quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Ciclo de Clássicos das Artes Marciais - "The Loot" e "Carrascos de Shaolin"


The Loot (Zei Zang – 1980)
Produção independente altamente criativa que fez com que a indústria voltasse os olhos na direção de seu diretor, Eric Tsang, que recebeu elogios calorosos de vários artistas marciais da época, como Jackie Chan, que o convidou para dirigir com ele "Armadura de Deus", lançado em 1986. Só pelo fato da trama não envolver um caso de vingança, já merecia menção honrosa, mas a estrutura adotada de romance policial estilo Agatha Christie, aliada ao senso cômico apurado que segue eficiente, garantem entretenimento de muita qualidade, até para quem não aprecia o gênero. Eu considero que este é o melhor momento de David Chiang como ator, vivendo um lutador/investigador caçador de recompensas que entra em disputa com outro mercenário (Norman Chu) por um objetivo comum: encontrar o enigmático ladrão de joias e assassino conhecido como "Aranha". É interessante salientar que o roteiro fica ainda mais interessante em revisões, a revelação do mistério não enfraquece a experiência. Os últimos 20 minutos são, sem exagero, brilhantes, aula embasbacante de técnica e timing, com o confronto entre Chiang, Chu e Phillip Ko, com o primeiro utilizando a estratégia do punho de macaco, inserindo um toque hilário, a tremedeira de pavor. E, na conclusão, um deboche corajoso com um clichê visual dramático utilizado nas produções dos estúdios Shaw Brothers. Excelente!


Carrascos de Shaolin (Hung Hsi Kuan – 1977)
É comum hoje a indústria de cinema se aproveitar de forma nada orgânica do discurso feminista para lucrar alto, mas houve época em que voos mais ousados eram dados no tema, com espontaneidade e humor. Esta produção dos estúdios Shaw Brothers, dirigida pelo competente Chia-Liang Liu, de "A Câmara 36 de Shaolin", traz o requinte usual, coreografias espetaculares e majestosos cenários, porém, o que fica após a sessão é a sua mensagem. A trama se passa durante a dinastia Qing, em que os Manchus liderados pelo lendário traidor guerreiro taoísta eunuco Pai Mei (Lo Lieh), invadem e destroem o Templo de Shaolin. Durante o ataque, o mestre de cabelos brancos derrota e mata o líder dos monges, participação breve e marcante de Gordon Liu, mas o seu principal discípulo, vivido por Kuan Tai Chen, consegue escapar juntamente com poucos colegas. Após a fuga, eles se juntam ao movimento anti-Qing como membros de uma companhia de ópera itinerante. Durante uma de suas viagens, ele conhece a jovem Fang Yung-chun (Lily Li), especialista no estilo da garça, com quem se casa e tem um filho, passando a treinar intensivamente o estilo da garra de tigre para conseguir finalmente vingar o seu mestre. O interessante é que os dois nutrem preconceito pelas técnicas do outro, a divisão (assim como a metáfora) é clara entre o que deve ser utilizado por homens e por mulheres. Só que o menino cresce guiado pela mãe a se vestir como uma garota, sendo treinado por ela no estilo da garça. Sem revelar muito sobre o terceiro ato, a história comprova que a negação do feminino ou do masculino no indivíduo conduz à derrota, a resposta aparece somente quando o guerreiro combina as duas potencialidades, desestabilizando o aparentemente indestrutível Pai Mei. 

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Ciclo de Clássicos das Artes Marciais - "A Víbora do Cantão" e "A Vingança do Águia"


A Víbora do Cantão (Gwandongsalmusa – 1983)
Considerada perdida por muitos anos, resgatada e restaurada por um grupo de fãs, esta obra-prima coreana do diretor Jang Lee Hwang foi lançada em DVD lá fora com o título "Canton Viper". Eu tive contato recentemente com este trabalho, fiquei completamente surpreendido pela qualidade do roteiro de Hong Ji-woon. Até mesmo o usual clímax de confronto coreografado, essência do gênero, desta vez é substituído por uma conclusão dramaticamente eficiente, o foco é emocional, apesar das cenas de ação serem fantásticas, o que fica após a sessão é o desenvolvimento do relacionamento entre Kal (vivido por Hwang, mestre de Taekwondo, em uma das raras vezes em que não interpretou o vilão), a bela viúva e seu filho pequeno, que o idolatra como pai adotivo e símbolo de heroísmo, numa variação do tema do faroeste "Shane". O problema é que o protagonista desconhece que foi o responsável pela morte do pai do menino, que jurou vingança, elemento que despertará tremendo conflito interno no terceiro ato. É interessante a utilização de poderes especiais nas lutas, como telecinese e o plasticamente bonito controle do fluxo da água com a mente, algo que intensifica a aura de fábula. Um filme raro e que merece ser garimpado pelos cinéfilos dedicados.


A Vingança do Águia (Leng xue shi san ying - 1978)
A trama é simples, o clássico conto de vingança, o mérito está na reviravolta insinuada já no segundo ato. Um cruel mestre das artes marciais (Ku Feng) treina seus discípulos para se tornarem assassinos obedientes, chamados de "Águias". Um destes assassinos (Ti Lung, talvez no melhor momento de sua carreira), perito na utilização do bastão triplo, foge do grupo após um desentendimento e encontra um rapaz misterioso (o carismático e talentoso Alexander Fu Sheng, que faleceu precocemente aos 28 anos em um acidente de carro) que passa a ajudar o fugitivo contra seus perseguidores. Este é um dos meus favoritos dos lendários estúdios Shaw Brothers, dos irmãos Sir Run Run e Runme, dirigido por Sun Chung, reconhecido por seu apreço pelas tomadas abertas nas sequências de luta, opção que favorecia tremendamente a complexidade das coreografias, nenhum detalhe é perdido no balé dos corpos, ao invés do imediatismo visceral de seus colegas menos elegantes e, por conseguinte, mais populares. As lutas movem a narrativa adiante, trabalham com investimento emocional, algo raro no gênero. E de todas as obras que vi do diretor, "A Vingança do Águia" é aquele em que ele consegue executar seu estilo com mais eficiência e segurança. 

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

"Artista do Desastre", de James Franco

Link para o meu texto sobre "The Room", de Tommy Wiseau:
http://www.devotudoaocinema.com.br/2017/11/guilty-pleasures-room-de-tommy-wiseau.html


Artista do Desastre (The Disaster Artist - 2017)
Você pode não conhecer Tommy Wiseau, mas seu filme “The Room”, apesar de ser horroroso em todos os aspectos, segue lotando salas de cinema nos Estados Unidos em sessões de meia-noite, com fãs que interagem minuto a minuto com os acontecimentos, algo similar ao que ocorre com o clássico “The Rocky Horror Picture Show”. O diretor James Franco, que também protagoniza, emulando com perfeição a voz e os maneirismos do homenageado, injeta leveza e audácia no roteiro de Scott Neustadter e Michael H. Weber, adaptado do livro homônimo escrito por Greg Sestero e Tom Bissell, que alterna capítulos focados no impacto de Wiseau na vida de Sestero, seu colega de teatro, e, os mais interessantes, focados na caótica rotina de filmagens. 

O filme poderia ter dedicado mais tempo aos absurdos hilários ocorridos com a equipe, já que o relacionamento dos amigos é, apesar de esquisito, a reutilização do clichê dos sonhadores que abandonam tudo na busca por seus objetivos. Greg, vivido por Dave Franco, o “carinha de bebê”, antítese do tipo grotesco que todos enxergam em Tommy, deseja vencer financeiramente na indústria de cinema, enquanto o colega, que parece nadar em dinheiro, quer apenas o reconhecimento artístico, ele leva profundamente a sério a arte. Quando coloca na cabeça a ideia de provar seu talento produzindo/roteirizando/dirigindo e estrelando um filme, ao invés de continuar batendo nas portas dos agentes e recebendo sempre as mesmas respostas negativas, que o reduzem ao estereótipo que seu visual entrega, ele se empolga, perde o controle. O roteiro, assim como o livro, acerta ao evitar um retrato humilhante, mesmo quando as suas atitudes em cena parecem não deixar outra escolha, por trás de cada piada, você consegue sentir o impulso genuíno de alguém que verdadeiramente acredita naquilo que diz e faz. A mesma dignidade de figuras como Ed Wood, a caricatura ambulante que claramente esconde muita mágoa e problemas psicológicos causados pela rejeição, elementos sempre insinuados, já que o tom é de comédia, e, vale destacar, muito eficiente. 

É brilhante a ideia de iniciar o filme com depoimentos elogiosos de nomes relevantes e respeitados da indústria, como J.J. Abrams e Kevin Smith, uma declaração corajosa de que cinema não é só técnica, a autenticidade do criador pode cativar o público. “The Room” faz tudo errado, mas ele provoca reações. Os piores filmes do mundo são aqueles que causam indiferença.

domingo, 28 de janeiro de 2018

"The Post - A Guerra Secreta", de Steven Spielberg


The Post - A Guerra Secreta (The Post - 2017)
Na linguagem usual de cinema, “The Post” pode ser considerado um prequel do clássico setentista “Todos os Homens do Presidente”, de Alan J. Pakula, com Tom Hanks interpretando o editor executivo do The Washington Post, Ben Bradlee, outrora vivido por Jason Robards. Mas é Kay Graham, em mais uma impecável atuação de Meryl Streep, quem recebe justa maior atenção desta feita, já que teve papel fundamental no processo de divulgação dos Papéis do Pentágono, documento que conduziu a opinião pública ao ceticismo político no calor da guerra do Vietnã, zeitgeist que possibilitou o cenário da revolta contra os escândalos do caso Watergate e a renúncia do presidente Nixon. 

O roteiro de Liz Hannah e Josh Singer não se esquiva da óbvia crítica atual, traçando paralelo com os absurdos de Trump em seus infantis ataques à liberdade da imprensa, mas poderia ter pensado em soluções melhores para algumas situações, como na cena em que Daniel Ellsberg (Matthew Rhys) tenta sair com os documentos escondidos na mala e trava diante dos guardas, quase causando riso involuntário. Os diálogos podem ser excessivamente expositivos em alguns momentos, mas a sutileza nunca foi característica dominante nos projetos de Spielberg, logo, isto não prejudica o ritmo da obra. A fotografia cinza de Janusz Kamiński privilegia enquadramentos limpos, planos longos que estabelecem tensão até mesmo em situações teoricamente triviais, permitindo que o espectador possa focar sua atenção no que está sendo dito e, mais importante, naquilo que se insinua nas entrelinhas. 

Gosto bastante do alívio cômico representado pela menina, filha de Bradlee, que é mostrada inocentemente vendendo limonada na porta de casa, enquanto o pai e seus colegas repórteres se esforçam arduamente para organizar os documentos. Ela, ao perceber que há potencial de intensificar as vendas, já que o desespero dos adultos os deixa sedentos, não pensa duas vezes, carrega sua banca para dentro de casa. A participação dela pode parecer despretensiosa dentro de uma cena crucial, mas faz perfeita analogia com o comportamento inicial do pai em seu escritório, quando recebe a informação de que os adversários do “The New York Times” serão perseguidos pelo governo após a publicação da matéria. Ele fica feliz por não estar envolvido, e, pior, enxerga no evento a possibilidade de ganhar terreno com a queda do outro jornal, veículo com posição estabelecida no mercado, enquanto o “The Post” lutava ainda para se tornar relevante. Bradlee cogitou naquele segundo de ganância o monopólio, ao invés de pensar na nação. A venda dos jornais, o sensacionalismo das matérias, quando o dinheiro toma a dianteira na equação, a mentira sedutora pode se tornar verdade, a função da imprensa perde o sentido. 

É quando Kay (Streep), a editora responsável por manter o sonho profissional da família vivo, uma mulher tentando firmar seu pé em um ambiente machista, alguém que dependia do interesse de investidores, contra todas as probabilidades, coloca tudo em risco para defender o que é correto. O arco narrativo dela é fascinante, de insegura à símbolo de íntegra fortaleza ética, sem perder a ternura e a feminilidade. Ela sabe que não se pode negociar com terroristas, não se pode justificar o injustificável, a omissão apenas avalizaria a censura, algo que prejudicaria todos os profissionais da área. O lucro deixa de ser o mais importante, já que os investidores correm ao primeiro sinal de enfrentamento com o presidente da nação, o prejuízo é certo, a rebeldia trará consequências, mas a imprensa só existe com liberdade, somente a verdade granjeia respeito.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Rebobinando o VHS - Espada e Feitiçaria (B) dos Anos 80


Eu já preparei uma lista no blog dos melhores filmes de Espada e Feitiçaria, mas não poderia esquecer pérolas do subgênero que movimentaram as locadoras de vídeo nas décadas de oitenta e noventa, obras que não são símbolos de qualidade, algumas causam até vergonha alheia, mas que se mantém vivas na memória afetiva dos cinéfilos da época. Segue abaixo uma visão descontraída e nostálgica. E, claro, não se esqueça de rebobinar ao final. 


A Espada e os Bárbaros (The Sword and The Sorcerer - 1982)
O rei Cromwell (Richard Lynch) tenta conquistar um reino cujo exército é invencível. Com a ajuda de Xusia (Richard Moll), um feiticeiro monstruoso e muito poderoso, consegue vencer a batalha e fazer daquele local o seu reino maligno. Anos mais tarde, Talon (o canastrão Lee Horsley), o filho do rei assassinado, se torna um guerreiro mercenário e lidera um grupo de saqueadores. Quando retorna ao antigo reino de seu pai, ele resolve se vingar de seus assassinos, libertar o povo da tirania e conquistar o coração da bela princesa (Kathleen Beller). Filme de estreia do diretor Albert Pyun, pupilo de Akira Kurosawa e mestre na arte de operar milagres com baixíssimo orçamento. Destaco o desequilíbrio absurdo no tom, o início promete um clima sombrio, pesado, mas após os primeiros vinte minutos, o roteiro se entrega a situações cômicas, com utilização generosa de piadas fálicas sobre o “tamanho da espada”. A trilha sonora é tão excessivamente épica que, contrastando com a escala modesta das filmagens, acaba causando mais risos involuntários do que empolgando. É bastante divertido, ritmo agitado, tem algumas exibições de nudez feminina, algo que contava muitos pontos favoráveis na análise do adolescente de outrora, uma espada de três lâminas engenhosa e completamente inútil, em suma, imperdível! É o melhor título nesta seleção, o que não significa muita coisa. 


Sorceress (1982)
Já nos primeiros dez minutos, após algumas exibições de sequências de ação genéricas, o espectador é presenteado com a maravilhosa visão das lindas irmãs gêmeas (repito, gêmeas) Leigh e Lynette Harris alegremente nadando nuas no rio, depois enfrentando um deus dos bosques voyeur, com a câmera generosamente admirando seus seios. E, por tudo que é sagrado, elas exibem com orgulho sempre que possível. O valor da locação da fita era pouco perto da satisfação que momentos inocentes (a maldade está nos olhos de quem vê, claro) como estes traziam ao pobre garoto tímido que chegava cansado da escola. Qualquer cena de invasão de vilarejos era desculpa para que os guerreiros inimigos arrancassem a roupa das pobres camponesas, a pilhagem neste filme é puramente sexual. A garotada compreensivelmente torcia para os vilões. A trama é irrelevante, o nível das atuações é um desastre, a coreografia das batalhas é incrivelmente incompetente, o bacana era ver as duas heroínas correndo em câmera lenta, apreciando a ação da gravidade. O diretor Brian Stuart, na realidade, não existe, foi criado pelo produtor Roger Corman, unindo os nomes de seus dois filhos, para remover o crédito de Jack Hill, responsável por ótimas obras blaxploitation, que deve agradecer a decisão até hoje. Se "Sorceress" não entrasse nesta lista, eu estaria sendo tremendamente ingrato.  


Senhor das Feras/O Príncipe Guerreiro (The Beastmaster - 1982)
Tanya Roberts no auge da beleza e seminua durante boa parte da trama. Vendi o filme? Não? Então fique pela direção do Don Coscarelli, que havia realizado o ótimo "Phantasm" (1979), arriscando um gênero diferente e fazendo o possível com o material. Após ver na infância em VHS e na "Sessão da Tarde", revi para preparar esta postagem e afirmo com toda segurança: "Senhor das Feras" é terrível. A sinopse não pode ser criticada por propaganda enganosa, ela define bem a simplicidade tosca do projeto: Em uma terra de magia e bruxaria, vive Dar (Marc Singer), o Príncipe Guerreiro, senhor dos animais. Ao seu lado, Kiri (Roberts), seu grande amor, que acaba como prisioneira do Rei dos Terrons. O jovem embarca numa desenfreada busca para salvá-la das mãos cruéis do inimigo. Sempre ao lado de seus fiéis companheiros: Sarah, a Águia; Ruh, o Tigre; Kodo e Podo, duas doninhas. Eu lembro que eu me divertia mais vendo o "TV Animal", apresentado pelo Gugu Liberato. O herói bárbaro nasce de uma vaca, o que faz com que ele consiga se comunicar com os animais. Legal, né? O conceito é tolo, mas a execução consegue deixar tudo ainda mais tolo. Vale destacar a trilha sonora composta por Lee Holdridge, único mérito inegável da obra.


Deathstalker - O Guerreiro Invencível (Deathstalker - 1983)
Num tempo e numa terra distantes, o guerreiro Deathstalker (Rick Hill) luta contra um terrível feiticeiro chamado Munkar (Bernard Erhard), que escraviza todo um reino. Para isto, precisa reunir os três poderes que governam o mundo medieval: a pedra-amuleto, o cálice da visão e um segredo, que será seu maior desafio. Não se deixe enganar pela trama incrivelmente promissora, o filme é apenas mais uma desculpa divertida para um show de nudez feminina, não canso de repetir, elemento fundamental na cinefilia dos rapazes introvertidos de outrora. O roteiro ilógico é de uma estupidez monumental, mas uma estupidez fascinante, que convida à revisão. Perfeito para ver numa madrugada insone com a companhia inebriante do whisky. Eu poderia analisar algumas sequências, mas, sinceramente, eu estaria forçando uma barra absurda, existem filmes que realmente sobrevivem muito bem sem este esforço. "Deathstalker" cumpre sua função. E eu disse que tem a presença encantadora da coelhinha da Playboy: Barbi Benton? Ah, doces lembranças da minha adolescência.


* Aproveitando o ensejo, eu recomendo fortemente o livro "Conan, o Bárbaro, Vol. 1", lançado pela editora "Pipoca e Nanquim", dos editores Bruno Zago, Daniel Lopes e Alexandre Callari, que reúne os contos originais de Robert E. Howard em ordem de lançamento, algo único no mundo, com uma linda capa de Frank Frazetta e a tradução do sempre competente Callari. Você encontra o livro no site da Amazon. Obra fundamental que merece estar na sua prateleira!

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

"Com Amor, Van Gogh", de Dorota Kobiela e Hugh Welchman


Com Amor, Van Gogh (Loving Vincent - 2017)
Esta pioneira animação rotoscópica estruturada a partir de pinturas a óleo, o resultado do trabalho de mais de 125 pintores, 65 mil frames, 10 anos de produção, consegue captar com extrema sensibilidade a essência da arte de Vincent Van Gogh, artista que se profissionalizou em apenas 8 anos de dedicado estudo e profundo amor pelo que fazia, produziu mais de 800 telas, mas só conseguiu vender 1 durante a vida.

Ao ver a bela homenagem, o árduo esforço da equipe em traduzir nas imagens o olhar do mestre, a forma como ele enxergava o mundo, mimetizando seu estilo na técnica que incorpora 120 de suas telas mais famosas, a emoção transborda naturalmente, o legado vivo e sempre relevante do pai da arte moderna, alguém que faleceu acreditando ser um fracassado, a escória do mundo. Triste demais, as cenas conseguem transmitir o coração apertado do homem alquebrado que esquivava por instinto da crueldade humana, porque não conseguia mais revidar. Todo aquele que se destaca positivamente desperta muita inveja, sentimento danoso especialmente na área cultural, já que os envolvidos primam pela insegurança, a coragem silenciosa daqueles que tocam o solo da vida como desbravadores que encaram terreno desconhecido, enquanto a maioria prefere seguir as regras do sistema e aguardar pacientemente o fim do expediente.

O roteiro abraça a melancolia em sua estrutura alicerçada em flashbacks em preto e branco, abordando momentos cruciais na vida do homenageado, desde sua infância, enquanto acompanhamos em cores vibrantes o jovem Armand Roulin (Douglas Booth), filho de um carteiro (Chris O’Dowd) que era muito amigo do pintor, que viaja para Paris com a missão de entregar uma carta de Van Gogh (Robert Gulaczyk), que havia acabado de falecer aos 37 anos, para o irmão Theo. Ao descobrir que o destinatário também havia morrido, a missão perde o sentido, mas o rapaz fica fascinado pelo mistério do aparente suicídio e decide conhecer melhor o homem através de conversas com aqueles que mantiveram contato com ele nos anos anteriores. Ele, que inicialmente havia sido levado pela curiosidade sobre a morte, acaba descobrindo e, por conseguinte, sendo irreversivelmente impactado pela grandeza de suas atitudes em vida, a dignidade que o acompanhou até o último suspiro.

Vale destacar a excelente opção de utilizar nos créditos finais a linda canção “Vincent”, composta por Don McLean, em bonita versão cantada pela britânica Lianne La Havas. A letra sintetiza com perfeição a importância de se manter íntegro, ainda que muitos tentem quebrar seu espírito. A vitória é a real imortalidade, algo que os medíocres jamais irão conquistar. “Este mundo nunca foi pensado para alguém tão bonito quanto você”.

No vídeo abaixo, singela homenagem, uma gravação minha cantando "Vincent" (com opção de legendas em português), registro feito em 2014.


terça-feira, 23 de janeiro de 2018

"A Incrível Verdade", de Hal Hartley


A Incrível Verdade (The Unbelievable Truth – 1989)
Também conhecido no Brasil pelo título “Uma Relação Muito Perigosa”, a trama do filme de estreia de Hal Hartley aborda a jornada de um mecânico, vivido por Robert John Burke, que conclui uma pena de prisão por acusações de homicídio culposo e retorna à sua cidade natal para reiniciar sua vida. O passado o persegue, o seu relacionamento com a jovem filha do patrão, vivida por Adrienne Shelly, que enfrenta o fim de sua adolescência e o medo de amadurecer (simbolizado na bizarra fixação dela pelo holocausto nuclear), parece ser a única coisa capaz de humanizar sua figura trágica, sempre vestido de preto. O problema é que ele a rejeita, obstinado como um ronin honrado que se desassocia conscientemente da realidade como forma de autopunição.

Há uma aura surrealista que remete aos trabalhos iniciais de David Lynch, com o mesmo senso de humor peculiar, como na sequência ambientada em uma lanchonete, o diálogo que é repetido em loop várias vezes, transformando as palavras em melodia banal, evidenciando o vazio dos frustrantes rituais cotidianos. Muitos salientam a inspiração óbvia de Godard na estrutura caótica que se diverte subvertendo as convenções narrativas e cinematográficas, mas é importante deixar claro que Hartley, já em seu primeiro arroubo criativo, demonstra tremenda segurança e inegável personalidade, não é uma cópia reverente ou disfarçada como os projetos de muitos cineastas celebrados, até mesmo no nosso Cinema Novo.

É uma obra crua, sem o refinamento que o diretor já traria no filme seguinte, e, exatamente por isto, pela coerência com a proposta executada com baixíssimo orçamento e sem concessões mercadológicas, eu considero uma das pérolas mais interessantes da década de oitenta.  

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Sobre a irrelevância das premiações consagradas


Sei que estamos em plena temporada de premiações de cinema, as apostas para o Oscar já começaram, muitos colegas estão debatendo o assunto, talvez você que conheceu meu trabalho como crítico recentemente esteja estranhando o meu silêncio, mas como sempre afirmo (desde 2008, quando comecei na área), não enxergo relevância nestes eventos enquanto parâmetro de qualidade. E considero importante sempre bater nesta tecla. Se quer algo mais sério, procure nos festivais.

É a época do ano em que aquela pessoa que enxerga cinema apenas como passatempo aproveita para posar de interessada, participar de bolão, fazer piada com as gafes e analisar os vestidos do tapete vermelho, atenção que se esvai antes mesmo do evento terminar. Eu sou apaixonado por esta arte, não consigo aceitar que seja reduzida a uma "corrida de cavalos". O que irá encontrar no período em meu blog são textos sobre filmes de todas as épocas, nacionalidades e gêneros, o verdadeiro "ouro", que brilha muito mais que qualquer estatueta. Este jogo é necessário, movimenta a indústria, vende jornais, pode até ser divertido, mas é tão raso e artisticamente irrelevante quanto o "Melhores do Ano" do Faustão. 

Então, se você verdadeiramente ama o cinema, aproveite o período para se aprofundar nos estudos, aquele garimpo maravilhoso, ao invés de desperdiçar tempo com a celebração cafona do lobby e da politicagem.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

"Me Chame Pelo Seu Nome", de Luca Guadagnino


Me Chame Pelo Seu Nome (Call Me By Your Name - 2017)
Não há nada especificamente engenhoso que eleve o roteiro de James Ivory ao patamar de obra-prima que muitos estão alardeando, o filme de Luca Guadagnino, em essência, aborda o amor proibido entre um adolescente italiano (Timothée Chalamet) e um visitante norte-americano (Armie Hammer), colega mais velho do pai, no contexto repressor do início da década de oitenta. O mérito está nos detalhes, na franqueza corajosa com que a trama trata o relacionamento, o despertar sexual com culpa, e, principalmente, na forma como os pais do jovem lidam com a experiência. 

É interessante o contraste, elegantemente captado na fotografia do tailandês Sayombhu Mukdeeprom, entre o comportamento do casal no primeiro ato, servindo às exigências da sociedade e negando a natureza, e a liberdade que compartilham no terceiro ato, isolados da pressão dos conhecidos. Na cena em que eles, após vencerem o medo, encaram a possibilidade do sexo, a câmera se afasta e perdemos contato visual, típico momento em que se espera gemidos, o elemento proibido e provocador, algo relacionado à condição mais animalesca do ato, mas o que se escuta é a contagiante risada dos dois, a mesma atitude redentora que retorna inteligentemente nos créditos finais como forte revide para a frustração, decisão criativa preciosa que resume a maior qualidade da obra, o foco na cumplicidade que se estabelece aos poucos e de forma crível, o carinho que nasce de mãos dadas com o desejo. As mãos, vale destacar, são a alma desta exploração interna pela verdade do indivíduo, perceba como os namorados expressam na gentileza do toque tudo o que não podem revelar. Enquanto alguns projetos similares sobre relações homoafetivas se perdem no fetiche, ou tentam satisfazer sensorialmente com o choque, “Me Chame Pelo Seu Nome” apenas se dedica a contar uma linda história de amor. 

O toque de brilhantismo, o monólogo do pai (Michael Stuhlbarg) do garoto ao final, texto que transborda humanismo e maturidade emocional, com destaque para o trecho em que ele salienta a necessidade de aproveitar a vida, enfatizando como a degradação do corpo é rápida, símbolo que rima com a utilização das esculturas nos créditos iniciais, a perfeição física retratada pelos artistas do passado, tentativa vã de imortalidade, analogia de extrema sensibilidade que dá o tom poético de uma obra muito bonita e, acima de tudo, fundamental nos dias hostis em que vivemos.

Sobre o caso Woody Allen


Sobre a terrível cultura do apedrejamento e a capacidade do brasileiro se indignar com o conhecimento apenas da manchete de uma notícia.

Woody Allen se apaixonou pela enteada de sua esposa Mia Farrow, Soon-Yi (que era filha adotiva de Farrow e André Previn), que tinha 22 anos à época, relacionamento que segue forte ainda hoje, um caso que movimentou os tablóides sensacionalistas e que fez com que a mulher traída decidisse se vingar assassinando a reputação do ex-marido, inserindo na amarga equação acusações doentias e claramente mentirosas de abuso sexual infantil (NÃO existe pedófilo de um caso só). Apesar de um dos filhos corajosamente se posicionar publicamente sobre o abuso psicológico da mãe no passado, defendendo que ela fez “lavagem cerebral” nos pequenos, boa parte do público, que sequer estudou a fundo o caso, ainda liga o nome do cineasta ao escândalo midiático.

Se você segue ligando o nome de Allen a um caso em que ele já foi INOCENTADO décadas atrás por peritos de dois estados, propagando o ódio "ad hominem" e tentando desvalorizar suas obras, com o perdão da expressão, você é um tremendo idiota. Seja melhor, estude, não dissemine mentiras para posar de pessoa íntegra virtualmente.

Palavras de Allen sobre Soon-Yi: "Uma das maiores experiências da minha vida foi com minha mulher. Ela teve um passado muito, muito difícil na Coréia. Foi uma órfã vivendo nas ruas, morando em latas de lixo e passando fome aos 6 anos de idade até ser levada a um orfanato. Eu forneci a ela oportunidades incríveis e ela retribuiu todas elas. Ela estudou, tem amigos, filhos (ela e Allen são pais de Bechet, 17, e Manzie, 15), um diploma, viajou para vários lugares. Se tornou uma pessoa completamente diferente. O que proporcionei a ela me deu mais prazer do que todos os meus filmes."

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

TOP - Obras-Primas do Cinema Mundial Que Você Não Deve Ignorar (para o site norte-americano "Taste of Cinema")


To love cinema is to be a padawan in the art of gold mining for obscure films around the world, learning about different cultures through their rich artistic expressions.

There’s a bit of Indiana Jones in every movie buff, or there should be, since intellectual laziness never does well. So to help with this goal, I have selected titles from various parts of the globe that deserve greater recognition. Don’t waste time, start today!

Seven Beauties (1975)
Italian director Lina Wertmüller (who started as assistant director to Fellini) caught the attention of the world with this film, even breaking the sexist chain of Hollywood and being the first woman to compete for an Oscar for Best Director. The greatest merit of production is not in this fleeting award event of American self-celebration, so immersed in politics, but in the strength of its script and the incredible courage it shows in each frame.

The greatest challenge was to use comedy as a tool to tell the story of Pasqualino Frafuso (Giancarlo Giannini in an impeccable performance), a man who lives in appearance, false morals and cowardice. He disrespects any sense of ethics, but reacts violently (and clumsily) whenever his seven sisters are exposed to some humiliating situation.

The humor is born when we realize that the “Seven Beauties” are incredibly devoid of any charm or grace, accentuating the feeling that we are facing an allegorical work. Our clumsy hero ends up getting involved in a crime while trying to maintain the honor of his family, which ends up leading him to a court and a downward spiral of events, where he will be stripped of all ego and self-love, against background the Nazi rise in World War II.

Giannini works his characterization with subtle references to Chaplin, evidenced by his looks and his walk. The classic vagabond, even surviving a precarious existence, maintained his refined “pose,” as did Giannini’s Pasqualino, who conceals a corruptible and fearful heart wrapped in a secure, bon vivant and authoritative pose. This position is already clear in the early stages of the work, when he witnesses the murder of Jews by the Nazis and does not seem to feel remorse for not trying to avoid that slaughter.

The critique of conformism (already included in an efficient way in the music that starts the film) becomes more and more direct, while the protagonist finds himself having to make increasingly degrading decisions, such as flirting with a rather attractive German at a concentration camp, in an attempt to escape the hell of war. As one of the characters states in the film, when order is driven by chaos, only a disorderly man can be saved.

The greatest triumph of the movie is to make us cheer for a non-heroic protagonist. A man who survives from his cowardice. Someone who shapes his character through the obstacles that confront him. The wonderful final scene accurately expresses the traumatic consequences of this lifestyle.

Ballad of a Soldier (1959)
One of the arguments I listen to most from moviegoers when I suggest movies that are not part of the Hollywood circuit is, “There you come with those Ukrainian art movies.” As I firmly believe that the initial step for anyone interested in breaking the seventh art is to risk looking for diamonds encrusted in the deepest rock formations, I usually point out “Ballad of a Soldier.”

Seen today, it presents an agile and fully efficient narrative structure, thrillingly telling the odyssey of a 19-year-old soldier, an immature boy thrown in the midst of the cruelty of war. After clumsily performing a heroic feat in battle, he receives an honorable notification from his superior. Distraught from not having been able to say goodbye to his mother in his humble village, having followed his road leaving behind an unfinished repair on the roof of his house, the young man asks his superior that in the place of the notification, he can have at least one day next to his mother, promising to return next.

The goodness of the young Alyosha (Vladimir Ivashov), who ends up various times risking to deviate from his desired goal, seeking to be useful to compatriot strangers (like the soldier who lost a leg and intends to let his wife believe that he died).

A quick and beautiful scene occurs soon after the young man knows the reality of those who await the return of the soldiers, indulging in frivolous passions as a way of escape. He meets the weakened soldier’s father, choosing to lie to reassure him about the high status of his son, while the father chooses to lie to the young man about his son’s wife, asking him to return and tell him how much she loves him and awaits her return. Both know that they are deceiving themselves, but respect prevents them from showing it.

Dramatic moments like this keep its vigor, as well as the efficiency of the comic relief, represented by the figure of the young and bountiful officer on the train, who clandestinely accommodates the young soldier and a beautiful girl (Zhanna Prokhorenko), his first love.

Not One Less (1999)
The saga of a stubborn teacher and a child who would not be a statistic. An impressive effort by sensitive director Zhang Yimou to portray the most beautiful side of human nature.

With a cast of amateurs who use their own names (and occupy functions similar to their characters), “Not One Less” tells of a 13-year-old girl (Wei Minzhi) who lives in a poor Chinese village, far from civilization. When the teacher of the humble local primary school needs to be absent for a month, the mayor summons the girl to be the substitute teacher. The modest payment will be given if she is able to avoid giving up the children. Families are poor and there is no hope in the eyes of students who express their anguish by acts of rebellion.

Zhang begins the work making us believe that the obstinacy of the girl is guided only by the payment, but throughout the plot he moves us to show the devotion of the old teacher, who, with a limited amount of chalk and no money to replace it, even uses the powder left on his fingers to complete his teachings on the blackboard. This love, which is only explained by the genuine vocation, ends up contaminating the young woman, who embarks on an arduous journey (external and internal, of maturity) to rescue the most strenuous student of the class who had fled to the big city to find work.

The discussion that the work fosters, between the lack of demotivating perspective and the progressive stimulation of the girl in fighting for that single student, establishes an inspiring and realistic parable. In the course of her journey (which begins at school, when she and the children carry bricks, intending to pay for the bus trip), she ends up spending a lot more money than she would receive at the end of her mission.

On the other hand, we are presented the figure of a secretary of the city, who is unable to show compassion when denying help to the girl. Zhang introduces us to an adult woman who denies a simple gesture (which would take her only a few minutes), while the young woman exudes maturity by keeping her aim to the point, sleeping in the street. The documentary naturalism of filming adds value to it, causing us to identify with the situations and hope that the protagonist can find the boy and take him back to school.

Like any 13-year-old child (not so different from the ones she must teach) in the same situation, she starts focusing only on not letting any of them escape. Before she even boldly ventured into town, her actions already demonstrate that something has changed in her (matured) and, more importantly, in the students. Her stubborn devotion proved to the needy children that they are not statistics. The exciting finale makes it clear that where formerly dominated hopelessness and chaos existed, the light of self-esteem is now shining. The internal change was much greater than the external one, coming from the young woman’s journey.

Aniki Bóbó (1942)
Portuguese director Manoel de Oliveira has already received much criticism for his esteem for the long takes, present in almost all of his works. His detractors argue that cinema is the art of movement, not a collage of still photos. With good humor, the filmmaker says that his long takes are not photos, in these fixed planes there can be a lot of movement. His keen cinematographic gaze assured him the position of a symbol of the Portuguese cinema. Among all the films of his career, my favorite is “Aniki Bóbó,” his first feature-length fiction and one that’s unfairly very little known (even in his country).

Another brilliant Portuguese writer named Fernando Pessoa once said, “no children’s book should be written for children”. The same can be said about cinema. Rarely do studios make films aimed at the children’s audience with intelligence and refinement, believing that just putting an incompetent director on the front line with a lot of color and a minimum of creative ideas will win the attention of children and the money of adults. It is not always that beautiful works such as “The Boys of Paul Street” and “Stand by Me” appears in cinemas.

With “Aniki Bóbó,” de Oliveira created a poetic tale that can be seen as a cinematographic equivalent of the literary work “The Little Prince” from Antoine de Saint-Exupéry, aside from being great as an instrument for a first appreciation of his work, for being simple and very objective. My advice to those who like this: do not forget to watch also “The Divine Comedy” (1991) and the interesting “A Caixa” (1994), to fall in love with the director’s style.

The story of the film is based on the short story “The Millionaire Boys” by João Rodrigues de Freitas, and tells the adventures of a group of Portuguese children, and their first loves and frustrations. It is interesting to note a certain similarity between the lyrical gaze on de Oliveira’s childhood and François Truffaut in his majestic “The 400 Blows,” released 17 years later. I sincerely believe that de Oliveira’s work influenced that of Truffaut, being a forerunner even of the neorealist movement.

Among my many favorite scenes is one in the beginning, when the grumpy schoolteacher does not notice that a cat is walking through the window, causing the whole crowd to shake. Trying to put order in the room, he screams without success, but when he bangs his table for silence, the cat is scared and runs away, causing the children to express sadness with a sigh.

Another comical scene that still provokes laughter is the one in which the owner of a store (lived by the fantastic Nascimento Fernandes, who began his career acting in Brazil), after being irritated with a child who had called him a giraffe, slaps his assistant. Frightened, the young man questions the reason, in which the man replies, “I can not beat the customers!” A simple scene, but with a perfect rhythm that becomes funnier than on paper.

Another one that does not last more than a few seconds, but which enchants me, is when the trio of child protagonists are in front of a shop window of the same store (aptly named like “Shop of the Temptations”) and admire a doll. There is a poetry in these few seconds.

Bab’Aziz – The Prince That Contemplated His Soul (2005)
This is the best film in the desert trilogy directed by Nacer Khemir, with scenes that linger in one’s memory for a long time, like the dance of the young Ishtar and her grandfather in the desert, and the way the narrative mirrors “1001 Nights” with the grandfather (like Scheherazade) telling the fantastic story of the prince in parts to entertain the girl, who is getting more and more fascinated. The script (written by the director in partnership with Tonino Guerra, who also wrote “Amarcord” and “Blow Up”) is based on the dignity and devotion of the noble Baba Aziz, who knows that death lies in wait and tries to teach his knowledge to his spiritual granddaughter, who accompanies him on the journey.

As in the first movie, we have a character who represents the contemporary world. A young man in a denim jacket and cap meets Baba Aziz (Parviz Shahinkhou) and his young granddaughter Ishtar (Maryam Hamid) as they walk on the desert sands looking for the site of the great gathering of dervishes (nomadic Muslim monks), which occurs only once every 30 years.

The young man is present initially by the sound of his singing, which leads us to the first moment of rare beauty in the work. Asking the elder about which way to go, the sage responds, “You should just walk.” Worried about getting lost in the undulating vastness, he listens to the girl: “He who has faith never loses.” Baba then hands over a beautiful symbology: “Each one uses his most precious gift to find his way, yours is the voice, then sing my son, that the way will show itself to you.” He continues singing until he disappears into the horizon.

The essential message that Khemir wants to pass us through is lyrically represented in the final speech of the dying old man: “If they told a baby trapped in the darkness of his mother’s womb, there was an illuminated world out there with high mountain peaks, endless oceans, undulating plains, beautiful flowering gardens, creeks, a sky composed of a myriad of stars and a scorching sun, the baby without knowing these wonders, would not believe such things could exist as we do when we face death. This is the reason for fear.”

In Khemir’s view, the search for “God” (“the truth to reach God is in the very interior of man” – Agostinho) is an incessant yearning for self-knowledge and appreciation of the human being, in search of a crystalline feeling and a detachment material. The “Desert Trilogy” is rich in symbolism, beautiful to admire, and with a philosophical richness rarely seen in cinema.

Vagabond (1985)
French critic and director Alexandre Astruc believes that the camera should work in the hands of a director, just like a pen in the hands of a writer. Director Agnès Varda embraces this belief in her work. In this film, which I consider the best of her career, she rejects any cohesion or structure of continuity, approaching social exclusion by the memories of those who witnessed (in lesser or greater emotional investment) the passage of the young Mona Bergeron (Sandrine Bonnaire), a fascinating unknown.

Choosing to present the character in the first few minutes, like a lifeless frozen body in a ditch, the narrator (Varda) asks, “I wonder if she still lives in the memory of those who knew her as a child. Those she met recently are reminded of her because she marked them.”

For us, as for the narrator, that young woman was brought by the waves of the mysterious ocean called: past. Varda chooses then to show her leaving naked from the sea, like a new Eve in a paradise of uncertainties. There is no promise of discovery as to the reasons that led her to abandon her comfort for road adventures, but we were hypnotized by imagining the various possibilities.

People are attracted to her, not out of sympathy (she borders on apathy, except for a scene where she seeks to cherish a child), but by seeing in her spontaneous attitudes a “cure” for her self-imposed limitations, out of fear or cowardice. A girl claims she wants to be free like her, while an old lady exudes with her the awareness that her family cheers for her to die so they can go their own way. The laughter of both, fueled by alcohol, turns out to be a bunch of cruel truths, thrown into the stomach of a hypocritical society.

At one point, one of the young women who crossed the path of Mona romanticizes her relationship with a boy, as his idealized vision of true love. Shortly thereafter, Varda contradicts the speech, showing the boy claiming that his love for the girl was motivated by the amount of marijuana they both swallowed together. The audience is then presented with two versions, still distant from that untouchable reality. Mona seems to be a force of nature, an element that refuses to be subdued by generalized alienation.

Alpine Fire (1985)
Director Fredi M. Murer realized with “Alpine Fire” his first work of fiction, after being a documentarian. Note the contribution of this practice in the enviable ability to compose beautiful images, certainly the high point of the film. It is easy to see that the artisan has little mastery in the construction of a script that connects a beautiful scene to the other, as well as the absence of a necessary artistic detachment, causing the work to drag unnecessarily. Of course, the reward is worth the effort, even though you may never want to watch a Swiss movie again in your life (which would be a shame).

The plot is simple and could be told without dialogue (because the few that exist could not be more irrelevant), though I believe that would have been a very interesting option. A family lives alone in the Swiss Alps, facing daily the climatic storms and the maturation of the younger son (Thomas Nock), who is deaf and very attached to his beautiful older sister, Belli (Johanna Lier), who acts as a mentor and appeases him in chaotic moments.

When the young man’s hormones begin to get out of control, his parents decide to keep his mind occupied with work, but in the snowy solitude of the night, a forbidden feeling begins to unite the brothers. The great merit of the work is dealing with a very difficult subject with impressive sensitivity, avoiding the public’s estrangement or repudiation, but rather causing an incredible sensation that it was the most natural action to be taken in that situation. Murer retains the elegance from the beginning to the surrealistic end.

678 (2010)
The guilt that the woman feels, the narrow-minded thought that enslaves her into a routine of constant fear, the source of real stories that the Egyptian writer/director Mohamed Diab used to build her plot. Three women from different social classes, very particular views on the repression they suffer, victims of sexual harassment. Fayza (Bushra) is screwed every day on her bus trips; her bad financial situation makes her unable to get to work by taxi, so invariably she is late and is discounted by the boss.

Small children are humiliated in school when she she stops paying a monthly fee, a terrible situation that is aggravated even more by her having an insensitive companion, who thinks only of satisfying her desires in bed, as he sees her as a sexual object. Going through this martyrdom in the streets, she starts to avoid her husband, which only complicates her routine even more.

Seba (Nelly Karim), after a traumatic experience in a football stadium, an event that causes her boyfriend to abandon her, dedicates her life to encouraging female retaliation. Nelly (Nahed El Sebaï) works as a call center clerk, often reprimanded by her boss, who does not accept that she hangs up in the face of the daring. She tries to find her place in the sun as stand-up comedian, but the male audience doesn’t laugh at her jokes. The three women, forces of nature, end up uniting in an attempt to find a solution to the country’s stupidity.

The absurdity of justifying the unjustifiable is the fastest route to a bestialized society; one begins by applauding vandalism in political demonstrations, rape becomes the fault of the victim’s costume, spitting on someone’s face becomes a valid argument in a discussion, extremism in all areas blocks lucid thinking, the good ones are silent and overcome fear. The woman suffers sexual harassment, but is coerced to not file a police complaint so as not to have her reputation stained. Rape culture is a cruel reality in that country.

The genial ending with the comedic acting in a feral way as an instrument of criticism; the victim on stage, exposing her hurt with a smile on her face; the existential wounds opening, and the audience gradually realizing that they’re laughing for no reason.

The truth frees the comedian, while her colleague decides to cut her hair and hide her body. And the one who was already accustomed to the cloister removes the veil and explores the aesthetic possibilities of the lipstick. It is no solution, there is no short-term solution to something so ingrained in the mindset of the people, but the hardest choice is to take the first step in the right direction.

The Shooting Party (1978)
Adapted from the novel by Anton Chekhov, published as a pamphlet in 1884 and 1885 and is considered a precursor of the psychological police novel, the film penetrates the moral void of the decadent aristocracy when narrating the drama of the young Olga, the daughter of a servant, coveted by three men of half-age.

The first element that thrilled in the work is the wonderful soundtrack composed by Eugen Doga, especially the wedding waltz, which crossed the cinematographic border and entered popular culture, having been chosen in 2014 by UNESCO as the fourth musical masterpiece of the 20th century.

The sequence that presents it to the public lavishes refinement, a quality that can be perceived even in the scenes filmed in claustrophobic environments, with the camera isolating the face of young Olga (Galina Belyaeva) during the dance, evidencing in her expression the satisfaction of finally conquering the social status of nobility that he always desired. She, the tender beast of the original title, in her adolescent inconsequence, toys with the sentiments of the three adults, who see in her the lost glory of a ruined aristocracy, the healthy and radiant projection of their impetus of power.

The pillars may be peeling, the torpor of alcohol can no longer be controlled, the only pleasure comes from hunting, from the act of slaughtering beings incapable of defending themselves. That beautiful young woman, without any effort, makes them priceless prey.

Anatoly Petritsky’s photograph of Bondarchuk’s “War and Peace” adds a somber dreamy aura, the constant presence of death lurking, an announced tragedy, reinforced by the weight each cast injects into the text, which fortunately drives away the tone of melodrama that could have been adopted by a less competent filmmaker.

Hunger (1966)
Directed by Henning Carlsen and brilliantly adapted from the work of Knut Hamsun, the Danish film tells of a miserable and hungry writer who wanders the streets of Kristiania (old Oslo) in 1890, trying to publish an article (which he considers his masterpiece) in a local newspaper.

Desperate after several unsuccessful attempts to find a job, he struggles to survive in a battle to maintain his pride and against humiliation and starvation, which causes him constant delusions and mood swings. His attempts to show himself worthy are high points, as after pawning his coat for money, he realizes very well after he forgot his pen in his pocket, returning in the place and making a point of explaining to a disinterested owner that that pen was special for him, for it was with her that he wrote his thesis of philosophy in three volumes.

Per Oscarsson’s award-winning performance in Cannes manages to turn a character who had everything to be weird into someone we care about. We can penetrate into his fragile, paranoid world, understand his motives and cheer for him.

Scenes like the dream, where he fights a bone with a rabid dog or when, inventing situations, goes door to door asking if they need your services, are unforgettable in their honesty. After gnawing the remains of a bone, arguing that he had picked up his dog, he vomits and cries desperately, saying, “But is there nothing we can keep in ourselves?” A few minutes later, he says to a policeman on the street, “In five minutes I’ll be a very happy man.”

While many films show men in critical situations caused by alcohol or drugs, in this little masterpiece, the suffering of the protagonist arises from his rigid moral code, which prevents him from acting in the most rational way. Even though he does not have a place to stay, he refuses the invitation of a friend asking if he would have somewhere to spend the night. Even though he was obliged to try to sell his glasses, the buttons of his blouse and his only coat to try to keep himself alive, he refused friends’ help, almost as if consciously treading a personal Calvary with no right of redemption.

* Link para a postagem original no “Taste of Cinema”: http://www.tasteofcinema.com/2018/10-masterpieces-of-world-cinema-you-should-not-miss/

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

"Dark Star", de John Carpenter


Dark Star (1974)
John Carpenter fez aniversário recentemente e eu devo confessar um deslize, apesar de apreciar bastante o seu conjunto de obra, ainda não havia dedicado um texto no blog para seus filmes. Já programei mais alguns, mas decidi começar por aquele que considero o embrião que sintetiza sua atitude como cineasta, o longa-metragem de estreia: “Dark Star”, realizado com baixíssimo orçamento, nascido como despretensioso média-metragem de faculdade, idealizado por Carpenter e seu colega Dan O’Bannon, que viria a ser reconhecido por “A Volta dos Mortos-Vivos” e pelo roteiro de “Alien – O Oitavo Passageiro”, mas que chamou a atenção do produtor Jack H. Harris, do clássico “A Bolha Assassina”, que abriu a carteira, pediu refilmagens e a adição de material relevante para que o trabalho fosse lançado na tela grande. É interessante refletir e ressaltar a importância de profissionais como Harris em uma indústria séria, pessoas que enxergam o talento desconhecido e investem no potencial. Quantos grandes diretores a indústria brasileira de cinema perde diariamente? Quando iremos nos profissionalizar?

Astronautas hippies a bordo da nave “Dark Star” executam a missão de destruir planetas instáveis em sistemas marcados para futura colonização no universo. O tédio, resposta debochada à lentidão do “2001” de Kubrick, perceptível nos rostos e nas posturas dos cabeludos, não há glamour nas viagens espaciais. O ambiente é minúsculo, apertado e bagunçado. Logo no início, o comandante envia comunicado em vídeo avisando que um corte de verbas no congresso impediu o transporte de um escudo antirradiação, mas a morte certa e lenta não parece ser algo tão ruim para os rapazes. Eles já esqueceram até de seus próprios nomes. Carpenter faz com a ficção científica o que “M.A.S.H.”, de Robert Altman, fez anos antes com o gênero da guerra, o senso de humor cínico e atrevido supera as óbvias limitações técnicas. A longa sequência no elevador, por exemplo, que começa com o astronauta e sua vassoura perseguindo o alienígena, uma simpática bola de praia com garras, já pode ser considerada uma aula de construção de suspense e do uso inteligente do silêncio neste processo, elementos que Carpenter refinaria em “Assalto à 13ª DP” e “Halloween”, culminando na obra-prima “O Enigma de Outro Mundo”.

O desfecho é brilhante, o confronto intelectual com a bomba filósofa, espécie de prima pobre do HAL 9000, que é induzida a compreender as questões fenomenológicas, na esperança de que ela pense duas vezes antes de explodir. Só que, ao humanizar a máquina, os astronautas cometeram um erro banal, a consequência nunca poderia ser boa, o homem é o único animal capaz de destruir o próprio meio ambiente em que vive.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Ciclo da Comédia Nacional Clássica - "Pistoleiro Bossa Nova"


Pistoleiro Bossa Nova (1959)
Nesta produção da Herbert Richers que brinca com o gênero faroeste e aproveita a onda da Bossa Nova que estava despertando, um vilarejo chamado ironicamente de “Desespero” é atormentado por bandidos. Neste clima hostil, chegam à cidade dois camelôs, vividos por Ankito e Grande Otelo. Um deles, sósia de um temido pistoleiro, assume o papel do justiceiro, apesar de ser medroso contumaz e  avesso à sons altos. Eles fazem amizade com um grupo teatral mambembe liderado pela encantadora vedete vivida por Renata Fronzi, que logo desperta ciúmes na hilária cangaceira Pequenina (Anabela), namorada do verdadeiro pistoleiro, que ilumina a tela com sua presença. Tente não rir com o método dela para espantar pessoas desconhecidas de seu quarto. A sequência é um dos pontos altos da chanchada nacional.

Ankito tinha algo de Stan Laurel, pureza e ternura no olhar, misturados à capacidade acrobática circense que remetia ao Buster Keaton, característica que seria perdida no projeto seguinte, quando o ator se machucou seriamente ao cair de um prédio em construção, tragédia que prejudicou sua carreira. Não é meu cômico nacional favorito, mas ele alcança equilíbrio perfeito em parceria com Grande Otelo, que vive o tipo malandro de fala rápida, contraste que humaniza a dupla. O roteiro garante bons momentos, especialmente no primeiro ato. Gosto bastante do início no trem, ao som de Carlos Lyra cantando a sua linda composição "Maria Ninguém", que seria lançada por João Gilberto no mesmo ano em seu clássico disco de estreia: "Chega de Saudade". 

"Pistoleiro Bossa Nova" é comédia de alta qualidade, infelizmente esquecida por seu próprio povo. 

"Corpo e Alma", de Ildikó Enyedi


Corpo e Alma (Teströl és Lélekröl - 2017)
A roteirista/diretora húngara Ildikó Enyedi retorna após um longo inverno com um trabalho essencialmente simples e poderoso. As fortes cenas iniciais no abatedouro remetem à crueza do clássico curta “Le Sang des Bêtes”, de Georges Franju, que também utilizava a violência animal como metáfora para falhas humanas. 

O leitmotiv da obra é sintetizado na breve sequência em que o chefe (Géza Morcsányi) conversa com o novo empregado sobre o impacto psicológico daquele ofício na rotina dele. O rapaz diz que não sente pena dos animais, resposta que incomoda seu interlocutor. O problema não está na decisão individual de comer carne ou ser vegano, mas no absurdo de não se perturbar minimamente com o ato de abater o animal para suprir sua fome. Conceito mais complexo do que pode parecer à primeira vista, algo que ressoa em vários momentos da trama. O garçom que não percebe o chamado insistente dos clientes na mesa, os únicos no local, por estar com os olhos baixos, focado na tela de seu smartphone. O roteiro evidencia a ternura no olhar dos animais, os cervos do sonho compartilhado, o gado sacrificado e os protagonistas, a fragilidade de vítimas que instintivamente reconhecem a aproximação da finitude e, por conseguinte, aprendem a lidar com o medo. A ideia da conexão pelo sonho agrega camada de fábula, motivo surreal que reforça a compreensão de uma sociedade que prima cada vez mais pela incomunicabilidade.

A chegada da inspetora de qualidade Mária (Alexandra Borbély), uma jovem excessivamente introvertida, faz com que os olhares dos colegas se voltem para seus movimentos controlados, a cabeça baixa, uma beleza que parece buscar desesperadamente ser comum. O chefe é um dos que ficam estranhamente fascinados por aquela figura. Como ele mesmo afirma, vive uma fase em que já desistiu de amar, provavelmente abalado após ter seu braço paralisado, o cotidiano desumanizante de sangue e vísceras reflete o torpor em seu rosto sofrido que parece esculpido a cinzel. Ele teme que o toque feminino venha por pena, mas ela simplesmente teme o toque, seja qual for a intenção de quem o faça, duas almas alquebradas que já desistiram de tudo. As tentativas de ambos se adequarem aos padrões de relacionamentos fracassam miseravelmente, escutar canções de amor mercadologicamente construídas para o sucesso nas rádios não funciona, a vulnerabilidade deles não suporta mentiras confortáveis, rituais sem significado genuíno, os dois aguardam amedrontados no abatedouro como os outros animais, passivos, contando os minutos. 

A paz da floresta nevada onírica representa a fuga da realidade, a existência sem regras e cobranças sociais, a resposta está no ato de encarar a verdade e enfrentar o medo. Ao superarem este obstáculo no terceiro ato, a vitória está nos olhos que se encontram com cumplicidade passional, na mão que ampara carinhosamente a fragilidade do outro. Quando eles vencem o medo, o sonho perde razão de existir. 

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Ciclo da Comédia Nacional Clássica - "Mulheres à Vista"


Mulheres à Vista (1959)

“O negócio é perguntar pela Maria.” – Estratégia infalível do protagonista para iniciar conversa com belas mulheres.

O malandro João Flores (Zé Trindade) tenta seduzir uma viúva rica (Estelita Bell) querendo que ela patrocine o show de um grupo de artistas abandonados por um empresário desonesto. Esta chanchada da Herbert Richers, com argumento de Chico Anysio e Zé Trindade, e direção do sempre competente croata J.B. Tanko, registra o melhor momento do poeta baiano no cinema, quase sempre eclipsado por seus colegas nas páginas da História, um tipo caricato que poderia ter saído dos traços de um gibi, encantador, esperto e mulherengo, ele resolve tudo na lábia. Auxiliado por Grande Otelo e Consuelo Leandro, ele alcança o equilíbrio perfeito que faz de seu vigarista do bem uma presença inesquecível. Sem dinheiro, mas cheio de sonhos, ele coloca em prática um plano que sintetiza o instinto de todo empreendedor artístico nacional independente, mover montanhas e fazer qualquer negócio para conseguir realizar seu objetivo, o retrato fiel do amadorismo apaixonado da indústria na época. 

Dentre as várias sequências musicais, destaco a simpática canção-título interpretada por Grande Otelo, com boa trucagem visual, além da presença do grande Nelson Gonçalves, cantando a bela "Arco-Íris". Há um momento breve e muito interessante que ressalta a criatividade do diretor, a cena que envolve uma transição temporal com o auxílio de um quadro na parede, mostrando um peixe no prato. E vale destacar também a composição visual da personagem da governanta sisuda, um óbvio deboche com a figura da Sra. Danvers (Judith Anderson), de “Rebecca – A Mulher Inesquecível”, de Hitchcock. 

“Caiu na risada, considero castigada.” – Zé, analisando a eficiência da cantada.

Ao ser obrigado no final a desempenhar vários papéis na orquestra do teatro, Zé faz com que o espectador gargalhe da precariedade de sua produção, a realidade de todos os profissionais que lutavam no cinema nacional com garra tremenda e que conseguiam entregar seus filmes contra todas as probabilidades, um exercício de metalinguagem atípico e que engrandece a obra. 

"Roda Gigante", de Woody Allen


Roda Gigante (Wonder Wheel - 2017)
(O texto revela informações sobre a trama, spoilers, então recomendo que seja lido após a sessão)

É revigorante ver um diretor tão prolífico criativamente buscar uma nova abordagem aos 83 anos de idade, sem perder sua identidade, exibindo total controle narrativo em sua elegante sintonia com o diretor de fotografia italiano Vittorio Storaro, que capta com precisão as cores vibrantes e antinaturais que remetem conscientemente ao Technicolor, emoldurando o cenário da Coney Island da década de cinquenta com a aura de terna e gloriosa melancolia dos melodramas clássicos de Douglas Sirk. Se o estilo despojado de Allen é representado pela forma como o personagem de Justin Timberlake conversa com o público, não há outros pontos de fácil identificação, a trama não se parece com nada que o cineasta tenha realizado em sua longa carreira, algo que pode causar estranheza no primeiro contato. Boa parte da crítica norte-americana, intensamente preguiçosa, parece ter se incomodado com o fato de não conseguir desta vez reduzir o diretor ao estereótipo que eles criaram, cometendo o equívoco banal de apedrejar a obra por não satisfazer seus desejos, o clássico “não é o filme que eu queria, ou pensei que seria”.

A trama de “Roda Gigante” é depressiva, existencialmente apocalíptica, com ecos perturbadores autobiográficos que revelam o estado de espírito de Allen. A nostalgia do mundo de sua infância dá o tom, conforto necessário para enfrentar a crueldade do mundo adulto. Kate Winslet vive Ginny, uma mulher casada com experiência como atriz e que se apaixona pelo jovem Mickey (Timberlake), um salva-vidas que se dedica à literatura e ao teatro, que acaba se interessando também pela enteada dela, Carolina (Juno Temple), provocando na primeira um processo destrutivo e inconsequente que culmina no ato extremo de facilitar o assassinato da jovem. O rapaz afirma no início para o espectador: “Como poeta, eu uso símbolos e, como um dramaturgo em germinação, adoro melodrama e personagens maiores do que a vida.”

Voltando à realidade, Allen se apaixonou pela enteada de sua esposa Mia Farrow, Soon-Yi, que tinha 22 anos à época, relacionamento que segue forte ainda hoje, um caso que movimentou as manchetes sensacionalistas e que fez com que a mulher traída decidisse se vingar assassinando a reputação do ex-marido, inserindo na amarga equação acusações doentias e claramente mentirosas de abuso sexual infantil (não existe pedófilo de um caso só). Apesar de um dos filhos corajosamente se posicionar publicamente sobre o abuso psicológico da mãe no passado, defendendo que ela fez “lavagem cerebral” nos pequenos, boa parte do público (que sequer estudou a fundo o caso) ainda liga o nome do cineasta ao escândalo midiático.

Ginny percebe ao final que não há redenção para sua atitude, temos que ser responsáveis por tudo o que fazemos, não há vitória em sua vingança, o seu impulso somente trouxe mais dor. O jovem segue sua vida longe dela, o filho adolescente piromaníaco parece sentir cada vez mais prazer no calor das chamas, o marido (atuação inspirada de Jim Belushi) continua insensível, bêbado e bronco. O filme termina abraçando o patético rosto da mulher, banhada pela luz azulada que representa morte em vida, espécie de evolução do conceito trabalhado em “Blue Jasmine”, perdida em suas ilusões e destruída pela culpa que jamais irá revelar.

“Roda Gigante”, mais que um simples filme em sua carreira, é a elegante resposta de Allen no crepúsculo de sua vida. 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Ciclo da Comédia Nacional Clássica - "A Baronesa Transviada"


A Baronesa Transviada (1957)
Eu escutava quando criança o LP “Dercy Espetacular – Um Banho de Risos”, passava mal de tanto rir, felizmente meus pais nunca tiveram frescura e não levaram em consideração a advertência que vinha na capa: “Proibida a execução a menores de 21 anos”. Eu cresci respeitando a obra desta inesquecível artista brasileira, mas só fui conhecer seus trabalhos no cinema já na época da faculdade. E considero “A Baronesa Transviada” o seu melhor momento na tela grande. 

"Achei! Touca pra criança de duas cabeças.” – Edayr Badaró, ao encontrar o sutiã da baronesa no quarto dela.

Baseado em argumento de Chico Anysio, esta produção da Cinedistri escrita e dirigida pelo sempre competente Watson Macedo conta a história da simplória manicure Gonçalina (Dercy), que tem uma pinta nas costas que prova ser ela a mais legítima filha de uma baronesa moribunda. Assim que herda a fortuna, ela precisa lutar contra o restante da família que também quer o dinheiro. Dercy era bilheteira de cinema, amava a sétima arte, gostava de imitar Theda Bara, Pola Negri, a sua personagem reflete este amor. Quando ela descobre que herdou a herança, o primeiro desejo é produzir um filme.

“Ela já tá fritando o bolinho pra viajar” – Maneira hilária como Grande Otelo informa ao telefone o estado de saúde da baronesa.

Nem tudo funciona, o roteiro não envelheceu muito bem, algumas piadas são racistas (compreensível no contexto da época), outras são simplesmente fracas, os segmentos musicais são simpáticos, mas quebram o ritmo. Algumas cenas insinuam maior ousadia ao satirizar a própria indústria cinematográfica, como na apresentação final de Dercy representando a antítese da elegância dos grandes musicais norte-americanos, ou o momento em que ela é carregada para fora da sala de seleção de elenco, esperneando e berrando: "É por isso que o cinema nacional não vai pra frente!".