sábado, 30 de julho de 2016

Sétima Arte em Cenas - "Os Bandidos do Tempo", de Terry Gilliam

Link para os textos anteriores do especial:


Os Bandidos do Tempo (Time Bandits – 1981)
É impressionante como essa produção costuma ser analisada por críticos como parte da filmografia do grupo Monty Python. Apesar de ser dirigida por Terry Gilliam e contar no elenco com rápidas participações de John Cleese e Michael Palin, a deliciosa aventura no tempo tem suas raízes nas recordações lúdicas da infância do cineasta. Detalhes como o lar do vilão ser formado por peças de Lego gigantes, ou a decisão ousada de literalmente explodir as figuras parentais do pequeno Kevin no desfecho, falam diretamente ao subconsciente da criança que busca compreender a complexidade do mundo em que está inserida. Há muito senso de humor, mas sem cinismo. Com baixo orçamento e ajuda na distribuição do amigo beatle George Harrison, o filme surpreendeu os críticos com sua inventividade visual e fez um sucesso tremendo de público, garantindo ao diretor a possibilidade de uma carreira fora do grupo britânico. Perto de filmes com temática similar, como “A História Sem Fim”, “Labirinto” e “A Lenda”, “Os Bandidos do Tempo” cresce a cada revisão por sua coragem de não subestimar o seu público-alvo, inserindo camadas sombrias que abrem possibilidades de discussões posteriores sobre seus possíveis significados.

A breve cena que justifica a inclusão do projeto nesse especial, emoldurada por um dos diálogos mais interessantes já escritos no gênero, ocorre no lar da personificação do mal, vivido brilhantemente por David Warner, quando ele é confrontado por um de seus minions sobre sua incapacidade de escapar de seus domínios e, por conseguinte, sua simples existência ser a comprovação de que “Deus” é superior, logo após discursar com segurança sobre ser todo poderoso, aquele que “ninguém criou” e que “ninguém pode desfazer”. Após destruir o pobre coitado, reconstruir e destruir novamente, uma das tiradas mais hilárias do filme, ele reflete: “Boa pergunta. Por que eu, como ser supremo do mal, permito que Deus me mantenha preso na fortaleza da escuridão?”. A conclusão dele, “para que o ser supremo tenha uma falsa sensação de segurança”, não convence nem mesmo seu fiel adulador. Ao trabalhar de forma crítica e questionadora o sistema de crenças em um produto direcionado para crianças, o roteiro provoca inconscientemente um desconforto benéfico, uma espécie de “Carl Sagan” para baixinhos. Em um universo criativo de tantas cenas visualmente impressionantes, como o gigante que carrega a embarcação marítima no topo da cabeça, considero esse breve momento o mais genial da obra. 


* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora “Obras-Primas do Cinema”, tendo como material extra legendado uma longa entrevista com o diretor, abordando toda a sua carreira, além de um featurette sobre a criação dos figurinos e produção dos cenários.

Cinema Francês - Truffaut e Chabrol


A Mulher do Lado (La Femme d'à Côté – 1981)
Sou completamente apaixonado por esse filme, o penúltimo na carreira de François Truffaut, uma das histórias de amor mais trágicas já filmadas, inspirada parcialmente nas experiências românticas do diretor com Catherine Deneuve. Já na primeira cena somos apresentados à gentil narradora, Odile (Véronique Silver), a única utilização da quebra da quarta parede na filmografia do mestre francês, com o enquadramento e a ambientação nos levando a crer que ela é uma sorridente tenista, ilusão que a própria quebra, segundos depois, com o distanciamento da câmera revelando que ela utiliza uma bengala para caminhar com dificuldade, consequência de um ato impensado após o fim de um relacionamento amoroso. O que parece bonito e plácido, na realidade, pode ser triste e profundamente traumático, um elemento sempre reforçado pela fúnebre trilha sonora de Georges Delerue, uma espécie de leitmotiv que se faz presente na relação do casal vivido por Fanny Ardant, no auge de sua beleza, e Gérard Depardieu. Como de costume, Truffaut se apaixonou pela atriz e ela foi sua companheira até o final de sua vida.

Mathilde e Bernard se amaram intensamente outrora, mas a ruptura foi violenta, o que faz com que o reencontro casual, sete anos depois, com ambos estabelecidos em relacionamentos estáveis, provoque uma regressão psicológica considerável nos dois, destruindo todas as pontes criadas com extrema dificuldade pelo inconsciente como forma de proteção. Como se não bastasse essa trapaça do destino, eles são forçados ao convívio diário, já que são vizinhos. Num toque brilhante do roteiro, os dois são casados com perfeitas antíteses de seus pares, e, pra elevar a dor, os filhos dos dois tem o mesmo nome: Thomas. O quarto de hotel compartilhado que inicialmente remete à simbologia dos encontros secretos de “O Último Tango em Paris”, o desejo que explode após ser contido por tanto tempo, o simples beijo que causa um desmaio na mulher, sequências que vão construindo o cenário de uma tragédia anunciada. Quando a lascívia é saciada, os sentimentos que operaram no passado a separação começam a romper brutalmente a camada emocional superficial. Sem estragar a experiência de quem não conhece o filme, posso garantir que o desfecho irá ficar em sua memória por muito tempo. 


Mulheres Diabólicas (La Cérémonie – 1995)
Quando se fala em filmes que lidem com a questão da luta de classes, você consegue citar algumas obras-primas, como “Mulheres Diabólicas”, “Norma Rae”, “Ladrões de Bicicleta”, “A Batalha de Algiers” e “Taxi Driver”, algumas variações criativas, como “V de Vingança”, “Metrópolis”, “1984”, “Brazil” e “Laranja Mecânica”, ou até mesmo histórias que reduzem o tema à caricatura simplista que parece escrita por uma criança, como o nacional “Que Horas Ela Volta?”. Aliás, vale ressaltar que esse último bebe bastante da fonte de Claude Chabrol na forma como estrutura a crescente animosidade entre os patrões e a empregada, claro, sem qualquer traço da coragem do roteiro do mestre francês, que adapta inteligentemente o livro “A Judgement in Stone”, de Ruth Rendell, com inspiração perceptível também no caso real das irmãs francesas Christine e Léa Papin, ocorrido na década de trinta. É o meu filme favorito do diretor, seguido de perto por “O Açougueiro” e “Trágica Separação”. A sua usual crítica aos burgueses é citada ironicamente por Jacqueline Bisset, que interpreta a patroa, em um dos excelentes documentários que a distribuidora Versátil incluiu no lançamento, quando ela afirma que considera curioso o fato de que Chabrol, um homem que adota confortavelmente o estilo de vida burguês, odeie tanto a burguesia. Uma pérola argumentativa que evidencia a função do cineasta como voyeur de si mesmo.

Ao buscar na estação de trem sua jovem empregada (Sandrine Bonnaire), a patroa não percebe que ela havia chegado mais cedo e estava esperando em outra plataforma. O espectador descobre junto com ela, já que a personagem estava propositalmente fora do enquadramento, um recurso sutil que agrega um elemento arrepiante à introvertida jovem, estabelecendo desde o início os alicerces psicológicos que irão possibilitar a virada de mesa que ocorre no terceiro ato. O roteiro revela espertamente que ela é analfabeta, algo que a constrange profundamente, uma condição que dificulta sua autopercepção como indivíduo relevante na sociedade. Ela tem uma mancha criminosa em seu passado, o que a aproxima ainda mais de sua nova amiga, a espevitada Jeanne (Isabelle Huppert), que também esconde um segredo macabro. Essa inusitada relação, onde as carências são gradativamente suprimidas pela preparação do ritual de destruição do opressivo status quo, acaba sendo responsável por acionar o gatilho libertário e inconsequente na mente de Sophie. As duas são mostradas em uma cena silenciosamente perturbadora, sentadas no chão vendo a televisão, de braços dados em um enlace quase “cronenberguiano”, gêmeas de alma, uma postura visualmente antinatural que prenuncia os atos extremos que serão cometidos no impactante desfecho, emoldurado coerentemente por uma sessão televisiva da ópera "Don Giovanni", de Mozart, grande paixão cultural dos patrões. Para Sophie, em sua mente corrompida pelo vitimismo, o casal tem aquela quantidade absurda de livros na biblioteca para provocar a jovem, já que ela acredita que ninguém leria aquelas páginas todas por puro prazer. Da mesma forma, incapaz de compreender a fascinante beleza da ópera, ela decide usar como revide o som brutal dos disparos de um rifle. Chabrol em seu momento mais genial. 





* Os filmes restaurados, com documentários, estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito, no digistack "Cinema Francês".

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Do fundo do baú: homenagem que recebi dos meus colegas de teatro em 2010

Resgatando do fundo do baú, diretamente de 2010, a homenagem que recebi dos meus colegas do grupo de teatro. Dedico um capítulo do meu livro "Devo Tudo ao Cinema" a este ano especial, em que roteirizei o curta de finalização do curso, e escrevi/dirigi a peça "O Júri", baseada em "12 Homens e Uma Sentença". Quem leu o livro sabe como este ano foi importante em minha vida. Faço questão de compartilhar com vocês o inesquecível registro:

Homenagem feita pelos colegas após a apresentação da peça:



Rebobinando o VHS - "Trapalhões do Futuro"

Link para os textos anteriores do especial:


O VHS foi lançado pela distribuidora “Video Ban”, que primava por produções medíocres ou irrelevantes, aquele material que deveria ser exibido com um formal pedido de desculpas introdutório. Eu devo ter alugado a fita umas duas vezes, mas foi o bastante para deixar em minha mente essa recordação tão viva, fecho os olhos e a imagem dos gêmeos aparece, tento controlar a ânsia de vômito pensando em coisas mais agradáveis como corretores de imóveis e as instalações da Vila Olímpica. 


Trapalhões do Futuro (Slapstick of Another Kind – 1982)
Caleb Swain (Jerry Lewis) e a esposa Lutetia (Madeline Kahn) são um casal adorado por todos. Mas tudo muda quando Lutetia dá à luz um casal de gêmeos horrorosos. Eles são Wilbur e Eliza (também interpretados por Lewis e Kahn), e que na verdade são dois alienígenas que foram escolhidos e enviados para resolverem os problemas do planeta. Quando eles estão separados, os dois ficam fracos e sem inteligência, mas juntos, os dois possuem um grande potencial. Infelizmente por interesse de terceiros, eles acabam sendo ameaçados de se separarem pra sempre.

Quando Jerry Lewis declara à imprensa que “The Day The Clown Cried” não merece ser visto, fico pensando que nada em sua filmografia pode ser pior do que “Slapstick of Another Kind”, de 1982, lançado apenas dois anos depois, já que ninguém parecia disposto a correr o risco. É engraçado ver que Lewis foi divulgar o lançamento do filme no programa do Johnny Carson, vídeo que pode ser encontrado no Youtube, falando dele como se fosse uma obra-prima, rasgando elogios para o jovem diretor Steven Paul, alguém que se mostra incapaz de conduzir uma única cena com algum traço de personalidade. Não é possível que ninguém da equipe tenha percebido o nível tóxico do lixo que estavam produzindo, uma obra que não serve como adaptação do bom livro de Kurt Vonnegut, trabalha algo em torno de dez por cento do material escrito, e não se sustenta minimamente como comédia.

O perfeccionista protagonista, a talentosa Madeline Kahn, os olhos desencontrados de Marty Feldman, a voz poderosa de Orson Welles, o eterno “mestre Miyagi” Pat Morita vivendo um “alienígena chinês em miniatura”, até o diretor Samuel Fuller faz uma ponta, um grupo de respeito que parece estar pagando alguma ingrata aposta. Não é só o mau gosto na trama que me impressiona, mas a incrível ineficácia de um roteiro que não consegue fazer rir em nenhum momento. O trabalho de maquiagem prostética no rosto dos irmãos gêmeos (Kahn e Lewis), sem brincadeira, traumatiza qualquer criança pequena que, por crueldade do acaso, acabe passando na frente da televisão em uma exibição. É grosseiro, tosco no pior sentido da palavra. O desfecho tenta entregar um toque de sentimentalismo, mas com a mesma mão pesada e altamente incompetente, resultando em simples, boa e velha, vergonha alheia. Quando os irmãos estão entrando na nave espacial, cópia carbono da utilizada em “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”, na escuridão da noite, o filme consegue a proeza de inserir um olhar de despedida dos pais, cena reutilizada e ambientada numa clara manhã primaveril. O que me perturba é que nada disso explica o fascínio que sinto por essa porcaria. Se lançassem um livro revelando os bastidores das filmagens, eu devoraria em uma madrugada. Já joguei fora meia-hora de um dia vendo um making of dele no Youtube. É tão ruim, tão doentiamente asqueroso, tão repulsivamente tolo, que acaba se tornando agradável. No início da década de noventa tive a impressão de que a indústria norte-americana entregaria algo similar com a comédia “Cônicos e Cômicos”, alienígenas cabeçudos saídos diretamente dos esquetes do SNL, mas infelizmente Dan Aykroyd é um bom roteirista, o filme é razoavelmente bom, não chega nem perto do brilhantismo não intencional dessa pérola que resgato aqui.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

"Um Dia Perfeito", de Fernando León de Aranoa


Um Dia Perfeito (A Perfect Day - 2015)
É comum encontrar nos textos sobre “Um Dia Perfeito” comparações com “Mash”, clássico de Robert Altman, diminuindo o novo, o que considero uma argumentação simplista baseada apenas na similaridade da abordagem cômica. Se eu for me ater ao produto final, sem o elemento da nostalgia e tirando a importância da obra no contexto da época, o filme dirigido por Fernando León de Aranoa é superior em todos os sentidos. Os improvisos irregulares dos médicos militares não podem ser comparados à precisão cirúrgica do roteiro escrito por Fernando e Diego Farias para os agentes humanitários que trabalham nos escombros deixados pela Guerra da Bósnia. Essa comparação prejudica especialmente ao estimular uma expectativa injusta. A única semelhança é a utilização do humor no cenário de uma batalha como forma de destacar o lado humano, tolo e desastrado, que, sob o manto de uma máquina burocrática atordoante movida por falso altruísmo, tenta disfarçar a absurda futilidade do conflito.  

A opção por uma escala menor, utilizando como leitmotiv as várias tentativas frustradas de retirar um cadáver de um poço, o único que fornece água potável na região, facilita a inserção de sutis metáforas de grande sensibilidade. Algumas de viés irônico, como o enquadramento que coloca lado a lado uma sinalização de que é proibido qualquer armamento, na traseira do vidro do carro, e uma criança na estrada exibindo debochadamente um revólver, após intimidar o grupo. Ela havia roubado a bola do pequeno Nikola (Eldar Residovic), precioso instrumento de escapismo, símbolo da infância destruída, metáfora visual mais séria, objeto que terá, no desfecho, um destino coerente às perspectivas de futuro daquele povo. Mambrú (Benicio Del Toro), que gradualmente passa a enxergar nesse menino, trazido pelo acaso, uma missão secundária de redenção, expiação de seus pecados, como o taxista de Scorsese e a jovem prostituta, uma alma pura e desprotegida injustamente colocada em um terreno repleto de minas terrestres.

Entre uma tirada engraçada do impagável B (Tim Robbins) e uma indireta de Katya (Olga Kurylenko), ex-namorada de Mambrú, você pode se surpreender com a ternura na forma como o idealismo da jovem Sophie (Mélanie Thierry) é representado. Ela está começando na área, ainda não teve seus sonhos corrompidos pela realidade brutal da rotina diária. Ao ver abutres na estrada vendendo baldes d’água para pobres moradores, ela afirma desolada: “Eles estão tirando vantagem”. Mambrú com os olhos perdidos no horizonte responde: “Claro que estão tirando vantagem, isso é a guerra”. A cena é escrita como comédia, o timing é eficiente, mas o estofo é profundamente triste, a reflexão crítica que propõe é complementada momentos depois, quando o roteiro inteligentemente entrega nas mãos do menino a resposta mais sábia: “Eles precisam do corpo no poço pra água ficar suja e eles poderem lucrar”. Ao deixar a razão falar na voz da criança, a trama evidencia que a esperança reside nas próximas gerações.

Vale ressaltar que todos os personagens são carismáticos e escritos de forma tridimensional. Perceba o olhar de Mambrú ao proteger Sophie, de modo infantilizado (“não olhe pra trás, olhe pra mim”), para que ela não veja um cadáver enforcado atrás dela. Essa atitude diz muito sobre seu personagem, mais do que qualquer diálogo poderia revelar. Não há exibição de violência, um filme de guerra onde não se escuta sequer um disparo ou explosão, porém, a tensão é constante. A canção final, “Where Have All The Flowers Gone?”, com a frase “when will they ever learn?” (quando eles irão aprender?), sintetiza a importante mensagem dessa rara produção escrita para adultos, público cada vez mais desprezado pela indústria cinematográfica. 

"Life - Um Retrato de James Dean", de Anton Corbijn


Life – Um Retrato de James Dean (Life – 2015)
É complicado perceber que Anton Corbijn, o mesmo diretor dos ótimos “O Homem Mais Procurado” e “Control”, conseguiu estragar uma história interessante protagonizada por um dos nomes mais adorados do panteão cinematográfico. A trama arrastada não é favorecida pelas equivocadas escolhas de elenco nos papéis principais: Robert Pattinson, ator bastante limitado que confunde a angústia existencial/profissional com permanente apatia, e Dane DeHaan, claramente intimidado com a responsabilidade de interpretar James Dean, reduzindo todas as nuances de temperamento do jovem a uma confortável exibição caricatural de irritante sorumbatismo.

Por se tratar de um evento real pouco conhecido até mesmo pelos cinéfilos, o apelo do tema é tremendo, o relato de como um fotógrafo enxergou nas idiossincrasias fascinantes de um ator desconhecido os traços comportamentais que poderiam ser abraçados pela juventude norte-americana, propondo a ele um ensaio de destaque na revista mais respeitada da época, indo contra seu superior e até mesmo o homenageado, que não compreendia aquele súbito interesse por sua vida. Dennis Stock é a âncora emocional do projeto, em teoria, somos conduzidos a longas passagens retratando sua vida pessoal, a intenção é fazer o público se importar com ele, mas nem mesmo a curiosidade nostálgica compensa a frustrante constatação de que o rapaz parece apenas reagir timidamente aos rumos do vento narrativo, consequência do texto preguiçosamente trabalhado. Na prática, esses dois, como mostrados na obra, não conseguiriam manter uma única conversa de botequim minimamente espirituosa. O conceito do garoto introvertido e avesso à mitificação artística, que morreu jovem e posteriormente foi transformado em um produto mundialmente consumido, ícone da cultura pop, nunca é aprofundado.

Um corte mais objetivo beneficiaria consideravelmente o produto final, o ritmo não é somente irregular, beira o desleixo amador, como se o próprio realizador não tivesse segurança com o material. A pena é que o roteiro de Luke Davies traz algumas ideias muito boas, há um potencial que poderia ter sido lapidado por uma abordagem mais passional. Quando o executivo do estúdio questiona Dean sobre seu interesse em ser um astro, irritado com o desprezo do ator em fazer o jogo social que movimenta a indústria, a resposta é um debochado silêncio. Esse breve momento despretensioso revela mais sobre o personagem do que todas as cenas posteriores conduzidas com mão pesada, defendidas por diálogos improváveis e maneirismos forçados que desviam frequentemente a atenção do espectador.

sábado, 23 de julho de 2016

Chumbo Quente - "O Preço de Um Covarde"

Link para os textos do especial:


O Preço de Um Covarde (Bandolero! – 1968)
Dois irmãos fogem da justiça em território infestado de bandoleiros e são perseguidos por xerife que quer resgatar garota que eles levaram como refém.

Sabe quando você lê muitas críticas negativas sobre um filme obscuro, comentários que te sugerem desprezar a obra, material que te faz postergar a sessão por vários anos? Isso aconteceu comigo com relação a “O Preço de Um Covarde”. Na época em que estava caçando todos os filmes com o James Stewart, achei que esse não valia o esforço do garimpo, não havia saído em VHS, não encontrava completo na internet, o diretor Andrew V. McLagen não me inspirava simpatia pelos trabalhos já vistos, acabei me focando em outras produções mais elogiadas da fase final do ator. Só fui conhecer quando a “Classicline” lançou pela primeira vez em DVD por volta de 2005. E fico feliz que ela esteja relançando agora com uma cópia de ótima qualidade, o filme merece. Foi daqueles casos de amor à primeira vista, eu não sabia se tinha sido a riqueza psicológica dos personagens, a fantástica trilha sonora de Jerry Goldsmith que fiquei cantarolando por dias, a beleza hipnótica de Raquel Welch, o carisma matador de James Stewart e Dean Martin, o cantor na melhor atuação de sua carreira cinematográfica, ou o desenrolar fascinante da trama, que, com exceção de uma ideia divertida envolvendo Stewart disfarçando-se de carrasco, copiada de “Estigma da Crueldade”, abraça terrenos pouco explorados, com a competência usual de Hal Needham coordenando as sequências de ação.

O xerife, vivido por George Kennedy, disposto a cruzar sozinho o perigoso caminho dos bandoleiros para resgatar uma enigmática mulher que o despreza, uma viúva que é muito mais valente do que todos os personagens masculinos. Ela, inicialmente uma refém indefesa, aspecto já realçado no material de divulgação, acaba desorientando o seu sequestrador, vivido por Martin, um sujeito desencantado com o amor, em luta constante com seus valores familiares, e que é redimido ao final pela persistência de seu irmão, mais um grande momento de Stewart no gênero. O desfecho é lindo, a força da mulher confortando o irmão que acaba de perder aquilo que era mais precioso em sua vida: o filho pródigo que tomba iluminado finalmente pela réstia de esperança que sempre buscou. E essa redenção faz com que o irmão moribundo, que havia sido seduzido a pisar na trilha do erro, roubando um banco, reúna suas últimas forças para o ato derradeiro, segundos antes de morrer: entregar o dinheiro na mão do xerife. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora “Classicline”.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

"A Sereia do Mississipi", de François Truffaut


A Sereia do Mississipi (La Sirène du Mississipi – 1969)
A minha relação com a obra de François Truffaut é de profunda admiração, sou apaixonado por seus filmes, e, como crítico, tenho ele como um modelo. Quem leu meu livro “Devo Tudo ao Cinema” sabe a importância do cineasta francês em minha juventude. “A Sereia do Mississipi”, esse neo-noir tão exótico dentro da filmografia dele, costuma ser citado como um equívoco, até o próprio diretor afirmava não gostar do resultado. Eu discordo enfaticamente dessa opinião, o projeto ganha pontos a cada revisão, considero irresistível a sensualidade inerente à trama, uma tensão sexual provocante entre o casal vivido por Jean-Paul Belmondo e a belíssima Catherine Deneuve, com direito a sequências de nudez, um elemento pouco usual em uma carreira alicerçada por um olhar de elegante ternura. Quando Louis compra uma meia-calça para sua esposa, ele a vê como um produto designado para sua satisfação sexual, o que explica a cena que ocorre logo após a descoberta das reais intenções da mulher, quando a câmera dedica generoso tempo a mostrar ele queimando as roupas de baixo da mulher na lareira, frustrante constatação de que é impossível socializar o desejo.

Ela brincou com os seus sentimentos, fingiu ser outra pessoa, participou do assassinato de Julie, a mulher que ele só havia visto por fotos, e tomou seu nome, com o intuito de esvaziar suas contas no banco, entregar para o seu cafetão e fugir do país. Pra Marion, o casamento foi um obstáculo necessário para a execução do golpe criminoso, ela inconscientemente revelou pra Louis o quanto ele é frágil. Em questão de dias perdeu tudo o que havia conquistado como dono da fábrica de cigarros. Ele nem mesmo é capaz de dominar seus sentimentos, acreditou como um tolo na rasa explicação dela para as fotos no primeiro encontro, como ele, tão vulnerável, poderia querer tomar posse de alguém assim? E, sofrendo uma espécie de síndrome de Estocolmo, enxergando na Marion trambiqueira e corajosa, símbolo da ausência de regras no agir e pensar, mais virtudes do que ele havia encontrado na Julie, reflexo exato de sua insegurança, simbolizado na figura religiosa e na vestimenta pudica que encontra na mala da verdadeira, o homem fica completamente perdido em seu amor louco. Ele se torna psicologicamente dependente daquela mulher, abraçando a possibilidade tangível de ser existencialmente destruído nessa relação. E basta encarar por alguns minutos o rosto de Deneuve para perdoar esse ato de suicídio do ego.

Truffaut frequentemente se apaixonava por suas atrizes, mas acho que nunca ele deixou essa condição tão óbvia quanto na longa cena da declaração de amor próxima à lareira. Louis fala por Truffaut, enaltecendo cada centímetro do rosto de sua musa: “Seu rosto é uma paisagem, e, veja, estou sendo neutro e imparcial”. O diálogo é um dos momentos mais eróticos do cinema, sem apelação alguma, apenas o poder das palavras aliado à expressão da atriz. Em sua essência o filme é uma crítica ao amor idealizado e padronizado em rituais como o casamento. Louis procurou uma esposa nos classificados com todas as características que ele considerava perfeitas pra ele, acabou encontrando uma perfeita antítese em todos os sentidos. E, mesmo assim, ele não conseguiu evitar se apaixonar por ela. 

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Entrevista em vídeo para o "Cinema e Crítica"

Agradeço aos amigos Tais Carvalho e Mike Will pelo carinho com o meu trabalho. Foi um prazer ser entrevistado sobre a função da crítica e sobre meu livro "Devo Tudo ao Cinema", para o projeto "Cinema e Crítica". É sempre muito bom conversar sobre filmes com pessoas que verdadeiramente amem o tema. 


Matéria sobre o curta "NOCEBO" na Zoom Magazine

Agradeço ao competente editor Eduardo Torelli pelo carinho com o meu trabalho, pela gentil chamada na capa e pela matéria de três páginas na Zoom Magazine (número 188 - Julho/2016) sobre a produção do meu terceiro curta independente: "Nocebo". São gestos como esse que me fazem ter certeza de que o sonho vale a pena ser batalhado nessa nação.

Segue abaixo o link para você, caro leitor, querida leitora, prestigiar a publicação:
http://pt.calameo.com/read/004509496850cb06af6fd



sábado, 16 de julho de 2016

Nos Embalos do Rei do Rock - "Talhado Para Campeão"


Em teoria, uma refilmagem do clássico homônimo da década de trinta, protagonizado por Humphrey Bogart, na prática, com exceção de poucos pontos em comum, a trama foi trabalhada para servir como veículo para o carisma matador do rapaz.


Talhado Para Campeão (Kid Galahad – 1962)
É comum ler que a música de Elvis perdeu qualidade durante os anos dedicados à carreira cinematográfica, uma grande bobagem defendida por aqueles que ignoram o assunto. De 1960 a 1963, apenas três anos, a RCA lançou quatro álbuns maravilhosos: “Elvis is Back”, o gospel “His Hand in Mine”, “Something for Everybody” e “Pot Luck”. Basta uma análise atenta no repertório desses trabalhos pra constatar que não existe músico popular no mercado atual que consiga repetir o feito. Em estúdio, feras como o saxofonista Boots Randolph e o guitarrista Hank Garland, além de Scotty Moore e D.J. Fontana, eram a garantia do reforço elegante que o jovem merecia. Só pra citar alguns títulos impecáveis nascidos dessas sessões: “Fever”, “Are You Lonesome Tonight?”, “Reconsider Baby”, "Gently", “Such a Night”, “Judy”, “Surrender”, “It’s Now or Never”, “(Marie’s the Name) His Latest Flame”, “Little Sister”, “Good Luck Charm”, “Kiss Me Quick”, “She’s Not You”, “Suspicion”, além das duas únicas canções que tiveram o dedo de Elvis na composição: “That’s Someone You'll Never Forget”, pensada para sua falecida mãe, e “You’ll Be Gone”, com uma batida latina. O início das filmagens de “Talhado Para Campeão” marcou o final das sessões para o último dos quatro discos citados.

Vale notar o início da batalha dele com a balança, algo que o deixava incomodado durante as filmagens, mas que os ângulos de câmera ajudaram a amenizar. Ao contrário do que muitos afirmam equivocadamente, a questão do sobrepeso não foi um sintoma da depressão do final de sua vida, ele sempre teve problema com seus hábitos alimentares. Ele vive Walter Gulick, um soldado que retorna para sua cidade natal na procura de um emprego na área de conserto de automóveis, mas que acaba sendo descoberto por um treinador de boxe, vivido por um ainda pouco conhecido Charles Bronson, e seu empresário trambiqueiro, papel entregue para Gig Young, que odiou cada segundo em cena. Casado à época com a “Feiticeira”: Elizabeth Montgomery, o ator percebeu enciumado que a esposa frequentava diariamente os sets e mantinha longos papos animados com Elvis. Em dado momento, no auge da raiva, Gig, provavelmente alcoolizado, chegou a ameaçar bater na mulher, o que levou Elvis a se intrometer fisicamente na discussão. A tensão quase insuportável fez o jovem pensar em desistir do filme. No final da década de setenta, Gig, após receber um prêmio da Academia como Coadjuvante em “A Noite dos Desesperados”, um homem profundamente perturbado, desferiu um tiro na namorada, Kim Schmidt, e logo depois se suicidou em seu apartamento.

A bela Joan Blackman retomou a parceria de “Feitiço Havaiano”, vivendo a irmã caçula do empresário, o que ajudou a construir um clima de cumplicidade perceptível em várias cenas, como quando ela divertidamente desconcerta o cantor ao som de “I Got Lucky”. A trilha sonora, prejudicada pela demanda absurda de composições dos últimos dois anos, possui apenas uma boa música com real apelo comercial: “King of The Whole Wide World”, composta por Bob Roberts e Ruth Bachelor, que espertamente foi inserida nos créditos iniciais. A já citada “I Got Lucky”, “This is Living”, “Riding The Rainbow” e a balada “Home is Where The Heart Is”, são, na melhor das hipóteses, razoavelmente simpáticas. “A Whistling Tune”, cogitada para o filme anterior, foi inserida de maneira desastrada na trama, com direito a um trecho em que ele entoa num passeio romântico: “Uma melodia assobiada para caminhadas noturnas”, em pleno sol do meio-dia. Dá pra ver na sequência o desconforto de Elvis ao tirar leite de pedra. Outro problema do filme é a disposição canhestra das canções na trama, falta o equilíbrio conquistado nas produções seguintes, ponto que chega a incomodar, já que a história interessante é invariavelmente interrompida por situações altamente forçadas. 

A direção de Phil Karlson, responsável pelo competente noir: “Os Quatro Desconhecidos”, de 1952, ajuda a dar credibilidade na subtrama envolvendo a máfia, com direito à tortura com o personagem de Bronson, que tem suas mãos quebradas, um momento brutal que seria impensável nos filmes posteriores de Presley. E, misturando boxe com o karatê que era uma paixão na vida do cantor, até que as lutas no ringue são eficientes, mérito do coreógrafo, o campeão mundial Mushy Callahan, especialmente a que finaliza a obra, no mesmo nível de grande parte das produções que enfocavam o esporte até aquela época. O resultado é irregular, um bom filme com problemas, mas eficiente naquilo que se propõe a entregar. Uma curiosidade que evidencia a personalidade de Elvis, logo no primeiro dia de filmagens, os amigos e membros da equipe prepararam uma cadeira de diretor para o astro onde se lia: “Sr. Presley”. O rapaz ficou sem jeito com a gentileza, disse que não havia necessidade para aquela formalidade, ele recusava tratamento diferenciado. Na manhã seguinte, ao chegar ao set, uma nova cadeira o estava esperando, com os dizeres: “O bom e velho Elvis”. A gargalhada geral ditou o clima do dia.

Quando “Feitiço Havaiano” estreou nos cinemas, “Em Cada Sonho Um Amor” e “Talhado Para Campeão” já haviam sido filmados. O fracasso de “Coração Rebelde” e “Estrela de Fogo”, as duas produções mais sérias, aliado ao sucesso impressionante da divertida aventura no solo havaiano, serviu como argumento suficiente para que o Coronel Parker tirasse de vez da cabeça de Elvis o sonho de ser reconhecido como ator dramático. A mudança de estratégia comercial foi imediata, o que prejudicou até a divulgação das duas produções da Mirisch, que marcariam os últimos flertes do rei do rock com tramas minimamente ousadas, pelo menos até o redentor final da década, que trouxe “Joe é Muito Vivo”, “Viva Um Pouquinho, Ame Um Pouquinho”, “Charro”, “Lindas Encrencas: as Garotas” e “Ele e as Três Noviças”. O irregular período de 1962-1967, época dominada pela fórmula lucrativa: muitas canções e pouca história, não representa o conjunto de obra de Elvis no cinema, mas é o período que os detratores sempre utilizam como argumento pra desvalorizar os esforços do artista. Mas até mesmo nessas produções podemos encontrar méritos interessantes, como irei revelar nos próximos textos do especial.

A Seguir: “Garotas, Garotas e Mais Garotas” (Girls! Girls! Girls!)

quinta-feira, 14 de julho de 2016

"Uma Lição de Amor", de Ingmar Bergman


Uma Lição de Amor (En Lektion i Kärlek – 1954)
Depois de quinze anos de casamento, David e Marianne estão se separando. Numa viagem para Copenhagen, David pega o mesmo trem que Marianne, fazendo com que pareça coincidência. Passando este tempo juntos, eles relembram momentos, refletem sobre o passado e o futuro e podem caminhar para uma reconciliação.


Passando por um momento complicado, após a fraca bilheteria de seu projeto anterior: “Noites de Circo”, Bergman viu a necessidade de, com pouco orçamento, filmar algo popular, mais leve, que tivesse real possibilidade de agradar o público. Ele sempre deixou bem claro que a única razão que o levava a dirigir comédias era o fator financeiro. Eu gosto bastante dessas fugas da zona de conforto em sua filmografia, especialmente “O Olho do Diabo”, “A Flauta Mágica” e “Uma Lição de Amor”, onde ele se aproxima bastante do estilo norte-americano, com a dupla Eva Dahlbeck e Gunnar Björnstrand emulando Katharine Hepburn e Cary Grant, com cenas curiosas de humor pastelão, mas executadas com a elegância irônica de Ernst Lubitsch. 

É possível enxergar no filme várias sementes que germinariam em produções futuras. A reunião da família em flashback, com essas memórias movimentando a engrenagem emocional do protagonista, foi um conceito expandido em “Morangos Silvestres”. Até mesmo o embrião de “Através de Um Espelho” pode ser encontrado na sequência em flashback do pai conversando com a filha adolescente, vivida por Harriet Andersson, revelando para ela que até mesmo a relação dos dois, outrora tão cálida, já não afugenta o frio existencial em sua vida, afirmação que magoa profundamente a menina. Exatamente por Bergman ter um terreno inexplorado à frente, ele ficou motivado a correr mais riscos, ocasionando em pouco convencionais ângulos de câmera, uma espécie de irresponsabilidade técnica que acabou se provando altamente criativa. Um elemento interessante na trama é a personagem da adolescente, Nix, que não se sente confortável no corpo de uma mulher. Ainda que o tema não seja plenamente trabalhado, ganha pontos pela ousadia na abordagem direta para a época.

"O leito conjugal é a morte do amor", como inteligentemente afirma o protagonista, o ritual contratual do casamento aniquilando a naturalidade libertária do mais belo sentimento. O casal, já separado, refaz seu relacionamento desgastado em uma única viagem de trem como solteiros. Uma joia subestimada no conjunto de obra do cineasta, o tipo de filme que você pode mostrar sem medo para alguém que diz não gostar do estilo dele.

"Esse Obscuro Objeto do Desejo", de Luis Buñuel


Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet obscur objet du désir – 1977)

“Não podemos interpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mundos que se formam sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros”. (Gilles Deleuze)

“Se você tiver o que deseja, deixará de me amar”. (Conchita)

O livro “La femme et le pantin”, de Pierre Louÿs, já havia sido adaptado para o cinema em “Mulher Satânica”, de Josef von Sternberg, e “A Mulher e o Fantoche”, de Julien Duvivier, mas somente pelas mãos de Luis Buñuel e Jean-Claude Carrière conseguiu ser plenamente compreendido, indo além da história simplória da mulher que pisoteia os sentimentos de seu admirador até receber o troco na mesma moeda. “Esse Obscuro Objeto do Desejo” amplia essa superficial camada interpretativa para uma reflexão profunda sobre questões fundamentais na obra do espanhol, como a religião e as obsessões que escravizam o ser humano a padrões encorajados por rituais tolos e ideologicamente frágeis, em suma, ele aponta o dedo para o fato de que somos seres desprovidos de liberdade e parecemos gostar/precisar dessa condição. 

Ao optar por utilizar duas atrizes no papel de Conchita, esse toque surrealista brilhante, o filme perturba sensorialmente o espectador, conscientemente trabalhando contra o elemento importante da identificação e do investimento emocional na relação do casal. O personagem de Fernando Rey está apaixonado por aquela jovem, mas o roteiro não está interessado em fazer com que o público compartilhe esse sentimento, o que conduziria à empatia imediata, mas, sim, que ele analise o comportamento de Mathieu como se ele fosse um animal exótico em um zoológico. Com a utilização dos dois rostos, Carole Bouquet e Ángela Molina, sem obedecer a qualquer impulso de racionalidade, a trama bloqueia a empatia e facilita a objetificação da mulher, alem de tornar mais perceptíveis os traços de personalidade antagônicos que compõem a complexa natureza humana. Bouquet, fria, beleza etérea, Molina, calor, paixão representada pela sensualidade da dança flamenca. Conchita se recusa a satisfazer os desejos sexuais de seu admirador, parece se divertir gradativamente elevando o grau de intimidade entre os dois. 

De início, conduzidos pela mão dele em sua narrativa a bordo do trem, ignorando os acontecimentos passados, chocados pelo balde d’água que ele despeja na mulher, somos levados a ver ele como uma vítima, todos os elementos nos flashbacks, inclusive os personagens secundários, são ativados pelo ponto de vista de alguém que se coloca como pobre coitado. Ao final, os argumentos não são suficientes para que continuemos vendo a história de forma tão unidimensional, não há vítimas, apenas dois adultos psicologicamente infantilizados, reduzidos aos seus instintos mais primitivos, desajeitadamente buscando entender suas próprias necessidades. Perceba como tudo se resume a infantis baldes d’água como forma de ataque e revide, complementados até por um breve momento em que a jovem encurralada no trem estira a língua como zombeteira resposta. Ele tenta comprar a entrega sexual dela de todas as formas, enquanto a jovem se utiliza dessa generosidade desesperada para conseguir melhorar financeiramente de vida. 

Buñuel insere durante toda a projeção reportagens radiofônicas e televisivas sobre atentados terroristas cometidos pelo “exército revolucionário do bebê Jesus”, propondo uma analogia entre a violência política (provocação por desejo de conquistar e manter o poder) e sexual (o ritual cristão da virgindade até o casamento como violenta agressão antinatural alicerçada pelo medo), optando inteligentemente por encerrar com uma explosão de bomba que bloqueia nossa visão do casal. Fomos atingidos. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

terça-feira, 12 de julho de 2016

"Os Caça-Fantasmas", de Ivan Reitman


Os Caça-Fantasmas (Ghostbusters – 1984)
A refilmagem que estreia nessa semana estimula mais uma vez o debate sobre a relevância desse tipo de produção, ainda mais quando o elenco feminino é formado por versões nada criativas dos protagonistas do original. Ao invés de perder tempo com o conjunto de equívocos que está sendo, de forma justa, destruído pela crítica e pelo público, prefiro direcionar minha atenção para o roteiro espetacular de Dan Aykroyd e do saudoso Harold Ramis, dirigido com muita competência por Ivan Reitman. Vale ressaltar que nutro carinho especial pela versão brasileira, dublada pelo estúdio BKS, um trabalho impecável de Ézio Ramos (Bill Murray), Flávio Dias (Aykroyd), Jorge Barcellos (Ramis) e Antônio Moreno (Ernie Hudson).

O filme era ousado, misturava comédia e terror, com cenas que ultrapassavam o limite do que era normalmente oferecido como entretenimento infantil, por exemplo, o sonho erótico de Ray, ou o momento em que a musa dos nerds da época, Sigourney Weaver, está sentada na poltrona de sua casa e é atacada por garras bestiais, uma bolinação com toques discretos de sensualidade, que encaminham a personagem para sua possessão demoníaca, com destaque para longas pernas à mostra em um vestido bastante provocante. As aparições fantasmagóricas, com exceção do esverdeado Geleia, que é essencialmente caricatural, bebem da fonte dos filmes de horror, como os cães demoníacos guardiões de Gozer e, logo no início, a senhora da biblioteca que parece saída diretamente do “Poltergeist” de Tobe Hooper. Os efeitos especiais continuam eficientes porque o estofo, o roteiro, segue esperto como em sua época. Os diálogos inteligentes são tão bons que parecem improvisados, tamanha a naturalidade com que brotam nas situações mais absurdas. O espectador se afeiçoa rapidamente a cada personagem. São imperfeitos, trambiqueiros, desajeitados, mulherengos, gananciosos, mas, acima de tudo, adoráveis.

A montagem que insere o grupo na cultura popular, virando capa de revistas e jornais, sendo entrevistados e debatidos por especialistas, consumidos generosamente pela máquina da propaganda, representa um importante viés crítico de como a sociedade deturpada parece estar conscientemente criando um espetáculo surrealista como forma de suprir material sensacionalista para alimentar a própria máquina. Perceba como, na sequência emoldurada pela canção “Savin’ the Day”, mostrando o exército se aproximando do prédio para dar o reforço na batalha final, mais parece uma parada festiva, com a população aplaudindo a passagem dos carros. Impagável a expressão no rosto de Bill Murray, saindo do automóvel para interagir com o povo, sorriso irônico ao dizer para o colega que ele é amado pelos populares, como pugilistas entrando em um ringue. Tem como ser mais ousado que inserir um grupo de rabinos ovacionando caçadores de fantasmas? Os Caça-Fantasmas dão autógrafos, tiram fotos com os fãs, exibem com sorriso largo mais um fantasma capturado na armadilha, mas também são mostrados elevando propositalmente o nível de destruição em uma caçada, para que o pagamento seja mais interessante. Eles não são heróis, não são politicamente corretos, são malandros. O galanteador Venkman só aceita cuidar do caso da Dana por achar que vai conseguir levar ela pra cama. Winston chega pra entrevista de seleção para o cargo disposto a acreditar em qualquer baboseira relacionada ao sobrenatural, como ele mesmo afirma descaradamente para a desinteressada secretária, contanto que o pagamento seja interessante. 

Por mais que o sucesso do projeto tenha viabilizado uma sequência infantilizada e uma franquia de animações, quadrinhos e brinquedos, mídias em que o heroísmo obviamente ganhou destaque, o filme original foi pensado como humor adulto ácido e crítico. 

segunda-feira, 11 de julho de 2016

"American Graffiti", de George Lucas (Entrevista com Roger, da banda "Ultraje a Rigor")


O amigo Roger, grande admirador do clássico "American Graffiti", em uma entrevista exclusiva para o "Devo Tudo ao Cinema", aborda o impacto da obra em sua vida.

Entrevista com Roger Rocha Moreira, da banda "Ultraje a Rigor":

O - Roger, você consegue recordar a experiência de ver American Graffiti pela primeira vez? Como foi? E nessa primeira sessão, quais aspectos do filme te cativaram com mais intensidade?

R - Não, não consigo. Eu gostei de tudo. Tenho certa fantasia de viver naquele tempo e naquele país. E as músicas, sensacionais!

O - É uma pena que o sucesso avassalador de Star Wars tenha eclipsado essa pequena joia na carreira do George Lucas. Se, por um lado, fez com que o rapaz não se preocupasse mais com orçamento em seus projetos, por outro, trouxe o elemento do medo de arriscar criativamente. Correr riscos é essencial para um cineasta. Você acredita que o sucesso prejudicou criativamente o Lucas mais ousado de THX 1138 e American Graffiti? E, complementando, num exercício hipotético de fã, excluindo a saga espacial da equação, que tipo de filmes você acha que ele estaria realizando hoje?

R - Não creio que o sucesso o tenha prejudicado. Talvez a preguiça. A própria saga foi perdendo força como história. Acho que hoje ele ainda estaria contando histórias parecidas.

O - "Grease" mostra o mesmo período de maneira estereotipada, com tintas fortes, já American Graffiti é uma perfeita máquina do tempo, fazendo você realmente se sentir parte daquele grupo de jovens numa única madrugada insana. A ideia divertida de inserir no desfecho cartelas com o destino dos personagens fictícios facilita ainda mais essa abordagem "pé no chão". Você se identificou com algum personagem na obra? Qual (e a razão)? Tem alguma história engraçada/curiosa, envolvendo o filme?

R - Bom, Grease é um musical. Não me identifiquei com nenhum em especial, mas Curt como fio condutor da história, como observador mais adulto, percebendo que estava dando um adeus à adolescência, foi o que mais me prendeu. Eu tive uma banda paralela em 2004 com 12 integrantes e que incluiu em seu repertório muitas das músicas da trilha sonora do filme. Chamava-se “A fabulosa orquestra de rock and roll”. (https://www.youtube.com/watch?v=Ypm79WgeyhE) (http://deckdisc.com.br/a-fabulosa-orquestra-de-rock-n-roll/)

O - Como um dos roqueiros mais importantes do cenário musical nacional, tenho certeza que o elemento da trilha sonora, repleta de clássicos de rock, doo-wop, até um gospel ("Crying in the Chapel"), do final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, foi um dos fatores essenciais para o filme ser tão marcante em sua vida. Como você analisa esse aspecto no filme?

R - Sem dúvida, a trilha é deliciosa! Toco muitas delas até hoje. E ouço sempre!

O - Gosto demais daquele breve momento no final, quando o personagem do Richard Dreyfuss, já no avião, enxerga ao longe o carro de sua paixão platônica, o símbolo da vida que ele poderia ter caso ficasse em sua cidade. Quais as suas cenas favoritas no filme (e as razões)?

R - Gosto do trote que eles dão na polícia, com a corrente no eixo de rodas. Pela aventura, pela ideia, pela superação por que Curt tem que passar. Um rito de passagem. Gosto do "cruising" na avenida, gosto dos Hot Rods, gosto de quando Curt encontra Wolfman Jack. É um puta filme, cheio de metáforas e com uma trilha sonora sensacional.


Loucuras de Verão (American Graffiti – 1973)
Vi o filme pela primeira vez em uma sessão televisiva de madrugada no final da década de noventa. Como eu tinha aula na manhã seguinte, coloquei o aparelho VHS pra gravar, mas não resisti, vi do início ao fim, fui dormir por volta das quatro da manhã, acabei perdendo a hora e acordei por volta do meio-dia. Penso que não foi um erro, já que hoje em dia não me recordo de quase nada que tenha vivido de bom naquela época escolar, mas “Loucuras de Verão” segue firme com ternura em minha memória afetiva. O que me encantou principalmente foi que a trama se passava durante uma única madrugada, agregando às aventuras daquela garotada a aura mágica da noite, o símbolo do desconhecido a ser desbravado pelas crianças. Um dos mistérios da infância: atravessar acordado uma madrugada e enfrentar a autoridade dos pais. O roteirista/diretor George Lucas reúne um pequeno grupo de adolescentes que está disposto a aproveitar a última noite antes de partirem para a faculdade, abraçando assim a maturidade, um último grito de liberdade antes de aceitarem o desconfortável nó da gravata do universo adulto. A história se passa no início da década de sessenta, mas o jovem de hoje pode se identificar plenamente com a angústia de Curt, vivido por Richard Dreyfuss, ou com a insegurança do nerd que busca aceitação dirigindo o carro do amigo descolado. 

A bela loira misteriosa do Ford T-Bird 56, vivida por Suzanne Somers, representa as múltiplas possibilidades futuras na zona de conforto desses jovens, o acolhimento familiar e a cidade do interior que eles conseguiriam atravessar de olhos fechados. Ao se apaixonar platonicamente por ela, enxergando em seus lábios silenciosos no carro ao lado uma declaração de amor sussurrada, Curt, o que parece ser o mais sensível e equilibrado do grupo, entra em conflito existencial. A metáfora é eficiente, o encontro breve se dá em um sinal fechado na rua, o mundo que se abre à frente dos carros é um terreno de total imprevisibilidade. Desistir da loira é aceitar a nova vida na cidade grande, a faculdade, a realização dos sonhos dos pais, estabilidade financeira e responsabilidades adultas. Curt luta pra reencontrar a garota durante a madrugada, mas apenas ao raiar do dia, ao som de “Only You”, do grupo The Platters, com a ajuda imprescindível do radialista, ele consegue falar rapidamente com ela ao telefone. Vale ressaltar o brilhantismo da sequência anterior, onde o adolescente começa inconscientemente a conhecer a realidade brutal da maturidade ao visitar a estação de rádio, descobrindo a ilusão por trás da figura cultuada de Wolfman Jack, vivida pelo próprio, uma simples voz gravada. A perda da inocência, seguida pelo sorriso irônico ao desligar o telefone sabendo que continuará ignorando o nome da garota, o encaminhamento perfeito para a despedida dos pais antes da partida do avião. A beleza do desfecho ainda me emociona de maneira muito especial, o olhar plácido de Curt admirando a paisagem pela janela do avião, até que ele percebe ao longe, na estrada abaixo, o Ford T-Bird 56 deslizando pelo asfalto. Ele não se perturba e segue admirando o horizonte, simplesmente aceitando que o período mais divertido de sua vida ficou pra trás. Um Peter Pan que desistiu da Terra do Nunca, preparado para vivenciar novas aventuras, o rapaz cresceu.

O filme foi copiado na década seguinte por várias produções de comédia sexual adolescente, mas nenhuma captou a profundidade da mensagem idealizada por George Lucas, um resgate nostálgico de sua adolescência ao som do rockabilly na cidade de interior. 

sábado, 9 de julho de 2016

Rebobinando o VHS - A primeira vez em que exerci a função de crítico

Link para os textos do especial "Rebobinando o VHS":



Esse caso aconteceu no início dos anos noventa, época em que eu acompanhava meu pai religiosamente todas as sextas-feiras numa peregrinação até a RG Vídeolocadora de Vila Isabel (RJ), do meu amigo Ricardo, o momento mais aguardado por mim na semana. Ao fundo da galeria, a luz forte da loja surtia efeito hipnótico nos meus olhos de cinéfilo apaixonado, o frio na barriga de saber que eu estava a poucos passos de adentrar aquele universo incrível de filmes com ar-condicionado e balinhas no balcão. Com a Revista SET do mês debaixo do braço, já com os títulos que me interessavam assinalados, eu largava a mão do meu pai e inconscientemente pedia para que ele viesse me buscar no dia seguinte. 

Abrindo um parêntese, pra você ter ideia do nível de amor que eu sentia por aquele ambiente, era comum eu sonhar que havia sido esquecido dentro da loja depois do fechamento, já que eu ficava silencioso lendo as contracapas das fitas por muito tempo. Claro que nos sonhos a luz elétrica era mantida acesa por toda a madrugada, para que eu pudesse ver sem pagar todo o acervo. Fecho o parêntese exatamente no momento em que minha mente me conduz às costas de um cliente que frequentava o local apenas para jogar videogame. O jogo é “Batman – Return of The Joker”, que havia acabado de ser lançado para o Nintendinho 8 Bits, o aparelho que eu conhecia como o meu bom e velho Phantom System. Eu fiquei impressionado com os gráficos, mas não era o único, o desempenho do rapaz no jogo promoveu uma aglomeração de clientes atrás de sua poltrona. Um barulho na porta de entrada desviou minha atenção, uma família estava entrando, pai, mãe e dois filhos pequenos, mais ou menos da minha idade. O pai puxou papo com o atendente, enquanto a mãe se encaminhou para a seção de drama. Resumindo a história, os lançamentos que ele procurava não estavam na loja, mas o atendente avisou que estavam agendados pra retornar naquele dia. O homem não pensou duas vezes, apoiou o braço no balcão e viu naquele empecilho uma oportunidade para discutir cinema. Que saudade da época em que as pessoas se olhavam nos olhos em longas conversas com estranhos em locais públicos. Como eu me recuso a adotar a moda moderna do whatsapp, sequer tenho um smartphone, como uma relíquia empoeirada, eu sou obrigado a testemunhar diariamente em todos os ambientes um coletivo de robôs de cabeças baixas. 

Volto ao passado com a pergunta que me é feita pela mãe, curiosa com meu interesse por filmes de terror. Ao ver dois estojos do gênero em meus braços, provavelmente um dos títulos era algum “A Hora do Pesadelo”, a mulher sorridente disse que não deixava os filhos dela sequer chegarem perto daquela seção. E, de forma inconsciente, exerci a função de crítico, provavelmente pela primeira vez na minha vida para alguém que não era um parente próximo, lutando contra a introversão, explicando para aquela senhora a importância daqueles filmes. Os meninos se aproximaram e ela não parecia entediada com o meu falatório, o sorriso dela acabou me incentivando. Meu pai, como de costume, sentado à distância, aguardando o término do meu infantil garimpo, deve ter achado interessante aquele fenômeno: o tímido Tavinho falando em público. Eu sugeri a ela que os filhos vissem “As Criaturas Atrás das Paredes”, se não me falha a memória, que eu tinha alugado na semana anterior. Não sei se foi um gesto de educação dela, ou se realmente meus argumentos foram transformadores, mas a mulher acabou levando alguns títulos no gênero, pedindo minhas indicações. Eu me senti o cara mais importante no local, já estava praticamente pedindo comissão pra gerência. 

Ao sair, nem fiquei chateado de não ter encontrado a maioria dos títulos que procurava, a sensação de dever cumprido superava o número menor de estojos pretos na sacola. 

terça-feira, 5 de julho de 2016

Minha relação com a obra de Abbas Kiarostami


Ao ler sobre o falecimento do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, minha mente me conduziu a um fim de tarde perdido em minha adolescência. Como era costumeiro no início do boom da internet, eu estava ansioso pra começar mais uma maratona de filmes outrora impossíveis de achar em videolocadoras, baixados em boa qualidade com legendas em inglês por aquela ferramenta maravilhosa. O escolhido da semana havia sido Kiarostami, minha curiosidade era tremenda, já tinha lido muito sobre seus trabalhos. 

Os dois primeiros títulos selecionados para aquele dia: “Gosto de Cereja” (T’am e Guilass – 1997) e “Close-Up” (Nema-ye Nazdik – 1990). Ah, como eu gostaria de ter visto eles em ordem inversa. Eu sempre tentava, em respeito à minha paranoia sistemática, acompanhar a progressão natural dos realizadores, mas a Palma de Ouro em Cannes recebida pelo primeiro falou mais alto. O caso é que odiei “Gosto de Cereja”, amaldiçoei o júri e cheguei a cogitar postergar a maratona. Não estou sozinho nessa, o colega crítico norte-americano Roger Ebert só faltou xingar os antepassados do diretor em seu texto, deu a cotação de uma estrela. Eu não fui tão radical, o que senti estava mais próximo de uma profunda decepção pelo potencial que a obra me passou, o roteiro feito quase todo em improviso mostrava um suicida buscando alguém que se responsabilizasse por jogar terra em seu corpo. Sem interesse no investimento emocional do público, o roteiro não revela nada sobre as razões dessa atitude extrema, o homem vivido por Homayoun Ershadi é um completo estranho para o espectador. Após um primeiro ato bastante contemplativo, quase beirando o tédio insuportável, fiquei apaixonado pelo discurso de um dos passageiros, um taxidermista que tenta fazer o motorista repensar sua decisão contando anedotas e mostrando como ele foi salvo de um ato igual por uma deliciosa amora, que sua mão tocou enquanto ajeitava a corda no galho para se enforcar. Pena que o desfecho, ponto que irrita até mesmo os defensores mais ferrenhos, jogue no lixo as poucas reflexões propostas, abraçando uma metalinguagem pretensiosa, mal desenvolvida. O segundo filme do dia, pelo contrário, insere uma reflexão profunda em uma moldura despretensiosa, um resultado que me agradou mais e me fez compreender a grandeza do diretor. Ao documentar um acontecimento criminal e convencer os envolvidos a reencenar os eventos que o antecederam, Kiarostami evidencia a simplicidade inerente às melhores ideias. A emoção brota naturalmente no terceiro ato, algo pouco usual em sua filmografia, o que me leva a indicar “Close-Up” como ótimo ponto de partida para os interessados. Se o diretor não tivesse feito mais nada em sua carreira, esse belo tratado sobre a relação entre a arte e a vida já o posicionaria entre os nomes mais importantes do cinema. 

No dia seguinte vi “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?” (Khane-ye doust kodjast? – 1988) e “Através das Oliveiras” (Zire darakhatan zeyton – 1994), eu me lembro de ter checado bastante o meu relógio de pulso nas sessões, o que não considero um bom sinal. Seus últimos filmes, “Um Alguém Apaixonado” (Like Someone in Love – 2012) e “Cópia Fiel” (Copie Conforme – 2010), produtos muito inferiores, não fazem justiça ao talento que encontrei em “Close-Up”. Como espectador, agradeço por ter apresentado ao mundo seu colega Jafar Panahi, que começou como seu assistente, adepto de um estilo que me encanta, obras menos umbilicais, com maior empatia pelo público. Não estaria sendo sincero se afirmasse que Abbas Kiarostami está entre meus cineastas favoritos, mas estaria sendo um tolo se ignorasse o impacto de pedaços de suas obras, um todo que é definitivamente melhor que a soma de suas partes. 

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Entrevista com o crítico norte-americano Tim Lucas, especialista na obra de Mario Bava


Em mais uma entrevista exclusiva para o "Devo Tudo ao Cinema", converso com o competente colega crítico de cinema norte-americano Tim Lucas, autor de "All The Colors of The Dark", a maior referência literária sobre a carreira do diretor italiano Mario Bava, que conta com uma introdução escrita por Martin Scorsese. Na opinião de Quentin Tarantino, "o melhor livro sobre cinema já escrito". 

O - Tim, o trabalho de Mario Bava já sofreu e ainda sofre preconceito por parte do público e, especialmente, por uma parcela considerável da crítica, aqueles que desprezam o cinema de gênero. No Brasil a luta é constante. Os professores nas faculdades de cinema doutrinam os estudantes, desvalorizando filmes de terror e ficção científica. Eu sempre celebrei os gialli, meu gênero de formação é o horror. Um colega, o Fernando Brito, curador da distribuidora Versátil Filmes, responsável por lançar quase toda a filmografia de Bava em DVD, até ministrou um curso sobre ele. Qual você acha que é a importância do cinema de gênero, especialmente o horror, na formação de uma indústria de qualidade competitiva?

T - Nós não permitimos preconceito em nossa vida, então porque introduzir esse conceito em nossas percepções de arte? O cinema de gênero é apenas um termo acadêmico para cinema popular - o cinema amado pelo maior número de pessoas, o cinema cujas receitas permitem os chamados tipos "superiores" de cinema existirem. Por alguma razão, o gênero do horror parece incitar maior paixão entre os espectadores, mais do que outros tipos de filme, talvez por ser o que possibilita maior liberdade imaginativa. Você não encontra convenções de fãs de cinema dedicadas aos dramas e musicais, nem mesmo dedicadas ao que se chama de "cinema de arte". Uma das razões fundamentais que me fez começar a explorar a carreira de Bava quando eu era bem jovem, foi porque vi o mesmo personagem em OPERAZIONE PAURA, de Bava, e no filme de Fellini: TOBY DAMMIT - Achei os dois filmes maravilhosos, mas os críticos veteranos insistiam que o filme do Fellini era brilhante, mas o de Bava (quando era, por sorte, mencionado) era um lixo. Levou décadas para que esse preconceito começasse a ruir. E esse esforço transformador é mérito do poder individual de persuasão do crítico, ainda que sejamos poucos os valentes defensores do cinema de gênero. Entre críticos da língua inglesa, não haviam muitos antes da década de 90. Eu fico encantado de saber que vivemos agora em uma época em que TODO tipo de filme pode existir em Blu-ray, em restaurações 2K e 4K. 


O – Como um apaixonado defensor de Bava, quais são os aspectos de seus filmes que os fazem tão únicos e atemporais? E, tendo se dedicado anos na elaboração do livro, o que faz de sua obra algo tão interessante particularmente em sua vida?

T - A primeira coisa que me atraiu no trabalho de Bava foi a estética, o visual, que era agressivamente artístico e quase sempre metafísico, da mesma forma metafísica que a arte de Steve Ditko para os quadrinhos do "Doutor Estranho" da Marvel. Ao aprender mais sobre Bava, descobri que a família dele tinha raízes fortes nas artes, que ele chegou ao cinema não pela sala de edição, mas pela pintura. Ele era um cineasta que foi seduzido pelo cinema de horror por razões pessoais de autoexpressão, para confrontar e analisar os seus próprios medos, e ele fez isso de uma maneira muito espontânea e artística, de forma que você consegue enxergar as influências de sua base na pintura, música clássica e literatura de alta qualidade. Há um toque forte de Dostoiévski em Mario Bava, mas ele também abraçou o pulp mais popular. Quando descobri seus trabalhos no início dos anos 70, fiquei impressionado ao constatar que ele havia nascido em 1914, porque seus filmes parecem representar a expressão de um homem bem mais jovem.


O – O Bava tinha bom gosto, algo que o colocou em confronto com o sistema industrial italiano da época, como quando ele rejeitou algumas ideias desavergonhadamente exploitation do produtor Alfredo Leone. Aborde essa luta de toda uma vida dele pelo equilíbrio entre suprir as necessidades de mercado e satisfazer os seus interesses artísticos. 

T - A grande batalha de Bava era que ele só tinha permissão de fazer filmes derivados. Era tudo o que o mercado italiano podia oferecer. Ele tentou iniciar o gênero de horror na Itália, por volta de 1955, mas foi apenas com o primeiro Drácula, da Hammer, um sucesso surpreendente na Itália, que ele recebeu sinal verde pra dirigir BLACK SUNDAY. Muitos dos títulos de seus filmes eram paródias deliberadas de projetos mais bem sucedidos - como ERCOLE AL CENTRO DELLA TERRA, em referência ao "Jornada ao Centro da Terra". Mas ele fez filmes de forma tão barata, fez de forma tão econômica, que ninguém se preocupava muito com o que ele fazia, não havia policiamento - as bilheterias respondiam positivamente no mercado internacional - então ele tinha liberdade para ser artisticamente autoral, até mesmo experimental. E, mesmo assim, ele negou isso até a morte, dizendo em entrevistas que seus próprios filmes eram terríveis, que os filmes faziam ele sentir vontade de vomitar. Foi a forma que ele encontrou pra continuar trabalhando, e com uma boa dose de liberdade.

O – Considero "Cães Raivosos" (1974) uma genuína obra-prima, um dos melhores filmes de sua década. É um trabalho incompleto, um corte bruto, uma colcha de retalhos, mas ainda assim, um poderoso soco no estômago. Como você enxerga passionalmente essa obra dentro da filmografia dele?

T - Eu concordo que é um dos melhores filmes dele, mesmo em sua forma bruta. Um fã do trabalho prévio dele teria dificuldade de identificar ele como o diretor - era uma reinvenção completamente nova, agressiva, de sua persona. Esse filme provou que ele poderia fazer qualquer coisa que ele quisesse. No que tange obras de ação/crime, "Cães Raivosos" é muito melhor que qualquer projeto que era realizado na época por diretores jovens norte-americanos, como Wes Craven e John Carpenter.

O – Você acredita que há espaço na indústria cinematográfica moderna para um profissional tão autêntico quanto o Bava? Você enxerga aquela fagulha criativa dele em algum diretor dessa nova geração?

T - Essa "fagulha" do Bava era que ele tinha um pleno entendimento das mecânicas básicas do cinema. Ele era um cineasta completo: ele dirigia, roteirizava, fotografava, editava e criava os efeitos especiais para seus filmes. Ele podia fazer tudo isso sem muito esforço criativo, e sem nunca parecer um egomaníaco, porque, se fosse pra rotular, ele era um tipo Garbo que se escondia conscientemente dos olhos da crítica. O cinema de hoje não é mais sobre esse tipo de eficiência, mas sobre o respeito que é conquistado por despesas cada vez maiores e um grande desperdício. Não acho que podemos ter outro Mario Bava hoje em dia porque 1) filme não é mais filme, ele tem  uma textura diferente - vídeo é como pintar em vidro, ao invés de pintar em tela, numa analogia válida e 2) os cineastas de hoje tendem a ser informados somente por filmes recentes, não fazem mais filmes em que o espectador consegue discernir a influência de todas as sete artes. 


O – Como você vê os filmes de horror modernos, como "The Babadook", "Invocação do Mal", "A Bruxa"... ? Você encontra a influência de Bava em produções atuais?

T - Eu enxergo referências ao Bava, mas não uma real influência. O trabalho mais interessante realizado hoje, na mesma linha, são os filmes que estão sendo feitos pelos belgas Hélène Cattet e Bruno Forzani, que reconhecem a tradição de horror italiana, enquanto forjam algo fantasticamente novo e progressivo. 

O – Você consegue se lembrar do seu primeiro contato com um filme do Bava? Qual foi? E tente descrever, não como um crítico, mas passionalmente, como essa obra te tocou.

T - Eu vi BLACK SABBATH (I TRE VOLTI DELLA PAURA) e KILL, BABY... KILL! (OPERAZIONE PAURA) na televisão em 1970, quando eu tinha 14 anos. Gostei muito de BLACK SABBATH, mas tinham alguns momentos nele que me amedrontaram de um jeito que eu não estava acostumado - como quando a criança morta-viva se ajoelha do lado de fora da porta e chama pela mãe, cujos sentimentos maternais haviam se tornado tão dominantes que ela assassinou seu próprio marido como forma de responder ao seu chamado. Então era um horror com um toque adulto, sofisticado e poético. Havia algo muito profundo, incomum, nos dois filmes - e OPERAZIONE PAURA realmente mudou a minha vida, ao me mostrar como o cinema podia ser utilizado para expressar o lado metafísico da vida. Eu escrevi meu primeiro texto como profissional da crítica para o CINEFANTASTIQUE, algumas semanas depois de ver o filme. Ao final das sessões, eu não conseguia me lembrar deles como costumava lembrar de outros filmes que via - pensar neles era mais como tentar lembrar de um sonho ou de um pesadelo que tive. 


O – Meus filmes favoritos dele são: "O Alerta Vermelho da Loucura" e "Cinco Bonecas Para a Lua de Agosto". Quais são os seus favoritos? E as razões?

T - Eu tenho uma resposta complexa. Acredito que I TRE VOLTI DELLA PAURA e SEI DONNE PER L'ASSASSINO são seus trabalhos mais requintados. No entanto, OPERAZIONE PAURA é meu favorito absoluto, pelas razões que já afirmei - uma pequena joia muito preciosa. Chamar algo de favorito é isolar ele, prefiro considerar o trabalho de Bava como uma galeria de maravilhas, ao invés de citar uma única obra-prima. Gosto demais dos dois que você citou, são muito inventivos estilisticamente, de maneiras que creio ainda merecem maior reconhecimento, merecem ser mais discutidos. Esses dois seguem se revelando pra mim a cada sessão, enquanto os que citei me passam uma impressão de que já foram plenamente discutidos.

O - Uma pergunta fora do tema, mas relevante à nossa função na sociedade. Você acha que a crítica de cinema profissional está em extinção? Como podemos combater o interesse cada vez menor do público em ler textos com mais de três parágrafos?

T - Há muitos, muitos tipos de profissionais da crítica de cinema. Tem aqueles que escrevem sobre filmes porque acham que é uma vida fácil, e tem outros - como eu, como você, Octavio - que escrevem sobre filmes porque é um trabalhão danado! Fazemos isso porque é uma maneira de conhecer melhor a nós mesmos, e de nos tornarmos indivíduos mais conscientes. Toda forma de arte é um espelho, mas como em ORPHEE, de Cocteau, os espelhos são portais para uma rede de conexão que nos conduz aos nossos espíritos guias. Desde o início do tempo, existiram os sonâmbulos e os cognoscenti (pessoas que possuem um conhecimento profundo sobre algo específico). Ambos morrem, e existem argumentos sobre qual dos dois aproveita melhor sua vida - porque viver não é apenas estar consciente, mas estar ativo e com disposição para aventuras. Creio que o que estou tentando dizer é que os críticos de cinema verdadeiramente dedicados continuarão a escrever, não importa a forma como serão publicados, algo que hoje em dia não é mais um problema, todos tem voz com a internet. Talvez essa seja a lição que se deve tirar com a vida - a importância de continuar fazendo o que gostamos, aquilo que nos define, sem pensar em remuneração, até mesmo sem pensar em um público. Acredito que o bom trabalho sempre encontrará resposta.

O – Tim, obrigado pelo generoso tempo dedicado em cada resposta. Por gentileza, deixe uma mensagem especial para meus leitores, os cinéfilos brasileiros dedicados.

T - Uma das minhas memórias mais estimulantes da cinefilia adolescente foi, creio, por volta dos 10 anos de idade, vendo um trailer de ORPHEU NEGRO, de Marcel Camus. A música e as cores explodiam da tela, mostrando um mundo tão diferente do meu, que eu poderia pensar serem cenas da vida em Netuno ou Júpiter. Esperei um longo tempo para que o filme viesse ao meu cinema local, mas nunca aconteceu. Por anos depois, eu acordava de vez em quando com a lembrança daquele trailer na minha consciência. Eu finalmente consegui ver o filme, muitos anos depois, pela primeira de muitas vezes - e graças a isso, o Brasil reside em um lugar muito especial em minha consciência criativa, particularmente a minha consciência musical, já que amo samba e bossa nova. Eu sempre escuto quando estou escrevendo. Além disso, o Brasil parece ser o lar de uma emoção que sempre me inspira a escrever, sempre respondo de forma muito emocional na arte, a emoção chamada "saudade". Eu sinto isso quando vejo o cinema brasileiro, ou a Nouvelle Vague francesa, ou quando escuto uma canção como "Telstar", dos The Tornadoes - um sentimento que esses elementos abstratos são meu verdadeiro lar. Obrigado, Octavio, pelo convite e pelas perguntas muito interessantes.