sexta-feira, 30 de março de 2018

"Tem na Netflix?"


A pergunta aparece com frequência em comentários de postagens sobre cinema, mas enxergo nela mais do que apenas o elemento precioso da curiosidade.

O indivíduo verdadeiramente interessado busca estar minimamente antenado, costuma alimentar o hábito da leitura de críticas, gosta de conversar sobre o assunto, por conseguinte, sabe quando o texto é sobre um projeto que está sendo lançado nas salas, ou aborda uma produção da década de 90 que já passou na televisão umas mil vezes. Numa comparação simples, o torcedor que é apaixonado por futebol sabe a escalação atual de seu time do coração.

Eu vivi o período das trevas, sem internet, caçando filmes em locadoras de vídeo, sonhando com imagens de obras retratadas em revistas de cinema, aguardando meses para conseguir um título raro em VHS, arqueologicamente procurando em sebos e bibliotecas as informações sobre os artistas e suas filmografias.

Aprofundando a reflexão, o ato de perguntar publicamente algo cuja resposta pode ser encontrada em questão de segundos pela própria pessoa em alguns toques na ferramenta de "Busca" da plataforma, corrobora o argumento da preguiça intelectual, logo, a tentativa de disfarçar o desinteresse galopante posando de cinéfilo devotado nas redes sociais. Como sempre reforço, a valorização do "parecer ser", ao invés do mais trabalhoso "ser". E, como crítico, creio que há conexão entre este comportamento virtual e, por exemplo, a constatação da deselegância e do desrespeito do público brasileiro na experiência coletiva da sala de cinema.

Enquanto a cultura for consumida cegamente apenas como fast-food, tapa-buraco, tolo passatempo, nós iremos dividir sessões com toques ininterruptos de celulares, conversas animadas sobre parentes exóticos de estranhos e uma quantidade absurda de lixo acumulado nas poltronas, em suma, variações terríveis da ausência de educação e empatia.

"Jogador Número 1", de Steven Spielberg


Jogador Número 1 (Ready Player One - 2018)
O livro original escrito por Ernest Cline, que também assina o roteiro, junto com Zak Penn, é puramente divertido, conectado com os anseios da juventude geek, mas possui muitos problemas, entretenimento leve que é esquecido pouco tempo depois de finalizada a última página.

A história ambientada em 2045 se passa parte em Columbus, Ohio, e parte no mundo virtual do jogo OASIS. O jovem Wade (Tye Sheridan), órfão e sonhador, dedica sua vida a procurar o easter egg criado pelo idealizador deste mundo virtual, James (Mark Rylance em atuação exagerada), que irá conceder o controle do jogo, além de uma considerável fortuna. Ele vislumbra na realidade fantástica a satisfação imediatista que o cotidiano nunca seria capaz de entregar. A crítica é atual, a sociedade vive mentiras confortáveis em busca de um prazer ilusório, o povo opta conscientemente pelo constante estado de anestesia geral.

O primeiro desafio do diretor Steven Spielberg em “Jogador número 1” (Ready player 1) foi se reencontrar com seu senso criativo despretensioso, após vários projetos narrativamente densos e, na maior parte das vezes, frios. A experiência recente com a animação “O bom gigante amigo” foi frustrante e a última aventura de Indiana Jones, lançada dez anos atrás, mostrou que a mágica se perdeu.

O segundo desafio foi evitar que a trama intensamente dependente da nostalgia de quem viveu a cultura pop das décadas de oitenta e noventa se tornasse enfadonha para o público geral. Se você não identifica as várias referências presentes nas cenas, ou constata que estas não justificam o seu investimento emocional, o único elemento que resta é o inegável espetáculo técnico, o show de luzes que não falha em entreter.

O longa apresenta obstáculos. Alguns clichês desgastados, como a rasa e quase sempre desnecessária subtrama romântica que apenas prejudica o ritmo, os diálogos absurdamente expositivos, além do fraco desenvolvimento dos arcos dos personagens, reduzem o escopo do filme à simples passatempo, facilmente substituível por qualquer produção de super-heróis, robôs e monstros que a indústria despeja semanalmente nas salas.

Apesar destes problemas, vale destacar que é surpreendente perceber que o mestre Spielberg retomou com extrema competência a energia de seus primeiros projetos, aquele brilho no olhar do garoto que tomou o mundo de assalto com “Tubarão”.

* Crítica publicada no Caderno B do "Jornal do Brasil" (29/03/18).

terça-feira, 27 de março de 2018

Cine Bueller - "Felizes Para Sempre", de Francesco Rosi


Felizes Para Sempre (C'era Una Volta - 1967)
Este conto de fadas adulto contrasta bastante com o tom do restante da obra do diretor Francesco Rosi, respeitado à época como uma das vozes mais importantes do cinema realista e pessimista italiano, por seu trabalho sociopolítico relevante em filmes como "As Mãos Sobre a Cidade" e "O Bandido Giuliano". Anos depois ele entregaria pérolas como "Cristo Parou em Éboli" e "A Vontade de Um General". Em sua essência, "Felizes Para Sempre" é um projeto do produtor Carlo Ponti feito sob medida para divulgar no mercado norte-americano a beleza estonteante de sua esposa, Sophia Loren, auxiliada em cena pelo carisma de Omar Sharif, logo depois de "Dr. Jivago".

Analisado em retrospecto, sem o peso da expectativa, o roteiro escrito pelo diretor com a ajuda de Tonino Guerra, Raffaele La Capria e Giuseppe Patroni Griffi, segue charmoso, onírico, leve, coerente com a proposta temática. Já começa com uma sequência musical com fumaça colorida que parece uma viagem lisérgica, depois estabelece rapidamente a metáfora do relacionamento do casal, com o príncipe tendo dificuldade em domar um cavalo selvagem, até que ocorre uma guinada surreal encantadora que conduz o espectador a uma tomada aérea do santo voador José de Cupertino, vivido pelo respeitado ator inglês Leslie French.

Vale destacar que um dos méritos mais valiosos da trama é que ela se leva a sério a todo momento, não é um pastiche do gênero, algo similar ao que Jacques Demy faria tempos depois em "Pele de Asno", que costuma ser mais lembrado e que não envelheceu tão bem quanto a fantasia de Rosi. Ver o filme nesta versão remasterizada lançada pela distribuidora "Classicline" me traz lembranças gostosas da infância, quando ele era transmitido na "Sessão da Tarde".  


* O filme está sendo lançado em DVD, com opção de dublagem em português, pela distribuidora "Classicline".

segunda-feira, 26 de março de 2018

Breve reflexão e um questionamento sobre a polêmica tola envolvendo a série "O Mecanismo"



Qualquer pessoa tem o direito inalienável de ser imbecil. Boicotar uma obra de ficção livremente inspirada em um caso político, promover o cancelamento das assinaturas, espernear como crianças mimadas, tudo isto faz parte do conceito de liberdade de expressão. Eu sou totalmente CONTRA qualquer tentativa de censurar arte. Considero fundamental que existam projetos que defendam todo tipo de ideologia. Aproveitando o ensejo, tendo visto os episódios e constatado a alta qualidade da produção (roteiro, atuação, fotografia, direção), faço questão de perguntar para aqueles que estão disseminando o ódio neste momento:

Você, crítico medíocre que não aprendeu ainda a sua função, incapaz de analisar uma obra sem contaminá-la com elementos externos e irrelevantes na equação, conseguiria enxergar os méritos de "O Mecanismo", caso sua trama abordasse o mesmo caso, só que pelo viés da demonização da Lava Jato? Tome vergonha na cara e se profissionalize. Você precisa ser imparcial, para que não cometa o equívoco grosseiro de ser injusto com qualquer obra. Respeite seu público e as equipes envolvidas nos filmes, aprenda que o crítico de cinema tem que avaliar com seriedade "O Mecanismo" e "Lula, o Filho do Brasil", "Aquarius" e "Polícia Federal - A Lei é Para Todos". Sem preconceito, sem infantilidade. Pare de passar vergonha!

sexta-feira, 23 de março de 2018

"A Melhor Escolha", de Richard Linklater


A Melhor Escolha (Last Flag Flying - 2017)
Neste novo trabalho do diretor Richard Linklater, de “Boyhood” e “Antes do Amanhecer”, mestre da simplicidade naturalista nos diálogos, ele retorna com a leveza habitual ao tema do comportamento humano, respeitando como sempre a inteligência do público.

Na trama, adaptada do livro homônimo de Darryl Ponicsan, que continua a história já levada para o cinema em “A última missão”, dirigida por Hal Ashby, trinta anos depois de servirem juntos na guerra do Vietnã, o ex-marinheiro Larry (Steve Carell, fora de sua zona de conforto cômica), consumido pelo sentimento de culpa, reúne seus antigos amigos, o irreverente Sal (Bryan Cranston) e o reverendo Richard (Laurence Fishburne), para enterrar o seu filho, um jovem que morreu durante a Guerra no Iraque.

A jornada intimista do trio conduz a reflexões preciosas sobre os efeitos do conflito em suas psiques, a fragilidade alimentada por suas escolhas e renúncias ao longo da vida, com Richard representando a muleta da fé ponderada, enquanto Sal, anestesiado em sua rotina como dono de bar, trabalhado no roteiro também como alívio cômico, prefere o caminho imediatista do instinto. Os três encontraram, ao longo do caminho, formas distintas de lidar com seus traumas.

Quando os amigos se permitem resgatar lembranças divertidas da ingenuidade de outrora, como a noite em que Larry perdeu a virgindade, o filme encontra o tom perfeito de saudosismo e camaradagem, favorecido pela química certeira entre os atores, com destaque para a extrema competência de Cranston em operar as várias nuances de um personagem complexo que vive o processo do luto.

A filosofia nunca pretensiosa no texto de Linklater vai direto na ferida exposta, com utilização sensível do silêncio como forma de potencializar a dor nos rostos em planos fechados. A mensagem crítica contra os alicerces mentirosos do belicismo é poderosa, especialmente considerando o contexto político atual norte-americano.

* Crítica publicada no "Jornal do Brasil" (22/03/18).

"Por Trás dos Seus Olhos", de Marc Forster


Por Trás dos Seus Olhos (All I See Is You - 2016)
O diretor alemão Marc Forster, que conquistou o mundo pela sensibilidade apurada de filmes como “Em busca da terra do nunca”, “Mais estranho que a ficção” e “O caçador de pipas”, mas acabou se perdendo em produções caras e tolas como “Redenção” e “Guerra mundial Z”, retorna ao seu estilo mais elegante com este drama psicológico.

Blake Lively, em ótimo momento, vive Gina, que perde tragicamente a visão na infância e a recupera na vida adulta, após uma cirurgia. A redescoberta sensorial do mundo impacta o dia a dia dela e de seu marido James (Jason Clarke), o relacionamento sem o elemento da dependência, intensificada na mudança profissional do casal para a Tailândia, sofre um abalo considerável. Ela, pela primeira vez, sente o desejo de ser admirada nas ruas, a beleza, conceito que desconhecia, passa a ser tentadora fonte de exploração existencial. Ele, amedrontado, inseguro, compreende que não é mais fundamental naquela equação.

A forma como o roteiro trabalha esteticamente a cegueira e, por conseguinte, a sensação de isolamento da jovem, é criativamente instigante, conduzindo o espectador à dedução de imagens através de distorções visuais, sombras, borrões, tornando-o cúmplice da protagonista. O grande mérito é fazer com que o público sinta o desespero que pode ser causado pelas ações mais simples do cotidiano, como o acelerar de um carro na estrada. 

Na cena mais rica em simbologia, Gina subverte sua condição e propõe sensualmente vendar James na cama, atitude que ele recebe com excessivo desconforto. É a mulher reivindicando finalmente o controle de seu corpo na sociedade machista.

* Crítica publicada no "Jornal do Brasil" (22/03/18).

quarta-feira, 21 de março de 2018

"Le Gendarme de Saint-Tropez" e "Le Gendarme se Marie", de Jean Girault


Biquinis de Saint-Tropez (Le Gendarme de Saint-Tropez – 1964)
O Gendarme se Casa (Le Gendarme se Marie – 1968)
"Um agente da ordem sempre é impopular". A frase dita com austeridade pelo policial Cruchot, vivido por Louis de Funès, no primeiro filme da franquia, sintetiza sua hilária devoção ao trabalho. Quando é mostrado o sonho de seus atrapalhados colegas em um momento de lazer, ele é o único que não busca os prazeres da carne, apenas a realização heroica de sua função na sociedade. O ator francês que encantava o público com suas caras e bocas é mais conhecido no Brasil por "As Loucas Aventuras do Rabbi Jacob", mas considero que sua contribuição mais relevante esteja nos seis projetos do Gendarme (policial), especialmente no primeiro e no terceiro, abordados neste texto, enriquecidos pela química matadora do protagonista com seu superior em comando, Gerber, vivido pelo impecável Michel Galabru, que anos depois defenderia o papel do político ultraconservador de "A Gaiola das Loucas".

"Biquinis de Saint-Tropez" é irregular, mas tem sequências inesquecíveis, como a frenética transição do preto e branco para o colorido no início, um conturbado passeio de carro conduzido por uma freira e a odisseia dos policiais para prender um grupo de nudistas na praia. Após várias investidas desastrosas, prejudicados por um vigia sentado no galho de uma árvore, os oficiais recebem uma aula embasbacante de Cruchot, que traça a estratégia mais estúpida, algo que poderia muito bem ter saído da mente do Inspetor Clouseau, de Peter Sellers: Treinar os homens sem uniformes, para que se aproximem pelados do local. Sem levantar suspeitas, eles lutam contra o tempo enquanto vestem seus trajes, abordam os meliantes nudistas e, num toque genial do roteiro, pedem seus documentos. "O Gendarme se Casa" é muito superior em todos os sentidos, favorecido pela reviravolta que faz com que Cruchot tome o comando da tropa e passe a humilhar Gerber, provocando situações verdadeiramente engraçadas. Ao atuar à paisana em uma missão de controle de velocidade nas estradas, o policial conhece uma bela viúva de coronel, vivida por Claude Gensac, que causa eletricidade estática com seu charme, conquistando o coração de quem, até aquele minuto, não conseguia pensar em qualquer coisa que não fosse seu trabalho.

Caso aprecie o trabalho de Funès nestes dois filmes, eu recomendo que veja também "A Grande Escapada" (La Grande Vadrouille, de 1966), obra-prima cômica dirigida por Gérard Oury, em que ele contracena com outro grande comediante francês, praticamente esquecido hoje, Bourvil. 

terça-feira, 20 de março de 2018

"Arquivo X - O Filme", de Rob Bowman


Arquivo X - O Filme (The X-Files - 1998)
Quem viveu a época do auge da criação de Chris Carter sente um arrepio ao escutar o clássico tema minimalista composto por Mark Snow, "Arquivo X" foi um fenômeno televisivo que pais e filhos admiravam na mesma intensidade, vale destacar, exibida nas noites de sexta-feira pela Rede Record, talvez o único acerto da emissora após ser comprada pela corja de estelionatários neopentecostais. Eu acompanhava com brilho nos olhos, não deixava de adquirir mensalmente a saudosa revista "Sci-Fi News", praticamente dedicada exclusivamente às aventuras de Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson).

O projeto cinematográfico que servia primordialmente como uma ponte elegante entre as temporadas cinco e seis, mas que visava atrair também aqueles que sequer acompanhavam a série, continua surpreendentemente eficiente hoje, o filme envelheceu muito melhor que os episódios mais celebrados pelos fãs. O roteiro, escrito em apenas dez dias, bebendo diretamente na fonte dos filmes "Uma Sepultura para a Eternidade" e "Quatermass 2", do estúdio Hammer, entrega dose generosa de suspense ao captar a essência conspiratória sci-fi em uma trama aparentemente simples envolvendo alienígenas e o governo norte-americano. Aproveitando o orçamento maior, o primeiro ato já marca território com os dois pés na porta ao mostrar o atentado terrorista em um prédio federal, evento planejado pelo próprio governo, na tentativa de queimar arquivo, abafando um caso de vírus alienígena que volta à superfície após milhares de anos. Apenas Kurtzweil (Martin Landau, sempre competente), médico que sabe tudo sobre o esquema, tenta alertar a dupla de agentes, mas é vítima de uma campanha que visa desacreditar seu nome perante a opinião pública.

Vale salientar que Carter evitou a tentação de entregar respostas demais, ou avançar narrativamente com sequências genéricas de ação, algo que poderia ter agradado o grande público. Ele preferiu ser fiel ao espírito da série, adicionando camadas de enigma a cada passo da investigação, reforçadas pela atmosfera perfeita de inquietação. Há perigo em cada decisão tomada pelos personagens, o maior mal pode estar escondido no lugar aparentemente mais tranquilo. O filme inteligentemente compreende que o aspecto mais interessante de saber que "a verdade está lá fora" reside na busca, na jornada, nas perguntas formuladas no caminho.

sexta-feira, 16 de março de 2018

"Amante por Um Dia", de Philippe Garrel


Amante por Um Dia (L'amant d'un Jour - 2017)
Consciente de que o coração é um músculo elástico, o diretor francês aposta na simplicidade, despindo toda intelectualidade do discurso. 

Na trama de “Amante por um dia” (L’Amant D’un Jour), a jovem Jeanne (Esther Garrel, filha do diretor) retorna impulsivamente ao apartamento do pai, Gilles (Eric Caravaca), professor de filosofia, após terminar seu longo relacionamento com o namorado Matéo (Paul Toucang), apenas para descobrir que sua figura paterna está tendo um caso com Ariane (Louise Chevillotte), uma aluna de sua idade. 

O choque inicial incita rivalidade pela atenção do adulto, mas acaba sendo substituído naturalmente por um forte senso de cumplicidade entre as meninas, algo que é trabalhado no roteiro de Jean-Claude Carrière, Caroline Deruas-Garrel, Philippe Garrel e Arlette Langmann com todos os tons de cinza, ressaltando o inconsciente feminino e a complexidade que envolve o difícil processo de amadurecimento do trio. Apesar do pai representar uma geração diferente, nem mesmo o reconhecimento profissional é capaz de suprir sua insegurança emocional. 

Jeanne representa o afeto puro infantil intocado pela maldade, terreno fértil para rompantes de desespero, já Ariane, decidida a testar os limites de seu poder de sedução, representa a libido, o desejo livre que é rejeitado em uma sociedade machista e tradicionalmente monogâmica. Duas facetas comportamentais que convivem em eterno confronto também em Gilles, que é levado a entender o significado menos óbvio da traição, emoldurado frequentemente por sombras na elegante fotografia em preto e branco de Renato Berta. 

Se a filha luta para compreender a razão do afastamento de seu namorado, enxergando o amor da forma mais romanticamente idealizada, o pai, já castigado pela experiência da vida, com cicatrizes psicológicas expostas, sabe que a dor pode ser momentânea e fundamental. O terceiro ato exibe o otimismo de Garrel, não aquele cristalizado nas comédias românticas de Hollywood, mas, sim, o reconhecimento sincero de que no relacionamento humano, mesmo quando tudo parece que deu errado, nada se perde, nada é em vão, tudo vale a pena.  

* Crítica escrita para o Caderno B do "Jornal do Brasil" (15/03/18).

terça-feira, 13 de março de 2018

Tesouros da Sétima Arte - "A Bruxa Inocente", de Heinosuke Gosho


A Bruxa Inocente (Osorezan no Onna – 1965)
O diretor japonês Heinosuke Gosho nunca atravessou a fronteira como seus celebrados colegas Kurosawa, Ozu, Mizoguchi e Miyazaki, ente outros, apesar de sua carreira ser tão consistente quanto a de todos os citados, com especial dedicação em procurar a beleza por trás da tristeza de personagens comuns, elemento que garante aos seus melhores filmes uma aura de melancolia fascinante. E, vale destacar, nesta linda obra produzida pelo estúdio Shochiku, a sua linguagem sobreviveu impecavelmente ao árduo teste do tempo.

A trama inicia no monte Osore (tradução: medo), a entrada para o inferno, com os passos trepidantes de uma idosa que busca uma xamã cega que a ajude a entrar em contato com sua falecida filha. Em flashback, conhecemos Ayako (Jitsuko Yoshimura), ingênua garota do interior, que acaba se vendo obrigada a trabalhar vendendo seu corpo no final da década de trinta, às vésperas da guerra, sacrificando a sua própria vida para poder alimentar os seus pais. Ao chegar no bordel, atrai a atenção de um repulsivo homem mais velho que paga pela exclusividade de seus serviços. A câmera na fotografia claustrofóbica de Shinomura Sôzaburô reforça o confinamento das prostitutas, filmando-as frequentemente através de vigas de madeira verticais que simulam as grades de uma prisão. Sem revelar muito sobre o desenvolvimento do roteiro de Hideo Horie, ela acabará envolvida indiretamente em três mortes de clientes unidos por um laço familiar, algo que despertará na sociedade hipócrita, machista e ignorante da época a fama de que ela está possuída por demônios. O intenso terceiro ato exibe corajosa crítica à religião organizada, evidenciando os danos psicológicos que os dogmas e as mentiras ritualísticas causaram na protagonista, que, acreditando ser culpada por tudo o que aconteceu, aceita atravessar a implacável e estúpida cerimônia de expurgo sobrenatural. Ayako, pura flor de gentileza que foi incapaz de respeitar o rígido código de nunca entregar seu coração no trabalho, padece humilhada diante de uma corja de víboras sacerdotais arrogantes, iludidas e supersticiosas.

Analisado hoje, impressiona como seu amargo discurso sobre repressão sexual alicerçada nas crenças religiosas infelizmente segue relevante, incrivelmente atual. A antinaturalidade forja o conceito do pecado, revestido pelo manto subjetivo da moralidade, subjugando as mentes fracas ao lucrativo controle comportamental. A mãe, ao final, abandonada por tudo e todos, refaz seu caminho sem respostas. Quando a lucidez é negada, não há redenção. Bravo, Gosho!

Jerry Lewis e Dean Martin - "Sofrendo da Bola" e "Morrendo de Medo"


Sofrendo da Bola (The Caddy - 1953)
Usualmente lembrado por ser o filme em que Dean Martin, pela primeira vez abraçando sua herança italiana, defende sua canção mais famosa, "That's Amore", indicada ao Oscar, estatueta que perdeu para "Secret Love", cantada por Doris Day em "Ardida Como Pimenta", "Sofrendo da Bola" é dirigido pelo sempre competente Norman Taurog, que era especialista em trabalhar temas leves com elegância. O roteiro tem a audácia de conseguir fazer comédia com um dos esportes mais chatos e elitistas, o golfe, utilizando generosamente o pastelão de Lewis para debochar a todo momento da austeridade das partidas. Apesar do roteiro ser convencional, gosto muito do desfecho, logo após a repetição ressignificada da canção: "What Would I Do Without You?", com a câmera acompanhando os protagonistas até a coxia do palco em que se apresentavam, quando contracenam magicamente com suas personas reais na indústria do entretenimento, uma simpática cena extremamente bem executada tecnicamente e que transborda a camaradagem genuína que havia entre eles naquela fase inicial de suas carreiras. 


* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline", com a opção da dublagem clássica em português.
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Morrendo de Medo (Scared Stiff - 1953)
O ato estabelecido nos palcos dos nightclubs já havia se tornado também sinônimo de sucesso no cinema, projetos estavam sendo desenvolvidos a toque de caixa, um dos roteiristas de "Morrendo de Medo", Ed Simmons, tentou modificar um pouco a fórmula, inserindo mais protagonismo cômico para Dean Martin, mas o produtor Hal Wallis rejeitou a ideia, com medo de arriscar prejudicar a química matadora entre o galã cafona que se leva a sério e o idiota infantilizado. A trama básica era uma reciclagem do conceito já utilizado no cinema mudo pelo mestre Cecil B. DeMille em uma produção perdida de 1914, e consagrado por Bob Hope e Paulette Goddard em "Castelo Sinistro" (The Ghost Breakers, de 1940), dirigida pelo mesmo George Marshall, também responsável pela estreia da dupla, "A Amiga da Onça" (My Friend Irma, de 1949), reaproveitando até mesmo alguns cenários, além de reutilizar na cara dura algumas tomadas. Lewis e Martin inicialmente consideraram equivocado tentar repetir a mágica mistura de humor e terror, casas mal assombradas e canções românticas, mas, como profissionais sérios, tiveram que obedecer o contrato. O filme é especialmente interessante para os brasileiros, já que registra a última aparição de Carmen Miranda, elemento que garante o momento mais curioso, a hilária imitação de Lewis dublando "Mamãe Eu Quero".  


* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline", com a opção da dublagem clássica em português.

segunda-feira, 12 de março de 2018

"Viridiana", de Luis Buñuel


Viridiana (1961)
Às vésperas de ser ordenada freira, Viridiana (Silvia Pinal) passa uns dias na mansão do seu tio (Fernando Rey), que, obcecado com sua beleza, tenta seduzi-la de todas as maneiras. Com a morte repentina dele, desiste da vida religiosa, indo morar na mansão. Movida pelo espírito de caridade cristã, ela abriga e alimenta todos os mendigos da região.

Luis Buñuel executa em "Viridiana" sua crítica mais brutal à hipocrisia da utopia religiosa, exatamente no momento histórico em que as bases do sistema de governo espanhol eram definidas pela igreja, desconstruindo o véu frágil dos devaneios maniqueístas e dos valores morais erigidos no terreno fértil da ganância por homens que, através do tempo, construíram rituais autofágicos alicerçados em conceitos abstratos, objetivando controle populacional/ideológico e, acima de tudo, poder inconteste, impondo culpa, dor, repressão e submissão ao estabelecer a divisão da natureza humana em dois extremos, o sagrado e o profano. 

Ao primeiro sinal de questionamento/dúvida, a protagonista é direcionada por sua superiora no convento ao ato da confissão, instrumento análogo ao cabresto equino, para que conscientemente aceite o enclausuramento, negando metaforicamente o sangue que verte da coroa de espinhos que, mais para frente na trama, será atirada ao fogo. A jovem ingenuamente pune seus impulsos sexuais com a mesma intempestividade tola que conduz o herdeiro da mansão a salvar o cão preso debaixo da charrete, apenas para que, segundos depois, a câmera nos mostre outro cão sofrendo na mesma situação, simbolizando o confronto entre os dogmas religiosos e a dura realidade do mundo, não há sentido em querer ajudar outrem, quando o indivíduo é levado a crer que seu próprio sofrimento é purificador sinônimo de valor. A sequência mais famosa do filme, o banquete dos mendigos, corajosamente remetendo visualmente à "A Última Ceia", de Leonardo da Vinci, potencializa temas que haviam sido trabalhados em cenas menores, como a subversão do papel do leproso bíblico, outrora curado por Jesus, agora, alvo da humilhação constante de seus semelhantes. 

Darren Aronofsky, no recente "mãe!", obviamente inspirado em "Viridiana", pode ter sido mais implacável e contundente no ataque aos alicerces católicos, mas a pureza estética com que Buñuel retrata a morte existencial de sua tradicional ideologia é imbatível, a desolação encapsulada no momento final, ao som do pop vazio de uma modernidade rasa, evidenciando a figura patética da mulher que encontrou a amarga liberdade na intensa frustração de sua visão romanceada da caridade, tentando desajeitadamente fazer as pazes com sua sexualidade ao aceitar seus sentimentos por seu primo. Mas, como o roteiro faz questão de apontar no simbólico jogo de cartas, a desilusão faz parte da vida real. Não há respostas fáceis ou justiça fora dos muros da mentira religiosa. 

Cartaz do média-metragem "Sacrifício"


Roteiro/Direção: Octavio Caruso. 

Direção de Fotografia: Sihan Felix.

Arte do Cartaz: Laísa Trojaike.

Produção: Teresa Cristina Oliveira.

Trilha Sonora Original: Sihan Felix.

Elenco: Zaira Zambelli, Rosa Felix, Mônica Foroni, Tereza Filardy, Graça Felix, Eduardo Doria, Teresa Cristina Oliveira e Patrick Modenesi.

sexta-feira, 9 de março de 2018

TOP - Obras-Primas do Cinema Mundial Que Você Não Deve Ignorar - Parte 3 (para o site norte-americano "Taste of Cinema")


Volere Volare (1991)
The idea was born after the worldwide success of “Who Framed Roger Rabbit.” The plot is insanely unconventional; he plays a timid cartoon sound, while his brother and partner prefers to take on the voice of erotic productions, summoning women who are wonderful for the work that is performed in the best “acting method of Lee Strasberg.”

Angela Finocchiaro plays an exotic prostitute who takes care of the theatrical satisfaction of her clients, each one more crazy than the other; a sex artist, in the literal definition of the term. The gradual transformation of the sleep sound into a cartoon, a feature that guarantees hilarious scenes, and symbolizes his fear of the possibility of sensual contact with the opposite sex, a concept that falls like a glove in the absurd tone of the script.

Contrary to her ambitious friend who prioritizes wealthy clients, Martina (Finocchiaro) sees her work as a socially relevant mission, since it allows the insane to go beyond her psychopathy, in various levels of dangerousness, in a harmless way for society, an element that it humanizes her greatly.

It’s fascinating to make the traditional happy ending an uncompromising embrace in the surreal, with its fun surrender to the possibilities of sex with the cartoon, rather than the obvious narrative path of solving the bizarre problem. A comedy that would never be released these days, it’s a breath of fresh air in a genre that’s usually a slave to repetition.

The Green Ray (1986)
Seldom has loneliness been so well portrayed than by the Seventh Art. Delphine (Marie Rivière, who is also in charge of the screenplay) realizes that it is time to relax on her vacation, but she is definitely not eager to confront herself away from the routine and ritualistic pursuits of her job as a secretary. She cannot keep up with the boys for fear of giving.

By looking away from her reflection in the mirror and trying to find a meaning for its existence in the external world, the girl does not see the various flirtations she attracts, believing herself to be increasingly uninteresting. Unlike the usual protagonists of the director, she speaks little and clumsily, because (as she says) she has problems expressing herself. The act requires surrender, the “lowering of shields”; in short, everything she fears.

By staying aloof from all social conventions, it becomes a pure element, which does not feel adapted to the corrupt world in which it believes to be inserted. It is not by coincidence that, in the end, it reveals the book that she spent the entire movie reading was “The Idiot” by Dostoevsky.

Delphine only intends to modify its “modus operandi” when finding Lena, an uninhibited Swedish girl, its perfect antithesis. The genius of the script insinuates itself at this point, when we begin to question whether we really want to see the protagonist finding a boyfriend. Is not it right that we should twist her out of apathy and impose herself in life as a human being? As we direct our desire to meet the comfortable satisfaction of a social ritual with any stranger, are we not disrespecting her as a woman? Do we want Delphine to become Lena?

In the brilliant third act, we began to understand the protagonist’s point of view, her aversion to the limiting roles that society imposes on women. And then, in a touch of pure sensibility, Rohmer makes us admire the meteorological phenomenon of the “green ray” on the horizon, which, at the moment (in the eyes of the writer Julio Verne), causes the person to magically see their feelings and those of others. She then, as she had not done before, smiles with the naturalness of a child who sees the world for the first time.

The Condemned of Altona (1962)
Industrialist Albrecht Von Gerlach discovers that he is close to death and names his son Werner (Robert Wagner) as his successor; Johanna (Sophia Loren), his wife and actress involved in a work of Brecht against Nazism, discovers the secrets of the family.

Unjustly little known, including among fans of Vittorio De Sica, although he received for it the “David di Donatello” award for Best Director. Adapted from the penultimate piece of Jean-Paul Sartre (quite faithfully, except for the option of including outside scenes, outside the confinement), unique in that he directly addresses Nazism in a clever and daring criticism. Sophia Loren, Fredric March and Maximilian Schell act boldly in roles that completely ran away from what the public was accustomed to, ensuring a still more somber mood to the project.

It recalls, in tone and complexity, the works of Polish writer Günther Grass, among them, the most famous: “The Drum.” The idea behind a young Nazi who is kept, years after the end of the war, imprisoned in an attic by his father, without any communication with the outside world, so that he does not perceive reality, causes shivers just thinking about it. The excellent ending, which I will not reveal, contains one of the strongest cinematic images of that decade.

The Eighth Day (1996)
The impact of the tenderness of the young man with Down syndrome, Belgian Pascal Duquenne, on the hard bark of bitterness of the impeccable Daniel Auteuil, who perceives his family to be more and more distant, in the beautiful moment where the boy tries to block the tears of his friend as he built a smile with his fingers on his face. Their reunion in the rain, the reassurance of friendship, after a cruel attempt at forced detachment.

The compulsive worker who, through this relationship, learns to be a better father to his daughters. The deceased mother who, to the sound of her idol in music, appears to affectionately comfort the young man’s anguish. And these scenes, which could easily fall into exaggerated finesse, are magnified by the sensitive way director Jaco Van Dormael chooses to be content with minimalism, with the protagonist having a clear, emotionally independent attitude, dispensing with the compassion of others.

The plot addresses the young man’s desire, hospitalized in a specialized hospital since his mother’s death, to return home. He is a burden too heavy for his family members, who are selfish people and who do not want to face the visually different reflection in this disturbing mirror, as studied by the French psychoanalyst Pierre Fédida, characters that symbolize the way a large part of society views the disabled, the apparent lack of interest in the necessary social inclusion.

This rejection that speaks directly to the disorienting clash of the different in contact with the image that represents the initial formation of the unconscious “I”, or in the words of the French psychoanalyst Jacques Lacan, that ideal “I” in which we recognize, in reality, a wrong view that does not correspond to the fragmented body we experience. The boy’s quest, in this charming road movie, for the concept of “going home,” reflects the exhaustion of hope in this narcissistic society. The purity of it, in the end, sacrificed as atonement for the sins of the world.

The Killing Machine (1975)
When talking about Sonny Chiba, many remember his work in the trilogy “The Street Fighter,” but I consider that his best moment, as a martial artist and actor, a rare opportunity that he had to build several layers upon, is in this little known pearl, directed by Japanese director Norifumi Suzuki, with a screenplay by Isao Matsumoto, which approaches the real life of Doshin So, founder of Shorinji Kempo, from his traumatic childhood, through the time he was a soldier in the final period of World War II until he became a master. Chiba was his apprentice, so you can imagine the emotion he felt in defending the character on the big screen.

The tone is heavy, tuned in the tragic dramatic tuning fork, reflected in the way martial technique is used, with brutality and generous doses of gore, dominating by rotational wrist locks, the honoree’s specialty. The castration scene of the rapist is remarkable and cinematographically powerful, but what remains after the session is not the strings of struggle. I do not remember another film of the genre that works so effectively on the question of the importance of the martial arts discipline as an inspiring and transforming force in the lives of young people, helping to overcome obstacles and form noble characters. 

The Loot (1980)
A highly creative independent production that made the industry turn its eyes toward its director, Eric Tsang, who received warm praise from various martial artists of the day, such as Jackie Chan, who invited him to direct with him “Armor of God” released in 1986. Just because the plot does not involve a revenge affair, it already deserves honorable mention, but the structure adopted from Agatha Christie-style police novels, combined with the comic sense that follows efficient, guarantee high quality entertainment, even for those who does not appreciate the genre.

I consider this to be the best moment for David Chiang as an actor, playing a bounty hunter / researcher who goes into a dispute with another mercenary (Norman Chu) for a common purpose: to find the enigmatic jewel thief and killer known as “Spider.” It is interesting to note that the script becomes even more interesting in revisions, but the revelation of the mystery does not weaken the experience.

The last 20 minutes are, without exaggeration, brilliant stunting with technical class and timing, with the confrontation between Chiang, Chu and Phillip Ko, with the first using the monkey wrist strategy, inserting a hilarious touch, the dread shake. And in conclusion, a brave debauch with a dramatic visual cliché used in the productions of the Shaw Brothers studios.

The Betrayal (1966)
Director Tokuzo Tanaka had no appreciation for the thematic grandiosity of Kurosawa, or interest in the philosophical ramblings of Ozu, being closer to the kind of approach Mizoguchi and Kobayashi took. As the assistant director for Kurosawa and Mizoguchi, he drank from the best possible sources in his area, using his technique in favor of chambaras made by Daiei studio. He is known only to those most dedicated fans of the genre for his work on the Zatoichi series, but his undisputed masterpiece is “The Betrayal,” a remake of “Orochi,” directed by Buntaro Futagawa in 1925.

Seiji Hoshikawa’s screenplay is a frantic rhythm, with the first two acts dedicated to the meticulous development of the characters and their motivations worked in long dialogues, with the action reserved for the climax. Intense action scenes that prepare for the final battle, praised fairly as one of the longest and most brutal in the genre, where we watch the character played by Raizo Ichikawa, an honorable samurai who is unjustly accused of a crime, fighting alone against more than two hundred warriors.

And if the plot avoids to deepen, for example, the friendship that forms between the exiled samurai and the thief who stole his wallet, it compensates for one of the most shocking moments, not only of the chambaras, but of the action movie genre as a whole: the time when the hero, exhausted in the long final combat, must force his fingers to release the tsuka / handle of his broken sword, so that the confrontation can continue.

It is distressing to see the body go beyond the limits; it becomes dehydrated, it seeks to quench its thirst between an elusive and another. It is not only a struggle, it is loaded with symbolism, the epiphanic transformation of someone who is aware that he has lost everything, moved only by his character.

Almost Human (1974)
Umberto Lenzi’s masterpiece: “Milano Odia: La Polizia non Può Sparare” is a classic poliziotteschi that I consider superior to his most celebrated work “Roma a Mano Armata,” released two years later. The script is by Ernesto Gastaldi, who last year wrote Tonino Valerii’s unforgettable “My Name Is Nobody,” working on the idea of Sergio Leone, and years later he would help Sergio Martino in the great giallo “Torso.”

Cuban man Tomás Milián, at his best, plays a mediocre and insecure thug who finds, in the possibility of kidnapping a young daughter of high society, the chance to prove himself competent. And to make matters worse, his intention is clear from the start: he wants to get the ransom money and kill the girl. It is not only for the money; his war is personal against the system that, in his distorted mind, elects the lucky and the unlucky ones.

For him, the police class is weak, easily corruptible, limited to following the law. Sadistic, even the comrades question this radical position, with the awareness that they themselves can become targets of their anger. He just did not expect to find in his way the most hardline inspector in town, played by Henry Silva and his face cut to chisel, someone who discovers that the only way to win the case is to become crazier than the thug, the cool moorings.

The tone is heavy, the level of violence is high, the script makes no concessions, following the line of Michael Desire’s “Desire to Kill,” released that same year. And it is worth emphasizing the spectacular soundtrack of the master Ennio Morricone. Great work that deserves greater recognition.

Raquel’s Shoeshiner (1957)
In the mold of his most famous admirer, Charles Chaplin, Mario Moreno was able to balance the laughter with tenderness very well, as in this one, which is one of his best films. Although, as something usual in his filmography, many jokes get lost in translation, like the joke in the title, involving the work of Maurice Ravel and the activity of the protagonist, a Bolivian trambiqueiro (shoe) that falls in love with a teacher, played by Manola Saavedra; it is impossible not to be enchanted by the improvisations of the actor. When Cantinflas releases his nonsensical, famous “cantinflear” machine gun, you need to direct your attention to the interlocutor, who strives not to ruin the footage by smiling out of time.

In his first color work, shortly after winning international fame and the prestige of the critics with the award-winning “Around the World in 80 Days,” the Mexican filmmaker proves to be at the peak of his inspiration, especially in the hilarious first hour, where we witness an uplifting history lesson he provides to a foreigner, and to display, in a state of complete sobriety, all the discretion and elegance that should be the standard at funeral ceremonies.

It shows that what really matters is to console the beautiful widow and offer a friendly shoulder to all the women present in the ritual. And, of course, being such a worthy man, he was left with the responsibility of taking care of the dead son of the deceased compadre, a laborer who, as Cantinflas explained, went to heaven after quitting the asphalt, having fallen from the building where he worked.

The most famous scene, his boldness as a dancer, is very nice, but the moment that remains in my mind is the silent reality shock of the character, after the sad farewell of the child, clinging to the colored ball as symbol of gratitude for the company of the boy, who fought so hard to be able to pay.

Cantinflas is carried by the emotion transmitted in his eyes, a scene that refers us to the payment of the treatment of the blind florist of Chaplin in “City Lights.” Like the English wanderer, the Mexican peladito learns that kindness is a noble act that does not demand reward, does not need recognition, it is only the feeling of happiness that happens to tear, the verification of the genuine affectionate intention of those who the offers.

Don’t Torture a Duckling (1972)
This is one of those films that, two minutes after the end, while still recovering from the impact, you feel like cheering up. Lucius Fulci, a notorious director, managed to create a brave single treatise on thorny topics such as prejudice, pedophilia, hypocrisy, superstition and religion, without fear of controversy.

I will avoid revealing much about the plot, which is a tremendous disservice, especially in this case. In a village dominated by mysticism, children are murdered, leading the policemen to a voodoo witch played by Brazilian actress Florinda Bolkan. The script opens the range of possibilities, showing that all are suspicious, since there is no sign of any sense of morality or ethics in the attitudes of the residents.

Even the children, who end up being victims, are presented practicing acts of sadism without any trace of empathy. The only one who is pure and well-meaning is the priest. One of the characters, played by the beautiful Barbara Bouchet, is a drug addict who seeks rehabilitation, a daring young woman who seems to have a fixation on insinuating herself sexually for the boys of the region. 

What is most interesting is how history subverts any expectation, including, visually, a characteristic symbolized in one of the most interesting scenes in the history of giallo; truly unforgettable, a brutal lynching accompanied on the soundtrack by the exotic programming of a radio station, in its dramatic summit the beautiful composition of Riz Ortolani: “Quei giorni insieme a te,” sung by Ornella Vanoni. The impressive sequence gains even more epic and poetic airs under review, knowing the outcome of the plot.

quinta-feira, 8 de março de 2018

"15h17 - Trem Para Paris", de Clint Eastwood


15h17 -Trem Para Paris (The 15:17 to Paris - 2018)
No início da noite de 21 de agosto de 2015, o mundo assistiu atônito às notícias de um ataque terrorista frustrado no trem n° 9364 da Thalys a caminho de Paris, uma tentativa impedida por corajosos jovens americanos que viajavam pela Europa. O filme acompanha a vida dos três amigos, das dificuldades da infância, passando pela descoberta de seu propósito na vida, até a série de eventos improváveis que culminaram com o ataque.

Os soldados Anthony Sadler, Alex Skarlatos e o piloto da Força Aérea Spencer Stone, personagens principais da trama, interpretam a si mesmo no filme. É fácil condenar o óbvio desequilíbrio nas atuações, mas a escolha do diretor foi consciente, transformando o roteiro fraco da pouco experiente Dorothy Blyskal, adaptado do livro escrito pelo trio, em uma simpática, ainda que problemática, celebração do espírito humano.

Se os diálogos truncados prejudicam cenas como a do confrontamento em flashback das mães dos rapazes com a figura de autoridade da escola, a real camaradagem entre os protagonistas garante uma química genuína na tela nos vários momentos descontraídos.

O terceiro ato entrega o ponto alto do projeto, a sequência de ação no trem sintetiza a estética documental imediatista da montagem, conseguindo captar com eficiência a tensão e o instinto de heroísmo que é despertado em situações extremas. Algo que, vale salientar, só funciona porque o público é levado a investir emocionalmente no drama pessoal de cada jovem.

Aos oitenta e sete anos, Eastwood prova que ainda consegue injetar coração e sinceridade em uma trama fiel à sua ideologia nacionalista, sem se curvar aos modismos atuais na indústria. Você pode não concordar com sua abordagem, mas é impossível deixar de respeitar seu comprometimento.

* Crítica escrita para o Caderno B do "Jornal do Brasil" (08/03/2018).

Oscar 2018 - A Resposta Enfática de Hollywood para o Governo Trump


Em noite mexicana, o Oscar manda recado direto para todos os opressores, daqueles abusadores sexuais que se escondem nas sombras aos grandes construtores de muros sociais.

A cerimônia do Oscar, com exceção de breves rompantes de ousadia, entregou o tom familiar de festa chique da empresa, com seu senso de humor de tio do pavê representado pela recorrente e rasa brincadeira sobre o jet-ski verde que seria dado ao vencedor que conseguisse discursar seu agradecimento em menor tempo. Apesar de teoricamente valorizar a representatividade, aquele profissional menos importante que se alongar um pouco no agradecimento continua sendo catapultado do palco com a “delicadeza” usual. Nem mesmo a presença da sempre bela Helen Mirren, participando de maneira obviamente desconfortável da tolice, ajudou a transformar o material vaudeville em algo minimamente digno da pretensa grandeza da noite.

O importante não é respeitar a representatividade, apenas passar a imagem de que respeita, o público não deve ser ingênuo, os movimentos são comercializados, na intenção de evitar o boicote nas bilheterias. Tudo se resume aos lucros na fábrica de sonhos. Na categoria de Filme Estrangeiro, na dúvida, premia-se o produto menos interessante em competição, o chileno “Uma mulher fantástica”, protagonizado pela transexual Daniela Vega Hernández, que também foi generosamente utilizada no palco, já que a imprensa mundial precisa registrar como a mentalidade da Academia evoluiu.

O início emulando os clássicos cinejornais foi nostálgico, a pena é que o direcionamento de resgate do passado cultural de Hollywood acabou sendo engolido pela necessidade midiática de vender a revolução comportamental. Já na brincadeira do monólogo de abertura de Jimmy Kimmel, houve espaço para um mea culpa sobre a gafe da troca dos envelopes no ano anterior, além de uma análise boba sobre a figura da estatueta, um eunuco que deixa suas mãos à mostra. Tudo muito rasteiro, infantil, roteiro pouco trabalhado.

O primeiro grande momento de elegância e inteligência da noite foi a participação da veterana Eva Marie Saint, premiada em 1954 por “Sindicato de Ladrões”, que deu aula de vivacidade e emocionou a plateia ao falar sobre o recente falecimento de seu marido, companheiro de várias décadas. Logo depois, a jovialidade impressionante de Rita Moreno, premiada em 1962 por “Amor, sublime amor”, audaciosamente repetindo o vestido da época. Nestes momentos, o público consegue ter um vislumbre do que o Oscar já representou, antes de se tornar irrelevante perfumaria brega.

Na fala sutil de Mark Hamill, eterno Luke Skywalker, um ponto de vista jocoso que compreende a fragilidade do verniz socialmente consciente do engajamento na indústria. Ele cita “discriminação contra robôs”, os colegas no palco fingem não escutar, a plateia emudece. O jogo é marcado, todas as minorias serão celebradas, os tons de cinza serão aniquilados, a festa da hipocrisia não pode parar. Ashley Judd, Salma Hayek e Annabella Sciorra, lendo o teleprompter com austeridade, abordam diretamente o movimento Time’s Up, o discurso não comove, não serve como protesto, mas cumpre a função principal, prover fotos interessantes para os veículos de comunicação.

A vitória óbvia da animação “Viva – A vida é uma festa” desfere um gancho poderoso no queixo de Trump, Hollywood mostra que ama os mexicanos, o discurso de agradecimento brada pela importância da representatividade, sobra até um “Viva a América Latina”, faltou apenas os violinos e a fanfarra gloriosa típica do mestre John Williams, para que tudo ficasse ainda mais artificial. Digamos que a animação da Pixar cumpriu neste ano a função que a saudosa Carmen Miranda executou outrora, quando os norte-americanos precisavam de aliados na época da guerra.

É válido ressaltar talvez o momento mais tolo, que está se tornando um péssimo hábito no evento. O apresentador convoca alguns astros para caminharem até uma sala de cinema próxima, para “surpreenderem” a plateia, como forma de agradecer o público cinéfilo mundial. Tão crível quanto os reality shows que dominam nossa televisão atual, a esquete é pura perda de tempo, obviamente combinada, com reações hilárias dos supostos surpreendidos. Vexame grotesco desnecessário.

Gafe imperdoável do “In Memoriam”, esquecer nomes como Bill Paxton, Adam West e Miguel Ferrer. Sintomático do desprezo dos realizadores pela tradição, um segmento que já foi profundamente emotivo no passado, hoje, despejado rápido, tapinha nas costas inglório com pessoas que simplesmente forjaram a indústria de cinema.

Sobre os vitoriosos da noite, Frances McDormand não apenas recebeu o justo reconhecimento por seu trabalho monumental em “Três anúncios para um crime”, como também garantiu o melhor discurso da noite, coisa de gente grande, inteligentemente cutucando as feridas expostas sobre a inclusão das mulheres no sistema. Perto do feminismo de butique que muitos aplaudem, este breve momento foi um choque de maturidade.

Guillermo del Toro levou a estatueta de Direção e Filme, pelo belíssimo “A forma da água”, reconhecimento justo que novamente consagra a importância do cinema de gênero. É possível argumentar que ele estava no momento certo, na hora exata, afinal, premiar um mexicano na noite mais glamourosa de Hollywood é uma oportunidade primorosa de agredir o presidente Trump, nocaute brutal em um personagem caricato que nem mesmo os roteiristas mais criativos conseguiriam imaginar em seus trabalhos. 

* Texto escrito para o Caderno B do "Jornal do Brasil" (07/03/2018).

sábado, 3 de março de 2018

"Projeto Flórida", de Sean Baker


Projeto Flórida (Project Florida - 2017)
O roteirista/diretor Sean Baker, do corajoso experimento “Tangerine”, filmado com celular, consegue executar com “Projeto Flórida”, cinema independente de altíssima qualidade, o seu passo mais artisticamente maduro, elegante e eficiente, uma obra que exala empatia por personagens usualmente estereotipados em produções menos inteligentes.

O cenário é tomado por vítimas da imobilidade social, com destaque para a encantadora e talentosa pequena Brooklynn Prince, que vive Moone, acostumada a rondar pela região extravasando o desejo por liberdade, apesar de morar no confinamento de um motel barato na beira da rodovia de Orlando, o choque de realidade que vislumbra no horizonte o universo mágico artificial do parque de diversões mais famoso do mundo.

A mãe, impecável atuação de Bria Vinaite, típico retrato da juventude perdida com a maternidade indesejada, o cabelo colorido, a atitude irresponsável, tatuagens pelo corpo evidenciando o desejo de se destacar de alguma forma na multidão, porém, amorosa. A diversão das crianças é cuspir em carros, pedir dinheiro a estranhos para comprar sorvete, traquinagens cometidas sempre com sorriso no rosto. Os pais, compartilhando a dificuldade para pagar os trocados por noite, lutam para manter a dignidade, evitando transmitir aos filhos o escopo do sofrimento em suas rotinas diárias.

A câmera, primordialmente na mão, transmitindo espontaneidade que pode ser tida equivocadamente como improviso, capta os olhos cansados, a única maquiagem é o suor, o ato de envelhecer sem esperança. Vale destacar a presença sempre competente de Willem Dafoe, vivendo um tipo cheio de nuances, o gerente responsável por manter a ordem no local, figura de autoridade quase sempre desrespeitada, mas que se mostra incapaz de não se transportar emocionalmente para os problemas daquelas famílias, reconhecendo que não são tão diferentes, todos lutam com extrema dificuldade.

Dentre todos os filmes que estão indicados ao Oscar neste ano, “Projeto Flórida” é, sem sombra de dúvida, o roteiro mais humano.

* Crítica escrita para o Caderno B do "Jornal do Brasil" (02/03/2018).