença, subestimando tremendamente a inteligência e a memória do espectador. E, para piorar, em ambos os momentos servem como moldura de situações completamente demagógicas, ativando o sensor do piegas. Esse elemento soa deslocado em uma trama adulta, assim como alguns alívios cômicos bobinhos. Um momento de revelação importante, onde as peças no tabuleiro encontram o estímulo para a difícil tarefa, perde toda a carga emocional ao ser desviado para uma reação debochada da personagem de Knightley, como se estivéssemos assistindo uma produção voltada para o público infanto-juvenil. A opção pela narrativa não-linear, por incompetência do roteiro, ajuda a confundir e acaba atrapalhando ainda mais a conexão emocional com a trama e com os personagens. Aos quarenta minutos, a sensação de cansaço convida à sempre temida checagem das horas, quando, como em todo início de segundo ato, deveríamos já estar salivando pelo desenvolvimento dos conflitos apresentados. 

Quando acreditava que Moore já tinha riscado todos os clichês do manual, somos apresentados a uma desastrada cena em flashback, mostrando o jovem protagonista, obviamente compenetrado em um livro sobre códigos, enquanto descansa à sombra de uma árvore, recebendo de um amigo a clássica frase piegas de encorajamento: “Tenho a sensação de que você será muito bom nisso”. É como se o roteiro tivesse pressa de chegar ao terceiro ato, arrumando soluções rápidas e preguiçosas para todos os obstáculos que encontra. Ele usa até aquele artifício típico das séries americanas da década de oitenta, quando, no intuito de injetar algum senso de aventura, ainda que apenas evidencie o aspecto farsesco, ótimo em comédias, péssimo em dramas, eles colocam o protagonista para escalar um muro e entrar pela janela de uma pessoa durante a madrugada. Não importa que essa atitude desrespeite a construção do personagem, que soe absurdamente forçada. 

Caso levemos em consideração a riqueza da trama que aborda, faltou coragem à produção. O conceito de uma boa cinebiografia consiste em nos deixar, ao final da sessão, com um entendimento maior sobre a personalidade do objeto de análise, suas falhas e dilemas internos, não passar mais verniz ainda na imagem estereotipada dele. O Alan Turing que o filme apresenta, apesar dos esforços de Cumberbatch, fazendo o possível com os fracos diálogos que precisou memorizar, não passa de uma elegante caricatura. Saudade de quando o cinema fazia cinebiografias para adultos, como “Amadeus” e “Gandhi”. “O Jogo da Imitação”, caso fosse um aluno numa prova de matemática, passaria raspando.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

"Chegará o Dia" / "A Princesa de França"


Chegará o Dia (Un Giorno Devi Andare - 2013)
A primeira cena já expõe o leitmotiv: um bebê em uma ultrassonografia. Uma memória que ela resgata à luz da lua. A ausência dessa criança na vida de Augusta, a bela italiana Jasmine Trinca, provoca nela um adormecer de todos os seus sonhos profissionais. Não é coincidência que ela seja constantemente chamada de princesa por um dos nativos, logo após uma cena em que vemos sua mãe assistindo uma orquestra apresentando a “Valsa da Bela Adormecida”, de Tchaikovsky.

Ao rejeitar uma vida de luxo e encarar a simplicidade dos índios na Amazônia, ela coloca em prática uma lição que escuta no terceiro ato, sobre um cientista que disseca uma flor no intuito de descobrir sua origem, mas que nesse processo repetitivo e detalhista, ela acaba se perdendo. A jovem quer se perder, para obter um recomeço, isolando-se em uma ilha pessoal, buscando se amalgamar com os elementos da natureza, enquanto participa de uma missão religiosa. Os índios não entendem a necessidade de novos rituais diários que não fazem nenhum sentido, assim como custam a acreditar que o Deus dos brancos queira salvá-los de uma rotina que lhes é prazerosa. Como a protagonista afirma, num dos melhores momentos do filme: São almas livres e puras que sorriem de volta, sem interesse financeiro algum. Não existe necessidade para salvamento, ainda que os pastores gananciosos nas velhas televisões berrem a existência de demônios.

A crítica à imposição de valores é muito eficiente, mas infelizmente se perde, como quase tudo no filme, no meio do caminho. O diretor Giorgio Diritti abre várias possibilidades, o tráfico de bebês sendo o tema de maior potencial, mas parece não saber exatamente como finalizá-las, desistindo delas no terceiro ato. Ainda assim, o projeto ganha pontos com a maravilhosa fotografia de Roberto Cimatti, que me pareceu em alguns momentos, inspirada pela fagulha criativa do “príncipe da escuridão” Gordon Willis.


A Princesa de França (La Princesa de Francia - 2014)
Nesse terceiro projeto experimental e minimalista abordando a obra de Shakespeare, nesse caso “Trabalhos de Amores Perdidos”, o diretor argentino Matías Piñeiro volta a trabalhar com boa parte do elenco jovem dos anteriores, numa trama que envolve um jovem diretor de teatro que, após a morte do pai, decide resgatar seu passado ao convidar algumas mulheres importantes em sua vida para montar uma adaptação da peça para o rádio da internet. Inicialmente ficamos confusos tentando distinguir cada uma delas, discernindo as falas memorizadas da atriz em ação e o discurso natural, compreendendo qual a importância delas na vida dele.

O roteiro é composto basicamente de longos diálogos, defendidos sem muito sentimento, emoldurados por planos-sequência onde claustrofobicamente quase podemos sentir o hálito dos personagens, fazendo com que a curta duração, por volta dos setenta minutos, acabe parecendo uma eternidade. O que, nesse caso, não é exatamente um demérito, já que sua estrutura que alterna presente e passado, realidade e ficção, gravações e ensaios, transforma cada diálogo em uma peça dessa espécie de quebra-cabeça indie.

A atmosfera de cada cena é que move a trama, não o desenvolvimento dos personagens, que, ao rolar dos créditos finais, continuam uma incógnita. Então, mesmo que de forma sonolenta, somos desafiados a olhar tudo com mais atenção. O resultado dessa abordagem, fria e discreta em excesso, não deixa de ser curiosa, sobre a influência das linhas do bardo inglês na vida de uma geração que absorve e, mais que isso, reinventa seus trabalhos.

"Toda Terça-Feira" / "Ao Seu Lado"


Toda Terça-Feira (52 Tuesdays - 2013)
O conceito por trás do filme é melhor que o resultado final, tendo sido filmado apenas nas Terças-Feiras de um ano, com a temática sendo escolhida após essa decisão e os roteiros de cada dia de filmagem sendo elaborados na semana anterior. Essa experimentação é perceptível na forma desequilibrada que a trama se desenvolve, com lacunas de desenvolvimento narrativo nascendo de um interesse maior em causar choque e chamar atenção pela estética, mais do que pela substância.

A ideia de narrar os reencontros semanais de uma filha adolescente com sua mãe, que acaba de sofrer uma operação de mudança de sexo, tinha tudo para ser, no mínimo, interessante, mas a diretora australiana Sophie Hyde derrapa em alguns aspectos importantes nesse seu primeiro longa-metragem, como o contraste de qualidade entre o nível de atuação do restante do elenco e o dos protagonistas, Tilda Cobram-Hervey e, especialmente, Del Herbert-Jane, que é um transgênero real. Também é problemática a função do personagem do pai, vivido por Beau Travis Williams, no arrastado terceiro ato, potencializando ainda mais a pegada panfletária do projeto.

Mas o principal equívoco reside na repetição exagerada, praticamente didática, do leitmotiv que une mãe e filha na mesma rota de evolução existencial, batendo pesado na tecla de que ambas estão se tornando versões mais autênticas de si próprias. A sutileza, nesse caso, teria sido muito mais eficiente.


Ao Seu Lado (Next To Her - 2014)
O diretor israelense Asaf Korman, em seu primeiro longa-metragem, desenvolve com segurança os personagens desse intenso e sombrio drama claustrofóbico sobre uma mulher que cuida de sua irmã com problemas mentais, uma espetacular interpretação de Dana Ivgy, uma atriz que eu não conhecia, mas farei questão de assistir seus outros trabalhos. O roteiro, escrito em parceria com a esposa Livon Ben Shlush, que interpreta a protagonista, é inspirado na experiência da própria com sua irmã. Ao rejeitar a ideia de colocar a irmã em um asilo, ela acaba exercitando inconscientemente uma dominação física e mental, deixando a jovem presa sozinha em seu apartamento, enquanto está trabalhando.

Em alguns momentos, senti sutis referências no tom a “Gêmeos – Mórbida Semelhança”, de Cronenberg, e até ao clássico “O que Terá Acontecido a Baby Jane”, de Aldrich, enquanto vamos percebendo o desmoronamento psicológico da garota que vive apenas pela irmã mais nova, passando a sentir uma crescente necessidade de extravasar a angústia com o primeiro homem que demonstra algum interesse, o professor de educação física Zohar, que inicialmente parece trazer equilíbrio na relação das duas, mas ele se mostra muito mais permissivo e carinhoso ao cuidar da garota, o que faz destravar em sua namorada o “gatilho” emocional de uma mente perturbada.

O diretor trabalha visualmente essa gradual evolução obsessiva das duas, mostrando elas compartilhando escovas de dente ou simplesmente juntas numa banheira, com as pernas cruzadas, como se fossem uma única pessoa.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Chumbo Quente - "Entardecer Sangrento"

Link para os textos do especial:


Entardecer Sangrento (Decision at Sundown – 1957)
Randolph Scott era um ator bastante limitado, porém tinha carisma. Dentre seus projetos como protagonista no gênero, os cinéfilos normalmente celebram “O Resgate do Bandoleiro” (The Tall T – 1957), “Sete Homens sem Destino” (Seven Men from Now – 1956), ou “Terra do Inferno” (Man in the Saddle – 1951), aqueles mais hardcore vão se lembrar do interessante uso pioneiro do 3D em “O Pistoleiro” (The Stranger Wore a Gun – 1953). Filmes de baixo orçamento, uma espécie de “lado B” do faroeste americano.

Gosto demais da parceria dele com o diretor Budd Boetticher, especialmente de “Entardecer Sangrento”, que entrega um roteiro mais sólido, escrito por Charles Lang Jr., com personagens coadjuvantes verdadeiramente tridimensionais e interessantes, raridade nas obras de Scott, além de inserir mais nuances psicológicas no próprio protagonista, um homem rancoroso com atitudes mais sombrias, ousando até mostrar ele bêbado e humilhado no desfecho. A temática, como em todos da parceria com o diretor, gira em torno de uma vingança contra o assassino da mulher amada. Pode não ser tão divertido quanto “Sete Homens sem Destino”, mas é menos convencional, arrisca bem mais, com direito a um ótimo plot twist. Outro aspecto que soma pontos é inserir o herói em desvantagem, uma boa parte do tempo, dentro de um celeiro. O confinamento de personagens, na maior parte das vezes, funciona como estímulo criativo. Vale salientar também a trilha sonora do subestimado Heinz Roemheld, responsável também por “A Dama de Shanghai”, de Orson Welles.

Um dos meus momentos favoritos dura poucos segundos, ocorre na cerimônia de casamento, no primeiro ato, quando o padre solenemente recrimina o personagem de Scott por ser o único a carregar um revólver na igreja. É hilária a forma como ele sutilmente sorri e agradece, como se fosse um elogio, pouco antes de pagar antecipado o sacerdote pela futura cerimônia de funeral. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Rebobinando o VHS - "As Tartarugas Ninjas" (1990)

Link para os textos do especial:


Quem diria que Bobby Herbeck, responsável pelo texto de alguns episódios da série “Super Vicky”, aquela androide com aparência de menina, criaria a história dessa boa adaptação dos quadrinhos violentos criados por Kevin Eastman e Peter Laird?


As Tartarugas Ninjas (Teenage Mutant Ninja Turtles – 1990)
Eu disse “boa”? Com a recente bomba produzida pelo veterano de bombas: Michael Bay, eu posso afirmar com segurança que o original foi alçado à categoria de “ótima” adaptação. Como esquecer a beleza da April O’Neill vivida por Judith Hoag? Fiquei triste quando trocaram a atriz no segundo filme. O roteiro tem vários furos e situações bizarras, porém transporta com fidelidade o clima sombrio dos quadrinhos. Algo que se perdeu nas duas inferiores continuações.

E quem viveu a época, quem era criança no início da década de noventa, sabe o impacto desses personagens na cultura pop. Eu era viciado em jogar no Phantom System o clássico da Nintendo, depois cansei de zerar o “Turtles in Time”, no Super Nintendo. Eu tinha os bonecos dos personagens, tive lancheira e camiseta, tive até uma tartaruga chamada Donatello. Mas, por incrível que pareça, odiei esse filme na época. Eu ficava deprimido com a subtrama do Rafael se sentindo rejeitado e, especialmente, aquela do mestre Splinter acorrentado no QG dos vilões. A fita chegava nessa parte, eu deixava o filme rolando e ia passar um tempo na sala, somente voltando quando já estava quase no final. E, cá com meus botões, penso: não teria sido mais fácil apertar o FF? Coisas de criança, que voltaram em minha mente enquanto revia a fita para esse texto. 

Produzida pela Golden Harvest, clássico lar de Bruce Lee e Jackie Chan, a direção ficou a cargo de Steve Barron, especialista em clipes musicais, responsável pelo icônico “Billie Jean”, de Michael Jackson, que anos depois faria outra pérola que será abordada nesse especial: “Cônicos e Cômicos”. O trabalho impecável da equipe de Jim Henson, eficiente até hoje, mostra que a computação gráfica moderna ainda não conseguiu sequer igualar a competência de um bom roteiro, com personagens interessantes. O efeito é ajudado pela iluminação realista, que deixa tudo com um aspecto de sujo, diferente dos tons claros e coloridos das continuações. As lutas, elemento essencial na obra, também são coreografadas de forma brutal, deixando claro que os heróis podem realmente sair feridos. O vilão Destruidor, que promete uma intensa batalha final, que o roteiro não cumpre, acaba triturado num compactador de lixo. Essa atitude acabou incomodando os patrocinadores, já que o resultado estava mais próximo do primeiro “Batman” de Tim Burton, que do leve desenho animado que passava nas manhãs da Rede Globo. 

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Ingmar Bergman - "A Hora do Lobo"

Links para textos sobre os filmes de Ingmar Bergman:


A Hora do Lobo (Vargtimmen – 1968)
Um pintor e sua esposa vão morar em uma ilha bastante afastada da sociedade. Lá, em meio a intensos conflitos psicológicos, o casal conhece um misterioso grupo de pessoas que passa a trazer angústias ainda maiores às suas vidas, levando-os a relembrar fatos passados e questionar a própria lucidez.


A hora do lobo, o momento na madrugada em que muitas almas encontram o repouso final e outras despertam, tormento dos insones e daqueles cuja consciência pesa intranquila. Pessoas como Johan Borg, vivido por Max von Sydow, um pintor que busca inspiração para sua Arte, porém descobre-se perseguido por erros do passado. Sua esposa Alma, vivida por Liv Ullmann, guarda em seu ventre um ser puro, ainda intocado pela maldade, livre. O casal vive distante da sociedade, confinados em suas próprias almas. Acredito que Stephen King tenha utilizado esse filme como referência para seu livro: “O Iluminado”, pois tanto Borg quanto Torrance são artistas em crise, que se isolam e enfrentam fantasmas que os atormentam e os levam gradativamente à loucura.

Bergman realiza essencialmente uma obra de terror, que possibilita diversas interpretações. Você pode vê-la como uma alegoria criativa sobre os efeitos da culpa em um ser humano, enxergando os vizinhos do castelo como projeções de uma mente intensamente perturbada, ou como um elegante filme sobre vampiros. Georg Rydeberg é quase um sósia de Bela Lugosi, o que não é mera coincidência. O diretor primava por deixar implícito o distúrbio mental de um personagem, porém, em “A Hora do Lobo”, ele faz questão de traduzir esse distúrbio em imagens perturbadoras, como se, pela primeira vez, com o auxílio de truques de câmera e maquiagem, estivesse decidido a fazer o público sentir o mesmo que o personagem, o objetivo essencial de todos os bons filmes de terror. Como em seu irmão cinematográfico: “Persona”, a trama incita o questionamento sobre se aquela realidade vivida pelos personagens, até mesmo o espaço em que eles habitam, sendo, por vezes, explicitamente filmado de forma surrealista, existe ou é fruto do distúrbio. 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Ninguém Acreditava em Dustin Hoffman


Infelizmente vivemos um péssimo período na Sétima Arte, com ídolos fabricados em barro, rostos bonitos facilmente substituíveis e pouquíssimo talento genuíno. Mas houve uma época em Hollywood onde atores como Dustin Hoffman conseguiam alcançar a notoriedade merecida. Ele não era um símbolo de beleza, longe disso, chegou a ter dificuldade em arrumar seus primeiros trabalhos na área. Começou atuando com o amigo Gene Hackman, que também estava dando seus primeiros passos. Ambos eram fãs de Marlon Brando e queriam ser como ele. Quando souberam que o ídolo gostava de tocar música em alguns clubes noturnos, começaram a treinar bateria no topo do edifício onde moravam.

Hoffman teve um início de carreira parecido com o de seu personagem na comédia “Tootsie”. Para sobreviver, enquanto não era aceito em variados testes de elenco, trabalhou em restaurantes, foi digitador das Páginas Amarelas e até mesmo provador de perfumes profissional para uma empresa do ramo. Durante muito tempo deu aulas de teatro informais em um colégio comunitário, fato que o diretor Sidney Pollack achou interessante incluir no roteiro da já citada comédia. Quando vemos o personagem dele ensinando aqueles jovens de maneira bem descontraída, podemos sentir o quão confortável ele se encontra naquela situação. Após alguns comerciais de TV e participações em peças Off-Broadway, em meados da década de sessenta ele foi coadjuvante em algumas séries, o que acabou levando-o a Hollywood. Mas não foi um caminho fácil.

Em “A Primeira Noite de um Homem” (The Graduate – 1967), o diretor Mike Nichols precisava escalar seu personagem principal, um jovem que havia saído da faculdade e acabava se relacionando com uma bela garota e a mãe dela. Ele pensou em Robert Redford, que visualmente parecia-se bastante com a descrição do livro original, porém logo viu que sua imagem não combinava com a de um perdedor nato. Após procurar por meses, acabou encontrando Dustin em um papel coadjuvante numa peça e viu nele os requisitos necessários para o personagem. Chamou-o para um café e se surpreendeu com a atitude defensiva do jovem. Ele estava na realidade, completamente apavorado. Ele dizia: “isso não é para mim”. O diretor insistiu e o jovem concordou em gravar um teste.  Hoffman estava nervoso e cansado, pois se apresentava oito vezes por semana em sua peça. Além de ter problema em memorizar rapidamente, sentia-se inadequado. Tudo piorou quando ele foi apresentado a Katharine Ross, que viveria sua namorada. O ator disse em uma entrevista, anos mais tarde: “a ideia do diretor de me colocar namorando uma mulher tão linda como ela, iria acabar virando uma grande piada para o público. Uma garota dessas nunca olharia para um cara como eu”.

Enquanto se preparava na cadeira do maquiador para gravar o teste de cena, escutava angustiado o diretor questionando o maquiador a respeito de seu nariz. Ele sempre se recorda dessa experiência como um longo pesadelo. Quando foi iniciada a gravação, houve uma sucessão de gafes. O jovem e inseguro ator errava repetidamente e saiu tendo a certeza que não tinha chance de ficar com o papel. Porém, no dia seguinte, ao encontrar-se com o diretor, surpreso ouviu que havia conseguido o trabalho. Nas palavras de Nichols: “Hoffman aparentou na cena exatamente o tipo de pânico confuso que o personagem deveria transparecer”. Para atrapalhar mais ainda o psicológico do ator, durante as filmagens, uma equipe da revista Time foi visitar as locações e estampou em suas páginas: “se o rosto de Dustin Hoffman fosse sua fortuna, ele estaria condenado a uma vida de pobreza”. Isso sem mencionar os próprios produtores que apareciam questionando o cineasta, afirmando que o filme tinha todo o potencial para ser maravilhoso, caso ele tivesse escolhido melhor o protagonista. A decisão do diretor de acreditar no talento do jovem foi um salto de fé que redirecionou totalmente a vida e a carreira do ator.  Ele atuou tenso durante o filme inteiro, acreditando que poderia ser substituído a qualquer momento. Esta sensação de desconforto fica aparente e ajudou na construção de clima da obra, que acabou se tornando um enorme sucesso de crítica e público. Nichols ganhou um Oscar por sua direção e Hoffman foi indicado em sua categoria, além de ganhar um BAFTA e um Globo de Ouro, como revelação do ano.

Qual seria o próximo passo de um jovem que acabou de ganhar reconhecimento mundial no mundo do cinema? Nos dias de hoje, tentaria entrar numa franquia bilionária, aproveitando-se da recém-conquistada fama, ou, no mínimo, protagonizaria algum projeto ambicioso. Ele escolheu a via inversa e voltou a ser coadjuvante em “Perdidos na Noite” (Midnight Cowboy – 1969), ao lado do galã Jon Voight. Seu personagem era um vigarista simplório, manco e tuberculoso. Resultado: recebeu a segunda indicação ao Oscar, além de ter contribuído para que o filme recebesse o prêmio principal. O pobre coitado “Ratso” Rizzo foi eleito como uma das cem melhores interpretações de todos os tempos, conquistando um honrado sétimo lugar. Em 1971, trabalhou com o diretor Sam Peckinpah em “Sob o Domínio do Medo” (Straw Dogs), onde teve a chance de exorcizar sua insegurança e timidez ao interpretar um personagem muito parecido com ele próprio, mas que se vê em uma situação onde não existe saída fácil. Quando a honra de sua esposa é colocada em jogo, precisa liberar seu lado mais animalesco e violento, indo para o ataque contra um grupo de arruaceiros e estupradores que pretendem invadir sua casa. O inteligente diretor chegou a utilizar esse fator como ferramenta de divulgação, quando no trailer o narrador salienta: “Peckinpah irá liberar a fúria de Dustin Hoffman”. Claro que todo mundo queria ver isso nas telas, o filme foi um grande sucesso.

O jovem já havia se tornado um nome reconhecido mundialmente, porém se mantinha devotado ao seu conjunto de obra, recusando participações em filmes que não o instigassem, mesmo que nesses projetos estivesse pautado para ser o protagonista herói e galante. Esta não era a sua intenção, preferindo dividir o espaço no pôster com Steve McQueen, que tinha fama de arrogante, em “Papillon” (1973). A amizade entre os dois transcendeu as telas e era consequência de um mútuo respeito e admiração. Dois anos após o famoso caso Watergate chocar a América, Hoffman se juntou a Robert Redford no drama político: “Todos os Homens do Presidente” (All the President´s Men – 1976), vivendo a dupla de jornalistas que ficou famosa por tornar público todo aquele esquema vergonhoso de corrupção que fez com que Richard Nixon decidisse deixar a Casa Branca. Em 1979, ganhou seu primeiro Oscar pelo ótimo drama: “Kramer Vs. Kramer”, que também levou o prêmio principal na noite, além de uma estatueta para Meryl Streep e para o diretor Robert Benton. Na vida real estava passando por um problema parecido com o de seu personagem, sofrendo um processo longo e extenuante de separação conjugal. Ao utilizar seu ódio nas cenas, conseguia surpreender até mesmo seus colegas de elenco. Quando assistimos, fica evidente que, em muitos momentos, é o próprio Hoffman que está ali, falando na cara de Streep tudo o que gostaria de estar falando para sua ex-mulher em sua vida real.

Na década de oitenta suas escolhas foram muito acertadas, como na popular comédia: “Tootsie” (1982), que o próprio considera a melhor sessão de análise que já fez. Para o espanto do diretor Sidney Pollack, ele se entregou por completo ao personagem, a ponto de sofrer ao constatar que travestido de mulher, não era exatamente um símbolo de beleza. Em entrevista, onde relembra o filme e todo o trabalho de preparação para viver uma mulher, chega a se emocionar quando lembra que foi, vestido como a personagem, dar um passeio com outras meninas e acabou descobrindo como os homens são cruéis. As mais bonitas eram tratadas como rainhas, enquanto ele não recebeu a mais ínfima atenção. Ele afirma que a partir daquele momento se tornou um homem melhor. Com “Rain Man” (1988), recebeu seu segundo Oscar ao interpretar mais um personagem difícil, um autista que acaba dando umas lições de humanidade ao seu irmão arrogante, vivido por Tom Cruise. 

Dustin Hoffman continua na ativa em produções dos mais variados gêneros e conseguiu firmar seu nome no imaginário popular coletivo, como sinônimo de qualidade. Raros são os casos onde uma estrela desse porte cruza a extensa miríade de estrelas menores, conseguindo se sobressair com tanta competência neste ingrato firmamento artístico. Hoje, quis o destino que ele ocupasse um lugar de honra ao lado de seu ídolo: Marlon Brando, como os únicos atores na história da Sétima Arte a terem recebido duas estatuetas por papéis principais em dois filmes que venceram na categoria principal do Oscar. Brando por “Sindicato de Ladrões” e “O Poderoso Chefão”, e Hoffman por “Kramer Vs. Kramer” e “Rain Man”. Para quem sonhava em ser como Brando, batucando no topo de um edifício em meio a sonhos que considerava impossíveis…

Guilty Pleasures - "Jornada nas Estrelas 5"

Link para os textos do especial:


Jornada nas Estrelas 5 – A Última Fronteira (Star Trek 5 – The Final Frontier – 1989)
Como fã da formação clássica de “Star Trek”, fica difícil incluir um de seus projetos para cinema nesse especial. A despeito de todas as boas intenções de William Shatner, essa aventura com sérios problemas orçamentários não pode ser equiparada aos outros filmes, podendo ser vista como, no máximo, um divertimento no nível dos bons episódios da terceira temporada da série televisiva.

Leonard Nimoy, o bom e velho Spock, já tinha conquistado a crítica e o público como diretor nos dois anteriores, então Shatner decidiu que era hora dele deixar um pouco a poltrona de capitão e comandar verdadeiramente o projeto, como diretor e idealizador da rocambolesca trama. O desastre foi tão grande, que os produtores tiveram que convocar Nick Meyer, diretor de “A Ira de Kahn”, para dar uma despedida digna à tripulação no excelente “A Terra Desconhecida”. Existem elementos que funcionam, como a linda trilha sonora de Jerry Goldsmith, retornando à franquia após o primeiro, e o foco dado no roteiro ao relacionamento do trio principal, Kirk/Spock/McCoy, aprofundando de forma única os seus medos e falhas, a camaradagem que era a alma da série, simbolizada nas simpáticas cenas deles acampando. O leitmotiv é bonito, a ideia de que nossos traumas não devem ser esquecidos, já que ajudam a forjar nossa personalidade, fortalecem a coragem. A problemática execução, com direito a uma tola subtrama onde acompanhamos Sybok, vivido por Laurence Luckinbill, o sorridente meio-irmão de Spock, em uma jornada até um planeta distante habitado por Deus, foi prejudicada ainda mais pelos cortes no orçamento, que resultaram em efeitos especiais inferiores aos apresentados no filme original, lançado dez anos antes.

A inspiração do diretor veio das transmissões dos televangelistas, fenômeno que se espalhava pelos Estados Unidos, estelionatários que faziam fortuna com a ignorância do povo, prometendo a abertura do reino dos céus, tão logo os fiéis abrissem suas carteiras. Como seria ter um habilidoso televangelista na tripulação da nave Enterprise, operando uma lavagem cerebral nos clássicos personagens, colocando-os em conflito? Um pretexto para discutir a clássica questão: racionalidade/ciência Vs. religiosidade. É uma ideia fascinante que poderia ter resultado em algo intelectualmente instigante. A pergunta de Kirk: “Deus precisa de uma espaçonave?” representa o pensamento racional de qualquer pessoa sensata. Deus sendo tão poderoso, ele precisaria falar através de alguém, precisaria da senha do cartão de crédito de um fiel? A resposta que ele encontra ao final, um dos pontos altos da obra, a percepção de que Deus está dentro de todos, que controlamos nosso próprio destino. Um pensamento corajoso para um projeto mainstream de apelo universal.

A montanha deve ser escalada, como Kirk afirma, simplesmente por ela existir, uma forma de retratar a angústia de envelhecer, o desejo de superar as limitações físicas. O problema é que essas cenas foram pensadas como alívios cômicos. Quando comparados ao timing perfeito de humor do filme anterior, esses momentos soam bobinhos e forçados. Mas, por incrível que pareça, todas as falhas não impedem que eu assista ao filme com frequência.