segunda-feira, 29 de junho de 2015

"Os Libertinos", de Jean-Pierre Mocky


Os Libertinos (Les Dragueurs – 1959)
Quando se escreve sobre Nouvelle Vague, a crítica normalmente se foca nas obras mais ideologicamente pretensiosas. Eu gosto demais da atitude do diretor Jean-Pierre Mocky, pouco lembrado, que incitava em seus colegas o desprezo a toda a gordura extra de um filme, aquela pesada bagagem de clichês e fórmulas, que ele chamava de peso morto, o limitante rótulo de tradição de qualidade. Ele estimulava que se filmasse tudo sem captação de áudio, como os cineastas italianos do neo-realismo, poupando despesas, deixando para inserir o som gravado na pós-produção. O interesse do rapaz estava na essência, não na forma. Essa liberdade é perceptível em seus primeiros trabalhos, especialmente em “Os Libertinos”.

Assistindo hoje, imaginando no contexto de sua época, fico impressionado com a ousadia dele em traçar uma analogia de sua sociedade, utilizando como microcosmo as divertidas paqueras de uma dupla de jovens pelas ruas de Paris. Não há tentativa alguma de intelectualizar a trama, que flui num ritmo bastante agradável, um clima muito diferente das experimentações, por vezes, entediantes, de seus colegas mais famosos. O jovem tímido, vivido de forma adorável por Charles Aznavour, não tem preferências, qualquer garota que sorrir para ele já se torna uma possibilidade. Ele é gentil, solitário, não deseja nada da vida, apenas o necessário para seguir vivendo. O conquistador extrovertido, vivido por Jacques Charrier, que idealiza a mulher dos sonhos, tentando encontrar ela nos rostos das jovens, atravessa o caminho do rapaz introvertido, no meio de uma caçada urbana por belas mulheres. Um não sabe absolutamente nada sobre o outro, o respeito nasce pelo interesse em comum. Os artifícios utilizados nas tentativas desajeitadas de flerte, como o golpe da moeda, trabalhados na trama como habilidades estabelecidas de trambiqueiros profissionais, resultando em cenas que sempre me remetem, como uma espécie de paródia, ao sisudo “Pickpocket”, de Robert Bresson, que foi lançado no mesmo ano.

A dupla acaba sendo conduzida para uma decadente festa da alta sociedade, onde a promiscuidade exagerada, caricatural, evidencia a metáfora social. O que ocorre nessa noite agitada acaba moldando os rapazes, que são testados em suas convicções. Aquele que se orgulhava de não se importar com ninguém, aprende a importância de se posicionar contra o que não concorda. É, no frigir dos ovos, um eficiente conto de maturidade. 

* O filme está sendo lançado em DVD, com ótimo material extra, pela distribuidora "Versátil", na caixa "Nouvelle Vague", contendo ainda: "O Ano Passado em Marienbad", "Um Só Pecado", "Banda à Parte", "A Baía dos Anjos" e "Paris nos Pertence". 

sábado, 27 de junho de 2015

O mundo assombrado pelos demônios

Com temor, assisti notícias sobre os "Gladiadores do Altar", mais um fruto nefasto do fundamentalismo religioso, essa praga que assola o Brasil. Impossível não estabelecer comparações com o ótimo filme "A Onda" (Die Welle, de 2008). Enquanto aumenta a porcentagem de ateus e questionadores nas nações mais evoluídas, por aqui o povo se agarra cada vez mais em muletas teológicas, como a bancada evangélica no Congresso. Até que ponto a religiosidade deve se intrometer na política? Em qual momento foi permitido que a fé, usualmente removedora de montanhas, iniciasse sua remoção de homens e ideias? Homens como o italiano Giordano Bruno, que foi retratado no cinema de maneira excepcional na obra dirigida por Giuliano Montaldo em 1973. Giordano foi um filósofo, além de astrônomo e matemático, do século dezesseis, expulso da Ordem dos Dominicanos por suas ideias e seus questionamentos acerca de um universo ilimitado, povoado por uma infinidade de estrelas e planetas com possibilidade de vida inteligente. Este precursor da ciência moderna foi processado pela inquisição e recusando qualquer retratação, foi condenado à morte na fogueira. Até mesmo em seus últimos momentos tentaram calá-lo, tendo sido morto com uma mordaça e pregos em sua língua, que simbolicamente o impediriam de propagar sua ideologia após sua morte. Notando o mundo atual e vendo a importância que ainda é dada aos preceitos do Vaticano, à opinião do Papa sobre qualquer tema, parece que seus antepassados conseguiram realizar o feito.

Com uma atuação soberba de Gian Maria Volonté no papel principal e de Charlotte Rampling como Fosca, além de uma fotografia estupenda de Vittorio Storaro e uma linda trilha sonora do genial Ennio Morricone, o filme merece um reconhecimento maior, pois se torna a cada dia que passa mais atual e importante. O diretor não cria uma obra panfletária, ele disserta sobre o homem e suas ações, sabendo ver em cada personagem suas verdades e crenças. Não acusa, simplesmente mostra os fatos e deixa nas mãos do público o julgamento. Imenso foi o preço que Giordano pagou por questionar os dogmas religiosos, tendo como meta apenas a evolução do conhecimento humano. Conhecimento esse que, mesmo séculos depois, ainda se defronta com os mesmos dogmas, com a fogueira primitiva sendo substituída pelo poder de manipulação social. Manipulação de políticos, pois nenhum tem coragem de falar contra a igreja por medo de não se elegerem, assim como a imposição de seus conceitos sobre assuntos que nunca dominaram, como a ciência. Ao assistirmos o filme, constatamos as razões que o tornam tão pouco conhecido e difundido, ele consegue fazer algo que as religiões nunca souberam: mostrar suas ideias eficientemente e sem necessidade de apelar para violência, ou imposição pelo medo, contra outras crenças ou contra aqueles que as questionam. Essa obra é uma poderosa arma que os religiosos querem manter bem distante de seus fiéis, pois o conhecimento, que tanto Giordano Bruno lutou para divulgar, foge completamente aos anseios dos líderes religiosos, ontem, hoje e sempre.

Por muito tempo, acreditei que silenciar, no tocante a esse assunto, era uma forma de respeito, mas calar é o pior crime que pode ser cometido. Descartes, Nietzsche, Onfray, Bakunin, Stephen Hawking, Carl Sagan, de quem roubei o título do texto, e praticamente todos os grandes pensadores que atravessaram a breve experiência da vida na Terra, já apontaram os malefícios que as crenças em lendas causam ao desenvolvimento intelectual do cidadão. Mitos e superstições escravizam os seres humanos, limitando-os intelectual e criativamente. Amedronte uma pessoa e você a terá na palma de sua mão, fazendo tudo o que você disser que irá ser para o seu bem, inclusive financeiramente, sendo capaz de vender os rins por um espaço garantido no céu. Liberte-a dos medos, que nenhuma força no mundo irá mantê-la sob seu jugo. A exploração do sobrenatural é fonte de renda de muitos, ainda mais nos locais onde o analfabetismo científico reina supremo. O brasileiro, povo extremamente carente em educação, saúde e segurança, acredita em tudo que é impossível, mas sempre duvida do óbvio. 

Viver em um mundo alternativo de ilusão, composto por truques, efeitos psicossomáticos e histeria coletiva, pode trazer paz temporária, mas não é a melhor solução. E, complementando, uma ótima citação do físico Steven Weinberg: "Com ou sem religião, pessoas boas farão coisas boas e pessoas más farão coisas más. Porém para pessoas boas fazerem coisas más, é preciso religião". O sofrimento é uma das coisas mais naturais na vida de todos nós. Aprender a lidar com ele é uma das coisas que nos diferencia dos animais irracionais. A recente animação da Pixar: "Divertida Mente" trabalha muito bem esse tema. Ninguém é imune ao sofrimento.  As crenças concedem aos que sofrem uma paz temporária. E por esse respiro breve, puramente ilusório, gerações de mal-intencionados incitam pessoas bem-intencionadas a se mutilarem, atearem fogo em florestas, acidentalmente, devido ao uso de velas em despachos, despejarem cacos de vidro, garrafas quebradas em rituais, em locais que oferecem grave risco aos transeuntes, sacrificam animais indefesos e até bebês, entre outros absurdos. Caso testemunhe despachos com velas acesas em locais com risco de incêndio, não pense duas vezes, apague-as. Temos que honrar o "sapiens", que sucede o "homo". Não tenho religião alguma, sou um respeitoso questionador em eterna busca pelo aprimoramento. O Brasil necessita, mais do que nunca, de nossa lucidez.

A importância da informação no consumo cultural

Como sempre tento fazer, analiso um evento absurdo tentando extrair dele uma reflexão mais profunda. Acho que é a melhor forma de lidar com a quantidade incrível de tolices diárias, entender o macro pelo micro, encontrar nele um sintoma para a doença maior, na esperança de instigar no leitor a busca pela imunidade. Todos devem se lembrar do caso das pessoas que foram avisadas pelos funcionários dos cinemas sobre o teor homossexual no filme nacional "Praia do Futuro". Essa situação rima com o caso similar da empresa brasileira que se recusou a produzir o Blu-ray do premiado "Azul é a Cor Mais Quente", exatamente pelos mesmos motivos.

Eu poderia conduzir o texto pelo viés óbvio da imaturidade emocional e ignorância científica do adulto brasileiro que se incomoda com cenas de sexo homossexual em um filme para adultos, mas seria dar murro em ponta de faca. A nossa educação é uma das piores no mundo, nossos adultos, na época, estavam tentando completar o álbum de figurinhas da Copa, horas naquelas filas imensas nas bancas de jornais. Não será um texto que irá modificar qualquer coisa nesse sentido. Mas é válido apontar um viés mais sutil nesse caso, o total desinteresse pela informação cultural. A dona de casa que vai ao Shopping Center, chegando perto da sala de cinema e sendo guiada pela beleza dos pôsteres. Ela não tem costume de ler jornal, gasta seu tempo virtual em futilidades, preocupada mais em manter suas unhas bonitas, já que não precisa exercitar seu cérebro nas noitadas caóticas dos bares e boates. Com a mesma apatia que exibe ao escolher o tipo de hambúrguer padronizado que irá pedir na lanchonete, ela passa os olhos rapidamente pelo elenco dos filmes que estão sendo exibidos. "Nossa, o Capitão Nascimento está no filme, não posso perder!".

Sim, não é exagero, grande parte das pessoas pensa dessa forma. Compram ingresso sem terem lido nenhuma resenha/crítica. Até para comprar tomates na feira, essas pessoas se informam antes. Não valorizam a informação ao consumirem cultura, pois a veem como item supérfluo, menos importante que os cosméticos que utilizam. Acho que todos se lembram do caso clássico do político que esbravejou publicamente após levar seu filho menor para assistir "Ted", aquele do ursinho politicamente incorreto. Enquanto a cultura for consumida cegamente apenas como fast-food, tapa-buraco e simples passatempo, nós iremos dividir sessões com toques ininterruptos de celulares, conversas animadas sobre parentes exóticos de estranhos e pessoas alienadas que decidem sair no meio do filme por motivos tolos.

A forma como o brasileiro vê cinema e política

O grande problema do Oscar é ter se tornado, aos olhos do mundo, o símbolo maior de tudo o que representa o cinema. Na realidade, a premiação não diz quase nada sobre a beleza da Sétima Arte. O brasileiro, aquele que não valoriza cinema como algo mais que entretenimento fútil, aproveita a farra que antecede o evento, participa de bolões, chega até a discutir sobre os filmes indicados. No dia da cerimônia, na falta de estofo cultural sobre o tema, ele perde mais tempo analisando os vestidos no tapete vermelho, as gafes cometidas, a plástica no rosto da atriz, os memes, enfim, tudo o que não é cinema. Quase sempre, sem nenhum interesse, dorme antes da metade da exibição. O tema já perdeu o valor que havia como status de elegância, é assunto de ontem, não irá nem comentar no trabalho. A Sétima Arte volta a ser, para esse brasileiro, simples futilidade que ele adquire nas bancas dos camelôs, para assistir quando não tiver nada melhor na televisão, entretenimento inofensivo para passar o tempo, enquanto aguarda a chuva estiar. Um longo ano irá se passar até que ele volte a se interessar por aquilo.

O brasileiro que trata o cinema exatamente como lida com a política. Em época de eleição, ele se torna politizado, discute o tema nas rodas sociais, esbraveja seus direitos, quase sempre se esquecendo dos deveres. Na falta de estofo cultural sobre o tema, embarca em qualquer teoria de conspiração compartilhada nas redes sociais, fazendo piada com a roupa dos políticos, com as deficiências físicas, enfim, tudo o que não é política. Assim que pressiona o botão da urna, aquilo já se tornou assunto de ontem. Ele volta então a programar seu cérebro para o senso comum: todo político não presta; motivo que o leva a não ler absolutamente nada sobre o tema durante o longo ano.

Claro que o ignorante político é tremendamente mais danoso à nação que o ignorante cinematográfico, porém, o segundo é sintomático de uma das causas que levam à criação do primeiro: o total desinteresse pela cultura, a satisfação com o raso e a priorização do “ter”, ao invés do “ser”. Cultura é fundamental no forjar de um cidadão consciente. Como querer um povo politizado, quando ele não lê, não se importa com cinema, só gosta de farra, não é pontual e só pensa em levar vantagem em tudo? Não adianta pensar em modificar governos, quando o cidadão não modifica suas atitudes diárias. O reflexo no espelho será sempre fiel ao monstro que se posiciona na frente dele. Ame a cultura, aprimore o “ser”, estude a memória da Sétima Arte, leia os grandes pensadores, acaricie sua mente com a mesma dedicação que o faz pagar altas somas nas academias de ginástica. O corpo se esvai rápido, o conhecimento se mantém e pode ser transmitido, eternizando-se em seus filhos, seus netos, seus amigos. Aprendi isso com o cinema.

"Tomates Verdes Fritos", de Jon Avnet


Tomates Verdes Fritos (Fried Green Tomatoes – 1991)
Revendo o filme após muitos anos, ainda fico surpreso com aqueles que não percebem a forte conotação sexual na cena da guerra de comida na cozinha. O livro original de Fannie Flagg não esconde o caso de amor entre a indomável Idgie e a doce Ruth, porém, temendo a polêmica, o diretor Jon Avnet preferiu deixar tudo subentendido e apostar apenas no forte laço de amizade. É uma decisão tola, já que a trama ganharia ainda mais relevância, no contexto da época em que ela se passa, em meados da década de trinta, uma sociedade intensamente racista, preconceituosa. A história é narrada pela personagem de Jessica Tandy, uma senhora que vive o crepúsculo de sua vida em um asilo. A sua vitalidade impressiona a personagem vivida por Kathy Bates, uma dona de casa sem autoestima, escrava de um relacionamento desgastado, com um homem grosseiro que só pensa em beber e assistir seus jogos de beisebol.

“Eu sou muito jovem para ser velha, e muito velha para ser jovem”.

Um tema central, no livro e no filme, é a questão do resgate da gentileza num mundo cada vez mais deselegante. A personagem de Bates, um pouco acima do peso, fica ofendida quando um moleque, sem motivo algum, debocha agressivamente de sua constituição física. Numa cena posterior, ela é vítima novamente de agressão verbal, quando duas jovens, sem cerimônia, estacionam o carro em sua vaga. O roteiro evidencia, de forma quase caricatural, o impacto do desrespeito. Ela só deixa a insegurança de lado, ousando o contra-ataque, quando começa a se inspirar com a coragem da heroína das histórias contadas pela senhora. É interessante enxergar o elemento visual do trem, que causa duas desgraças que transformam completamente a vida dos personagens, o símbolo do inescapável destino, os trilhos como o ciclo da vida, trazendo e levando pessoas embora, veículo da esperança e do sofrimento, o coração pulsante da pequena cidade.

A rebelde Idgie, vivida por Mary Stuart Masterson, ataca implacavelmente o marido de Ruth, vivida por Mary-Louise Parker, quando descobre que ele a espancava em casa. A poderosa cena transmite bem a revolta dela, sem medo de enfrentar alguém fisicamente mais forte, percebendo que a amiga já ultrapassou o estágio da resignação, mostrando-se apática. Essa força de caráter também se mostra, de forma bem mais discreta, no entendimento subliminar de que ela eventualmente teve uma relação com o irmão, ocasionando o nascimento de um bebê doente, que viveu apenas alguns anos. Uma mulher que, enquanto criança, não temia a figura do sacerdote na igreja, ela desafiava tudo e todos. No momento em que Ruth passou a conviver com ela, aprendeu a ser mais confiante, chegando até a sorrir quando soube da morte do marido. Um gesto simples, filmado de forma sutil, porém, simbólico de um importante despertar existencial.

A bonita revelação da identidade da senhora, ao final, como sendo a própria Idgie, é um exemplo de modificação eficiente na adaptação. Além de fazer mais sentido narrativamente, satisfaz plenamente o espectador após todo o investimento emocional. O tempo foi generoso com “Tomates Verdes Fritos”, um dos filmes mais comentados na década de noventa, que continua envolvente em sua estrutura episódica de flashbacks, entregando ainda uma crítica mensagem atual sobre o feminismo. Evelyn (Bates) inicialmente utiliza Idgie como muleta psicológica para conquistar a segurança necessária em sua vida, porém, percebe, após algumas cenas hilárias com o marido, que enxergar valor excessivo na rebeldia inconsequente de sua heroína, uma total irresponsável em vários sentidos, não passa de um patriarcalismo às avessas, cometendo os mesmos erros resultantes de qualquer radicalismo. A personagem acaba preferindo o meio-termo, representado pela senhora, uma versão amadurecida da rebeldia adolescente, afável e corajosa.

É impossível não se emocionar com o momento em que Evelyn, acreditando que sua amiga faleceu, parte para cima da enfermeira do asilo, que, de forma insensível, já estava rasgando as rosas coladas na parede, que a senhora tanto amava, preparando o quarto para o próximo número na estatística do estabelecimento. Uma linda cena que transmite uma forte mensagem, infelizmente, cada vez mais atual. O amor e a gratidão, que levam a mulher a se responsabilizar pelo futuro da senhora, tão frágil e desvalorizada na sociedade, responsável por sua decisiva mudança de atitude. O trem segue seu caminho, o passageiro mais calado, aquele que fica no canto, que ninguém dá valor, pode mudar totalmente o rumo de sua vida.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

"Divertida Mente", de Pete Docter


Divertida Mente (Inside Out – 2015)
Após três decepções, a Pixar retorna em grande estilo ao nível de brilhantismo que consagrou o estúdio, com uma produção minimalista em escala, porém, épica em sua essência psicológica. Ao focar a trama na infância da menina, o inteligente roteiro possibilita a exploração de um cenário turbulento, uma época da vida em que as emoções estão desequilibradas. O filme já teria mérito só pela coragem de abordar esse período sem romantismo poético, algo usual no gênero, evidenciando o quão brutal pode ser essa complicada transição para a adolescência. 

A menina Riley (Kaitlyn Dias), de onze anos, com suas roupas coloridas, um arco-íris de sonhos projetados nos pais, percebe seu mundo desmoronar ao descobrir que aquelas figuras simbólicas de bondade e justiça haviam sido as responsáveis pela maior injustiça e maldade, o deslocamento para outro ambiente, uma nova casa, em tons de cinza, longe dos amigos e de seu amado esporte. Quando a mãe prende o cabelo, atitude que representa o resgate da diversão, o pai interrompe para atender ao telefone, a negação da pureza, o abraço no capitalismo, a ambição por ascender no emprego, o gradativo afastamento da família. O momento, comum em nossa existência, onde os pais passam a deixar a responsabilidade da criação dos filhos para a televisão, babás, o elemento externo. A menina não compreende nada disso, ela apenas sente falta, sofre em silêncio. 

A mente, representada pelos agentes de cada sentimento, começa a entender que a felicidade, as esferas douradas, vão minguando. E quando a Alegria (Amy Poehler) e a Tristeza (Phyllis Smith), por um acidente, são impedidas de agir, resta a terrível apatia. As cenas agitadas, recurso imediatista necessário, mantêm os pequenos acordados, mas, por sorte, o roteiro se mostra mais interessado no atemporal, resultando em tiradas geniais, como a inserção do amigo imaginário, que aparece exatamente depois da ilha da amizade ser destruída. Aquela figura imaginativa que aparece, como desesperada tentativa de solução, quando o mundo real se torna opressivo demais. 

São tantas ideias interessantes, audaciosamente complexas, considerando a faixa etária do público-alvo, que irei exemplificar, em resumo, aquelas que mais me impressionaram. Bing Bong (Richard Kind), um amálgama visual de todos os bichos que ela amava, expressa tristeza chorando balinhas. O doce, normalmente utilizado pelos pais como forma de cessar o choro de uma criança; o abstrato como atalho para o trem do pensamento; o universo dos sonhos, o terreno das aspirações, sendo representado por atores em sets de filmagem, o mundo do cinema; o triste, porém, necessário sacrifício do amigo imaginário, para que ocorra o amadurecimento, simbolizado pelo equilíbrio das emoções. Alguns dos muitos detalhes que enriquecem as camadas de interpretação em revisões. 

A mensagem mais bonita, aquela que ficará na memória semanas após a sessão, fala diretamente a um dos problemas mais sérios na sociedade moderna, ocasionado pela imaturidade emocional: a incapacidade de lidar com os altos e baixos da vida. A obsessão equivocada pela imagem vencedora, uma falsa felicidade meticulosamente trabalhada para impressionar outrem nas redes sociais, mascarando a natureza humana com um verniz frágil. E essa recusa em lidar com a imprevisibilidade das ondas desse oceano acaba ocasionando o extremo oposto, a mais profunda depressão. A dor, a derrota, tem papel fundamental, uma função importante, como na cena em que a Tristeza resolve um problema apenas por ter escutado o desabafo melancólico do amigo imaginário. A Alegria, por si só, não consegue se colocar na pele de quem sofre, ela foge, vira a cara. A maturidade emocional só é alcançada quando a pessoa aprende a equilibrar esses impulsos naturais. 

terça-feira, 23 de junho de 2015

"Jurassic World", de Colin Trevorrow


Jurassic World – O Mundo dos Dinossauros (Jurassic World – 2015)
Não há computação gráfica que supere o animatrônico artesanal de Stan Winston no original. A equipe de “Jurassic World” tentou até emular limitações dos robôs nas criações digitais, o que não suavizou a aparência artificial das criaturas. Sem o fator de deslumbramento visual, já que os efeitos computadorizados foram banalizados com o tempo, o filme coloca toda a responsabilidade no roteiro e no elenco. E, a despeito de divertir medianamente, o projeto falha terrivelmente nesses dois quesitos. O conceito da trama, dinossauros como atração de um parque temático, é, em essência, algo que nos remete ao lúdico infantil, mas, como Spielberg nos provou diversas vezes, essa característica não precisa ser sinônimo de tolice.

Após um primeiro ato interessante, o amadorismo do diretor Colin Trevorrow fica latente no ritmo caótico estabelecido, especialmente, no terceiro ato, com soluções para cenas que ultrapassam a tolice, abusando da suspensão de descrença e causando riso involuntário. Com exceção da reutilização pouco original de cenas, com enquadramentos idênticos ao original, senti pouca conexão com a história dos filmes anteriores, sendo praticamente um reboot, uma expansão pouco interessante, ao invés de uma sequência. O curioso é que o leitmotiv é contraditório. A fala do cientista: “Ninguém se impressiona mais com um dinossauro”, a ideia de que a magia de outrora havia se tornado atração comum de zoológico, numa crítica válida à crescente valorização da forma em detrimento da substância, está em conflito exatamente com o produto que estamos assistindo, uma carroça bem barulhenta e vazia. E quando o roteiro tenta defender esse leitmotiv nostálgico ao final, de forma bem demagógica, o estrago já havia sido feito, a atitude não condiz com o discurso.

A insegurança com o material é tão grande, que o roteiro preenche cada vírgula na página com uma piadinha, por mais incoerente que soem nas cenas, destruindo, invariavelmente, o senso de perigo de todas as situações. Selecionei alguns exemplos mais graves, como quando uma busca desesperada é interrompida por um interlúdio melodramático, onde a tia, vivida por Bryce Dallas Howard, esquece por longos minutos o perigo que correm seus sobrinhos e chora a morte de um dinossauro, até que, quando relembra, próxima de um desfiladeiro, presume alegremente que eles pularam e estão bem, ainda que desconheça o temperamento das crianças, conduzindo a cena para uma absurda interação engraçadinha com a heroica tira de cartolina defendida por Chris Pratt. O que dizer então de uma longa cena de morte, teoricamente impactante emocionalmente, filmada como espetáculo do Cirque du Soleil? Aliado ao fato de que, devido ao fraco roteiro, eu não me importava com os personagens e sequer lembrava seus nomes após minutos do fim da sessão, a forma como a cena é trabalhada, sem exagero, parece saída de uma paródia clássica dos irmãos Zucker.  

Todas as boas ideias estão contidas no primeiro ato. Enquanto a obra original utilizava o contexto fantasioso para trabalhar o tema da paternidade, representado pelo personagem Alan Grant, desta feita, a história reverbera a sociedade egoísta atual, onde os pais compensam a ausência com brinquedos caros, mascarando o desinteresse pelos filhos. Não é por acaso que a obra inicia com a imagem de um ovo quebrando, um filhote que nasce afastado dos pais, no ambiente artificial do laboratório. E, numa boa sacada, o primeiro ataque, o descontrole, ocorre logo após a bronca que a tia leva da irmã, por estar negligenciando os sobrinhos. Há também espaço para uma subtrama que me fez lembrar os militares de “O Dia dos Mortos”, de George Romero, com a tentativa de controlar/adestrar os velociraptors. Gostei também da forma como o roteiro apresenta o velho T-Rex, com a câmera nos colocando na mesma posição da criança, que está doida pra ver, mas não consegue, por causa da multidão de ombros em sua frente. Uma pena que essas ideias não sejam desenvolvidas.

“O Mundo Perdido” era problemático, mas tinha o carisma de Jeff Goldblum; “Jurassic Park 3”, mais problemático ainda, tinha o carisma de Sam Neill. Nesse, temos só problemas. 

sábado, 20 de junho de 2015

Sétima Arte em Cenas - "Tubarão"


Tubarão (Jaws – 1975)
É desnecessário abordar a importância do filme para a indústria americana, um sucesso que transformou Steven Spielberg, do dia para a noite, em um sinônimo de espetáculo lucrativo. Acho encantadora a essência de filme B que é exalada em cada poro da produção, algo que o diretor buscava conscientemente, uma coragem revigorante em explorar os medos primitivos do homem, optando por se amparar generosamente na insinuação, o terror que se esconde. Ao ignorar boa parte da gordura extra do livro, o roteiro acaba se transformando no estudo objetivo do conflito eterno contra o desconhecido, o monstro sem propósito e imprevisível, o tubarão que, assim como a vida, carrega para a morte os corpos que se debatem alegremente na superfície.

O personagem interpretado por Robert Shaw, como o Ahab de Melville, vive apenas para encontrar seu nêmesis marítimo, uma criatura de olhos sem vida, um misto de Moby Dick e do trágico peixe de “O Velho e o Mar”, de Hemingway. O tubarão é uma máquina assassina natural, diferente do homem, ser racional, que mata seus iguais por esporte. Esse elemento foi destruído nas péssimas continuações, que transformaram o animal em uma espécie de Jason Voorhees, mas, no original, por mais que o número de vítimas aumente gradativamente, o tubarão está em seu ambiente, que é invadido pelos humanos, estimulados por um prefeito inconsequente em seu desejo de transformar a pequena cidade em um ponto turístico interessante. Não é apenas um confronto clássico do homem contra a natureza, mas, principalmente, um confronto da ganância humana contra o próprio homem, representado pelo ético policial Brody (Roy Scheider), e contra a natureza. A caçada é trágica, porém, necessária, como a extinção dos dinossauros no planeta, analogia sublinhada pela utilização sonora do rugido de um dinossauro no momento em que a criatura é destruída, exatamente como ocorre na destruição do caminhão, o monstro de seu filme anterior: “Encurralado”.

E esse conflito só funciona graças a um roteiro que inteligentemente entrega tridimensionalidade ao personagem vivido por Scheider. A minha cena favorita é breve, ocorre logo depois que o policial é agredido pela mãe de uma vítima. Ele estava se sentindo péssimo, psicologicamente alquebrado, já que se culpava por aquela morte. Quando penso em “Tubarão”, minha mente me conduz à emocionante interação entre pai e filho, na mesa de jantar. O menino que imita cada gesto do pai, o seu herói, ignorando os problemas que ele enfrenta. Brody entra na brincadeira, pedindo um beijo. A criança pergunta a razão, no que ele responde: “Eu preciso”. A sensibilidade na condução da cena é uma demonstração da competência de Spielberg.

* O livro de Peter Benchley, que foi adaptado por Spielberg, está sendo relançado no Brasil, em edição de luxo, pela editora “Darkside Books”.

Personagens - Alan Grant


Os dinossauros, esses animais que representam o fantástico de forma tangível, cuja existência se pode provar em escavações, dominam o imaginário de quem lê a obra de Michael Crichton e assiste a excelente adaptação cinematográfica dirigida por Steven Spielberg, porém, o elemento mais fascinante é humano, representado pelo personagem vivido por Sam Neill. Alan Grant é uma espécie em extinção, um profissional que reavalia duramente sua função como paleontólogo em um mundo onde os dinossauros se transformaram em atração de um luxuoso parque de diversões. Ele não consegue se sentir atraído por qualquer informação que venha de forma fácil, sem precisar sujar as mãos. Ao ser questionado por uma criança sobre fósseis, ele demonstra total falta de desenvoltura, um afastamento consciente de sua contraparte infantil. O mundo fantasioso que habita os sonhos da criança foi gradualmente extirpado, dando lugar à frieza analítica do especialista. Ele perdeu a essência que o motivou a decidir sua profissão, ele deixou a sua Terra do Nunca e escolheu crescer. Esse leitmotiv é muito utilizado por Spielberg, como em “Hook – A Volta do Capitão Gancho” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”. 

O mais interessante é perceber como o personagem, ainda que de forma desajeitada no início, considera empolgante a convivência com os netos de Hammond, enquanto os outros adultos ignoram aquelas crianças. Tim, em especial, com seu amor pela paleontologia, estabelece uma ligação imediata com Grant, uma identificação mútua. Essa relação é mais bem retratada no livro, que explora também a saudade que ele sente da esposa, falecida anos antes. O adulto inicialmente sente medo, quer evitar se apegar, como se fugisse do menino sonhador que foi outrora, mas acaba abraçando a paternidade dos filhos que sempre sonhou ter. O desconforto dá lugar ao instinto de proteção e companheirismo. O seu primeiro contato com o Tricerátopo, o dinossauro que o encantava no passado, é filmado de forma a acentuar o resgate mágico daquelas lembranças, como o adulto que reencontra um brinquedo de sua infância. Após todas as cenas de ação, o deslumbramento das perseguições, o diretor escolhe finalizar a trama enfocando as crianças aconchegadas nos braços de Grant. Jurassic Park é, acima de tudo, uma história sobre paternidade.

* O livro “Jurassic Park”, escrito por Michael Crichton, acaba de ser relançado no Brasil, em edição de luxo, pela editora “Aleph”. 

quinta-feira, 18 de junho de 2015

"Armadilha Mortal", de Sidney Lumet


Armadilha Mortal (Deathtrap - 1982)
É um crime revelar muito sobre a trama dessa brincadeira metalinguística de Sidney Lumet, adaptado por Jay Presson Allen de uma celebrada peça de Ira Levin, um de seus filmes injustamente menos citados. 

Christopher Reeve, no auge de seu sucesso como Superman, entrega a melhor atuação de sua carreira, plena em nuances que agregam valor à revisão, chegando a eclipsar, em vários momentos, a competência serena de Michael Caine, que vive o dramaturgo veterano em declínio, que pretende matar um jovem talentoso, com o objetivo sórdido de se apropriar de sua primeira peça. Dyan Cannon, como a esposa do personagem de Caine, exagerando na caricatura, acaba sendo o ponto fraco do projeto. 

O leitmotiv da manipulação é conduzido de forma especialmente interessante para escritores, explorando, em variados níveis, a ganância e o orgulho inerentes a todos que se dedicam nessa Arte. Jogando divertidamente com as fórmulas dos thrillers literários, as muitas reviravoltas continuam eficientes, surpreendendo ainda mais pela coragem na abordagem de um dos relacionamentos. É interessante imaginar a dificuldade de Lumet em transmitir a emoção da peça, dar relevância à adaptação cinematográfica, sem um elemento fundamental na obra: a reação da plateia. A impressão de teatro filmado é evitada pela fotografia do polonês Andrzej Bartkowiak, uma excelente utilização de cores, que me fez lembrar, em algumas cenas, o trabalho de Mario Bava. O resultado é um ótimo exemplo da versatilidade do diretor.  

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil".

quarta-feira, 17 de junho de 2015

"O Amante", de Jean-Jacques Annaud


O Amante (L'amant - 1992)
Uma bela adaptação da obra autobiográfica de Marguerite Duras, dirigida com elegância por Jean-Jacques Annaud, criticada por muitos, na época da estreia, por suas cenas realistas de sexo. Uma grande bobagem, uma demonstração de imaturidade que ignorou as várias questões discutidas na trama, como preconceito social e racial, e, por conseguinte, os malefícios da vergonha e do sentimento de culpa na relação que se estabelece entre uma adolescente francesa e um adulto chinês, algo considerado proibido pelas tradições da sociedade em 1929.

O recurso da narração, que nos apresenta o ponto de vista da escritora no crepúsculo de sua vida, com o rosto castigado pelo tempo, como a própria afirma, potencializa o lirismo por trás de cada evento resgatado, sendo realçado pela fotografia hipnótica de Robert Fraisse. A voz de Jeanne Moreau transmite, em cada frase enigmática, o ardor da saudade de algo que não se define, uma sombra à espreita no reflexo de um espelho cujo vidro já se estilhaçou, um passado que se esvai mais a cada novo despertar. Ela lembra com humor o chapéu fedora masculino que se recusava a tirar em seus passeios, o símbolo do receio de aceitar sua feminilidade, as mudanças radicais em seu corpo, o nascimento de um desejo que ela não compreende, e, por esse motivo, teme. Aos dezessete anos, ainda tropeçando em seu salto alto, a menina, vivida pela linda Jane March, sente que está atraindo os olhares masculinos, porém, ela se surpreende ao perceber que o adulto que a corteja, o chinês vivido por Tony Leung, treme de nervoso ao oferecer um cigarro, uma tentativa desajeitada de estabelecer contato. É o primeiro toque sutil que evidencia a fraqueza mental, moral e física, do personagem, alguém que tem tudo o que o dinheiro pode comprar, mas, com certeza, daria a vida para escutar uma declaração sincera de amor.

No carro dele, enquanto sua voz preenche o ambiente com vãs palavras, a garota se mantém com os braços cruzados, demonstrando sua insegurança, defendendo-se do desconhecido monstro interno que luta para desbravar aquele oceano de dúvidas. É então que, aproveitando a conveniência de um chacoalhar do carro, ao atravessar uma ponte, os dois, num ato consciente, desprendem-se do medo e deixam as mãos soltas, como que convidando o carinho do outro. Com todas as cenas de sexo, tão comentadas à época, considero que o momento mais sensual e provocante ocorre exatamente nessa cena onde ambos estão vestidos: o toque suave dos dedos mínimos, seguido pela reação nos rostos dos dois. Você consegue sentir o torpor do desejo sexual brotar nos lânguidos olhos da menina, ao ter sua mão acariciada gentilmente pelo homem. Ela fecha os olhos, tentando reter aquela descoberta fascinante.

Na cama do quarto secreto, onde o casal vivencia plenamente a experiência do prazer longe do controle que a sociedade impõe, ela pede para que ele a trate como uma mulher qualquer. Sua primeira ação é retirar o chapéu, símbolo do medo de abraçar sua feminilidade, ela não quer ser tratada como criança, mas, sim, tocada generosamente, nua, entregando seu mistério, suas dúvidas, a essência da mulher que ela quer ser. Ele, num súbito acesso de inteligência emocional, sinaliza o erro da ação, a grande diferença de idade. A menina então toma o controle, assume a responsabilidade, percebendo que tem mais a ensinar do que a aprender, direcionando a mão trêmula dele ao seu sexo. O adulto se torna a criança, amedrontado e inseguro. Após a relação, ele busca escutar uma declaração de amor. Ela está mais interessada nas plantas mortas do quarto. Marguerite Duras tinha, por hábito, conservar flores mortas em vasilhas por toda a sua casa, como forma de se manter consciente da inescapável mortalidade. Esse leitmotiv visual se repete em momentos chave, contendo um significado profundo. Ela, nua, após o sexo selvagem no chão do quarto, decide regar as plantas. Após o casamento dele com uma chinesa, respeitando a tradição, a menina retorna ao local, vazio, e, mesmo sabendo que o calor dos seus corpos não irá mais perturbar o silêncio do local, ela decide regar as plantas. Qual a razão de regar uma última vez, sabendo que o quarto ficará abandonado e que as plantas irão morrer?

A resposta é dada na cena final, que mostra a escritora, já bem mais velha, informando que o homem, mesmo depois de vários anos, tendo experimentado relações com outras mulheres, já com filhos, ligou para ela apenas para dizer que ainda a amava, e que iria amar pelo resto de sua vida. A mulher sabe que, apesar da fragilidade do corpo e da inexorabilidade do tempo, as plantas devem ser regadas, a esperança deve ser mantida. O próprio ato da revelação literária dessa relação antiga, uma prova incontestável de que, assim como ele, a mulher continua sentindo o arrepio na pele, causado por aqueles estímulos compartilhados naquele passeio de carro, uma manhã que luta para manter na lembrança. Uma chama interna que necessita ser regada continuamente, a declaração de amor que o homem sonhava escutar e, que, provavelmente, morreu acreditando que não merecia receber.

"Estamos Todos Bem", de Giuseppe Tornatore


Estamos Todos Bem (Stanno Tutti Bene - 1990)
Esse lindo filme, delicado e sensível como poucos, acabou ficando eclipsado pelo sucesso mundial de “Cinema Paradiso”, projeto anterior do diretor Giuseppe Tornatore. Existe uma fraca refilmagem americana, com Robert De Niro, de 2009, intitulada “Estão Todos Bem”. A trama acompanha a viagem de Matteo, vivido por Marcello Mastroianni, que, aos setenta e quatro anos e viúvo, busca visitar seus amados cinco filhos, já que eles sempre inventam desculpas para não irem ao encontro dele. Tudo o que ele desejava era ter a companhia deles na mesa de jantar, perceber que eles se interessam por suas divagações. A carência dele se mostra na forma como ele sempre pede, até para estranhos, que perguntem algo, que demonstrem curiosidade sobre eventos que ele havia acabado de insinuar. É um recurso que funciona como alívio cômico, mas, em sua essência, encerra um simbolismo mais profundo.

A saudade do homem é transmitida com uma beleza que nos impele a retroceder a cena e rever com mais atenção, como no reencontro dele com sua filha, onde, sem cortes, num truque simples, a câmera rejuvenesce a mulher, que corre até o pai, porém, quando chega ao final de uma escadaria, quem sorri para ele é sua contraparte infantil. É um leitmotiv visual que se repete várias vezes, evidenciando que, aos olhos dele, seus filhos sempre serão aquelas crianças inseguras que, outrora, estendiam ternamente suas mãozinhas antes de atravessarem a rua. Seus óculos, lentes fundo de garrafa, deixam seus olhos enormes, simbolizando a sua visão distorcida de sua própria realidade, o seu abraço apertado consciente na ilusão. Ele quer acreditar que seus filhos estão vivendo confortavelmente, tendo realizado seus sonhos pessoais e profissionais.

“Não eduque seu filho para ser alguém, mas, sim, ensine-o a ser como uma pessoa qualquer”.

Em uma poética cena na praia, que nos remete aos melhores trabalhos de Fellini, Tornatore faz com que o homem, em seu passado, veja seus filhos sendo levados por um grande balão negro. O maior medo dele era perder sua família, algo que foi intensificado após o falecimento da esposa. O diretor flerta até com o surrealismo de Buñuel, mostrando um engarrafamento no trânsito, causado por um imponente alce que se mantém no centro da rua, sendo admirado por todos os motoristas. Com um filtro azulado, a fotografia de Blasco Giurato ajuda a transmitir a solidão do pai em algumas cenas específicas, como no desabafo dele no salão de dança. Sua parceira, uma mulher que ele havia acabado de conhecer, afirma com tristeza que foi colocada em um asilo por seus filhos. O olhar dela reflete sua resignação, sentimento que tenta, sem sucesso, legar ao novo amigo. Ele é muito orgulhoso para aceitar a dissolução de sua família, sua mão ainda sente o toque carinhoso de sua esposa, como o roteiro nos mostra na breve e emocionante cena no quarto de hotel.

No desfecho ficamos entendendo a razão do afastamento dos filhos, algo que não irei revelar no texto, para não estragar a experiência. É um filme que merece ser visto e revisto por toda a vida. Uma mensagem simples e poderosa, emoldurada pela linda trilha sonora de Ennio Morricone, que pode ser resumida na piada que o pai conta em vários momentos: “O vinho também se faz com uvas”, ressaltando o óbvio: você pode se esforçar o máximo possível na criação de seus filhos, com plena dedicação e amor, que, a despeito de suas melhores intenções, não há maneira de se prever o futuro, não há fórmula mágica, não há segredo. Viver é a maior aventura, uma jornada de surpresas em direção ao desconhecido.

sábado, 13 de junho de 2015

"Rede de Intrigas", de Sidney Lumet


Rede de Intrigas (Network – 1976)
Quando o veterano jornalista Howard Beale (Peter Finch) é demitido, ele sofre um violento colapso nervoso diante das câmeras. Mas, depois que os seus enfraquecidos números de audiência sobem por causa das suas críticas ferozes, ele é readmitido e reinventado como o "profeta louco das ondas da TV". Evidentemente, quando o tal "profeta" perde a capacidade de seduzir o público, alguma providência tem que ser tomada contra ele. De preferência, diante das câmeras e com uma plateia dentro do estúdio.

O filme de Sidney Lumet mostra os reais interesses que existem por trás de qualquer programação televisiva, com uma visão assustadoramente atual e pungente sobre os limites (ou falta de) do bom senso e da ética. Os diálogos escritos genialmente por Paddy Chayefsky são verdadeiras catarses, estimulando aplausos até mesmo naqueles que assistem ao filme hoje no conforto de seus sofás. O que era considerado uma fábula que instigava a vigilância, pode ser percebido como a realidade de hoje, com o sensacionalismo dominando as estações de televisão, dos programas de auditório ao jornalismo. Fica claro que ninguém se importa mais com valores, quando chegamos ao ponto de uma criança pode ligar a televisão de manhã e assistir um absurdo teste de fidelidade. Não importa mais o nível da baixaria, contanto que represente melhores índices de audiência. O entretenimento é apenas uma desculpa para vender produtos nos intervalos comerciais. A caixa, como o personagem de Peter Finch chamava, apenas ficou maior e mais fina, mas o que ela representa continua sendo, em grande parte, o lado desprezível do ser humano.

O espetáculo da priorização das estatísticas de audiência, em detrimento dos códigos morais do indivíduo. O roteiro profetizava o aumento vertiginoso daqueles que celebram a vergonha alheia, alimentando um bando de abutres cada vez menos criteriosos, um povo que abraça o sensacionalismo barato e rejeita a elegância. A televisão, diferente do cinema e do teatro, tem o poder de vulgarizar a complexidade das relações humanas, ela estimula a banalização, o falso intimismo, o que, em longo prazo, insensibiliza o espectador, tornando-o presa fácil para a manipulação. 

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sétima Arte em Cenas - "O Invencível", de Satyajit Ray

Link para o texto sobre o filme anterior na Trilogia de Apu:
Link para os textos anteriores no especial:


O Invencível (Aparajito – 1956)
O Satyajit Ray de “O Invencível” é um cineasta mais seguro, utilizando a câmera de forma mais consciente no intuito de contar sua história, manipulando a emoção absorvendo um senso de ritmo e certas soluções visuais mais convencionais, visando uma compreensão universal, elemento análogo à trama do filme, ainda que o roteiro seja, essencialmente, representativo de sua cultura, com generoso espaço para a espiritualidade do povo indiano, na utilização do misticismo inerente às cenas em torno do sagrado rio Ganges. É o meu favorito da trilogia.

No início, encontramos a família de Apu inserida em um ambiente totalmente diferente da pequena vila da obra anterior. A mãe, perceptivelmente deslocada naquela realidade mais ambiciosa da cidade grande, projeta seus medos no filho, tentando fazer com que ele se mantenha um peixe pequeno em um aquário pequeno, objetivando seguir a tradição, o comodismo, inspirando ele a seguir uma vida de sacerdote. O garoto não é um peixe pequeno, ele deseja ser cidadão do mundo, aquele aquário é pequeno demais para seus sonhos. Ele quer frequentar a escola ocidental, mostrando seu deslumbramento com cada nova descoberta, o fascínio por trás de um eclipse solar, os fenômenos que são explicados sem misticismo pelos professores. O progresso consequencial dos estudos confrontando a mesmice limitante das tradições. A morte do pai parece ser o gatilho que motiva a decisão do garoto. É linda a maneira como a cena é trabalhada, com o pai moribundo pedindo um gole da água do rio sagrado. Ao beber a água trazida por seu filho, um corte rápido, pombos voando pelo céu; o homem finalmente está livre. Ray então nos conduz pela mão até o emocionante terceiro ato, quando o jovem enfrenta outra perda, o último laço que o unia ao seu passado, a mãe. E essa linda cena é a razão da inclusão da obra nesse especial.

A câmera desce ao encontro do rosto expressivo da mãe, que, de olhos fechados, descansa apoiada em uma árvore. Ela sofre com saudade do filho. Escutamos então o som de um trem se aproximando. A mulher não tem reação alguma, pois sabe que continuará sozinha. É apenas mais um trem que, por alguns minutos, perturba o silêncio do local, seguindo seu caminho em direção a uma modernidade que ela rejeita. Ela se levanta com dificuldade, o corpo não responde. A trilha sonora opressiva, como o eco de um passado que se esvai no fundo do abismo de sua existência. Em sua alucinação, a mulher escuta o filho chamando por ela, o que faz nascer um sorriso em seu rosto. Ela vai, com dificuldade, na direção do chamado, descobrindo uma grande quantidade de vagalumes que voam, como que numa dança, um rito fúnebre, sobre o lago. 

terça-feira, 9 de junho de 2015

Devo Tudo ao Cinema - S01E04 - Celebração dos 40 anos de profissão de Ricardo Schnetzer

Amigos leitores, queridas leitoras, no programa, celebramos os 40 anos de profissão do ator/diretor/dublador Ricardo Schnetzer, num bate papo descontraído com o responsável pelas vozes brasileiras de astros como Tom Cruise, Al Pacino e Richard Gere.


segunda-feira, 8 de junho de 2015

"Mad Max: Estrada da Fúria", de George Miller


Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road - 2015)
Esse é o projeto mais empolgante sobre o nada, porém, é bobeira reclamar disso, até porque o original também tinha uma narrativa simplória. Acho mais correto exaltar a competência do roteirista e diretor George Miller, retornando ao universo que criou, por ter conseguido, com um fiapo de trama, prender a atenção com plena segurança por duas horas, entregando para o público o melhor filme de ação do ano. 

O toque mais interessante foi transformar o Max de Tom Hardy em um coadjuvante de luxo, inteligentemente subvertendo, em tom claro de crítica, as funções usuais dos personagens em uma obra do gênero. Ao quebrar as expectativas do público, reservando para o herói todos os clichês narrativos que são normalmente relegados às mulheres, que podem ser resumidos na cena em que o ombro de Max serve de apoio para a mira da protagonista, vivida por Charlize Theron, Miller evidencia o desleixo da indústria na criação de heroínas fortes. 

As sequências longas de ação entorpecem os sentidos, não dão trégua, é uma aula de eficiência, sem o artifício comum de confundir o público, como forma de mascarar a pouca habilidade daquele que está no comando. A câmera aqui age como se estivesse filmando as danças de Fred Astaire, ela apenas capta o desenvolvimento natural dos conflitos, deixando para a montagem o trabalho de impor o ritmo e o tom. Nos aspectos técnicos, o filme é impecável. A fotografia de John Seale, coerente à ousadia narrativa já citada, uma atitude que respeita o cinema de guerrilha que foi o clássico australiano, rejeita a paleta visual óbvia de poucas cores, moldura de dez entre dez filmes ambientados em cenários pós-apocalípticos. 

Ao final, o que se mantém na mente de quem assiste é a postura desafiadora, soco no estômago, típica de filme B, um charme raro dentre tantas obras formulaicas do gênero que a indústria despeja anualmente. Não reinventa a roda, e nem precisaria, mas, sem dúvida, o septuagenário diretor deixou muito cineasta garotão, esses que são fabricados pelo hype de Hollywood, com inveja.

"Promessas de Guerra", de Russell Crowe


Promessas de Guerra (The Water Diviner - 2014)
Quem conhece meu estilo nas críticas de estreias sabe que não sou um contador de sinopse, linhas que o interessado pode encontrar em qualquer veículo, não me sinto estimulado a prejudicar a experiência do leitor, ou subestimar sua inteligência, porém, faço questão de ressaltar que, para um melhor aproveitamento da trama desse filme, especialmente o primeiro ato, vale estudar sobre a Campanha de Galípoli, que, aliás, já rendeu um ótimo filme na década de oitenta, dirigido por Peter Weir. 

Não são todos os bons atores que conseguem surpreender na direção, Russell Crowe não é Charles Laughton, nem mesmo Mel Gibson, ainda que suas intenções sejam claramente honestas, falta ao neozelandês, trocando em miúdos, o necessário desapego estético em favor de um foco mais dedicado ao desenvolvimento dos personagens, um interesse menor em forçar a mão de verniz nas cenas, artifício que exala apenas a insegurança do cineasta em seu próprio ofício. Um exemplo: o primeiro momento em que Connor (Crowe) conversa com Ayshe (Kurylenko), no quarto da pensão dela. Sem necessidade alguma, a utilização da câmera transforma uma cena intimista, onde o diálogo deveria ser o elemento mais importante, em um pretensioso balé de equívocos, alternando reflexos no espelho que culminam em problemas amadores de continuidade, além de uma risível constatação da canastrice da atriz, que parece ser incapaz de transmitir o subtexto de maneira minimamente sutil. Quando ocorre a convencional subtrama romântica, que flui de forma irritantemente canhestra, a beleza que havia no conflito existencial do pai em busca dos filhos perdidos, leitmotiv épico por si só, que incita uma válida discussão sobre a importância do indivíduo em uma guerra, acaba dando lugar a uma improvável relação amorosa de folhetim que dilui o pouco interesse que havia sido estabelecido nos primeiros vinte minutos da obra. 

Outro artifício que soa ingênuo, culpa do roteiro de Andrew Knight e Andrew Anastasios, e acaba prejudicando a imersão, uma repetição de um flashback que o protagonista não vivenciou, em suma, uma solução apelativa de melodrama que abusa da suspensão de descrença do espectador. E nas poucas vezes em que a emoção parece brotar de forma natural, a direção descarta, de forma consciente, favorecendo novamente o verniz, alicerçado em um relato histórico de fidelidade bastante questionável. A atuação do próprio Crowe é o ponto alto, visivelmente motivado a contar essa história, mas não é o suficiente. 

Guilty Pleasures - "Ace Ventura 2: Um Maluco na África"

Link para os textos do especial:


Ace Ventura 2 – Um Maluco na África (Ace Ventura: When Nature Calls – 1995)
Considerando o apreço pelo primeiro filme, que acabou ganhando um status de cult, a corajosa constatação de um guilty pleasure, como medir nessa escala de vergonha o apreço ainda maior pela sequência inferior, que mantém o status de desprezível? Eu tenho o filme na minha coleção, e, como se isso não bastasse, em Blu-ray!

O péssimo diretor Steve Oedekerk, de “Kung-Pow: O Mestre da Kung-Fu-São”, que faz Tom Shadyac parecer Orson Welles, em comparação, salvo pela incrível capacidade que Jim Carrey tem de transformar até a cena mais tola, sem nexo e mal escrita, em algo genuinamente engraçado. O roteiro é infantil, perto de algumas ousadias do original, como o vilão travesti vivido pela linda Sean Young. O tom, desde os primeiros minutos, é mais leve, com piadas que satirizavam outros filmes, um recurso preguiçoso que domina o primeiro ato. Quando o herói defensor dos animais chega à África, a brincadeira com o gênero policial dá lugar a uma brincadeira, ainda mais divertida, com o gênero de aventura. E sobra espaço até para uma piada interna com morcegos, antecipando a participação de Carrey, no mesmo ano, como o vilão de “Batman Eternamente”.

O primeiro tem cenas hilárias e algumas bastante ofensivas, porém, com certeza, todas as melhores referências que eu tenho do personagem, ao puxar pela memória, estão no segundo. Eu acho brilhante a cena em que Ventura ensina o outro lado da moeda ao arrogante marido de uma orgulhosa adoradora dos casacos de pele. É tão absurda, e, ao mesmo tempo, intensamente crítica, que me faz lembrar o material do grupo Monty Python. Gosto demais também da cena onde o herói atrapalhado vive a experiência de ser um bebê rinoceronte, para o espanto dos espectadores próximos. E como esquecer o ritual de sedução da jovem da tribo, impressionada com a perícia do exótico personagem ao assoprar bolinhas de papel num pobre coitado que se equilibra em um toco? As referências vão se multiplicando, enquanto a memória vai resgatando esses momentos. Em suma, o projeto é extremamente eficiente naquilo que se propõe.

E, para finalizar essa revelação, compartilho com você, caro leitor, querida leitora, um dos momentos mais bacanas que vivi como profissional da área. Em uma coletiva para imprensa, do fraco filme “Os Pinguins do Papai”, tive a oportunidade de registrar o meu encontro com o ator, extremamente simpático e atencioso. Eu poderia ter conversado brevemente com ele sobre seus projetos mais audaciosos, complexos, como “O Show de Truman”, “O Mundo de Andy” ou “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. Adivinhe sobre qual filme comentei com ele, segundos depois dessa foto? 


Faces do Medo - "O Monstro da Lagoa Negra"


O Monstro da Lagoa Negra (Creature from The Black Lagoon – 1954)
Jack Arnold é um diretor cujo valor é pouco lembrado atualmente. O responsável por “A Ameaça Que Veio do Espaço”, realizado no ano anterior, e a obra-prima “O Incrível Homem Que Encolheu”, de 1957, era um apaixonado por cinema de gênero. É interessante perceber que o tema de boa parte de seus filmes envolvia o combate aos estereótipos e a compaixão pelos rejeitados.

Em “A Ameaça Que Veio do Espaço”, numa época em que a indústria estimulava a analogia entre os invasores comunistas e os invasores espaciais, os alienígenas eram pacíficos e desejavam apenas retornar para o planeta natal. O monstro, Gill-man, não intenciona atacar os humanos, ele apenas se defende, quando descobre que eles estão invadindo seu território e realizando experiências que matam a vida marítima. Em uma época onde a temática ecológica não era discutida, o roteiro, inspirado generosamente em “King Kong”, aborda com clareza ideológica o desrespeito dos humanos com o ambiente da criatura.

A paixão da fera pela bela, vivida por Julie Adams, é representada na cena mais famosa, que mostra a jovem nadando e sendo acompanhada, numa espécie de dança submarina, pela criatura. Acho uma tremenda forçada de barra imaginar que esse momento tenha sido a inspiração para os ataques do tubarão de Steven Spielberg, como muitos críticos afirmam. É a mania de querer agregar valor a uma obra obscura, dizendo que um grande sucesso mainstream a copiou. O filme de Arnold possui valor próprio, inegável. Acho mais interessante relembrar a opinião da personagem de Marilyn Monroe após assistir ao filme, em “O Pecado Mora ao Lado”, realizado no ano seguinte, onde ela afirma que sentiu pena do solitário monstro, que precisava apenas de um pouco de atenção e carinho. A inserção dessa cena na obra de Billy Wilder já evidencia o impacto cultural do filme em sua época.

O último grande clássico de terror da era de ouro dos estúdios Universal, ainda eficiente, com uma boa trilha sonora composta por Hans J. Salter, Herman Stein e Henry Mancini, um tema marcante que inspirou várias trilhas do gênero nas décadas posteriores. Um filme que merece ser redescoberto, superior aos celebrados: “Drácula” e “A Múmia”. 

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Entrevista com Sean Hepburn Ferrer


Audrey Hepburn é um dos nomes mais respeitados na história do cinema, uma atriz que se envolvia com os problemas sociais, muito antes disso se tornar uma calculada ferramenta de autopromoção, ela era genuinamente interessada em legar para as gerações posteriores uma realidade mais justa. E, em mais uma entrevista exclusiva para o “Devo Tudo ao Cinema”, conversei por um par de horas no Skype com o filho dela, Sean Hepburn Ferrer, que, gentilmente, aproximou ainda mais sua mãe dos cinéfilos brasileiros. E, num gesto de extrema simpatia, fez questão de enviar essa foto. Thanks, Sean!


O – A sua mãe é um ícone de feminilidade e liberdade, um símbolo de uma época mais elegante no mundo, mas, como um apaixonado pelo cinema, desde a infância, a sua mãe é um ícone de alta competência enquanto atriz. Ela fazia parecer tão fácil, e, como Fred Astaire ensinou com sua dança, isso é o elemento mais difícil. Como ela se sentia atuando? Ela era confiante, enquanto atriz?

S – Não, ela não era confiante, na realidade, ela não se reconhecia como uma atriz, por isso que ela tratava todos com muita gentileza nos sets de filmagem. Ela era sempre pontual, não tinha aqueles rompantes típicos de estrelismo. Ela era treinada como dançarina, então ela sabia tudo sobre trabalho duro. E ela não podia ser bailarina, ela era muito alta, para o perfil das dançarinas de sua época, até pelo ponto de vista do desenvolvimento muscular, então ela teve que escolher outra carreira. Após a guerra, ela e sua família não tinham nada, mas juntaram o que tinham para se mudarem para Londres, e a vida a levou a seguir adiante. Mas há um frescor em sua atuação. Ela não se via exatamente como ela era, o que, de certa forma, era um precursor do método de atuação de Stanislavski, ela realizava algumas porções disso, como pesquisar o personagem a ponto de torná-lo real, mas fazia isso de uma forma natural.

Quando ela se preparou para “Um Clarão nas Trevas”, ela passou seis semanas em um instituto para cegos, para entender como eles se comportavam, como se moviam, seus hábitos.  Quando ela se preparou para “Uma Cruz à Beira do Abismo”, ela passou um tempo em um convento, para realmente entender como era a rotina. Quando se preparou para “Minha Bela Dama”, ainda que ela tivesse controle pleno da linguagem, do sotaque britânico, cockney, ela achou importante se preparar, como para tudo, da mesma forma como para seu trabalho como embaixadora do Unicef, o que também envolvia uma performance. Se você perguntar, todos irão dizer que ela era muito bem preparada para a função, tanto quanto qualquer outro embaixador. Ela já havia estudado tudo que precisava sobre o estado das crianças na África, já para as entrevistas, antes mesmo de visitar o local.  Ela estudava muito, para tudo, uma compensação talvez, já que ela se sentia mal por não ter podido, por causa da guerra, completar uma educação formal. Ela não tinha isso, então ela lia muito, durante toda sua vida, o que a tornou muito alerta em vários assuntos. Hoje em dia, com a internet, tudo é muito mais acessível para nós, e descobrimos que muitas pessoas importantes, através da História, sofriam de dislexia, não acabaram o ensino formal. Muitos dos jovens que fazem milhões no Vale do Silício não terminaram a faculdade. Mas ela, em sua época, era vítima de um preconceito, e sofria com isso. E isso a motivou a continuar exercitando, os músculos e o conhecimento, o que, em suma, é do que a vida é feita, o que nos faz evoluir e não ficar entediados.

O – Citei Astaire anteriormente, então falemos de “Cinderela em Paris”. Ela começou como dançarina, então, acredito que esse elemento no roteiro foi uma grande motivação para ela. Como ela se sentia sendo parceira de Astaire?

S – Na época, ela tinha poder em Hollywood, a estrela de Astaire estava em declínio, e, mesmo sendo muito mais velho que ela, exatamente porque ela o admirava por tantos anos, minha mãe pediu para que ele fosse contratado para o filme. O papel dele é baseado em Richard Avedon, com quem ela também trabalhou no início. Ele era um fotógrafo jovem, na época, duas crianças batalhando suas carreiras, e, depois ele ficou famoso, e eles continuaram amigos pela vida toda. Ela estava muito empolgada, e, para mim, é um filme que me dá muita alegria em assistir várias vezes, porque é perceptível a inspiração, o resgate emocional, que a ajudou a atravessar a guerra, durante a época em que achou que havia perdido seu pai, e ela realmente o perdeu, em essência, mesmo tendo encontrado ele novamente após a guerra. Ele era emocionalmente incapaz de ter a relação que ela desejava. Então, para ela, voltar e poder fazer esse trabalho com Astaire, sendo capaz de mostrar seu talento e conhecimento, foi maravilhoso.

O – O meu filme favorito dela, aquele que considero seu melhor momento como atriz, é “Uma Cruz à Beira do Abismo”, de Fred Zinnemann. Você se recorda de conversas com ela sobre o filme? Qual sua opinião sobre ele?

S – Minha babá me contava uma história, que vou revelar a você. Quando entramos na sessão do filme, as luzes já tinham se apagado, e, ao sentarmos, minha babá, que era uma senhora italiana, muito religiosa, fez uma pequena reverência e fez o sinal da cruz. Então, só de caminhar pela sala de cinema, aquele ritual, ela imaginou que estava numa igreja e que ela tinha que se comportar daquela forma. E Fred disse, após a sessão, que, de tudo que havia escutado sobre o filme, a reação da minha babá havia sido o melhor elogio. Hitchcock dizia: “eu te assusto, mas não a ponto de fazer você desviar os olhos da tela, senão, significa que eu perdi você, e a mágica se quebra”. É interessante o contexto em que ela fez o filme, porque éramos uma família fervorosamente não religiosa, ela, por ter tido uma mãe que era cientista cristã, fez com que ela não quisesse nenhuma espécie de religião em sua vida. E ela criou os filhos dessa forma, deixando que a decisão fosse nossa, quando crescêssemos, após estudarmos. Mas ela era uma grande crente do milagre da natureza. Ela costumava dizer que, para ela, o nascimento de um bebê, a flor que nasce de uma árvore, já eram milagres suficientes na vida, ela não precisava de mais nada, não precisava de qualquer ideologia.


O – Eu percebo que a importância de sua mãe, especialmente na juventude de hoje, a relevância dela, não é fabricada e alimentada pela indústria, como ocorre, por exemplo, com James Dean. Os jovens são atraídos a ela de forma instintiva, eles se importam por respeito verdadeiro, não apenas pela satisfação de um status social/cool. Eles compram as camisetas com o rosto dela estampado, mas, também, assistem aos filmes e leem livros sobre ela. Como você define esse impacto dela na juventude de hoje?

S – É verdade, tivemos essa confirmação, que mais de 50% dos fãs dela hoje são adolescentes, meninos e meninas. A partir dos dez, onze anos, até jovens que estão na faculdade. Sei disso a partir de várias fontes, por exemplo, de estudantes que tem ela como tema de algum trabalho escolar. Acompanho e ajudo essas crianças, que vem a mim através da Unicef, algo em torno de 2 a 3 por mês. Consigo a permissão dos pais ou dos professores, e converso com elas por Skype, leio para elas, é bastante trabalho, mas faz parte do cuidado com o legado da minha mãe. Mas eu adoraria estar aqui falando que eu planejei isso, que fui o empresário desse legado por vários anos, ainda que não seja mais exclusivo, já que meu irmão agora está envolvido. Você disse muito bem, “instintivo” é a palavra certa para definir. Eles possuem essa visão caleidoscópica dela. Alguns a conhecem como uma estrela de cinema, outros como uma fashionista, outros a conhecem pelos óculos, alguns pelos seus filmes, ou a conhecem como uma senhora que foi pra África e ajudou crianças, e, juntando tudo, eles formam uma visão completa. Mas é como quando se aprende uma língua nova, você vai aos poucos, você começa falando algumas palavras em português, depois a substituir as palavras espanholas e italianas pelas portuguesas, e daí em diante.

Eu acredito que tem algo relacionado à legitimidade que ela transmitia em seus trabalhos, algo de extremamente genuíno sobre ela, que esses jovens não encontram hoje em um mundo onde o Michael Jackson pode ser o maior artista pop do século, e, no dia seguinte, ele se torna um molestador de crianças. Ela teve pontos altos e baixos, mas a história dela é como um conto de fadas, uma garotinha que não tinha nada, perdeu os pais, foi para a guerra com fome, e teve que lutar para sair de lá, até se tornar uma estrela de cinema. No sentido real, é uma história simples e pura, onde ela terminou a vida fazendo o bem. É o tipo de história que escutamos quando somos crianças. Todos esses elementos reunidos fazem com que as crianças sintam que ela seja um porto seguro, um bom exemplo de alguém para se inspirar, tentar emular. Ainda que, como sempre saliento, todos sejam indivíduos especiais, houve apenas uma como ela, há apenas um como você, é muito confortante saber que esse tipo de história pode acontecer. Ela foi a mulher mais fotografada, mas olhe para o momento histórico em que ela foi fotografada, olhe o contexto. Hoje é fácil, com IPhones  e as redes sociais, mas, naquela época, logo após a guerra, tirar fotografias era caro, um processo extremamente mais complexo do que é hoje.

O – E, hoje, qualquer um é fotografado, basta participar de um medíocre reality show, que a pessoa se torna uma celebridade. Eram tempos mais elegantes.

S – Exatamente.

O – Você tem alguma história interessante dos bastidores de alguma filmagem dela?

S – Alguns eu visitei, como nas filmagens de “Robin e Marian”, eu trabalhei com ela na produção de “Muito Riso e Muita Alegria” (1981). Peter (Bogdanovich) escreveu um pequeno papel pra mim, achou que eu era engraçado. Eu a vi em várias situações, em discursos públicos, então eu tenho uma visão abrangente dela. Talvez não tenha uma história engraçada para contar, mas uma confirmação do fato de que todas as performances dela, todos os discursos que fez, foram muito importantes e muito difíceis para ela. Eu a vi em vários eventos, tremendo como vara verde, antes de ir ao palco. Mas, de certa forma, o medo do palco é o que torna você bom, como estávamos falando momentos atrás. Ela nunca realmente se sentia confortável com o público, ainda que ela fosse muito boa em entrevistas, ou talvez nem tanto, mas sempre que ela tinha que ir a público fazer discursos, ela tremia.

O – Muitos atores, no que me incluo, são muito introvertidos fora dos palcos.

S – É verdade.


O – Como sua mãe lidava com a própria criatividade? Ela apreciava todas as etapas do processo de filmagem?

S – Eu acho que ela se esforçava muito para encontrar o material certo. Meu pai (o ator Mel Ferrer) teve um papel muito importante nisso, ele era um homem difícil, mas muito educado em Hollywood, um homem que lia muito. Claro que ele costumava fazer os vilões, fora ser um homem difícil, complicado, esse é o motivo dele não ter cultivado um grande legado, não é tão lembrado.

O – Adoro seu pai em “Scaramouche”.

S – Sim. Mas, voltando à sua pergunta, ela fazia todas as etapas, a publicidade que os estúdios requeriam, e então ela botava um ponto final, não falávamos sobre isso em casa, não tínhamos uma sala de projeção, tínhamos cópias dos filmes dela em 16 mm, que foi a forma com que eu descobri os filmes dela, no sótão de casa, no verão, com as janelas abertas, uma toalha amarrada a um dos feixes, e um velho projetor, aquele maravilhoso som característico.

Foi como eu vi todos os filmes dela, na minha própria sala de projeção improvisada, feita a mão. Tínhamos uma pequena TV, em preto e branco, no quarto de brincar. Ela não trazia Hollywood pra casa, ela não cultuava isso, ela era uma pessoa normal, ela adorava ir ao mercado, e, quando eu não podia mais ficar com ela nas filmagens, ela desistiu da carreira de atriz, para ser mãe em tempo integral. Ela era assim.

O – É impossível não abordarmos “Bonequinha de Luxo”, e, acredito, já deve estar cansado de falar sobre ele. A sociedade teve seus valores mudados, o mundo se tornou mais sombrio e cruel, mas o trabalho de sua mãe no filme continua tocante como sempre. Quando escutamos a trilha sonora de Henry Mancini, somos transportados para aquele mundo de sonhos. Você pode falar um pouco sobre a importância do filme no mundo moderno?

S – Eu acho que o filme é, sem dúvida, o monstro sagrado dela. E acho que é uma combinação de fatores: um bom timing, as pessoas certas, um bom roteiro e o encaminhamento do roteiro na direção certa, e o fato de que ele tinha um inato senso de estilo, em que ela colocava, naquela época, Givenchy, que era apenas um designer em ascensão, não era como Armani, que colocaria um time de pessoas para fazer a roupa dela para o filme. Naquela época, ela tirava roupas comuns do mostruário de uma loja, tentando compor o que pensava melhor para a personagem, e, quase sempre, acabaria optando pelo preto básico. Então, acho que há o aspecto fashion, uma história clássica, atuações maravilhosas, uma música fantástica, que todos tiveram que lutar para manter no filme, pois, como você sabe, os executivos tentaram tirar a trilha, eles odiavam a canção (“Moon River”), é parte do processo. Chamar de colaboração pode ser bobo, mas, de fato, é uma colaboração, pelo ponto de vista do cinema de guerrilha, uma luta para manter os elementos dentro do projeto, e garantir que ele seja realizado.

E se ela não tivesse o bom gosto e a educação, ela teria os deixado fazer coisas com o filme que não estavam certas. É interessante perceber que o filme foi composto, praticamente, como uma homenagem a Marilyn Monroe. É, essencialmente, sobre a história de Norma Jean. E se você olhar para os personagens, especialmente quando Buddy Ebsen aparece, como o marido, aquela parte toda é, realmente, a vida de Norma Jean, até o nome real é muito similar. É interessante que eles decidiram que essa homenagem seria bem evidente, bem óbvia, e, em minha opinião, acho difícil que a Marilyn conseguisse interpretar, tivesse o estofo para vários daqueles momentos, digo, não era necessário uma Elizabeth Taylor, uma atriz séria, mas acho que Marilyn teria sido muito light, não atingiria as notas necessárias para contar essa história.

O – Acredito que a música tenha sido um fator importante na mente criativa de sua mãe. Qual tipo de música ela escutava em casa?

S – Nos últimos anos, escutávamos a trilha de “A Casa da Rússia” (composta por Jerry Goldsmith, um filme com Sean Connery e Michelle Pfeiffer), eu dei a ela várias trilhas sonoras, como “A Missão” (composta por Ennio Morricone, um filme com Robert De Niro).  Ela adorava trilhas sonoras de filmes e, no início dos anos 70, ela escutava muito Burt Bacharach, The Carpenters, ela amava música clássica e era uma grande fã de Bach. Ela gostava também de Vivaldi e Chopin, claro. E éramos muito próximos de Arthur Rubinstein, que considero até hoje, o melhor pianista daquela era. Um gênio, à sua própria maneira, um gênio no melhor sentido da palavra. Um gênio que viveu uma boa vida e colocou dois filhos saudáveis no mundo, e era uma pessoa maravilhosa de se conviver. E ele era muito parecido com minha mãe, sua maior preocupação era com os ensaios, treinar, estudar. Ele adorava chocolates suíços, então ele treinava e os comia, enquanto conversávamos. Eu devia ter uns 10, 12 anos. Gostava muito dele como pessoa, então, pra mim, até hoje, te digo que tenho poucas coleções musicais em casa, mas, uma delas, é a coleção completa das obras de Rubinstein. Escutar ele me conduz de volta a algo real, e não falo sobre sentar num salão de teatro, falo sobre sentar na sala de estar com o próprio Rubinstein, vestido com um velho paletó de tweed, contando divertidas histórias. Ele era muito caloroso, uma pessoa adorável. Eu valorizo carinhosamente esses momentos.


O – Como sua mãe se sentia com o reconhecimento pelo trabalho? Como ela lidava com seus admiradores? Gostava do assédio, de ser abordada?

S – Ela sempre foi muito humilde e se doava, acreditava que um filme era o resultado de uma corrente de eventos, como ela gostava de se referir, assim como em seu trabalho com a Unicef, que fornecia um resultado valoroso. Se fosse fraco, o resultado não seria interessante. Então ela não pensava muito sobre sua imagem. Tem uma ótima história, de quando ela estava começando em Hollywood, por volta de 1953, 1954, teve um jantar do sindicato dos atores, e colocaram minha mãe sentada ao lado de Marlon Brando. Eles se cumprimentaram, mas ele não falou mais com ela durante todo o evento. E ela sempre pensou que ele não tinha gostado dela, que ele não a tinha achado interessante o suficiente pra trocar umas palavras. E, anos mais tarde, ela manteve o mesmo agente, depois de ter estado com o homem que era o fundador do Universal Studios, um pequeno agente de Hollywood, que trabalhava com grandes estrelas, seu nome era Kurt Frings, ele trabalhou com Elizabeth Taylor, com os Beatles, e mais algumas pessoas, poucas, 6 a 8 eram suficiente pra ele, já garantiam a ele bastante dinheiro. E ele estava vivendo com uma mulher, com duas crianças, Miko e Maya, com quem cresci junto. Na Suíça, após voltarmos pra casa, acho que Marie (mulher de Kurt) e Marlon tiveram uma conversa, E, pelo correio, veio essa carta de Marlon, que dizia: “Eu só gostaria que você soubesse que eu também me lembro daquele evento, e que eu não conseguia falar com você, porque eu estava completamente absorto, admirado com sua beleza”.  E minha mãe ficou muito emocionada com esse gesto. Isso ocorreu, talvez, uma semana antes de sua morte, foi um maravilhoso fechamento para algo que ela guardava há muito tempo.

O – Linda história, Sean. Como é para você assistir os filmes dela hoje? Quão difícil é separar a mãe da atriz nessa experiência?

S – Sim e não, quero dizer, algumas pessoas morrem e deixam para seus filhos um restaurante, uma loja de sapatos, um hotel, e a cada vez que o filho passa por aquela porta giratória do hotel, ele enxerga seu pai, esse tipo de coisa. Eu aprendi que posso caminhar por qualquer local do mundo, que haverá uma foto da minha mãe, e tenho certeza que também é assim no Brasil.

O – Sim, no meu quarto, por exemplo, tem uma foto dela, que estou vendo nesse momento.

S – (risos) Mas esse é um caso especial, você é da área de cinema. Posso entrar num quarto de hotel no Japão e, assistindo CNN, lá está ela, falando. Eu me acostumei com isso. É algo normal. Só se torna mais difícil quando assisto “Além da Eternidade” (filme dirigido por Steven Spielberg, o último trabalho de Audrey). Não dedico tempo a assistir “Amor Entre Ladrões” (1987) e “A Herdeira” (1979), mas “Além da Eternidade” é um filme lindo, porém, quando a vejo nele, aquela é a mulher que eu perdi, a sua aparência, a voz, aquela mulher que morreu nos meus braços em 20 de Janeiro de 1993. Isso dificulta para eu assistir, mas é totalmente aceitável assistir seus primeiros trabalhos.

O – Os meus filmes favoritos dela são, como já disse, “Uma Cruz à Beira do Abismo”, “Sabrina”, “Charada” e “A Princesa e o Plebeu”. Quais são os seus filmes favoritos dela?

S – “Cinderela em Paris” é importante pelo contexto. Tenho muito respeito por “Uma Cruz à Beira do Abismo”, porque ela escolheu um papel que a levou para outro patamar, um desafio como atriz séria, sem o suporte de sua aparência, de seu corpo, no sentido de transmitir emoção, ela tinha apenas uma pequena parte de seu rosto à mostra. Eu sou um apaixonado por “Amor na Tarde”, porque o diretor, Billy Wilder, era estudante de Lubitsch, e o filme tem aquele toque do diretor, que eu amo. Maria Cooper é uma amiga, e Gary Cooper era um homem extraordinário. Assisti muito “A Princesa e o Plebeu”, e, obviamente, “Bonequinha de Luxo” é um filme vital. Um envelheceu lindamente, o outro nem tanto, mas ainda é importante, como quando se assiste “O Rei e Eu”, por exemplo. Talvez eu seja muito criterioso ao julgar, eu estive envolvido na restauração de “Minha Bela Dama”, e fiz uma forte campanha para que fosse inserida a gravação de sua voz cantando no filme. Tentei muito, mas não foi possível, porque, às vezes, ela não atingia a nota de forma exata. Hoje, você assiste “Os Miseráveis” e não pensa duas vezes. Ela era tão boa quanto qualquer um dos atores desse filme, pode confiar em mim.

O – Sean, eu te agradeço demais a gentileza. Você poderia deixar uma mensagem especial para meus leitores, os cinéfilos brasileiros que amam o legado artístico de sua mãe?

S – Eu gostaria de agradecer a todos que mantém esse carinho por ela, porque, de verdade, se ela tivesse mais cinco minutos nesse planeta, ela provavelmente utilizaria tentando fazer algum bem. A situação no mundo está ficando mais difícil, com as crises econômicas que vivemos. Esse carinho das pessoas está nos ajudando para que continuemos contando a história dela, e, essa história, basicamente, é o desejo desesperado de que, algum dia, as vidas das crianças valham o mesmo, não importando onde essas crianças tenham nascido. Todos nós sabemos hoje, a pesquisa já foi feita, que tudo se resume a direitos pessoais, em alguns países funciona, em outros não, alguns países onde a economia é estável, em outros não. É o que se deve fazer para proteger o que é seu, e, claro, antes do direito pessoal, e de propriedade, vem os direitos humanos pessoais, isso estava na essência do que ela acreditava, então, o mais lindo é que esse carinho das pessoas tem tornado mais fácil para nós continuarmos a campanha pelas coisas em que ela acreditava. Isso é, de verdade, o mais importante.

O – Essa é a grande mensagem por trás do legado artístico dela.

S – Exatamente, Caruso.