segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Chumbo Quente - "A Passagem da Noite"

Link para os textos do especial:


A Passagem da Noite (Night Passage – 1957)
O dinheiro destinado a pagar os empregados da ferrovia tem sido sistematicamente roubado por Whitey Harbin (Dan Duryea) e sua gangue. Grant McLaine (James Stewart), depois de ser despedido sem honra pela companhia férrea, é chamado de volta para impedir que o mesmo aconteça com o próximo pagamento. Grant consegue descobrir o esconderijo dos bandidos, mas agora tem que enfrentar Utica Kid (Audie Murphy), seu irmão mais novo, que faz parte da quadrilha.


A qualidade do filme é eclipsada pelos bastidores atribulados, com o rompimento da parceria entre James Stewart e o diretor Anthony Mann, após oito excelentes projetos. Mann não gostava do coadjuvante Audie Murphy, veterano de guerra, tampouco apreciava o roteiro, que, de fato, parece ser uma desculpa para o protagonista demonstrar em várias cenas a sua habilidade com o acordeão, instrumento que era mais do que um hobby para o astro. Como era um dos produtores, nada ficaria em seu caminho. Ousado, Stewart se atreveu até a cantar, uma atividade que não era seu ponto forte. Revisto hoje, fora do contexto, enxergo nessa particularidade musical um dos grandes méritos da trama. 

A direção de James Neilson, profissional que tinha experiência na televisão, compromete algumas sequências mais grandiosas em escala, filmadas em Technirama, porém, as minimalistas emocionais ele comanda com pulso firme, especialmente aquelas que envolvem os irmãos. O vilão vivido por Dan Duryea tem o elemento da caricatura reforçada pela atuação intensa, sempre três tons acima do restante do elenco. E como a cereja do bojo, a presença do jovem Brandon De Wilde, o menino de “Os Brutos Também Amam”, defendendo papel semelhante. Com uma ternura inexistente nas produções dirigidas por Mann, esse faroeste é daqueles que, sem motivo aparente, acabam ficando na memória, como se o ouro estivesse no subtexto. Cenas como a do assalto no trem em movimento, além do tiroteio final, seguem tão eficientes hoje quanto em sua época.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

"Green Room", de Jeremy Saulnier


Green Room (2015)
Uma banda de punk rock iniciante arrisca uma gig num clube de beira de estrada onde Judas perdeu as botas. Um assassinato acaba colocando os jovens nas mãos de uma gangue de skinheads, liderados por um impressionante Patrick Stewart, sem interesse em deixar suas testemunhas vivas. 

A trama é inteligentemente simplória, uma desculpa para o diretor Jeremy Saulnier homenagear John Carpenter, Tobe Hooper e Lucio Fulci, entre outras referências que consegui perceber com um sorriso no rosto. Quando o grupo transforma o tal “quarto verde” do título em seu Álamo, buscando maneiras engenhosas de sobreviver aos ataques, o elemento de alegoria social se perde deliciosamente em um banho de sangue. O resultado é brutal, subversivo como poucos projetos ousariam ser nos dias de hoje, sem concessões, um roteiro imprevisível que estabelece uma sensação de medo constante, onde qualquer personagem pode acabar somando na pilha de corpos dilacerados. 

O gore gratuito, que usualmente tem sido utilizado mais pelo “terrir”, atinge níveis que deixariam encabulado o Pasolini de “Saló, ou os 120 Dias de Sodoma. “Green Room” é uma injeção de adrenalina no peito, uma fascinante lufada de ar fresco, inserida em uma realidade que costuma primar por exemplos de pretensão vazia, obras umbilicais morosas e muita cacofonia visual.

"Sol a Pino", de Dalibor Matanic


Sol a Pino (Zvizdan - 2015)
Três histórias, três décadas, símbolos visuais que se repetem, com o elenco defendendo personagens diferentes em cada uma delas, traçando um panorama da conturbada relação entre sérvios e croatas, mas, inteligentemente optando pelo tom sóbrio, sem debruçar no melodrama. 

O diretor Dalibor Matanic acerta ao utilizar a guerra apenas como pano de fundo para uma minimalista discussão sobre a pequenez evolutiva do ser humano, o ódio irracionalmente alimentado por gerações, que é estimulado pelo local de nascimento do outro, focando sua lente em três casais, de lados opostos na batalha, lutando por um amor proibido. Vale salientar a excelente atuação de Tihana Lazovic, desafiada constantemente pela preferência do diretor por planos fechados, conseguindo compor três variações antagônicas de uma mesma angústia existencial. Achei interessante a utilização nada óbvia de uma paleta de cores vivas na fotografia de Marko Brdar, possibilitando um contraste brutal nas cenas dramaticamente mais intensas. 

O senso de ritmo, algo sempre complicado em uma antologia, é muito competente, com um equilíbrio emocional perfeito, com destaque para a ingenuidade encantadora que move a primeira história, superior em vários aspectos, a tentativa de fuga de um casal para a realidade menos ingrata da cidade grande. A mensagem mais bonita ocorre no desfecho da terceira história, após muito sofrimento, uma sinalização otimista de esperança no horizonte, com uma geração que parece interessada em se libertar dos grilhões do passado.

domingo, 29 de novembro de 2015

"Eu, Soldado", de Laurent Larivière


Eu, Soldado (Je Suis un Soldat - 2015)
Nesse primeiro longa-metragem, o diretor Laurent Larivière aborda essencialmente os efeitos da ausência do sentimento de culpa, um dos aspectos típicos de um caráter com sérios problemas estruturais. O problema é que essa interessante abordagem, assim como a tentativa de crítica social, evidenciada em uma boa cena de entrevista de emprego, fica apenas na teoria. 

A jovem vivida por Louise Bourgoin, em um ato impulsivo motivado pela vergonha que sente por estar desempregada, valorização exacerbada pela opinião do outro, acaba aceitando trabalhar no canil de um tio, que, na realidade, é fachada para um centro de tráfico de cães. Sem interesse pelo investimento emocional do público, o roteiro não se aprofunda nas motivações dos personagens e evita qualquer insinuação de melodrama, os animais são tratados com a mesma frieza de seus traficantes, o que, sem dúvida, é o maior acerto do filme. A protagonista, sem muito peso na consciência, entra de cabeça no negócio, com a obstinação inconsequente de um Tony Montana, desejando tomar o controle da operação. 

Sem um mínimo de desenvolvimento psicológico, fica difícil se importar com as ações dela, fazendo algumas cenas soarem forçadas, especialmente uma equivocada subtrama romântica que desperta convenientemente no terceiro ato. O fato de ser uma jovem inteligente, bonita e saudável, contribui para a pouca credibilidade de suas radicais ações, que, tampouco funcionam de forma metafórica. Uma ideia promissora confinada em uma execução sem brilho. 

"Micróbio e Gasolina", de Michel Gondry


Micróbio e Gasolina (Microbe et Gasoil - 2015)
Gondry nos acostumou mal com sua inventividade, em filmes como “Sonhando Acordado”, “Rebobine, Por Favor”, e, especialmente, “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”. Quando terminou a sessão de “Micróbio e Gasolina”, tentava puxar pela memória algum elemento no roteiro que tivesse essa marcante impressão digital do diretor, sem sucesso. 

É um road movie muito agradável, com uma pegada lúdica encantadora, contando a história de dois adolescentes: Micróbio, vítima de bullying por sua excessiva introversão, o que explica o apelido pouco carinhoso, e Gasolina, vivido pelo ótimo Téophile Baquet, um desajustado que não se importa com a imagem que os outros projetam nele. Eles embarcam em uma viagem onde pretendem cruzar o país com um carro montado a partir de sucata. Há um pouco de Truffaut em sua visão dos conflitos da adolescência.

Já no design surrealista do veículo, uma casa com direito a telhado, encontramos uma simbologia pouco sutil para o real interesse dos meninos, antagônico ao conceito de fuga do lar: a necessidade de se sentirem seguros. Não por acaso, a mãe de Micróbio, vivida por Audrey Tatou, está enfrentando um divórcio. O destino programado é um acampamento que resgata em um deles uma doce memória infantil, o psicológico desejo por voltar ao colo materno. Nada disso fica aparente na atitude dos dois, que exalam uma postura até arrogante de superioridade com relação aos outros de sua idade, o extravasamento radicalmente oposto, como forma de disfarçar a insegurança. A câmera de Gondry facilita a empatia do público, minimizando os cortes, evitando floreios visuais, a quebra da ilusão, compondo um ritmo bastante lento, reflexivo, verdadeiramente abraçando a jornada dos personagens. 

"Endorfina", de André Turpin


Endorfina (Endorphine - 2015)
Simone, aos doze anos, testemunhou o brutal assassinato da mãe, uma experiência que abala profundamente sua psique. Analisando essencialmente a percepção do tempo, o roteiro atravessa três fases de sua vida, numa espécie de looping que embaralha eventos e personagens. 

A sua versão adulta defende o leitmotiv da analogia entre o registro cinematográfico e a vida, uma ideia trabalhada de forma bastante didática no primeiro ato, porém, esquecida em certo ponto da trama. Pra início de conversa, a despeito de um tema com tremendo potencial, a execução desse filme é um imbatível antídoto pra insônia. Existem exemplos de obras similares em complexidade no gênero, como o pouco citado: “Primer”, que conseguem elaborar um quebra-cabeça fascinante, onde, ao final, o espectador se sinta plenamente satisfeito, mesmo que não tenha compreendido boa parte da história. Você se sente intimado a rever, pelo prazer da experiência de ser intelectualmente estimulado, algo cada vez mais raro no cinema.

“Endorfina”, por outro lado, joga peças de um enredo altamente confuso, sem desenvolver sequer medianamente qualquer arco narrativo, causando apenas irritação. Um equívoco básico: não conhecemos minimamente a protagonista, consequentemente, não nos importamos com ela. Como a narração é um recurso amplamente utilizado, esse equívoco é fatal, transformando todo o segundo ato em uma palestra chata sobre astrofísica, comandada por alguém sem carisma e senso de palco. O diretor André Turpin demonstra claramente não ter noção do caminho que quer seguir, conduzindo a cenas de um hermetismo tão absurdo que causam risos involuntários. 

"Love and Mercy", de Bill Pohlad


Love and Mercy (2014)
A opção por inserir, já nos créditos iniciais, um medley das canções mais famosas dos Beach Boys, num trabalho de reconstituição de época primoroso, sinaliza o tom da obra, uma celebração merecida, disponibilizada para uma geração tão carente de música de qualidade.

As atuações de Paul Dano e John Cusack, impecáveis, resultam em uma faceta tridimensional de Brian Wilson, o genial compositor que, em seu auge, sentia verdadeiro tesão pelo trabalho artesanal no estúdio, mas odiava aparecer em público. A estrutura é o convencional em uma cinebiografia, com inserções constantes de flashbacks, mas, ressaltando algo pouco usual, as duas fases são igualmente bem executadas. Jovem, nos bastidores de sua canção: “God Only Knows”, ele sofre a insensibilidade de um pai estúpido, incapaz de captar a música do filho como a sua forma mais sincera de expressão.

É fascinante perceber como ele, tão novo, sem zelo excessivo pela sua composição, enxerga a beleza no erro de um músico na gravação, recomendando que ele erre novamente. Em sua busca por um som experimental que rivalizasse com o trabalho dos Beatles, ele sabia que teria que estar aberto à mágica da casualidade, a matéria-prima de praticamente todas as grandes realizações humanas. Um dos maiores acertos da produção é dedicar tempo generoso ao aspecto mais importante de seu homenageado, a sua capacidade criativa, sem apelar para a emoção barata ou forçar a mão nos problemas pessoais. Quando ele, adulto, abre seu coração para sua namorada, vivida pela bela Elizabeth Banks, em uma mesa de restaurante, a câmera sutilmente mostra seu rosto fragmentado no espelho. Esses pequenos detalhes revelam tudo o que precisamos saber sobre o personagem. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

"Capital Humano", de Paolo Virzì


Capital Humano (Il Capitale Humano - 2013)
O filme terminou e tive vontade de aplaudir de pé o brilhante trabalho do diretor/roteirista Paolo Virzì, adaptando o livro do crítico de cinema Stephen Amidon. Boa parte da imprensa está limitando a discussão que a obra propõe, afirmando que se trata de uma análise sobre o fim da sociedade italiana. A trama, com sua impecável estrutura em quatro capítulos, incita uma reflexão sobre a queda do império humano, partindo de um evento simples, o atropelamento fatal de um ciclista que não recebeu socorro. Ao costurar as narrativas de seus personagens envolvidos de alguma forma no acidente, o roteiro provoca questionamentos essenciais, críticas severas a um modo de vida cada vez mais egoísta, onde a capacidade de empatia se curva perante a necessidade de se obter vantagens. 

No primeiro capítulo observamos a rotina de Dino, uma espécie de variação do Kringelein de “Grande Hotel”, alguém disposto a tudo para viver “a vida real” na alta sociedade, um verme que vibra por saber que foi convidado para uma mesa elegante em uma festa, já que anseia por aquele refinamento ilusório, ainda que, como é evidenciado em uma cena breve, não entenda a diferença entre diversas grifes de água. O texto é claro, a crítica se esconde por trás da gag. Coloque um tecido simples em uma vitrine de uma loja de grife respeitada, que, sem pestanejar, a clientela irá gastar o triplo do valor real do produto, apenas para garantir seu conforto existencial, a satisfação de um status tolo que mascara, por pouco tempo, o complexo de inferioridade. Dino, inebriado por seu deslumbramento, buscando agradar os pais endinheirados do namoradinho da filha, não percebe que sua esposa grávida, vivida pela bela Valeria Golino, passa a noite toda sentindo dores. E quando, algumas cenas adiante, erram o nome dela, fazendo de tudo para não contrariar, ele nem se preocupa em corrigir. 

O segundo capítulo agrega novas discussões, focando na personagem mais interessante e plenamente desenvolvida, a esposa do endinheirado, vivida pela linda Valeria Bruni Tedeschi. Ela começa sendo mostrada como alguém fútil, capaz de confundir o seu motorista, tentando decidir em qual loja irá pra comprar suas roupas. É perceptível seu desconforto, insinuando que ela aceitou viver uma mentira, abdicando de seus sonhos. Ela, como se confirma mais tarde, trocou a necessária aventura pelo comodismo. Ao entrar em um teatro antigo, caindo aos pedaços, desvalorizado pela sociedade, mais interessada em transformar aquilo em um supermercado, a mulher se lembra do seu reflexo jovem no espelho, aquela jovem que, outrora, havia trabalhado como atriz. Em seu desejo por abraçar o status tolo já citado, aceitou se minimizar, beijar diariamente aquele cifrão arrogante, grosseirão e racista, evitando os obstáculos naturais da aventura que é a vida. Ela, ao perceber que a arte está perdendo espaço para o medíocre abastecimento daquele status, metaforicamente aponta o dedo para nós, para o público, questionando o silêncio do povo, que deveria se unir para evitar que aquele local fosse vendido e tristemente modificado. Como não nos identificarmos, quando, por exemplo, vemos nossos cinemas sendo transformados em igrejas evangélicas? O silêncio, a omissão, é o real crime. 

É impossível revelar mais sobre a trama, sem prejudicar a experiência do espectador. Afirmo apenas que, em um período tão fraco, com tanta bobagem pré-adolescente lotando as salas de cinema, é revigorante aplaudir algo tão emocionalmente/intelectualmente maduro. Uma aula de roteiro e direção, um dos melhores filmes do ano. 

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Faces do Medo - "Hellraiser" / "Hellraiser 2" / "Hellraiser 3"


Hellraiser – Renascido do Inferno (Hellraiser - 1987)
Em sua casa londrina, Frank Cotton manipula um quebra-cabeça que, segundo uma lenda, traria a quem o desvendasse eternos e desconhecidos prazeres sexuais. Em vez disso, ele se torna presa dos cenobitas, criaturas sobrenaturais que extraem sua força da tortura e do sofrimento alheio. 
Hellraiser 2 – Renascido das Trevas (Hellbound: Hellraiser 2 – 1988)
O doutor Channard passou toda uma vida estudando os segredos da caixa enigmática que abre as portas do inferno do prazer e da dor. Ele está disposto a conhecer o reino do sadomasoquismo, mas algo muito pior o espera. 
Hellraiser 3 – Inferno na Terra (Hellraiser 3: Hell On Earth – 1992)
A caixa agora cai nas mãos de um dono de boate que acidentalmente liberta pinhead, o mestre da dor e do prazer. A criatura das trevas lhe promete todos os prazeres desejados desde que sacrifique seres humanos num altar.


Imagine a cara da atendente da locadora, ao ver um menino de sete anos discutindo com o pai, para que ele alugasse pela vigésima vez um filme sobre cenobitas do inferno, prazer e dor, em suma: Clive Barker. Eu adorava tanto “Hellraiser”, que uma vez cheguei a pedir de presente de Natal um daqueles cubos. E, em uma época onde souvenires geeks eram inexistentes, ter um cubo de Lemarchand na estante era tarefa impossível. Eu me lembro de ficar numa felicidade extrema ao encontrar na banca de jornal uma revista em quadrinhos com o Pinhead na capa, uma publicação da Editora Abril Jovem que durou pouco tempo. Comprei na hora, para espanto do jornaleiro. Qualquer cena que insinuasse a presença do Frank, o "homem sem pele", como eu chamava na época, dentro do quarto escuro, já me deixava completamente apavorado.

Terror foi o meu gênero de formação, presença marcante durante grande parte da minha infância e pré-adolescência. Estudava sobre suas variadas vertentes e andava para todo lado com um ótimo “Guia de Vídeo – Terror”, lançado pela Editora Escala, que guardo até hoje com carinho. Perdi a conta de quantas vezes eu lia aquele guia, que utilizava frequentemente em minhas garimpagens nas locadoras da região. E, sendo um apaixonado por trilhas sonoras de cinema, aplaudo de pé o trabalho do compositor Christopher Young nos dois primeiros filmes, em especial as faixas “Hellraiser”, “Ressurrection”, “Seduction and Pursuit” e “The Cenobites”, do primeiro, e “Hellbound”, “Something to Think About”, “Leviathan” e “Headless Wizard”, do segundo.

O período era dominado pela infantilização dos slashers. Jason havia acabado de ressuscitar com uma descarga elétrica, Freddy havia se tornado o Bob Hope do inferno, combatendo jovens superpoderosos nos sonhos. O grande diferencial do cenobita vivido por Doug Bradley era a profundidade filosófica de sua ameaça, que ia muito além do fator visual. O clima, mérito da fotografia de Robin Vidgeon, transmitia um horror quase tangível, adaptando com brilhantismo a essência lovecraftiana dos primeiros capítulos do livro. Até mesmo a figura da personagem feminina que combate o assassino, elemento convencional no gênero, ganhava em credibilidade com a presença de Kirsty, vivida por Ashley Laurence, longe do estereótipo frágil de vítima. Ela confronta também a madrasta Julia, vivida por Claire Higgins, uma mulher capaz de tudo para reviver sua paixão de outrora.

O segundo filme, com maior orçamento e sem o envolvimento do criador, potencializa o gore, porém, comete o equívoco de repetir o enredo do primeiro. Toda a subtrama de Frank, que busca se nutrir dos humanos para ressurgir, acaba se tornando a função de Julia, sendo ajudada pelo Dr. Channard. Quando somos conduzidos ao inferno, no segundo ato, o filme ganha fôlego. Visualmente, é impecável, com cenobitas ainda mais criativos, sendo explorados com maior interesse. Não acredito que a revelação de suas origens ajude a obra, já que o mistério, a ignorância, é sempre muito mais apavorante. Ao optar por expandir a mitologia, a produção cavou o túmulo de mediocridade que se tornou a franquia. 

No terceiro filme, uma superprodução barulhenta e sem a audácia dos anteriores, o diretor Anthony Hickox prova que uma verba generosa não diz nada sobre a qualidade do produto final. Pinhead acaba se tornando a sua própria antítese, um assassino típico do slasher, com direito até a algumas piadinhas. Os cenobitas atacam agora na cidade grande, com direito a explosões e enquadramentos que remetem aos filmes da franquia: “Duro de Matar”. A única cena que sugere o brilhantismo corajoso do original se passa em uma igreja, com Pinhead retirando os pregos de sua cabeça e cravando eles nas palmas de suas mãos.

A franquia pode causar vergonha alheia, o mais recente: “Hellraiser – Revelações”, de 2011, é das piores coisas que já vi no gênero. Mas o original continua eficiente, uma obra-prima incontestável.

 * A novela “Hellbound Heart”, de Clive Barker, que foi adaptada no filme original, inédita no mercado nacional, foi lançada pela Editora “DarkSide Books”, com o seu já reconhecido trabalho primoroso de capa dura. É o produto que os fãs sonhavam ter em suas estantes. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Na Mira de 007: Parte 24 - Finalmente Abraçando a Fórmula

Link para os textos anteriores do especial (no final da página):


007 Contra Spectre (Spectre – 2015)
Um detalhe que pode passar despercebido, mas que, creio, diz muito sobre essa nova postura do personagem. Na tradicional gunbarrel, desta feita, voltando a dar as boas-vindas ao público, Daniel Craig é visto caminhando de forma segura, sem tentar esconder o revólver no bolso da calça. A gênese já está completa, após três projetos sendo um leão de chácara em processo de lapidação, ele interpreta agora o mesmo personagem eternizado por Connery, porém, psicologicamente mais agressivo. É o reflexo natural de uma sociedade mais cínica.
   
O filme é o encerramento de uma tentativa arriscada dos produtores da franquia, que, objetivando a renovação do personagem de Ian Fleming, inserindo ele em um molde de obras de ação/espionagem moderno, extirparam dele todas as suas características principais, um reboot agressivo que havia sido orquestrado, de forma bem menos corajosa, na breve era de Timothy Dalton. Como era óbvio desde “Cassino Royale”, o James Bond de Daniel Craig representa, pela primeira vez, a gênese do herói, fórmula corriqueira no cinema atual, um prequel elegante. Em “Operação Skyfall”, o diretor Sam Mendes conseguiu elaborar algo que mantinha o espírito das produções, porém, injetava um elemento autoral nunca antes experimentado na série, um maior refinamento técnico. Já em “007 Contra Spectre”, ele entrega um produto para os fãs antigos, com todos os elementos reconhecíveis, referências claras e sutis, além de um desfecho que é uma linda declaração de amor à nostalgia. É possível que, acostumados com as modificações, uma boa parte do público, aqueles que passaram a gostar do personagem com os filmes recentes, encontrem motivos para reclamar da zona de conforto, dos aspectos menos realistas.

007 voltou a ser sinônimo de escapismo, viagens pelo mundo, muitas mulheres seduzidas pelo caminho, cenas de ação improváveis que desafiam as leis da gravidade, capangas truculentos e silenciosos, vilões de revistas em quadrinhos e, acima de tudo, diversão, algo que estava sendo minimizado com um crescente interesse freudiano pela angústia existencial. O clássico início com o cano do revólver está de volta, e, mais importante, o senso de humor retorna em grande estilo, ainda que Craig soe pouco confortável em algumas piadinhas mais escancaradas. Ele consegue emular perfeitamente o senso de perigo que Connery transbordava, mas, não há como negar, falta a ele, enquanto ator, a capacidade de empatia/carisma que Roger Moore e Pierce Brosnan dominavam com as mãos nas costas. Numa comparação esdrúxula, basta imaginar o Papa Bento XVI tentando animar uma festa, algo que o novo Papa faria sem esforço. É muito interessante a forma como o roteiro utiliza os coadjuvantes, M, Q e Moneypenny, usualmente meras peças decorativas nos filmes clássicos. Eles estão inseridos, não apenas nas sequências de ação, algo relativamente mais fácil, mas, especialmente, nas engrenagens que mantém a narrativa no curso.

A ideia de resgatar o vilão mais famoso da franquia, Ernst Stavro Blofeld, apesar da tola tentativa de esconder o que o título já deixava óbvio, poderia ter sido mais bem aproveitada. Um personagem tão forte, reduzido a uma nota de rodapé. Como maior ponto negativo, a motivação dele, vivido por Christoph Waltz, no mesmo piloto automático que consagrou seu nome no cinema americano. O propósito dele na trama é simplesmente medíocre, com o roteiro cometendo o equívoco crasso de buscar uma justificativa íntima, familiar, para o antagonismo dos personagens, o tipo de recurso desgastado e simplório que se espera, por exemplo, de uma novela mexicana. Outro aspecto frustrante é a participação de Monica Bellucci, uma atriz que sempre foi cogitada pelos fãs como a Bond Girl perfeita, acabou sendo relegada a uma inglória ponta. Quer mais um problema? Jaws e Oddjob, só pra citar os mais famosos, eram brutamontes tolos e unidimensionais, porém, receberam cenas nos roteiros que os valorizavam sobremaneira. Pense em “Goldfinger”, que você irá se lembrar do confronto no Fort Knox. Pense em “Moscou Contra 007”, que você irá se lembrar do confronto no trem com Red Grant. Pense em “Spectre”, que você irá se lembrar de... Bom, com sorte, você vai se lembrar do capanga, vivido por Dave Bautista, que tinha algo como, sei lá, unhas de prata, coisa do gênero, que ele utiliza uma vez apenas, e, surpreendentemente, não em um confronto com o agente secreto. Com exceção da empolgante sequência inicial, uma marca da franquia, que referencia “007 – Somente Para Seus Olhos”, não há qualquer momento de ação verdadeiramente inesquecível. O confronto final do herói com o vilão consegue ser menos interessante que o fraco encontro da versão de Moore com o Stromberg, de “O Espião Que Me Amava”. É mais movimentado, claro, porém, tão irrelevante quanto.

E a música-tema de Sam Smith? “Writing’s on the Wall”, emoldurada pelos competentes créditos de Daniel Kleinman, consegue ser menos sofrível do que imaginei, mas, ainda assim, é um tema pouco inspirado, com uma letra que não condiz com absolutamente nada que simboliza o personagem, em sua versão literária ou cinematográfica. Nem mesmo o 007 mais emotivo de George Lazenby se expressaria de forma tão drama queen. Eu prefiro escutar a Lulu berrando “The Man With The Golden Gun” em looping, do que aguentar esse candidato do The Voice massacrando décadas de construção de personagem. Um ponto interessante dos créditos, a inserção de cenas dos três filmes anteriores (exatamente no momento em que a letra da canção menciona o agente sendo perturbado pelo seu passado), recurso que havia sido utilizado apenas nos créditos de “À Serviço Secreto de Sua Majestade”, com a intenção de reforçar o sentido de unidade para o público, já que Connery havia sido substituído. Os personagens mostrados, os mortos-vivos citados no letreiro pós-gunbarrel, a constatação de que, apesar de todos os esforços do roteiro de “Skyfall”, o espião ainda teria alguns anos de análise pela frente. A opção por manter os resquícios desse dramalhão, além de enfraquecer a essência do personagem literário, demonstra a insegurança dos produtores em investir totalmente nessa nova abordagem.

Com suas muitas falhas, “007 Contra Spectre” é divertido, uma bem-vinda tentativa de retorno à fórmula da franquia. E, apesar das manchetes equivocadas de alguns veículos mais afeitos às chamadas polêmicas, não é a última missão do personagem. No máximo, pode ser a última participação de Craig, um ator que exerceu bem sua função. 

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Tesouros da Sétima Arte - "A Navalha na Carne", de Braz Chediak


A Navalha na Carne (1969)
Num subúrbio do Rio de Janeiro, Norma Suely é uma prostituta oprimida pelo objeto de sua paixão, o cafetão de baixo nível, Vado.  Certo dia, ao chegar de madrugada aos aposentos de Norma, em busca de dinheiro, Vado descobre que o mesmo havia desaparecido. Revoltado, ele a acusa pelo ocorrido, mas ela alega ter sido Veludo, um homossexual que mora no quarto ao lado, quem deu sumiço ao dinheiro.


Com essa pérola do nosso cinema, o diretor Braz Chediak conseguiu estabelecer um clima opressivo praticamente insuportável, primando por planos fechados e longos planos-sequência, com uma sábia utilização do silêncio, que vai além dos quase trinta minutos iniciais só com sons diegéticos. O texto corrosivo de Plínio Marcos, defendido de forma naturalista pelo trio: Jece Valadão/Glauce Rocha/Emiliano Queiroz, vai preenchendo e consumindo o claustrofóbico ambiente, o quarto fétido e desorganizado que serve como microcosmo de uma sociedade hipócrita. Os conflitos originados por atos de pura mesquinharia ocasionando em agressões gratuitas, como um câncer que lentamente se espalha pelo organismo. O cafetão que sente prazer em humilhar sua prostituta, extravasando com violência, física e psicológica, um desejo homossexual enrustido, elemento sugerido em diversas cenas, apontando com sadismo os sinais de envelhecimento precoce na mulher que vive da aparência.

Nesse quarto de pensão, o ódio coletivo, que nasce da insatisfação social e do desgaste natural diante dos rituais vazios, conduz os personagens ao limite da resistência. O silêncio durante todo o primeiro ato, mais do que um recurso de estilo, serve também, com sua antinaturalidade, para enfatizar a característica metafórica de cada diálogo posterior. Todos os sentimentos são meticulosamente potencializados, pois não se trata de um simples caso que poderia estampar a manchete de um jornal sensacionalista, mas, sim, um Álamo existencial, seres cansados buscando evitar a iminente extinção decorrente da evolução natural. Eles expurgam as verdades de seus lábios, suas palavras como facas afiadas, como navalha na carne, pois sabem que, naquela sociedade corrupta em formação, apenas a mentira iria sobreviver. “Navalha na Carne”, essa obra-prima do cinema nacional, merece ser mais valorizada. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Devo Tudo ao Cinema - S01E10 - É Possível Fazer Cinema Sem Recursos? (4 de 5)

Continuando no tema, abordo alguns livros que podem facilitar esse processo.

Cine Noir - "A Marca da Maldade", de Orson Welles


A Marca da Maldade (Touch of Evil – 1958)
Ramon Vargas (Charlton Heston) é um chefe de polícia mexicano que está em lua de mel com sua mulher Susan (Janet Leigh) numa cidadezinha fronteiriça com os EUA. Quando um crime acontece, Ramon se confronta diretamente com Hank Quinlan (Orson Welles), o capitão da polícia local, corrupto e tirânico.


Por mais que o investigador mexicano, vivido por Charlton Heston, seja mostrado em destaque no cartaz, o corrupto capitão, vivido por Orson Welles, é o real protagonista da trama, o personagem com o arco narrativo mais interessante. Como é sugerido na simbologia visual de uma das melhores cenas no terceiro ato, ele é, moralmente, um valente touro, porém, cansado, ferido por banderillas, consciente de sua queda iminente.

A esposa dele foi assassinada no passado por um criminoso que escapou impune, uma informação que o roteiro inteligentemente insere nas entrelinhas, explicando assim a conduta dele, sua ausência de escrúpulos. Para ele, os fins, por mais injustos que sejam, justificam os meios. A conclusão da investigação prova que, a despeito de seus métodos repulsivos, ele estava certo, a sua sempre celebrada intuição havia se provado correta. Numa análise mais profunda, pode-se afirmar até que ele seja o herói da trama, quase sempre mostrado centralizado no enquadramento. Perceba a forma como ele se recusa a atirar num homem pelas costas, um traço de caráter que demonstra a existência de um código de conduta. Vargas, por outro lado, pode ser visto como uma versão jovem de Quinlan, ainda dominado por seus princípios éticos, quase sempre ocupando os cantos da tela, uma representação de sua insegurança profissional, e, principalmente, de seu desequilíbrio emocional.

Welles, mestre na composição das imagens, utiliza generosamente elementos do cenário como forma de agregar mais camadas de leitura às situações. Quando o seu personagem esquece algo relevante em uma cena, um aviso na porta já sinaliza para o público esse equívoco, que será revelado numa sequência posterior. Em seus filmes, apaixonado por mágica, ele incita seu público a vasculhar cada enquadramento, enquanto opera o truque bem diante dos olhos. A opção consciente pelo ângulo baixo ao enquadrar os personagens, numa sugestão subliminar, injeta neles um senso de ameaça, que, complementado pela atmosfera criada pela fotografia expressionista de Russell Metty, estabelece um retrato muito mais tangível de suas características, mais do que o roteiro poderia informar.

Analisando com atenção, o celebrado plano sequência inicial, ainda que brilhantemente conduzido, é o fator menos interessante do projeto. O ouro está na composição dos personagens e na forma como o roteiro desconstrói as convenções do gênero.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline", com opção de dublagem e um ótimo documentário (legendado) sobre a produção.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Inversão de Valores

“Ele roubou porque é pobre, não teve oportunidade na vida...”

Eu sinto profunda vergonha, estou realmente preocupado com essa nova mentalidade que parece estar se espalhando, com as notícias recentes sobre os arrastões. Justificar a crueldade, a deficiência de caráter, a má índole, com a carência de bens materiais, não é somente um argumento incrivelmente desonesto e cretino, mas, também, uma atitude irresponsável de omissão perante um processo político de base ideológica simplista, com interesses populistas e eleitoreiros na manutenção do caos. A gênese pode ser traçada facilmente, um calculado interesse em dividir a nação, com um discurso de ódio, em duas trincheiras: pobres e ricos. Como se a desigualdade social fosse um fenômeno moderno. A única pobreza que verdadeiramente limita o ser humano é a de caráter.

O filho da comunidade mais pobre, aquele que foi criado com dificuldade por uma mãe analfabeta, que trabalhou em dois empregos, por toda a vida, para garantir que o menino fosse “do bem”, sabe que há valor na leitura de um livro, algo mais importante do que adquirir celulares caros. Prevejo com temor um futuro onde a mãe de um preso, ao visitar o filho na penitenciária, irá parabenizá-lo pelo compreensível revide na sociedade injusta. E irei dizer: sou de uma época em que as mães de presos, por menos instrução que tivessem, sentiam vergonha pelas atitudes do filho criminoso. É uma questão de caráter, índole. O real problema que deveria ser o foco nas discussões é a parentalidade irresponsável, uma família composta por seis crianças, inseridas em uma realidade onde apenas um deles, com dificuldade, poderia se alimentar de forma digna. E como o sistema atua nessa questão? Incentivando, com benefícios materiais, a produção irresponsável de filhos. Basta somar 2 e 2, não é complicado. O adulto que não compreende essa equação cruel, que formará um legado terrível para as próximas gerações, não enxerga dois palmos diante do nariz, ou, na pior das hipóteses, está sendo beneficiado nessa manutenção do caos. O tipo de egoísmo imediatista que possibilitou tragédias históricas.

A desigualdade social sempre existiu, sempre irá existir. Somente o trabalho e o estudo dignificam o ser humano. A dificuldade é um obstáculo a ser superado, ela engrandece o esforço. A pobreza que deve ser temida é a de espírito. O caráter se fortalece nas situações mais complicadas. O estímulo ao coitadismo, o vitimismo manipulador, é o recurso dos incompetentes, estratégia política pouco original que visa apenas a permanência no poder. Essa absurda inversão de valores, caso não seja interrompida, será um câncer maligno no futuro próximo do Brasil. 

domingo, 15 de novembro de 2015

Guilty Pleasures - "Psicose 2" e "Psicose 3"

Link para os textos do especial:


Psicose 2 (Psycho 2 – 1983)
Psicose 3 (Psycho 3 – 1986)
O segundo tem sua parcela de fãs, o que, sinceramente, não consigo compreender. Ele pode até funcionar medianamente enquanto suspense, mas, com a revelação bombástica do terceiro ato, onde Norman Bates descobre que sua mãe no original não era a sua verdadeira mãe, convenhamos, sem exagero, o roteiro cospe na cara de Alfred Hitchcock e do autor Robert Bloch, que havia escrito uma excelente continuação, que não foi aproveitada na trama, uma crítica bem-humorada ao cinema de terror comodista que os norte-americanos realizavam no período.

O livro era uma tirada de sarro com a indústria, uma espécie de gozação com a necessidade mercadológica de lucrar com um projeto tão desnecessário quanto aquela refilmagem posterior comandada por Gus Van Sant. Já o filme, ainda que seja protagonizado por Anthony Perkins e uma encantadora Meg Tilly, esquece praticamente tudo o que foi estabelecido sobre o personagem no original. Ao invés do suspense e do uso da sugestão, o diretor Richard Franklin, filmando às pressas, transforma o protagonista, tridimensional no clássico e unidimensional nessa releitura, em uma atração interessante para o público jovem que vibrava com as mortes perpetradas por Jason Voorhees. O assassino perturbado vira um gentil candidato a funcionário do mês numa lanchonete, uma ideia que, por si só, já é um atentado à suspensão de descrença. A relação dele com a bela colega de trabalho, uma jovem que, na realidade, tinha a intenção de facilitar o caminho dele de volta para a insanidade, é tão inverossímil quanto os termos de sua liberação da penitenciária. Ela, em questão de dias, simpatiza com o colega e, num ato de incrível ingenuidade, começa a extravasar seus instintos maternos com ele.

O terceiro, terrivelmente mal dirigido por Perkins, retomaria, sem sutileza, algumas características de Bates, como o apreço pela taxidermia, porém, na maior parte do tempo, parece mais preocupado em proporcionar momentos de nudez gratuita. Uma cena, em especial, abusa do exploitation, quando uma jovem vítima tira o blusão na cabine telefônica, sem motivo algum, antes de ser esfaqueada. E, para reforçar o impacto, a cena insere um gore tolo, com ela pisando em cacos de vidro. Vale salientar que o mestre Hitchcock, no original, criou a cena imortal do banheiro, impactante até hoje, sem mostrar o facão penetrando o corpo de Janet Leigh. E, falando nela, acho bizarra a subtrama da freira fugitiva, que acaba atravessando o caminho de Norman, que fica obcecado por ela, já que é loira, com o mesmo corte de cabelo de Marion Crane, e, numa forçada de barra espetacular, tem as mesmas iniciais do nome: Maureen Coyle. O roteiro nos conduz a um final que, ouso dizer, está entre os mais toscos já imaginados no gênero. Nada é mais constrangedor do que ver um ótimo ator como Perkins, símbolo da era de ouro do cinema, acarinhando o braço decepado de sua mãe, enquanto repete aquele sorriso sombrio da cena final do filme original. É, literalmente, fim de carreira.

Os dois filmes são horríveis, indefensáveis, mas, por uma estranha razão, paro para assistir quando estão passando na televisão. O terceiro é praticamente uma comédia involuntária. A cena final do segundo, com Bates metendo uma pazada na cabeça da velhinha, é o único momento genuinamente interessante dos dois filmes. O ator chegou a retomar o personagem em uma sofrível quarta produção: “Psicose 4 – A Revelação”, provando que não tinha o menor senso crítico. 

"Aliança do Crime", de Scott Cooper


Aliança do Crime (Black Mass - 2015)
Um dos problemas principais do filme, sua estrutura convencional, altamente dependente de cenas expositivas, guiada por interrogatórios que conduzem a flashbacks, é temperada, de vez em sempre, por uma imersão no padrão do mafioso estereotipado estabelecido pelo “Os Bons Companheiros”, de Scorsese. Aquela agressividade exagerada no tom dos diálogos, até mesmo pra perguntar as horas, sem o cuidadoso estudo de personagem do já citado mestre, acaba potencializando apenas os aspectos caricaturais, algo péssimo em uma trama baseada em eventos reais. 

Johnny Depp é um ator esforçado, tem grande carisma, mas, desta feita, parece estar emulando, entonação de voz e maneirismos, aquela fúria contida de Jack Nicholson. As próteses no rosto, a careca, a maquiagem que deveria ser absorvida pela credibilidade da atuação, acaba se destacando nas cenas, uma distração que minimiza o impacto de várias sequências importantes. O cérebro segue consciente de que estamos vendo o ator em uma festa à fantasia. E, em dado momento, ainda no início do filme, por volta dos vinte minutos, o roteiro, de Mark Mallouk e Jez Butterworth, demonstra outro problema crasso, a falta de coragem. Vemos o Depp maquiado com o filho pequeno e a esposa, na mesa do café da manhã. O menino diz que estava sofrendo bullying e, pra se defender, esmurrou um coleguinha. Depp diz algo como: “Muito bem, filhão”, o que leva a esposa a reclamar. Cena típica de sitcom, com fotografia típica de sitcom. O protagonista então, por um generoso tempo, passa um sermão, indicando ao menino o real problema: O ruim não é a agressão, mas, sim, a agressão na frente de outras pessoas. A esposa, com a leveza de uma coadjuvante de “Friends”, responde: “Olha, acho que essa não é a melhor forma de se educar uma criança”. Por vários minutos, achei que estava no sofá de casa vendo um comercial de margarina na televisão. Ela é a esposa de um assassino, um mafioso, não há credibilidade alguma na forma como o roteiro, com mão pesada, conduz esse momento intimista do casal, que se estende por muito mais tempo do que deveria. Quando você se revira na poltrona, olha para o relógio e constata surpreso que se passaram apenas trinta minutos, sem sentir o menor interesse em acompanhar o desenrolar da história daqueles personagens, você percebe que o filme tem sérios problemas. 

Como recomendação, para aqueles que realmente se interessem em conhecer melhor a história do gângster Whitey Bulger, sugiro o documentário: Whitey: United States of America v. James J. Bulger, do ano passado, dirigido por Joe Berlinger. O diretor Scott Cooper faz o que pode com o fraco material à disposição, mas, apesar de todo o lobby que já se faz para o filme no Oscar, “Aliança do Crime” é muito pouco inspirado, com um ritmo moroso, coadjuvantes sem brilho, e salvo, na maior parte das vezes, pelo carisma do protagonista. 

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Sétima Arte em Cenas - "No Mundo de 2020"

Link para os textos do especial:


No Mundo de 2020 (Soylent Green – 1973)
Visto por muitos como um filme menor, normalmente esquecido quando se mencionam as obras de ficção científica com temática apocalíptica da década de setenta, considero essa obra, dirigida por Richard Fleischer, uma das mais eficientes.

Como é bela a palavra: Saudade. Foneticamente ela ressoa na alma de quem a expressa, como que buscando uma maneira de visualizar por um breve momento um sentimento esquecido no tempo, uma pessoa perdida entre as páginas de sua biografia, um aroma de frutas comidas no galho de uma árvore imponente que outrora parecia atravessar as nuvens, mas que hoje somente acaricia um corpo cansado com sua sombra. O personagem vivido pelo excelente Edward G. Robinson não precisa ler nos tomos sobre a beleza das chuvas de outono, pois em sua juventude sentiu-a em seu rosto. O mundo foi destruído pela ambição do homem, que se multiplicou sem critério, enquanto dividia cada vez mais seus recursos naturais. Não existe espaço para abrigar tantos corpos, que se amontoam em ruas devastadas pela poluição. O efeito estufa somente não é sentido nas mansões dos privilegiados, que se refugiam com o lucro que acumularam ao longo das décadas de trabalho incessante daqueles que suam e se contaminam à sombra de seus impérios. O velho Sol Roth (Robinson) aceita as migalhas que lhe são atiradas, junto de seu amigo, o detetive Thorn (Charlton Heston), para quem aquela triste realidade é a única existente. Nascido no caos urbano e obrigado a se acostumar com a corrupção, aproveita qualquer oportunidade profissional nos condomínios de luxo, para roubar itens raros como barras de sabonete ou toalhas de algodão, intencionando ofertá-los ao velho amigo. A recompensa insinua-se no olhar de Sol, que profundamente emocionado resgata memórias felizes, contando-as com o fervor de um adolescente. Thorn vive pelas lembranças de seu amigo.

A montagem de fotos que inicia e dá o tom ao projeto, faz uma crítica contundente e atual. Começando por algumas paisagens idílicas ainda não tocadas pela mão humana, envereda de forma progressiva para evidenciar os efeitos da ação de nossa passagem, a fumaça industrial, os gases dos automóveis, o caos que estamos acostumados a vivenciar diariamente. Eletricidade inexistente, comida outrora farta nos pratos das famílias, agora se resume a uma ração de nome: “Soylent”, que é fornecida ao povo como se fossem porcos em um chiqueiro. A água é um elemento tão precioso e raro que ninguém tem coragem de desperdiçá-la no ato do banho. No banheiro de luxo dos privilegiados ela continua vertendo abundante, nos corpos de belas jovens que, despidas de orgulho e personalidade, tornaram-se “mobília”, instrumentos sexuais sem nenhuma esperança de redenção. 

O relacionamento entre Sol e Thorn é o coração do filme, aquele elemento que resiste na memória de quem o assiste. Robinson estava no último estágio de um câncer, ele sabia que seu fim estava muito próximo. A sua última cena, aquela que justifica a inserção do filme nesse especial, foi gravada dez dias antes de sua morte, uma bela despedida ao som de Tchaikovsky, Beethoven e Grieg. Próximo a ele, um Heston nitidamente emocionado (o próprio ator falaria anos depois, da dificuldade que sentiu ao fazer a cena), acompanhava os últimos momentos de um homem entregue à nostalgia. Tendo escolhido uma morte rápida, uma espécie de eutanásia lúdica, o seu personagem assiste em uma enorme tela que o envolve, reconfortantes imagens e sons de uma Terra jovem e colorida. Deslumbrado como um menino e voluntariamente exilado em sua saudade, o velho apenas recupera a consciência momentos antes do fim, quando decide provar a si mesmo que sua passagem no planeta não foi em vão, decidindo então contar ao jovem amigo o segredo mais importante e tenebroso, que obviamente não revelarei neste texto. Thorn carrega em suas mãos a inspiradora esperança, que mesmo esquálida e desacreditada, precisa ser propagada.





* O filme acaba de ser lançado em DVD, em versão restaurada, pela distribuidora Versátil, na caixa: "Clássicos Sci-Fi -Vol.2", que contém também: "Scanners - Sua Mente Pode Destruir", "O Homem dos Olhos de Raio-X", "O Monstro do Ártico", "Matadouro 5" e "Robinson Crusoé em Marte".

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A Trilogia "De Volta Para o Futuro"


De Volta Para o Futuro (Back To The Future – 1985)
De Volta Para o Futuro 2 (Back To The Future  Part 2 – 1989)
De Volta Para o Futuro 3 (Back To The Future  Part 3 – 1990)
O filme traduzia em imagens o sonho máximo de qualquer jovem fã de ficção científica: poder se deslocar para qualquer época da história e modificar o rumo de sua vida. A ideia foi concebida pelo roteirista Bob Gale após uma visita a seus pais. Ao encontrar no porão da casa um velho livro escolar, descobriu que seu pai havia sido o presidente de sua classe de formandos. Comparando-o com o presidente na sua época de adolescente, percebeu que o via como alguém totalmente diferente dele, alguém que nunca faria parte de seu círculo de amizades. Caso ele tivesse convivido com seu pai na época de escola, teriam se dado bem? Após encontrar-se com o amigo Robert Zemeckis, acabou descobrindo que compartilhavam o mesmo interesse. Ele achava interessante a ideia de uma mãe que orgulhosamente dizia a seus filhos que nunca havia beijado ninguém na escola, porém havia sido de fato, uma jovem bastante promíscua. Nascia ali o conceito fantástico por trás da trilogia.

Marty McFly (Michael J. Fox) representa o adolescente típico de sua época. Insatisfeito com seu pai, por considerá-lo um homem fraco e submisso, sempre alvo das perseguições de um valentão. Vê sua mãe como uma pessoa deprimida e descuidada com seu corpo. O jovem tem como amigo um infame inventor visto como louco pela sociedade, Dr. Emmet Brown (Christopher Lloyd). Um grande acerto no roteiro é não nos explicar como essas figuras tão díspares acabaram se tornando amigos tão próximos. Teria sido uma consequência de uma viagem no tempo? Casualidade? Outra ideia fantástica é transformar a usual máquina do tempo, sempre retratada pelo cinema do gênero, especialmente nos anos cinquenta, como engenhocas visualmente complexas, em um antiquado DeLorean, com suas portas que se abrem verticalmente.

O segundo e o terceiro, filmados simultaneamente, mantém o carisma do primeiro, brincando com as regras estabelecidas. Gosto demais da estrutura narrativa caótica do segundo, fugindo do convencional, sem atos definidos e abusando do elemento da viagem no tempo, que, ao contrário do original, tem papel fundamental do início ao fim. Só pelo fato do roteiro se dedicar exclusivamente a esse recurso, extremamente arriscado, já demonstra a coragem da produção, qualidade raríssima em sequências de filmes de sucesso. Toda a parte explicativa, necessária, e que normalmente toma várias cenas em projetos similares, é resolvida nesse em uma cena curta, onde Doc Brown, melhor professor do mundo, explica para o público a teoria em rabiscadas de giz na lousa. Simples e eficiente. A opção de Dean Cundey por uma fotografia que prima pelo exagero nas cores, em sua representação do futuro, merece crédito por se afastar daquela visão futurista clássica no cinema do gênero, quase sempre sombria e pessimista. Esse aspecto dark é reservado para a visão alternativa do “presente” do personagem, a sua cidade dominada pelo ambicioso Biff, uma sequência cujo tom difere totalmente do que a história havia estabelecido até então. E, claro, vale salientar a presença da bela Elizabeth Shue, como a namorada de Marty, vivida sem brilho no original por Claudia Wells.


O embrião criado no primeiro filme e aprimorado em suas duas continuações é um prato cheio para os que se deliciam assistindo várias vezes. Suas camadas de interpretação são tão amplas, que vale a pena assistir as obras por diferentes pontos de vista, descobrindo assim um filme novo a cada vez. Ao voltar para a década de cinquenta, Marty acaba criando o Rock and Roll ao tocar em sua guitarra “Johnny B. Goode”, na festa de formatura de seus pais. Consegue fazer seu pai se impor perante o amigo que passaria a vida toda infernizando ele, acabando por salvar a honra de sua mãe e modificando totalmente o seu futuro. É a magia do cinema ensinando que podemos modificar nossas vidas inteiras mediante pequenas ações no presente. Vale salientar também a qualidade técnica e artística das continuações, tão boas ou melhores que o original. Considero o segundo, por exemplo, bastante superior ao primeiro. O jovem em sua segunda aventura precisa lidar com as consequências de seus atos no filme original, pois todo o espaço-tempo foi modificado. O filme brinca com cenas como a da formatura, fazendo Marty revisitar seu próprio solo de guitarra. Em nenhum momento fica a impressão que os produtores intencionavam apenas lucrar em cima do sucesso do primeiro, existe uma razão bem justificada para cada linha de roteiro. No terceiro, os produtores ousaram ir além, levando a trama e seus personagens para o Velho Oeste americano. Em 1955, o jovem recebe uma carta do Dr. Brown datada de 1855 e descobre que ele será assassinado, precisando voltar ao passado para tentar salvar seu amigo.

O terceiro, algo difícil na indústria, consegue manter o nível dos anteriores, oferecendo algo que os fãs não esperavam, e, possivelmente, não desejavam, uma homenagem ao gênero Western. Saudade da época em que os produtores não mimavam o público nas continuações. O que temos hoje? Um período dominado por franquias medíocres e preguiçosas. A conclusão criada para a saga demonstrava imenso poder autoral de seus criadores, pois não deixam ao final nenhuma esperança de retorno. Aquela era a história que Bob Gale e Robert Zemeckis queriam contar e chegava ao seu apoteótico desfecho. Teorias para possíveis continuações não faltam, mas estão aonde devem sempre ficar: nas mentes dos fãs e admiradores desta aventura inesquecível. Graças a “De Volta para o Futuro”, poderei sempre voltar no tempo, ao som da ótima trilha sonora de Alan Silvestri, e vivenciar novamente o brilhantismo que permeou minha imaginação de sonhos escapistas e DeLorean’s voadores.


* É importante salientar e aplaudir novamente o trabalho primoroso da editora “Darkside Books”, da seleção criteriosa do material, passando pela apresentação do produto e divulgação/interação com os leitores. São livros meticulosamente pensados por pessoas que verdadeiramente amam o que fazem. E, continuando essa jornada de sucesso, eles lançam “De Volta Para o Futuro – We Don’t Need Roads: Os Bastidores da Trilogia”, escrito por Caseen Gaines, o fruto de vinte meses de pesquisa do autor, que conduziu mais de quinhentas horas de entrevistas com a equipe técnica, elenco, críticos e com os fãs. O livro é muito interessante, rico em informações, com uma belíssima arte de capa da editora, um verdadeiro tesouro para todos os que já foram tocados pela mágica atemporal desses filmes que se recusam a envelhecer. Sua estante irá agradecer essa adição.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Entrevista com Braz Chediak


Em mais uma entrevista exclusiva para o "Devo Tudo ao Cinema", conversei com o amigo, grande diretor/roteirista/escritor, Braz Chediak, responsável por filmes como: "Os Viciados", "Bonitinha Mas Ordinária", "Perdoa-me Por Me Traíres", "Dois Perdidos Numa Noite Suja" e a obra-prima: "A Navalha na Carne". E, num gesto muito carinhoso, ele enviou uma foto especial para o blog. Obrigado, Braz!

O – Quero inicialmente dizer que é uma honra ter conquistado sua amizade, você está no seleto grupo de pessoas a quem mostro meus curtas em primeira mão, buscando sua opinião sempre sincera. Eu te respeito demais como profissional e admiro sua generosidade. Bom, dito isso, quais foram as suas referências artísticas quando decidiu se tornar um cineasta? Você se recorda dos filmes que assistiu quando criança, aqueles que te iniciaram nesse mundo de sonhos, captando sua imaginação?

C - Obrigado, Octavio. Como você sabe, sou de uma cidade, Três Corações, MG, onde a cultura não existia e até hoje ainda é frágil. Ainda não temos teatro, escolas de Artes, etc., etc., mas tive a sorte de, quando vim morar aqui, já adolescente, existir três cinemas que exibiam filmes diferentes. Um por dia. Então, talvez para fugir à minha realidade, que era dura, me refugiei nos livros e nos filmes. Me apaixonei pelos faroestes, pelos filmes de suspense, pelas comédias. Consequentemente, conheci John Ford, Hitchcock, George Stevens, Elia Kazan, e alguns outros diretores. Dos primeiros, ficava admirado com o ritmo, a atmosfera (ainda que, na época, não sabia o que era isto), como prendiam o público em seus filmes. De Kazan, a direção de atores. Marlon Brando, James Dean e tantos outros me levavam ao cinema. E, como todos os homens, curti grande paixão por Marilyn Monroe, Natalie Wood, e outras estrelas mais.
Ah, gostava, também, do Roger Corman. Ainda hoje gosto e fiquei feliz em vê-lo como ator no SILÊNCIO DOS INOCENTES, o que considerei uma homenagem.
Mas, voltando à sua pergunta: foi nessa época, eu tinha uns 14 anos, que decidi trabalhar em cinema.

O – Sei que você não assiste a seus próprios filmes, irritado com os produtores que, com o objetivo de encaixar as obras no formato televisivo, acabaram cortando o material, criando algo diferente. Essa mutilação perturba aquele que se dedicou tanto na criação minuciosa do projeto. Além de pedir sua opinião sobre isso, aproveito para aprofundar o tema. O cinema popular que é feito hoje no Brasil é, com raras exceções, o formato televisivo, em estética e linguagem, exibido na tela grande, uma espécie de caminho inverso. Vejo isso como algo prejudicial e sintomático. Você concorda comigo?

C - Claro, concordo, mas é preciso compreender que cada Arte tem sua linguagem. E reconhecer a força da TV. Assim como temos que reconhecer a força da Internet.
A Arte, como tudo, caminha. Veja o livro, por exemplo: o Digital já está tomando conta, você carrega uma biblioteca, com milhares de livros, no bolso. Ainda que goste do livro/papel, reconheço que o digital é um avanço, evitará que milhões de árvores sejam cortadas, é fácil de carregar e, em menos de cinco anos não haverá mais analfabetos no planeta. Toda criança aprenderá ler para poder digitar.
Quanto ao cinema brasileiro, está acontecendo o que aconteceu com o teatro na década de 60.
Te dou um exemplo: um dia, creio que em 1964, fui assistir a uma peça no centro do Rio em companhia de alguns atores e atrizes. Quando chegamos na Cinelândia, havia uma fila imensa e um dos atores, creio que o Paulo Autran, comentou: “hoje a casa vai lotar”, mas outro que estava conosco riu e respondeu: “O Cinema Palácio vai lotar. A fila é para ver o James Bond.” E era. O teatro estava praticamente vazio.
E a previsão, creio que de Andy Warhol:  “no futuro cada um fará seu próprio filme!”, está se realizando. E isto é bom. Muitos cineastas surgirão daí.
Mas, como todas as Artes, o cinema continuará. A Arte não morre, ela se transforma.

O – Como você vê a atual valorização das chanchadas, essa expressão que já sintetiza o preconceito, pela crítica? Não somente o trabalho realizado pela Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, mas, também, a vertente das pornochanchadas da década de setenta? Você esteve inserido, com filmes como “Os Mansos”, “Banana Mecânica” e “Eu Dou O Que Ela Gosta”, O Roubo das Calcinhas”. O entretenimento popular sempre será visto com desprezo em uma sociedade que sofre de complexo de vira-latas?

C - Chanchada vem de “chancho”, porco, em espanhol. Foi criada pela crítica velha, que comia na mão de Hollywood. Imagina, naquela época existia até um “Embaixador” de Hollywood no Brasil, Harry Stone. Como se fossemos uma republiqueta bananeira.
A recuperação das chanchadas se deve à nova crítica, que dá mais valor à nossa luta, sem preconceitos, que compreendem que foi ela, a chanchada, que mais preservou a imagem visual e os gostos do País.
Quanto ao rótulo de “pornochanchada”, também criada por um crítico velho, creio que do JB, também foi criada para desmoralizar o cinema popular brasileiro. Como fazer pornografia em plena ditadura militar, com uma censura apavorante?  As chamadas “pornochanchadas”, hoje, são ingênuas até nas matinês da Angélica ou da Xuxa.
Mas o Brasil era o 5º maior mercado cinematográfico do mundo. Então os americanos molharam a mão da mídia, de críticos da época, para destruir esse mercado para nossos filmes.
Nelson Rodrigues cunhou bem a expressão “complexo de vira-latas”. Até os próprios cineastas – que não eram tão cultos como gostavam de aparentar -  torciam o nariz para aqueles que faziam filmes que agradavam ao povão. Tinham uma expressão para os desclassificar: “Você está se vendendo ao Sistema”.
O Sucesso de NAVALHA NA CARNE, que dirigi, provocou ira entre alguns “cineastas intelectuais” que não conseguiam fazer um bom filme, não sabiam onde colocar uma câmera, que lente usar, etc., etc. Eram amadores, que não tiveram a humildade de aprender a técnica com os velhos diretores.
Revi, recentemente, Os Mansos – onde lancei Paulo Coelho como ator. Fique chateado, pois o filme está todo mutilado. E pelo próprio produtor, que foi quem me enviou o DVD. Cortou todos os finais de gags ou piadas. Ficou como se fosse uma ejaculação precoce.
Hoje as coisas estão mudando. Filmes populares são aplaudidos pelos espectadores e pela crítica que faz comentários lúcidos, mostrando que conhecem as dificuldades de um cinema que continua de cuia na mão, procurando alguns trocados.


O – Sempre digo que a dificuldade é um terreno fértil para a criatividade, não é um empecilho, mas uma bênção. Como você definiria a relação entre o baixo orçamento e a criatividade no trabalho de um cineasta? Você lembra algum exemplo de situação onde você teve que se forçar além dos limites financeiros, improvisando, como forma de finalizar uma cena?

C - NAVALHA NA CARNE teve um orçamento menor que $ 20.000 (Vinte Mil Dólares).  Em DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, me desentendi com o produtor, Jece Valadão,  logo na primeira semana de preparação. Ele ficou magoado por eu não tê-lo colocado no filme e, então, com cotas vendidas, sabotou as filmagens. Muitas vezes, tive que parar as filmagens porque não tínhamos negativo, era preciso correr daqui pra ali para conseguir um pedaço, metade de uma lata de negativo, para filmar. Às vezes faltava até um simples sanduíche de mortadela para os atores e equipe.
O produtor cortou sem minha autorização, uns 20 minutos de, em Bonitinha Mas Ordinária, mas mesmo mutilado o filme resultou num estrondoso sucesso de bilheteria.
Aliás, em todos os meus filmes tive dificuldades no orçamento. Exceto em AS CONFISSÕES DE FREI ABÓBORA, onde o Herbert deu todo apoio. Mas faltou o essencial: o roteiro. Sem um bom roteiro não existe bom filme. E fiz o filme sem roteiro, sem rota, sem rumo. Ficou ruim, mas a culpa é inteiramente minha.

O – Você é, de forma justa, reconhecido por ser um mestre na adaptação de textos espinhosos, polêmicos, como Nelson Rodrigues e Plínio Marcos. Como é o seu trabalho de decupagem, tentando extrair a essência da obra literária, transportando-a para a linguagem cinematográfica? Quais são as suas preocupações nesse processo?

C - Tive a sorte de ser amigo do Plínio e do Nelson e isto me deixava à vontade para discutir com eles, compreender seus pensamentos e expor os meus. Mas, para compreender melhor, li tudo do Plínio antes de começar NAVALHA. E a obra do Nelson eu conhecia e acompanhava desde que ingressei no meio teatral. Eu e Jofre, filho do Nelson, tínhamos como brincadeira sentarmos num bar e, enquanto bebíamos, criávamos diálogos semelhantes ao do Mestre ou interpretávamos seus personagens. Era um exercício fantástico.
E assistia à estreia de suas peças, muitas vezes ia aos ensaios. O Nelson me convidou para fazer o personagem do garoto de TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA no palco.
Mas eu ia fazer um filme e não pude. Então indiquei o Enio Gonçalves, que era um grande amigo e, como eu, estava começando. E o Enio fez com muito talento, cercado por Nelson Xavier, Cleyde Yáconis, Luiz Linhares, tudo sob a direção do mestre Ziembinski.
Mas, voltando ao principal, eu tinha a consciência que filme é filme, peça é peça. E tomava muito cuidado para não fazer um “filme teatral”. Acho que consegui.


O  – Considero “A Navalha na Carne”, de 1974, a sua obra-prima, um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos. Antes de filmar o curta “Teresa”, fiz questão de rever, pra me inspirar na fantástica criação de clima que você conseguiu nas filmagens, aquela utilização maravilhosa do silêncio (além dos quase 30 minutos iniciais só com sons diegéticos), os planos fechados, uma composição imagética brilhante. Claro que há mérito nas atuações, Jece Valadão, Emiliano Queiroz e a fantástica Glauce Rocha, mas, sem dúvida, a sua impressão digital na construção daquele ambiente foi fundamental no resultado. Compartilhe com meus leitores os bastidores dessa produção, o trabalho com os atores, a dificuldade de transpor o texto de Plinio Marcos.

C - Minha responsabilidade era grande. Vários diretores tentaram fazer o filme e não conseguiram. Entre eles o Carlos Alberto Souza Barros, e o D’AVERSA. Não conseguiram. A censura estava de olho. O Plínio sofria perseguições, etc., etc.
Quando propus ao Jece fazer o filme ele fez algumas exigências: que o orçamento fosse baixíssimo, que filmássemos rapidamente (no máximo um mês, mas fiz em 20 dias) e que ele fosse o ator principal e a Tônia a atriz.
Ponderei que a Tônia era muito bonita, seria difícil fazer dela uma mulher que não arruma freguês na prostituição. Na época, não tínhamos maquiadores especialistas em envelhecimento.  Mas ele insistiu e lá fomos nós para a casa da Tônia, em Cabo Frio. Lá ela nos recebeu com um bom whisky na mão e Jece e eu bebemos com ela. Deixei os dois conversarem. Lá pelas tantas ela disse qualquer coisa que o Jece não gostou. Ele então me chamou para ir embora. Mas como estava achando tudo engraçado, disse que iria assim que terminasse o Whisky e bebi bem devagar, curtindo a inteligência e a beleza de Tônia e o mau humor contido do Jece.
Quando saímos ele disse: “Chediak, vamos chamar a Norma Benguell!”. Fiz as mesmas ponderações: “Norma é jovem, bonita, etc., etc.” Mas ele bateu o pé.
Voltamos para o Rio e conversamos com Norma. Ela aceitou fazer o papel e pedi a ela que não tomasse sol, não fosse à praia, etc. A pele queimada de sol absorve menos a maquiagem e não dá a textura bonita da pele sem sol. 
Uma semana depois liguei para pedir à Norma que fosse aos Estúdios para provar roupas e sua empregada me disse que ela estava na praia. Comuniquei o fato ao Jece – ele era um ator cuidadoso, não havia tomado mais sol – e pedi a ele que resolvesse a questão, pois não poderia filmar com uma mulher queimadíssima de sol fazendo um personagem que vive à noite.
Não sei o que conversaram, mas pouco depois o Jece disparou: “Chediak, a Norma tá fora. Vamos chamar a Thereza Rachel.”
Então não aguentei e expliquei a ele como eu pensava o personagem, etc., etc. Ele me perguntou: “E quem você acha que pode fazer?”  Eu disse: “A Glauce”. Ele achou que ela não aceitaria, pois estava com uma peça em cartaz e com excursão marcada, mas o chamei para ir falar com ela à noite, no Teatro onde ela estava se apresentando.
Conversei com a Glauce nos camarins e ela se emocionou. Me deu um grande abraço, aceitou na mesma hora e nos convidou para ir à casa dela, depois do espetáculo,  para vermos alguma roupa que a personagem poderia usar. Fomos, ela trocou diversas vestidos, pacientemente, até que gostei de um. Antes de sair ela me abraçou novamente e perguntou: “Você acha que dou conta?”. Eu respondi: “Você é Glauce Rocha”. Ela ficou segurando minha mão muito tempo.
Fez o filme. E o cinema nacional ganhou, disparado,  sua melhor interpretação feminina até que chegou Lucélia Santos, em Bonitinha, para se emparelhar com nossa querida Glauce.
Hoje sou grato pelas interpretações de grandes atrizes em filmes que dirigi: Glauce em Navalha,  Lucélia em Bonitinha, Vera Fischer em PERDOA-ME POR ME TRAÍRES.

O – Sei que não acompanha os filmes brasileiros atuais, preferindo a literatura. Imagino que haja um pouco de mágoa profissional inserida nessa afirmação. Posso estar enganado, mas minha sensibilidade me diz que, assim como eu, um fã do seu trabalho, você também acredita, com toda razão, que merece maior reconhecimento. Todos os grandes diretores que afirmaram esse desapego sentiam que estavam sendo mais valorizados pelos estrangeiros, do que pelo seu próprio povo. A grama do vizinho é sempre mais verde. Como crítico e público, torço pra que o senhor volte para trás das câmeras. Sei que não sou o único. Fique à vontade para abordar esse afastamento e as questões que incito no texto.

C - Existe uma coisa que, no Brasil, é uma constante. Não acreditam que um idoso (tenho 73 anos) possa ser criativo. Por isto a expressão “O BRASIL É UM PAÍS JOVEM). E, francamente, não tenho talento para ficar horas, com uma pastinha nas mãos, esperando para ser atendido por um executivo, em busca de patrocínio.
Fui um diretor de Estúdio: Eu cuidava do filme, o produtor do dinheiro.
E um fator também determinante: não tenho visto bons textos ultimamente. E, por incrível que pareça, eu que escrevi tantos roteiros, que era chamado para consertar roteiros alheios, não sinto vontade de escrever um roteiro pra eu dirigir.
E, também, tenho um projeto com crianças carentes, em minha cidade, que me dá muitas lições diárias, me ajuda a compreender diversos ângulos diferentes da miséria espiritual e material que campeia no Brasil.
Fico feliz quando meus alunos e minhas alunas saem daqui e trabalham em peças no Rio, em novelas e especiais na TV Globo ou outra qualquer, fazem Universidades, Escola Nacional de Circo, UFMG, etc., etc.


O – Acredito que a música é um elemento essencial em uma mente criativa. Seu filho, Yassir Chediak é um grande músico, então acredito que ele tenha puxado essa paixão do pai. Como é o seu gosto musical? Você já utilizou conscientemente a música como inspiração em algum trabalho?

C - Por incrível que pareça, a música me atrapalha em muitos momentos. Não consigo ler, escrever ou dirigir ouvindo música. Para isto, preciso de silêncio total. Assim como, quando paro para ouvir música, não gosto de nenhum ruído a meu lado. Acho que, por isto, fiz o NAVALHA e os DOIS PERDIDOS sem nenhuma música.
Quanto a meu gosto, transito bem entre o Beethoven e o Brega, entre o Sertanejo e Mozart. Não tenho preconceitos, música é música. Dependendo do momento, sou capaz de ouvir uma ópera do Verdi, por exemplo, ou ficar horas ouvindo o popular, como Luiz Gonzaga, Sérgio Reis, Reginaldo Rossi ou Roberto Carlos. Claro, alguns compositores me tocam mais, como Mozart, Beethoven, Bach, Bizet, por exemplo. Ou Milton Nascimento, Chico, Caetano, Gil, etc., etc. 

O – Caso você tivesse que selecionar três filmes brasileiros, de qualquer época, fora os seus projetos, como representantes do que de melhor nossa indústria pode oferecer, quais seriam?

C -  Pergunta difícil de responder. Mas vejo com carinho O CANGACEIRO, DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, O BANDIDO DA LUZ VERMELHA, O BICHO DE 7 CABEÇAS... São muitos, Octavio, não dá para ficar só em três. Seria injusto com tantos outros, dos quais não me lembro agora.
Mas uma coisa que acho, também, injusta é o esquecimento de bons diretores como o Lima Barreto, o Aurélio Teixeira, o Person, e tantos outros que fizeram a história de nosso cinema. Sem esquecer o Manga, o Watson Macedo, o Vitor Lima, que faziam as nossas queridas chanchadas. Creio que o Mazzaropi é o único lembrado, é um fenômeno de público até hoje.

O – Braz, finalizando, eu te agradeço pela entrevista e pelo carinho que sempre teve com meu trabalho. E, por gentileza, deixe uma mensagem especial para meus leitores. 

C - Seus leitores são jovens cineastas ou apaixonados pelo cinema. O que posso falar? Talvez, que eles procurem ver, sempre, os clássicos brasileiros e do mundo inteiro, que não tenham preconceitos, compreendam que toda manifestação de Arte é importante e que realizar um filme, publicar um livro, gravar um CD, no Brasil é um milagre. E quando alguém consegue, vamos respeitar o milagre. E que leiam, leiam muito, sempre. Nelson Rodrigues, Shakespeare, Dostoiévski, Machado de Assis, Guimarães Rosa, etc., etc., devem ser lidos e relidos sempre, todos os dias.

E a você Octavio, que continue com a lucidez e o carinho com que trata o cinema e os cineastas.