quarta-feira, 27 de abril de 2016

O Dia em Que Conheci um Trapalhão

Links para textos sobre Os Trapalhões:

Entrevista exclusiva com Rafael Spaca, sobre o livro:


Na noite dessa Segunda, 25/04/16, fiz questão de aplaudir pessoalmente o belo trabalho de resgate cultural do jornalista Rafael Spaca, autor do livro “O Cinema dos Trapalhões – Por Quem Fez e Por Quem Viu”, da Editora Laços, um conjunto de mais de cento e trinta entrevistas realizadas por ele com técnicos e artistas que participaram dos filmes desse grupo inesquecível. Desprezados por boa parte da crítica cinematográfica em seu tempo, os filmes protagonizados por Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e Zacarias, foram fundamentais na formação cinéfila de muitas crianças e adolescentes. Conheço pessoas que afirmam que aprenderam a amar o cinema graças às aventuras desses super-heróis brasileiros. Quando entrei na sala escura com minha mãe pra ver "Os Fantasmas Trapalhões" no extinto Cine Carioca, no Rio de Janeiro, eu colecionava as revistas em quadrinhos lançadas pela Editora Abril Jovem, "As Aventuras dos Trapalhões", com paródias dos sucessos de Hollywood. Conheci o RPG, role-playing game, através de "Didiana Jones na Ilha dos Dinossauros", antes de embarcar nos livros adultos do gênero escritos por Steve Jackson e Ian Livingstone. 

Então vocês podem imaginar a emoção que tive ao encontrar o grande Manfried Sant'Anna, o nosso querido trapalhão Dedé Santana, um competente diretor, apaixonado por cinema. E, o mais importante, pude agradecer pessoalmente por alguns dos momentos mais felizes da minha infância. Ele é gentil, humilde e atencioso, como os grandes sempre são. Também na foto, outro símbolo de simpatia e talento, a querida amiga Nádia Lippi, que está no elenco do meu quarto curta: "Nocebo". 


Parabéns, Rafael, pelo respeito que nutre por esses artistas e pelo gesto nobre de posicioná-los no lugar de destaque que merecem em nossa indústria. Saiba que conta aqui com um aliado nessa batalha. E obrigado, porque graças ao seu livro, pude realizar um sonho da minha criança interior. 

segunda-feira, 25 de abril de 2016

"Amor por Direito", de Peter Sollett


Amor por Direito (Freeheld - 2015)
No primeiro ato, quando as encantadoras primeiras tentativas de flerte da jovem Stacie dividem espaço com uma entediante exposição do trabalho policial de Laurel, torci para que a câmera esquecesse qualquer subtrama e se mantivesse o maior tempo possível extraindo daqueles rostos aquela ternura. O que os diálogos pouco inspirados falham em estabelecer é compensado pela cumplicidade verossímil que exala nos silêncios.

O romance entre as duas protagonistas é tão bonito, a química entre Julianne Moore e Ellen Page flui de forma tão orgânica nas cenas, que relevei o pouco desenvolvimento dado a cada personagem no roteiro, a estrutura convencional melodramática que combina com o piegas título nacional, com direito até à clássica montagem do casal sorridente caminhando na areia de uma praia, nada disso afetou a experiência emocional, nem arranhou o mérito maior da obra, a opção por deixar o drama pessoal em segundo plano, abordando com maior atenção a importante questão da luta pelos direitos civis dos homossexuais, sem filmar o relacionamento com o usual verniz fetichista, uma atitude que foge da zona de conforto que as cinebiografias costumam abraçar. É uma linda história de amor baseada em um corajoso caso real, apenas isso, sem necessidade de rótulos.

Gosto da forma como o diretor Peter Sollett, do bom e pouco citado “O Verão de Victor Vargas”, quebra todas as expectativas, sem nunca pender por muito tempo em algum dos vários subgêneros que a trama toca. Quando parece que estamos diante de um dramalhão lacrimoso, uma reviravolta nos leva de encontro ao obstáculo desumano dos conselheiros, que tentam impedir o benefício da pensão, em um típico filme de tribunal onde a racionalidade bloqueia inteligentemente a catarse emotiva, conduzindo o choro contido até um potencializado rompante de revolta. Ao fazer isso, desarmando todas as reações antecipadas pelo espectador, os sentidos nos levam a tatear no escuro, com atenção redobrada na sutileza dos olhares e nos pequenos gestos das atrizes.

É uma pequena joia imperfeita, eficiente na condução de sua mensagem, ainda contundente e relevante, que é transmitida com a elegância daqueles que possuem a verdade nas mãos. 

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Tesouros da Sétima Arte - "Frances", de Graeme Clifford

Link para os textos do especial:


Frances (1982)
Uma atriz da era de ouro de Hollywood, elogiada por Cecil B. de Mille e Howard Hawks, que foi tema de uma canção do grupo Nirvana, uma mulher corajosa e de opiniões fortes que peitava seus superiores e não conseguia fazer o tipo recatado e permissivo das suas colegas. Uma história controversa que ainda não foi solucionada: Frances Farmer, em uma de suas passagens pelo hospital psiquiátrico, foi vítima de uma lobotomia transorbital?

O livro “Shadowland” que foi adaptado no roteiro evidencia essa cruel experiência, mas outros estudos feitos desde então negam esse acontecimento na vida dela. A cena que ocorre no clímax do filme é destruidora, potencializada pela frieza do médico e o estado de consciência da paciente. Alguns anos antes o cinema havia abordado o tema no maravilhoso “Um Estranho no Ninho”, mas com menor impacto. Analisando os registros em vídeo da atriz pós-internação, como em um episódio de “This is Your Life” que pode ser encontrado no Youtube, e que foi reencenado no desfecho do filme, é difícil negar, fica perceptível que aquela figura plácida e distante não se assemelha em nada à personalidade forte que venceu na indústria anos antes, ela havia sido artificialmente domada. E a fotografia do grande László Kovács ajuda a salientar essa transformação retirando nessa sequência final a luz dos olhos da personagem.

A direção de Graeme Clifford é impecável, não dá pra entender porque ele se focou depois do filme em produções televisivas. A trilha sonora de John Barry, com um bonito tema em gaita, reforça a elegância do projeto. Jessica Lange entrega a melhor atuação de sua carreira, e vou mais longe, considero um dos melhores momentos de uma atriz na história do cinema. É impressionante como ela compõe o arco narrativo, de sua rebeldia infanto-juvenil da época de escola, passando pelo auge da segurança profissional como atriz, até a destruição progressiva de seus alicerces psicológicos. Vale destacar a participação da veterana Kim Stanley, de “A Farsa Diabólica”, como a perturbada mãe de Frances, uma mulher que parecia estar mais interessada no luxo advindo da profissão da filha. O embate entre as duas na porta de casa, uma das muitas cenas inesquecíveis, expõe as vísceras de um relacionamento podre, onde o interesse da mãe nunca estava na felicidade da filha, mas, sim, em qualquer recurso que a fizesse retornar o mais rápido possível para o radar dos estúdios de cinema. 

"Frances", quase sempre esquecido, merece constar nas listas de melhores filmes de sua década. Uma cinebiografia rara, que não simplifica os altos e baixos de sua homenageada, ressaltando sempre que, por piores que fossem as atitudes de outrem, a grande inimiga de Frances era a própria Frances. Um retrato fascinante de uma artista que lutou até o último segundo por suas convicções. 

* O filme, até então inédito no home video nacional, está sendo lançado em DVD, com um ótimo documentário, pela distribuidora "Obras-Primas do Cinema".

Cine Bueller - "A Flor do Pântano", de Joseph Pevney

Link para os textos do especial:


A Flor do Pântano (Tammy and The Bachelor – 1957)
Não consigo ver esse filme, dirigido por Joseph Pevney, sem sentir a nostalgia da época em que ele passava na “Sessão da Tarde”. É um romance puro, não tão ingênuo quanto sua fama faz parecer, com um belo tema musical de Jay Livingston e Ray Evans que gruda na mente e que eu escutava em um LP da minha avó. É o símbolo da época de ouro em que a televisão aberta presenteava os espectadores com material dessa qualidade em um horário onde a família inteira podia ver reunida. Quem nunca se apaixonou por Debbie Reynolds? Eu já havia me apaixonado por ela em “Cantando na Chuva”, mas a personalidade de sua personagem em “A Flor do Pântano”, uma lolita do interior, era irresistível. 

A mensagem é simples, o clássico “não julgue alguém por sua aparência”, mas o que cativa é a execução, a química entre ela e o rapaz da cidade grande, vivido por Leslie Nielsen, um ano depois de sua participação no sci-fi: “Planeta Proibido”. Ao ser levada a deixar sua existência confortável no pântano com o avô, vivido por Walter Brennan, a jovem Tammy encontra moradia na mansão de um piloto mais velho, mas, com seu olhar aguçado e sua expressividade franca, acaba induzindo toda a família a enfrentar seus medos escondidos pelo véu do status social elevado. Nos diálogos cômicos, a ousadia que vencia a censura com inteligência, como na sequência em que os pais do rapaz são levados a crer que a menina é uma prostituta. O elemento da sexualidade está sempre presente, faz parte do amadurecimento da protagonista, com essa descoberta representada metaforicamente pela jornada dela nesse mundo novo. Quando ela surpreende a todos com um monólogo nascido de suas experiências únicas no pântano, em uma encenação de época na mansão para um grupo de visitantes, o piloto enxerga pela primeira vez a mulher fantástica que se escondia por trás daquele ser frágil que ele protegia até então. Ele troca a sofisticação vazia de sua namorada pela riqueza que encontra na verdade da menina, uma qualidade mal articulada, mas intensa. 

A trama tinha tudo pra ser sentimental em excesso, mas a escolha por retratar Tammy como uma força orgânica da natureza faz com que todas as suas atitudes soem críveis e encantadoras.

* O filme, até então inédito em nosso home video, está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Obras-Primas do Cinema".

"Perigosa", de Alfred E. Green


Perigosa (Dangerous – 1935)
Joyce Heath (Bette Davis) é uma atriz alcoólatra e autodestrutiva que abandonou os palcos prematuramente. Um rico e comprometido arquiteto, Don Bellows (Franchot Tone), encontra-a em um bar e a ajuda a se recuperar para que ela volte a trabalhar. Os dois se apaixonam e ele resolve terminar o seu noivado. Don também decide produzir a volta de Joyce em uma peça e se casar com ela após a noite de estreia. Mas Joyce tem um segredo em seu passado que irá afetar suas vidas para sempre.


Pra que se tenha noção da força de Bette Davis, no auge de sua juventude aos vinte e sete anos, basta constatar que, sem ela, esse filme, dirigido por Alfred E. Green, teria se perdido nas brumas do passado. A atuação dela como Joyce Heath, outrora uma estrela promissora da Broadway, cujos caminhos foram fechados por seu descontrole emocional e pelo vício do álcool, faz com que relevemos os problemas de narrativa e o desfecho pouco inspirado. Ela engrandece a obra a cada diálogo, insinuando uma personalidade que só pode ser suportável enquanto está no palco, extravasando seus demônios internos, o que justifica o seu primeiro prêmio da Academia. 

Quando ela ataca seu benfeitor, vivido por Franchot Tone, ela está se autoflagelando, já que sabe que, com sua arte, foi a grande inspiração para as escolhas do rapaz. Ela diz: “Eu vivi mais em um dia, do que você em sua vida inteira”, consciente de que, ao invés de ódio, irá fazer nascer piedade, exatamente o que ela precisa para conquistar sua chance de redenção artística, claro, com o investimento financeiro dele, já que ninguém na indústria teria coragem de bancar alguém tão problemática. Determinada como poucas, ela é capaz de colocar sua própria vida em risco num acidente de carro, como o terceiro ato demonstra. Atuar, para a protagonista, não passa de terapia para controlar frequentemente sua raiva e mascarar sua vulnerabilidade psicológica. O roteiro de Laird Doyle questiona se uma atriz pode ser impecável nos palcos e plenamente feliz em sua vida privada. Um tema ousado e que havia sido trabalhado no ano anterior pelo diretor Max Ophüls, no injustamente esquecido: “La Signora di Tutti”. 

Na época do filme, Davis ainda não havia construído sua marcante imagem pública, então dá pra imaginar o impacto dessa abordagem nos espectadores. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

terça-feira, 19 de abril de 2016

Introduzindo o Cinema na Vida dos seus Filhos (4 de 4)


Com sorte, nessa passagem de fase você já apresentou aos seus filhos a beleza de filmes como “A Bela e a Fera” (propondo uma comparação entre a versão de Jean Cocteau e a animação da Disney), “Os Goonies” e “E.T. – O Extraterrestre”. O pré-adolescente já entende cinema como uma arte que se divide em vários gêneros, cada um com sua beleza, o que irá impedir no futuro que ele cometa a estupidez de muitos estudantes da área. Ensine aos seus filhos que não existe “filme de arte”, existem filmes de propostas diferentes. Um excelente filme de terror é tão importante quanto um excelente drama, ou um excelente filme de artes marciais. Os grandes diretores sempre beberam da fonte dos gêneros, assim como os críticos de cinema mais respeitados. Somente os imbecis, os inseguros e incompetentes, segregam e incentivam discursos de ódio.

Vamos então partir para a fase final desse especial, que vai de quatorze a dezoito anos. Vou sugerir algumas opções iniciais. Que tal propor uma tarde temática com “A Noviça Rebelde”, “A Lista de Schindler” e “Cemitério dos Vagalumes”? Três produções que abordam a Segunda Guerra Mundial de maneiras completamente diferentes, estilos distintos, musical, drama e animação. O pré-adolescente irá agregar os ensinamentos do professor de História às suas conversas no sofá de casa, enquanto apreciam esses excelentes filmes. Sugestão de viés para o bate-papo após a sessão do musical: Podemos assistir pelo ponto de vista do amargurado e sisudo capitão Von Trapp (Christopher Plummer), que após o falecimento de sua esposa, dedicou-se a uma vida reclusa. Seus sete filhos são o reflexo perfeito de sua criação distante e fria. Rebeldes e medrosos, sempre tentam afastar as pessoas de suas vidas. Ao conhecerem a nova governanta, que os trata como iguais, respeitam-na como uma amiga. O mesmo ocorre com o capitão, que pouco a pouco percebe a luz que irradia afastando as sombras de sua mansão, sempre que Maria está presente. Com ela, reaprende a cantar e faz por merecer a admiração dos filhos. Por esse prisma, as canções se tornam protestos velados, pequenas batalhas interiores, como na bela e patriótica: “Edelweiss”, que, em sua primeira versão, transforma o capitão amargurado no homem admirável que ele escolheria ser a partir daquele momento. Já em sua versão ao final, torna-se um grito de protesto contra os nazistas que tomavam o controle de sua amada nação. Numa linda analogia, próximo ao final da música, a voz embargada de Plummer intenciona perder a força, somente para vermos a união da família que invade a canção em coro, empolgando toda a plateia que responde em uníssono, com orgulho e emoção renovados.

Não há melhor momento para apresentar seus filhos a “Clube dos Cinco”, de John Hughes, a melhor produção a abordar os conflitos internos da adolescência. Na história, cinco estudantes ginasiais encontram-se detidos e tendo que passar o Sábado juntos na sala de aula, sendo obrigados a escrever uma redação redimindo-os do erro. O toque de genialidade de Hughes foi fazer dos cinco jovens, símbolos e estereótipos de cinco características comuns e universais da idade. O rebelde violento, o esportista valentão, a menina mimada, a esquisita e o nerd. Eles terão que se confrontar e descobrir que não são tão diferentes como imaginavam. Ao final, como forma de aliviar o debate, uma comédia despretensiosa: “O Rapto do Menino Dourado”, e, se possível, com a dublagem fantástica de Mário Jorge, que faz até as cenas mais fracas do original soarem incrivelmente engraçadas. Já que toquei no assunto, por gentileza, não estimule em seus filhos o preconceito contra a ferramenta da dublagem. Respeitar a dublagem é, acima de tudo, ser grato por todos os filmes que aprendemos a amar na infância. Incentive sempre a leitura, mas não simplifique o discurso. É normal apreciar a dublagem e ser um ávido leitor. Eu sou fluente em inglês, já fui professor, vejo os filmes em inglês no original (sem legenda), com legenda e dublados. Quando algum crítico tonto incitar o ódio nesse tema, tenha pena do pobre coitado, apenas mais um attention whore, interessado mais em admirar seu próprio umbigo, do que em propagar o amor pela sétima arte.

Mais algumas sugestões importantes em variados gêneros: “A Nova Transa da Pantera Cor de Rosa” e “Um Convidado Bem Trapalhão” (excelente introdução aos trabalhos de Peter Sellers e Blake Edwards), “Os Pássaros” (bom ponto de partida para a obra de Alfred Hitchcock), “O Planeta dos Macacos”, de 1968, e suas quatro continuações, “Tubarão”, “Era Uma Vez no Oeste” (ótima introdução aos trabalhos de Sergio Leone), “Matar ou Morrer” e “Os Brutos Também Amam”. “O Dragão Chinês” e “A Fúria do Dragão” (Bruce Lee é sempre uma forma agradável de apresentar os filmes de artes marciais), numa semana temática com: “Os Cinco Venenos de Shaolin” (dos Shaw Brothers), “Arrebentando em Nova York” (com Jackie Chan) e “Matrix”, mostrando como o cinema norte-americano absorveu o estilo. “O Massacre da Serra Elétrica” (o original, claro), numa dobradinha com “O Silêncio dos Inocentes”. Ao invés de mostrar para o adolescente “E o Vento Levou…” (que funciona exatamente como mostrar Dom Casmurro para crianças na escola), comece com “Os Pássaros Feridos”, “A Felicidade Não se Compra” e “Paraíso Infernal” (excelente introdução aos trabalhos de Howard Hawks).

Que tal realizar uma sessão-dupla, com “O Rei Leão” (da Disney) e “Princesa Mononoke” (de Hayao Miyazaki)? Para os meninos, já está mais que na hora de apresentar as aventuras de James Bond. Sugiro começar mostrando nessa ordem: “007 Contra Goldfinger”, “Moscou Contra 007” e “007 – Viva e Deixe Morrer”. Caso ele goste, mostre os outros, além de incentivar que ele leia as obras originais de Ian Fleming. Faça uma semana temática somente com filmes do Woody Allen, cinco tardes imersas na obra desse gênio. Sugiro que inicie com esses títulos: “A Última Noite de Boris Grushenko”, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, “A Rosa Púrpura do Cairo”, “O Dorminhoco” e “Um Assaltante Bem Trapalhão”. E, já no final da “terceira fase”, como presente pelo empenho dos jovens, apresente a trilogia “O Poderoso Chefão”, sugerindo que eles busquem o complemento literário, o excelente livro de Mario Puzo. Com essa base que sugeri nesses quatro textos, tenha certeza, seus filhos estarão mais do que preparados para desbravarem esse universo fascinante do cinema. Sem preconceitos, sem cabresto, intensamente apaixonados.

Introduzindo o Cinema na Vida dos seus Filhos (3 de 4)


A “segunda fase”, que vai dos nove aos treze anos, acaba se mostrando a mais interessante, com relação à experiência compartilhada entre pais e filhos, já que a interação ganha contornos mais intelectualmente conscientes. O filme deixa de ser algo apenas fascinante, para se tornar o centro de uma discussão. É importante que os pais estimulem nos filhos o raciocínio lógico, o embate argumentativo, o clássico: “Me explique melhor…”. É o momento certo para apresentar trabalhos como o do grupo inglês Monty Python. Recomendo inicialmente “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, de 1975, uma hilariante visão sobre as aventuras do Rei Artur, um tipo de nonsense maravilhoso que seus filhos nunca irão encontrar no entretenimento preguiçoso realizado hoje, com o desprezível politicamente correto tomando conta de praticamente tudo. E, como sempre digo: quando o presente é lastimável, não abrace a mediocridade, vasculhe o passado.

Quem me apresentou esse grupo inglês foi Luís Felipe, meu professor de História em um colégio de freiras, um herói que ludibriou a supervisora dizendo que “A Vida de Brian” tinha bonitas mensagens católicas. Ele ensinou, com essa atitude, que o cabresto nunca é uma opção válida. Até hoje eu me recordo da gargalhada coletiva da turma em vários momentos do filme, enquanto as freiras vigiavam do lado de fora da sala, tentando entender o motivo de tanta alegria, afinal, nunca havíamos nos comportado assim nas exibições usuais de filmes religiosos e do “Telecurso”. O filme que tínhamos visto na semana anterior era “Marcelino, Pão e Vinho”. Em 2002, alguns anos depois da minha formatura no ginásio, esse grande homem foi assassinado, enquanto dava aula em outra escola, tentando proteger seus alunos de bandidos. Ele amava cinema e citava trechos de canções da banda Legião Urbana em sala de aula. Seja como esse professor com seus filhos, incentive-os a rir de tudo aquilo que, em teoria, “não se deve fazer gozação”. O medo nasce sempre que um dogma é martelado na mente de uma criança. Os dogmas só servem para aprisionar o ser humano. Sente no sofá com eles e se divirta. Quando os filhos estiverem mais velhos, já na “terceira fase”, que abordarei no próximo texto, apresente a eles “Monty Python – O Sentido da Vida”.

Nada melhor que apresentar seus filhos nessa fase à jornada de superação de Rocky Balboa. É impressionante como uma maratona dos seis filmes pode impactar positivamente o pré-adolescente. Testei no ano passado com meus dois afilhados, um casal de oito e dez anos. Eles ficavam cantarolando o dia inteiro a trilha sonora e não podiam ver uma escadaria, corriam os degraus, davam socos no ar e diziam que estavam treinando. O menino se emocionou muito com o final de “Rocky 2”, a menina pediu de presente os DVD’s. As cenas de boxe empolgam, fizeram com que eles pulassem do sofá, porém, o que eles comentavam após as sessões é o coração da trama, “o Rocky é tão bonzinho”. Ao final da luta do original, onde o Rocky empata, eles reclamaram: “Mas ele não ganhou?”. Então expliquei o grande ensinamento do filme: a questão importante não é vencer, mas, sim, seguir vivo na luta da vida, aguentando os golpes e batendo de volta, até o gongo final. Eles entenderam. Hoje, passando mais férias na minha casa, eles já estão doidos pra ver “Creed”, o sétimo filme da franquia. Subestime seus filhos e receba menos do que imaginava, trate-os como adultos em formação, que, com certeza, você será surpreendido.

Algumas sugestões de sessões despretensiosas, em diversos gêneros, filmes que eu conheci nessa “segunda fase” e que fortaleceram a minha paixão por cinema: “Splash – Uma Sereia em Minha Vida” (numa fita VHS gravada por meu pai de uma exibição na Globo), “Robocop – O Policial do Futuro” (mesmo caso do anterior), “Superman – O Filme” e “Superman 2”, o primeiro “Batman” de Tim Burton (provavelmente o VHS que mais aluguei na vida), “Greystoke, A Lenda de Tarzan”, “Rambo 2 – A Missão”, “Comando Para Matar”, “Hellraiser – Renascido do Inferno” (antes de alugar, ficava admirando a capa do VHS por horas), “Bala de Prata” (clássico de terror da noturna “Sessão das 10” e do vespertino “Cinema em Casa”, ambos do SBT), “O Exorcista” (recomendo que veja após a leitura do livro original de William Peter Blatty), “Trinity é Meu Nome” (dentre outros clássicos da dupla Terence Hill e Bud Spencer, excelentes introduções ao gênero do faroeste), “Os Saltimbancos Trapalhões”, “Cantando na Chuva”, “S.O.S. – Tem um Louco Solto no Espaço” (John Candy e Mel Brooks, combinação perfeita), “Jornada nas Estrelas” (os seis filmes com a tripulação clássica), “Meu Primeiro Amor”, “Karatê Kid – A Hora da Verdade” e “Karatê Kid 2” (eu sentia profunda identificação com o protagonista, no auge da minha experiência com o bullying), e, claro, “Curtindo a Vida Adoidado” (outro clássico de John Hughes, meu favorito dele, será incluído na próxima fase).

Faço questão de destacar um dos filmes mais marcantes da minha pré-adolescência, uma das fitas VHS que mais tempo ficava dentro do aparelho: “Inimigo Meu”, excelente ficção científica dirigida por Wolfgang Petersen. Uma trama que lida com as diferenças, abordando a importância da união, a convivência destruindo os preconceitos. O roteiro tem camadas de interpretação que vão sendo mais bem absorvidas em revisões, garantindo muito pano pra manga em debates filosóficos após as sessões. Literariamente falando, esse é o momento ideal, caso ainda não o tenha feito, para apresentar aos seus filhos o rico universo da fantasia/ficção científica, com livros como “Harry Potter”, “1984” e “Fahrenheit 451”, e, numa dobradinha com o filme, “Jurassic Park”, de Michael Crichton. Outra opção muito boa é “Operação Cavalo de Tróia”, de J.J. Benítez.

É chegado o momento mágico, inesquecível para pais e filhos, de presentear seus pré-adolescentes com duas trilogias espetaculares: “De Volta Para o Futuro” e “Indiana Jones” (sim, não contabilizo o quarto filme). Já na passagem da “segunda fase” para a “terceira fase”, seus filhos estarão na idade certa, eles irão aproveitar plenamente todos os aspectos dos filmes. Como sugestão, com relação ao arqueólogo mais querido do mundo, indico que inicie com “Indiana Jones e o Templo da Perdição”, meu favorito até hoje, depois mostre “Os Caçadores da Arca Perdida” e “Indiana Jones e a Última Cruzada”.

Continua...

Introduzindo o Cinema na Vida dos seus Filhos (2 de 4)


Quando estava na época do ensino primário, torcia pra chegar logo a hora do recreio, para ler as revistas em quadrinhos que carregava orgulhosamente na minha mochila. E, ao final de mais um dia de estímulo à memorização passiva de assuntos que, em grande parte, não me interessavam, objetivando acertar a quantidade mínima de pontos necessários nas provas para passar de ano, corria para casa, louco pra continuar meu real estudo, os livros, gibis e filmes. Aquele material que verdadeiramente definiu meu caráter e me ensinou de forma divertida tudo aquilo que os professores ditavam monocordicamente em sala de aula, com um acréscimo que, infelizmente, poucos profissionais na área pedagógica incitam: a importância da mente aberta, sem cabrestos. Continuando as sugestões para essa “primeira fase”, de quatro a oito anos, nada melhor que apresentar a seus filhos os trabalhos deCharles Chaplin, especialmente os curtas que ele fez pros estúdios Keystone, Essanay e Mutual, deixe os longas-metragens pra mostrar quando a criança já tiver demonstrado carinho pelo personagem. Nunca me esqueço do impacto que esses filmes tiveram em minha infância, quando os conheci através de um programa na TV Cultura, apresentado por Carlos Heitor Cony. Tudo era fascinante, o preto e branco, a filmagem acelerada, a própria figura de Carlitos. Sente com seus filhos e explique o contexto daquelas cenas, a importância histórica do artista.

Com os olhos da criança acostumados ao estilo da comédia muda, apresente então os trabalhos deStan Laurel e Oliver Hardy, curtas-metragens como “Um Dia Perfeito”, “O Grande Negócio”, “Liberdade e seus Perigos” e “Um Fantasma Muito Vivo”. Conte a eles como os dois eram grandes amigos na vida real, pra que a criança, desde cedo, seja estimulada a discernir a diferença entre fantasia e realidade. Após a criança demonstrar carinho pela dupla, apresente então longas-metragens como “Filhos do Deserto”, “Perdão para Dois” e “Sossega Leão”. Uma boa opção é fazer uma sessão dupla com Harold Lloyd, evidenciando as semelhanças entre “Liberdade e seus Perigos” e o longa-metragem “O Homem-Mosca”, o mais famoso de Lloyd. Eu me recordo vividamente da reação que tive quando o personagem escala aquele prédio. Não era parecido com nada que eu tivesse visto até então. E, claro, por último, para que o fascínio da criança não atrapalhe um olhar mais atento, apresente a genialidade de Buster Keaton, o mestre em realizar o impossível. Sugiro inicialmente os filmes: “Nossa Hospitalidade”, “Bancando o Águia”, “Marinheiro de Encomenda” e, por último, “A General”. Se a criança perguntar: “Mas ele nunca sorri?”, ela está no caminho certo. Com essa base sólida na comédia muda, os seus filhos pequenos estarão preparados para a imersão plena em projetos mais ambiciosos no gênero.

No tempo em que a televisão aberta respeitava o público infantil, eu não perdia uma sessão do “Festival Jerry Lewis”. Ele é a opção perfeita pra inserir seus filhos no mundo da comédia moderna, com toques de sentimentalismo que estimulam a empatia, algo que os horrorosos desenhos animados infantis de hoje desprezam solenemente. Eu cresci numa época em que o poder da amizade, o “fazer o bem”, a força da união, eram celebrados em filmes, desenhos-animados e canções infantis. Não entregue aos seus filhos o lixo imediatista produzido hoje, não subestime as crianças. Ela irá te agradecer no futuro. Dos filmes protagonizados por Jerry, sugiro, na ordem: “O Professor Aloprado”, “O Terror das Mulheres”, “Errado pra Cachorro”, “Bagunceiro Arrumadinho” e “O Meninão”. Cinco produções, cinco tardes numa semana dedicada ao mestre do humor. Viva com seus filhos esse prazer, converse com eles após cada sessão sobre os temas dos filmes, pra que aquela magia não se perca até o final do dia.

Recomendo que você apresente a seu filho, nessa fase introdutória, o belo “Labirinto”, protagonizado por David Bowie e dirigido por Jim Henson, criador dos “Muppets”, que, aliás, sugiro que tenha um de seus filmes, o original de 1979, incluído numa sessão dupla. A criança, já iniciada no gênero por “Mary Poppins”, não vai estranhar as sequências musicais na trama. É linda a forma como a mensagem é passada no roteiro, utilizando o mundo mágico dos bonecos, com toques sutis daquele senso de perigo contido nos melhores contos de fada, como moldura para uma defesa apaixonada: que o adulto nunca perca contato com sua criança interna. A linda cena final, no quarto da bela Jennifer Connely, sempre me emociona. Um detalhe muito importante: NUNCA deboche do seu filho menino por se emocionar em filmes. Pelo contrário, incentive nele esse extravasamento emocional. É uma estupidez tremenda, típica do adulto brasileiro machista, gozar com a cara da criança, afirmar que “homem não chora”. Se você pensa assim, por gentileza, não tenha filhos, adote uma tora de madeira e seja feliz. A sociedade atual precisa desesperadamente de pessoas sensíveis.

Continua...

Introduzindo o Cinema na Vida dos seus Filhos (1 de 4)


O maior presente que os pais podem dar aos filhos é incentivar desde muito cedo o amor pela cultura, um tesouro que, especialmente hoje em dia, não depende de condição financeira, apenas de uma mínima dose de interesse. O filho pequeno pode aprender sozinho, mas ter o apoio dos pais facilita o processo, possibilitando o tipo de companheirismo atencioso que, na sociedade atual, está sendo substituído por tablets e smartphones nas mãos das crianças, recurso que tenta mascarar a parentalidade irresponsável com o imediatismo tolo de babás eletrônicas, formando adultos emocionalmente imaturos que desprezam o passado, analfabetos funcionais com diplomas na parede, porém, existencialmente frustrados. O usual do adulto brasileiro é incentivar no filho pequeno o amor pelo time de futebol. Nada contra o esporte, mas caso você queira que seu filho seja um homem interessante no futuro, com um repertório mais eclético de assuntos, ao invés de comprar uma cara camiseta oficial do artilheiro para o menino, utilize o mesmo valor adquirindo pra ele uns vinte livros. E, melhor ainda, tire pelo menos quarenta minutos de seu dia, provavelmente metade do tempo que desperdiça no serviço debochando dos colegas da firma que torcem pelo time adversário, ou jogando conversa fora no WhatsApp, sentando-se com seu filho e lendo pra ele, explicando o contexto da história, tornando ainda mais fascinante essa importante experiência literária.

O cinema em casa pode ser um elemento complementar nesse delicioso aprendizado, nessa aventura que pode ajudar a definir o caráter da criança. Com o amor pela literatura, a cinefilia ganha ainda mais relevância. Um assunto normalmente puxa o outro e, mais importante, é enriquecido pelo outro. Eu costumo receber mensagens de mães carinhosas desejando iniciar os filhos nessa arte, então, ao invés de sugerir brevemente alguns títulos, elaborei um passo a passo que pode ser utilizado por todos. O primordial é que seja estimulado na criança o carinho pelo antigo, o fascínio pelo “como isso começou” e pelo “como isso se transformou através do tempo”. Sinto nojo quando vejo um adulto vomitar com repugnância frases como: “Preto e branco não, isso é tão velho…”, ou o clássico: “Mas esse eu já vi…”. Ensine à criança que o ato de rever, reler, revisitar arte, mais que algo natural, é uma forma de tornar ainda melhor aquela experiência. Ensine a criança a não ter preconceito com qualquer gênero. Tem coisa mais digna de vergonha alheia que um adulto afirmar que tem medo de ver filme de terror? E esse adulto acaba passando para os filhos pequenos essa trava emocional. Faça a criança entender que é natural sentir medo em um filme de terror, que faz parte da diversão, salientando que o sangue é de mentira, estimulando a admiração pela competência dos realizadores em operar bem aquele trem fantasma. Dito isso, inicio a proposta de passo a passo cinematográfico.

É uma espécie de tradição familiar apresentar o cinema para a criança, por volta dos seis/sete anos, com as animações de Walt Disney. As meninas normalmente começam com “Branca de Neve e os Sete Anões”, os meninos começam com “Pinóquio”, ou “Peter Pan”. Eu proponho algo diferente, atraente para ambos os sexos: “Guerra nas Estrelas”, o clássico de 1977. A fantasia na medida certa, um universo colorido de múltiplas possibilidades, uma trilha sonora marcante, valores importantes celebrados, com heróis e vilões bem definidos. Não conheci ainda uma criança que não tenha ficado apaixonada por esse despertar sensorial. Ao final da sessão, converse com a criança sobre os temas, estimule a reflexão sobre aquele mundo novo, ensinando que tudo é uma metáfora para os conflitos que todos nós compartilhamos diariamente.

Outra sessão com muito potencial é “Ben-Hur”, o clássico dirigido por William Wyler. Como é um filme longo, facilita a conversa sobre os temas no intervalo. Tem aventura, perigo, humor e romance, tudo que um bom conto de fadas oferece. Foi o filme que me despertou o amor pelo cinema, quando vi pela primeira vez, aos quatro anos. Nunca subestime a criança, entregue sempre algo que incentive ela a buscar compreender, ao invés do entretenimento mastigado. Ela pode entender apenas 1% do todo em uma primeira sessão. Mas se ela for cativada pela emoção do momento (filme + preliminares e pós-sessão), ela vai querer repetir no dia seguinte. Outra sugestão válida: “Mary Poppins”, a melhor introdução das crianças ao mundo dos musicais, com uma trama emocionante que aborda temas como a importância da atenção parental na vida dos filhos pequenos. Como introdução ao gênero do terror, eu sugiro “Gremlins”, uma trama que, em essência, fala diretamente à responsabilidade da criança com os bichinhos de estimação, com a indisciplina do personagem causando todo o problema. 

No gênero da comédia, nada melhor que “Os Caça-Fantasmas”, movimentado o suficiente para manter a atenção da criança, com personagens carismáticos e um nível de ousadia que vai sendo captado melhor em revisões. Esses cinco filmes representam o estágio inicial de apresentação do cinema, a “primeira fase”. Com durações que variam de 90 minutos até épicas três horas, são sessões que incitam a criança a testar sua resistência/paciência, fazendo com que ela se acostume a focar na tela por mais tempo do que um desenho animado comum. Quanto menos imediatista for o seu filho, melhores serão as chances dele se tornar um bom leitor e um bom cinéfilo. Ensine pra ele o valor do silêncio, já que todas as questões que ele tiver, com certeza, serão respondidas no próprio filme. E, caso ele não pare de falar o tempo todo, ele provavelmente não vai escutar as respostas das questões. As perguntas frequentes são uma forma de a criança pedir sua atenção. Mostre que você está vivendo plenamente com ela essa experiência (não atenda celular, por exemplo), que ela então irá se acalmar e ficará mais atenta à tela.

Quando seu filho pedir uma revista em quadrinhos na banca de jornal, não pense muito, compre e entregue sorridente pra ele. O interesse pela leitura nunca deve ser tolhido. Ele está no caminho certo. Dê o exemplo, leia com frequência em casa. A criança pequena imita os gestos dos pais. O hábito deve nascer antes de a paixão ser efetivamente despertada. Da mesma forma que os problemas de socialização de um cachorro encontram solução rápida na reeducação dos donos, os problemas de socialização dos filhos pequenos refletem erros dos pais. Seja violento, que a criança entenderá a violência como forma cabível de expressão. Seja um leitor, que a criança ficará interessada em conhecer o mundo fascinante daquelas páginas, antes mesmo de aprender a ler. Dê atenção ao seu filho, já que você optou conscientemente por inserir ele no mundo.

Continua...

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Chumbo Quente - "Winchester '73", de Anthony Mann

Link para os textos do especial:


Winchester '73 (1950)
A importância do diretor Anthony Mann para o gênero do faroeste é incalculável. Obras como “O Caminho do Diabo”, “Almas em Fúria” e “O Homem do Oeste”, representam peças fundamentais no viés psicológico que fez com que o bang bang entre mocinhos e bandidos com personalidades e motivações muito bem definidas, tido até então pelo público como entretenimento pueril e pela indústria como uma opção barata que quase sempre reutilizava cenários e tramas, conquistasse maior refinamento com roteiros que primavam pelos tons de cinza nas caracterizações. Essa abordagem, além de garantir a sobrevida do tema no cinema norte-americano, foi responsável, no futuro, pelo amadurecimento realista da estética nas produções italianas, com suas pradarias sujas e habitadas por personagens corruptíveis.

Do ciclo de cinco filmes em sua parceria com James Stewart, meus favoritos são “Um Certo Capitão Lockhart”, o último, e “Winchester ‘73”, o primeiro e único em belíssimo preto e branco. Nele, o diretor trabalha um dos seus temas mais reconhecíveis, a figura do protagonista como sendo um reflexo exato do antagonista, vulnerável emocionalmente e com o mesmo ímpeto pela violência, mas contido por sua força de caráter. No caso, o simbolismo é ainda mais óbvio, já que os dois são irmãos separados por um ato cruel de covardia cometido por um deles. O código moral do herói o impede várias vezes de cometer a tão desejada vingança, o que culmina no terceiro ato em um longo tiroteio onde ambos parecem, de fato, não querer acertar o alvo. Quando o corpo do vilão finalmente tomba, você sente a tristeza no rosto de Stewart. A simplicidade na concepção visual dos enquadramentos, algo que Mann aprendeu com o mestre John Ford, potencializa a crueza desse desfecho, um confronto onde os dois morrem um pouco a cada passo dado na direção de seu oponente.

É brilhante a forma como a trama escrita por Robert L. Richards e Borden Chase nos conduz desde o início a acompanhar o desenrolar dos acontecimentos pela perspectiva da trajetória sangrenta do rifle Winchester ’73, peça importante na mitologia do Velho Oeste, indo de mão em mão, desde o seu status como prêmio inestimável em um torneio, passando por moeda de troca em um jogo de azar, até se tornar símbolo de prestígio para um chefe indígena. O homem transformado que, na cena final, porta o estimado rifle, tão desejado por todos, não o faz com orgulho. 

quarta-feira, 13 de abril de 2016

A rasa discussão política


Não é bom falar sobre política, a incursão no tema, quando você atua em qualquer outra área, pode até prejudicar carreiras, arrumar inimizades. Esse é o conceito que aprendemos a seguir, ano após ano, eleição após eleição. Mas silenciar algo tão primordial em uma sociedade não seria uma forma fácil de nos eximirmos de qualquer responsabilidade sobre algo que depende exclusivamente de nossas ações conscientes? Uma característica mais representativa do medo do que da lucidez? E, analisando com maior atenção, não seria uma explicação plausível para compreendermos o problemático estado atual do sistema político? Nós devemos temer ou respeitar? São perguntas que deveriam fazer parte do inconsciente coletivo de um povo, não somente em época de eleição.

“Não fala sobre política, isso pode te complicar”, seria um parente próximo filosófico do terrível: “Se você soubesse como são feitas as linguiças, você não as comeria”? Esse medo de entender o processo democrático é o que afasta o cidadão das páginas políticas nos jornais, criando analfabetos que são funcionais apenas enquanto massa de manobra. O temor repele, fazendo com que o leigo não se interesse sequer em cogitar a hipótese de iniciar uma discussão sobre política com seu vizinho. Quando o faz, costuma sempre transitar naquela simplória conversa de elevador, criticando abstratamente questões que são essenciais em sua rotina diária. “Como pode o ônibus custar uma fortuna, sem nenhuma qualidade?”; “Em Curitiba não é essa vergonha, a rodoviária lá funciona que é uma beleza”; “Menina, essa chuva sempre transforma minha calçada em uma piscina, o prefeito nunca melhora isso”. O papo que dura uma eternidade de alguns andares termina sempre sem resoluções e poderia ter sido facilmente substituído pelo clássico: “Será que vai chover hoje?”. A política não pode ter a mesma importância que a popular vidência meteorológica.

Você pode e deve estimular o vizinho a pensar por si próprio, questionando e contra-argumentando, pois são as únicas ferramentas eficazes contra a cultura do medo. Você não pode ficar escravo de casos com apenas uma versão, pois é essa preguiça intelectual que cria em longo prazo os estereótipos, que fomenta o preconceito. Eu morro de medo quando escuto alguém responder mecanicamente, ao ser inquirido sobre algum tema específico, com frases feitas das manchetes sensacionalistas, repetindo a conclusão vendida pela mídia. O discurso político que deveria primar pela lucidez é então reduzido a uma batalha infantil de canalhas frases de efeito pró e contra o governo. O que deveria ser um debate racional se perde em um circo barulhento, um confronto que só favorece a manipulação de ambos os lados. E, tenha certeza, não seja ingênuo, os mestres de ambos os lados estão apenas preocupados com seus próprios bolsos, em manter ou conquistar o poder. Vivemos uma realidade sem a mínima qualidade de vida, sem moradia, sem transporte, sem saúde, sem educação, sem segurança e com altíssimos impostos. A internet fixa será limitada em breve, dando mais um passo largo em direção à Idade das Trevas. O povo morre esperando no chão das filas dos hospitais, a dona de casa morre afogada na garagem da sua casa com uma enchente, um mosquito se transforma num problema grave em pleno 2016. Caso você, consciente de todos esses absurdos, ainda se preste a defender a nossa classe política, sem meias palavras, tome vergonha na cara.

Você não pode se sentir confortável com apenas uma versão, deve questioná-la, contestá-la em debates, estudá-la a fundo. “Dona Maria, você leu sobre o caso do garoto que foi encontrado próximo da cena do crime?”, ela então responde: “Claro, aquele bandido tem que apodrecer na cadeia”. Dias depois, a imprensa solta um comunicado afirmando que o garoto foi inocentado, daí o discurso da Dona Maria se modifica: “Coitado do rapaz, aqui no Brasil é assim, só preto e pobre vai preso”. Temos que viver em uma sociedade onde a Dona Maria teria procurado outras fontes de informação, antes de formar sua opinião sobre o caso. E, hoje mais do que nunca, todos têm acesso à informação, basta apenas o essencial elemento do interesse.

Não tenha medo de discutir política, pois a sua passividade é que decidirá a nação que você deixará para seus filhos e netos. Você não tem que se adequar à mediocridade, estimulada especialmente pela medonha classe política brasileira, você precisa sobrepujá-la.

Suje as pontas dos dedos com a poeira dos livros


Ao iniciar a terceira releitura de "Esculpir o Tempo", que considero um dos melhores livros sobre cinema, escrito pelo genial diretor Andrei Tarkóvski, acabei recordando a forma como o encontrei, alguns anos atrás, num sebo carioca. O que me impressionou foi a forma como o dono desvalorizava aquele tesouro, acreditando que ninguém aceitaria pagar mais que Cinco Reais pelo tomo em ótimo estado de conservação. Ele chegou a afirmar que o livro estava parado lá por mais tempo do que ele se recordava, que ninguém sequer o folheava. Esse é o tipo de obra que somente melhora a cada reencontro, uma verdadeira aula sobre esse universo fascinante da Sétima Arte. Enquanto folheava as páginas um pouco amareladas, minha mente me conduziu até outro encontro curioso, que faço questão de reproduzir aqui.

Alguns meses atrás eu entrei em um sebo que eu desconhecia, bastante organizado, mas com pouquíssimo espaço, algo que sempre me motiva a praticar meu talento inexplorado de arqueólogo. Como eu era o único no lugar, depois de me observar curioso por uns trinta minutos, enquanto subia em caixotes improvisados e vasculhava pilhas empoeiradas de livros, fui chamado pelo dono do local. O senhor devia ter por volta de sessenta anos, muito educado e de fala mansa. Ele olhou com atenção os títulos que eu já havia selecionado. Quase todos custavam Um Real, um valor altamente convidativo. Era época de Natal, então expliquei que gosto de presentear os amigos com livros e filmes. Ele sorriu debochado e questionou se eles não ficariam chateados ao serem presenteados com livros usados. Achei tão interessante aquele questionamento vindo de alguém que deveria compreender a riqueza inerente àqueles tomos, a carga de fascinante mistério que reside, por exemplo, numa dedicatória romântica a alguém que desconhecemos. Passei então uns bons cinco minutos explicando pra ele a real dimensão daquelas páginas amareladas, o universo que vai além da apreciação da obra, impossível de atribuir um valor monetário. O homem sorriu e disse melancolicamente que estava cogitando há semanas desistir daquele empreendimento, pois passava por problemas de saúde na família e o lugar simplesmente não estava dando lucro. Ele decidiu colocar a maioria dos livros a Um Real, incluindo os grandes escritores e clássicos, mas mesmo assim não estava tendo saída, aquele empreendimento havia se tornado um fardo praticamente insuportável.

Contei para ele sobre minha área de atuação e disse que eu vivenciava diariamente essa realidade de desinteresse cultural. Você posta na rede social o link de algum vídeo sensacionalista bizarro, e, por mais longo que ele seja, será assistido por muitos, mas se postar o link de um texto de três parágrafos sobre qualquer assunto relacionado à cultura, qualquer vertente abordada, terá alguns poucos e fiéis interessados, aqueles que eu costumo chamar de guerreiros da resistência à mediocridade. O senhor perguntou se eu não ficava desanimado com essa situação. Olhei fundo em seus olhos, deixei o instinto formular a frase seguinte: "O senhor, sabendo que ninguém entrará aqui num dia inteiro, quando volta pra casa, dorme tranquilo?". Ele ficou levemente emocionado, percebi que seus olhos brilharam, o que já era a resposta que eu sabia que encontraria. Eu precisava voltar pra casa, tinha um compromisso ainda naquela tarde, mas enquanto pagava os livros, aproveitei para, em tom descontraído, contar sobre a importância que os sebos tiveram em minha pré-adolescência. Ele ficou feliz ao saber que eu tinha lançado um livro, que estávamos lutando a mesma guerra, em frentes diferentes. Gastei ao total a absurda soma de Vinte Reais, o que não paga nem 1/3 do que um jovem brasileiro consome de álcool, em média, numa balada semanal. Questão de prioridade. Prometi ao senhor que iria voltar em breve, para presentear ele com o meu livro, já que o mesmo me confidenciou, quando eu estava pronto para sair do sebo, que ele havia mudado de ideia e não iria mais desistir do empreendimento. O livro foi entregue, o senhor, num gesto de extrema gentileza, retribuiu me dando a opção de escolher cinco livros da loja. E eu fiz questão de pagar os cinco.

Entre nos sebos, valorize esses nobres propagadores de cultura, eles possuem incríveis histórias pra contar. Suje as pontas dos dedos com a poeira dos livros.

terça-feira, 12 de abril de 2016

O Inesquecível Chico Anysio


Hoje é aniversário de um ídolo que tombou em batalha eterna contra o comodismo: Chico Anysio. O maior ator brasileiro ficou afastado da televisão durante vários anos, incapaz de mostrar seu talento e tendo que assistir, como todos nós, a vergonhosa invasão da mediocridade que hoje impera nos horários nobres de nossas televisões. 

A mesma emissora que afastou meu brilhante homenageado do público, colocando-o na geladeira, maior crime que se pode cometer contra uma mente criativa, hoje celebra o circo de horrores que os ingênuos chamam equivocadamente de reality show, um jogo tolo onde a realidade/espontaneidade é algo que não existe, além de programas de humor com cores berrantes e bordões popularescos. Havia outrora inteligência, sensibilidade e ousadia, mas agora impera a cópia dos moldes estrangeiros, com a televisão buscando na internet o material para suprir suas programações. Quem se esquece dos monólogos emocionantes do Profeta? Da coragem crítica do pastor Tim Tones, que nos dias de hoje se comprovou profético? Como público, perdemos contato com esse mestre exatamente em seu ápice criativo, quando ainda estava plenamente saudável e disposto. Tarde demais, resolveram atender os apelos do público e trouxeram ele de volta, infelizmente no crepúsculo de sua vida. Como eu salientei num texto postado no dia de seu falecimento, ainda ganharão muito dinheiro com seu nome e suas obras, dirão que ele foi o mestre do humor e um gênio inegável. Ambiciosos empacotarão seus maravilhosos programas televisivos e irão vender com belos laços de fita, mas sem nunca revelar a razão de aceitarem calados tanto lixo, enquanto um inestimável patrimônio da cultura nacional foi mantido por vários anos exilado em sua própria nação.

Chico, em sua grandeza de caráter, nunca afirmou suas mágoas, mas sabemos que ele as sentia. Um homem intensamente criativo, que vivia pelo trabalho, sem poder exercer sua arte. A remuneração financeira não é suficiente para vencer o desconforto por não poder fazer o que realmente ama. Eu me envergonho, tenho certeza que os profissionais sérios da própria emissora também, ao perceber o extremo zelo dedicado até hoje ao BBB e a tantas outras bizarrices grotescas e sem nenhum valor, quando a mesma casa castigou tão severamente um artista como Chico. Ele será eterno, o seu legado servirá de inspiração para as próximas gerações. Espero apenas que o mesmo erro cometido com ele não se repita. Homens de televisão, ricos donos e operadores desse belo entretenimento, valorizem aqueles que merecem ser valorizados, sejam responsáveis, justos e conscientes. Aos familiares, meu respeito, sempre! Chico, grato por tudo que você representou em vida. O povo brasileiro jamais o esquecerá.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

"Cacaso na Corda Bamba", de José Joaquim Salles e PH Souza


Cacaso na Corda Bamba (2016)
É interessante que, de início, os primeiros depoimentos tentam resgatar a imagem do homenageado, como ele se vestia, o estilo dos óculos que imitava o de John Lennon, o desenho do cabelo, a altura, um menino num corpo de adulto, o professor hippie, o tímido com dificuldade de apresentar seu trabalho em público. Os registros dele em vídeos resgatados, a moldura em traços coloridos de giz, seguindo o espírito dos desenhos dele, realçam a infantilidade em seu conceito libertário, sem cabrestos, refletindo as múltiplas referências que ele utilizava em sua expressão artística. Cacaso escutava verdadeiramente o outro, comprazia-se com a companhia e, entregue no jogo da empatia, criava poemas como que celebrando a beleza da interação. Logo, todos aqueles ao redor, alunos e amigos, encontrando porto seguro naquela fonte de inspiração, de forma espontânea, já que ele se recusava a doutrinar, sentiam o despertar da criatividade.

Fascina o contraste entre o impulso dele pela respeitabilidade adquirida com a disciplina, confrontada diariamente por sua incapacidade de entender a vida sem o elemento constante do caos. Ele não concebia a criação sem o atrito entre esses dois fatores antagônicos. É importante o segmento que aborda a relação dele com o pai, o símbolo de um futuro profissional relacionado aos negócios rurais da família, um homem que não valorizava a arte da escrita, aquele passatempo tolo que havia cativado a plena atenção do jovem. O homem da fazenda considerava aqueles versinhos, como ele se referia aos textos filosóficos do filho, um revoltante atraso de vida. A mãe, por outro lado, enxergava no menino a esperança de que alguma parte dela iria se rebelar àquela realidade tão desencantada e industrial. Nesse ponto, o entrelaçar de trechos de seus poemas se torna não somente revelador da essência de Antônio Carlos de Brito, desnudado em sua angústia, como também enriquece a compreensão da resiliência que o tornou Cacaso. Uma gênese forjada pela gratidão dele pela mãe.

É interessante como o documentário mostra que ele se reinventou no processo de realizar seu próprio livro, e, com seu sábio uso do silêncio, sendo beneficiado inconscientemente por sua timidez, acabou lapidando sua verve crítica. O segredo é que em sua expressão, nos poemas, poesias e canções, não havia interesse em complicar, engendrar uma intelectualidade distante e prolixa, isso ele deixava para os ídolos de barro, Cacaso articulava a sua arte com a carinhosa dedicação de um bom professor apaixonado pela matéria. Ele era simples, o traço mais marcante de genialidade, deixando transparecer a paixão que sentia pela literatura. A verdade do autor sempre alcança o leitor. Ao abalar os alicerces da arquitetura rígida da poesia dos mais antigos, aqueles sonetos impecáveis de rimas e sílabas calculadas dos mestres, com a fluência inconsequente de sua verborragia inebriante, entregando menos quando a tradição pedia mais, ele utilizou o desamparo editorial ao seu favor, promovendo uma anarquia sem censura, um poeta marginal.

Ao rejeitar ser líder, no calor de uma ditadura alimentada por discursos extremistas, a sua liberdade se tornou irresistível. Uma das razões da eficiência do filme pode ser explicada em um detalhe que passa despercebido pela maioria. Em dado momento, numa rara intrusão do diretor em um depoimento, ele complementa com: “A decoração era humana”, resumindo o que estava sendo dito sobre a residência de Cacaso, com poucos móveis, mas sempre lotada de amantes da literatura e da música. A poesia está entranhada na forma, não apenas no conteúdo. É um documentário que aprofunda o conhecimento de quem já respeitava o artista, sem gordura extra e acrobacias de estilo desnecessárias, algo que seria incoerente com o legado dele. Mas o real mérito da obra pode ser sentido naqueles que desconhecem o artista, já que o retrato é trabalhado com tanto esmero que desafio qualquer espectador a não correr para devorar seus textos, assim que os créditos finais, no mesmo tom lúdico infantil, acenarem a despedida. Há emoção, mas a sensação que fica é de alegria, uma celebração de um homem que, em pouco mais de quarenta anos intensos, deixou sua digital perceptível, ainda incomodando, ainda atual. O timing de lançamento do filme não poderia ser mais feliz, precisamos urgentemente resgatar esses valores, o brasileiro precisa desesperadamente de poesia.

Rebobinando o VHS - "Exterminador", de James Glickenhaus

Link para os textos do especial “Rebobinando o VHS”:


Todo mundo comentando sobre o Justiceiro na série do Demolidor na Netflix, mas, sinceramente, esse vigilante marrento é personagem da Disney perto do anti-herói John Eastland, vivido por Robert Ginty nessa fita esquecida do início da década de oitenta. Nunca foi lançada por aqui em DVD e provavelmente nunca será. O terrível politicamente correto impede que seja exibido na televisão aberta, na minha época era figura carimbada no vespertino “Cinema em Casa” do SBT. Aluguei muito na fase de ouro do VHS.


Exterminador (The Exterminator – 1980)
Veteranos de Guerra do Vietnã, John e Michael agora trabalham como estivadores num depósito que fica no bairro pobre do Bronx. Certo dia, Michael flagra uns folgados saqueando cerveja de um dos depósitos onde trabalha e dá uma lição neles. Poucas horas depois, ele é brutalmente atacado pelos mesmos marginais, sendo apunhalado e surrado. Acaba no hospital, paralítico. John sai então às ruas para limpar a cidade dos bandidos.


A única cena do filme que eu lembrava, antes de rever pra esse texto, aquela decapitação que ocorre logo no início, mérito do supervisor de efeitos especiais Stan Winston, continua um gore muito eficiente, dando o tom do filme. O protagonista serviu de inspiração para Kurt Russell compor o Snake Plissken do cultuado “Fuga de Nova York”, de John Carpenter. Produzido pela Avco Embassy, especialista em filmes de baixo orçamento, lançou muita bobagem, mas também distribuiu pérolas como “A Primeira Noite de Um Homem”, “Primavera Para Hitler”, “Scanners”, “Grito de Horror” e o já citado “Fuga de Nova York”. É exatamente o tipo de abordagem, nada polida e estupidamente violenta, que faz falta nos anti-heróis do cinema mainstream atual, idealizados para adolescentes. O roteirista/diretor James Glickenhaus é responsável pelos medianos “Dupla Fatal”, “Um Tira Implacável” e pelo bom “O Ultimato”, não é tão incompetente quanto “O Exterminador” faz parecer. Os excelentes primeiros dez minutos, que parecem enxertos de um projeto melhor, ambientados na guerra do Vietnã, são filmados na mesma locação onde o ator Vic Morrow sofreria o acidente fatal horroroso com um helicóptero, em um dos contos de “Além da Imaginação – O Filme”.

A sequência da tortura do bandido preso em cima de um triturador de carne é a prova cabal da sutileza da obra. Mas nada seria mais sutil que o vigilante adentrando brutalmente numa festinha dos marginais, ao som de Disco Inferno (burn, baby burn), com seu lança-chamas. Infelizmente, como ele havia sido usado na cena anterior, em um interrogatório amistoso, o bochechudo anti-herói decide usar uma metralhadora gigantesca. E, pra não chamar muita atenção, ele carrega a arma até a porta devidamente ensacada, afinal, os vizinhos podem pensar que ele toca violoncelo, né? Nas paredes dos marginais, além das óbvias pichações sem sentido de toda gangue criminosa dos anos oitenta, fotos de Che Guevara e Bruce Lee. Realizado dois anos depois de “O Franco-Atirador”, com aquela trama densa sobre os traumas psicológicos dos veteranos da guerra, Glickenhaus insinua timidamente abordar o tema, mas acaba se deixando levar pela ideologia reacionária dos filhos de “Desejo de Matar”, onde os veteranos punem os jovens drogados das ruas seguindo a crença de que eles não merecem desfrutar da liberdade conquistada pelo esforço deles nos campos de batalha.

Vale ressaltar que foi produzida uma sequência: “Exterminador 2”, dirigida por Mark Buntzman, produtor do original, com Ginty reprisando o personagem, que utiliza com mais frequência o lança-chamas, praticamente se transformando em um herói de quadrinhos. Com a mão podre do picareta estúdio Cannon, o resultado conseguiu ser tão ruim que faz o original parecer uma obra-prima. Eu gostava mais da capa do VHS, com o protagonista desenhado num traço idêntico ao das cartelas dos bonecos “Comandos em Ação”. 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O Cinema da Nova Hollywood


Corrida Sem Fim (Two-Lane Blacktop – 1971)
Os personagens Piloto e Mecânico viajam pelas estradas americanas em um Chevy 55 à procura de competições de corrida.

Monte Hellman é um dos grandes diretores da Nova Hollywood, ainda que seja talvez o menos lembrado, uma baita injustiça. Tive a honra de fazer uma entrevista exclusiva com ele para o blog (link para a entrevista: http://www.devotudoaocinema.com.br/2014/12/entrevista-com-o-diretor-monte-hellman.html). Quando dirigiu “Corrida Sem Fim”, ele já havia lançado aquele que considero sua obra-prima, o faroeste “Disparo Para Matar” (texto sobre o filme: http://www.devotudoaocinema.com.br/2014/11/chumbo-quente-disparo-para-matar-1966.html), mas não posso esquecer também pérolas em sua filmografia como “Galo de Briga” (texto sobre o filme: http://www.devotudoaocinema.com.br/2014/12/galo-de-briga-de-monte-hellman.html) e “A Vingança de Um Pistoleiro”. Que esse resgate da distribuidora Versátil motive os brasileiros nessa redescoberta. Quem conhece o estilo do diretor, incapaz de subestimar o público, não vai se surpreender com a grandiosidade deste road movie sem início e fim, uma estrutura aparentemente simples protagonizada por personagens lacônicos, vividos pelos músicos James Taylor e Dennis Wilson, com motivações enigmáticas, reforçada por uma atuação irrepreensível de Warren Oates. O silêncio dominante exerce efeito hipnótico, com a estrada simbolizando a necessidade de se manter a esperança enquanto todos os bloqueios são atirados em sua direção, o ronco libertário do motor como o grito de resistência do indivíduo, na busca incessante por um caminho, sem entender a funcionalidade do destino. Rever esse filme é, acima de tudo, um exercício terapêutico. A vida, afinal, não passa de um borrão que captamos de olhos marejados pela janela de um veículo que acelera rumo ao nada. E, mesmo assim, seguimos acelerando apenas para manter o motor funcionando.


A Outra Face da Violência (Rolling Thunder – 1977)
De volta do Vietnã como herói, após uma traumática experiência como prisioneiro de guerra, Charles Rane tenta lidar com problemas pessoais. 

Essa é a melhor introdução para aqueles que querem conhecer e entender o movimento da Nova Hollywood por essa caixa temática, o filme mais acessível, dirigido por John Flynn e com roteiro de Paul Schrader, trabalhando o leitmotiv da vingança com uma pegada brutal. Destaco aqui a atuação minimalista de Tommy Lee Jones, como o sargento amigo do major, um homem que, após a experiência da guerra, desaprendeu a viver em sociedade. Seu rosto inexpressivo, sua postura deslocada em qualquer ambiente, uma composição que já mostrava o grande ator que o mundo viria a reconhecer no futuro. No desfecho, quando ele e o major, devidamente uniformizados, partem para a selvageria em um tiroteio praticamente suicida que nos remete ao clímax de “Butch Cassidy”, o rosto do sargento se ilumina em um sorriso perturbador, mostrando que ele se sentia confortável apenas na batalha. O gancho que substitui a mão do major, elemento que inexplicavelmente não foi trabalhado no marketing da época, insere na trama um traço pulp empolgante. Há um senso de felicidade no major, quando ele, numa reviravolta do destino, encontra na vingança pelo assassinato da família uma motivação para se libertar das amarras que ainda o prendiam à qualquer ideia de civilização. Mais do que uma busca por justiça, ele vê na caçada um revide pelo orgulho de combatente ferido. A bela jovem que o mima de todas as formas não existe em seu horizonte, ele a suporta com reservas, ele utiliza a moça como ajudante em seu trabalho. O que importa para ele é o cumprimento da missão. 


Procura Insaciável (Taking Off – 1971)
Quando descobrem que sua filha adolescente desapareceu, provavelmente com um grupo de hippies, seus pais partem em sua busca. 

É interessante constatar que no mesmo ano foi lançado “There’s Always Vanilla”, de George Romero, filme quase sempre esquecido, mas que também defendia um discurso crítico com relação ao movimento hippie. Em “Procura Insaciável”, podemos ver a frustração do diretor tcheco Milos Forman após alguns anos pesquisando in loco esse estilo de vida despertado, enquanto revide lúdico, pela angústia e desesperança dos jovens que acompanhavam pela televisão a guerra do Vietnã. O que inicialmente seria trabalhado como um retrato fiel pelo ponto de vista dos hippies acabou se tornando um produto mais maduro, analisando o sofrimento dos pais que viam seus filhos adolescentes fugirem de casa, buscando aquela utopia frágil alimentada por canções que celebravam sonhos e por viagens lisérgicas. O ponto fascinante no roteiro, cristalizado no excelente desfecho, é evidenciar a impossibilidade de comunicação entre essas duas gerações, a negação de vencedores no confronto entre a repressão parental e a ignorância juvenil, uma guerra tão brutal quanto aquela transmitida pela televisão, onde o que se sacrifica é a confiança. A sequência mais comentada, o experimento da sociedade dos pais de filhos fugitivos com a maconha, traz entranhada no inegável humor da execução uma profunda crítica social. A droga que desnuda os impulsos emocionais dos adultos, tão frágeis e desamparados quanto os jovens, é tratada na cena como um enigma sedutor a ser estudado, enquanto os filhos continuam na sombra. A preocupação com o dedo apontado para a lua, ao invés da análise da própria lua. Não há interesse dos pais em compreender os anseios dos filhos, apenas o simplismo de reduzir a padrões banais, com o mínimo de esforço, aqueles jovens que vivem a fase mais complicada da vida. 


Voar é Com os Pássaros (Brewster McCloud – 1970)
O maior desejo do jovem Brewster é poder voar. Para isso, constrói enormes asas, mas, quando se prepara para voar, é surpreendido pela polícia. 

Robert Altman não gostou do roteiro de Doran William Canon, do fraquíssimo “Skidoo Se Faz a Dois”, o pior filme da fase final do grande diretor Otto Preminger. E, numa mostra de seu brilhantismo inegável já em início de carreira, ele decidiu desprezar o texto, criando as falas e muitas das situações, algo que ele também havia feito em “MASH”, ensaiando as modificações com o elenco no dia das filmagens, nesse que era sempre citado por ele como o seu projeto favorito. O resultado, ainda que, por contrato, carregue no crédito o nome de Doran como o único roteirista, não representa sequer 10% do material original. A trama é puro Altman, corajoso em seu senso de humor e com um tom diferente de tudo o que se fazia na época. E você percebe várias referências divertidas ao sucesso do ano anterior, de um óbvio pôster do filme em cena até uma sutil reação de Sally Kellerman, ao se banhar numa fonte, muito similar à reação da atriz em uma sequência famosa de banho em “MASH”, quando ela descobre que está sendo observada por um grupo de homens. O tema da desconstrução do molde cinematográfico, algo recorrente em sua filmografia, já se mostra presente no início, com uma correção dos créditos sendo feita na busca pela subjetiva perfeição da técnica, um esmero exagerado que intenciona reproduzir cópias em escala industrial. A sua arte não segue padrões, os personagens do diretor não respeitam qualquer código predeterminado, a estranheza é uma constante, o vômito da personagem de Shelley Duvall pode ser sucedido por um beijo apaixonado dela em seu namorado, o que garante o frescor atemporal de seus filmes. Esse risco necessário no trabalho de um artista, representado na parábola com traços de Ícaro protagonizada por Bud Cort, que faria no ano seguinte o adorável “Ensina-me a Viver”, é o leitmotiv nessa subestimada brincadeira séria do diretor.


O Comboio do Medo (Sorcerer – 1977)
Um grupo de proscritos é forçado a trabalhar na América do Sul, tendo que conduzir um caminhão de explosivos numa perigosa missão. 

Não gosto de comparar o filme de William Friedkin com a primeira adaptação do livro de Georges Arnaud, o impecável “O Salário do Medo”, de Henri-Georges Clouzot, o mestre do suspense francês, o único cineasta capaz de fazer Hitchcock tremer. Não seria justo, já que se trata de uma sincera homenagem, prejudicada terrivelmente em seu lançamento pelo fenômeno “Star Wars”. É muito importante esse resgate que a Versátil promove, inserindo ele em versão restaurada na caixa da Nova Hollywood, sendo favorecido pela contextualização histórica, rejeitando a pecha reducionista de fracasso de bilheteria que sempre acompanhou a obra. Um olhar mais atento é o suficiente para que se aplauda o preciosismo técnico desse thriller existencialista, não apenas na sequência da travessia do caminhão pela ponte, mas também na construção de um clima sufocante que beira o horror, com os veículos irrompendo na mata noturna como monstros sobrenaturais conduzindo os homens numa fuga do inferno, uma alegoria sombria do elemento da imprevisibilidade na vida, o feiticeiro (sorcerer) que rege os destinos. É possível perceber a influência de Luis Buñuel, especialmente na utilização generosa do realismo mágico no terceiro ato, do livro "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez, e até mesmo do colega de movimento Monte Hellman, na forma como utiliza o silêncio para potencializar o caos interno dos personagens. O primeiro ato não funciona tão bem no objetivo de criar tensão, mas quando a trama se foca na missão do grupo, liderado por Roy Scheider, estrangeiros numa terra hostil e impiedosa, uma metáfora para a difícil relação entre os diferentes países, fica impossível tirar os olhos da tela. 


Essa Pequena é Uma Parada (What’s Up, Doc? – 1972)
Dois pesquisadores chegam a São Francisco para um congresso e acabam se envolvendo em muitas trapalhadas.

Peter Bogdanovich é um diretor que sempre imprimiu em seus filmes sua digital de crítico de cinema, função que nasceu de sua paixão pela arte e pelos escritos de Truffaut. Após o sucesso do ótimo “A Última Sessão de Cinema”, ele decidiu homenagear as screwball comedies clássicas das décadas de trinta e quarenta, especialmente as incursões de Howard Hawks no gênero, com Ryan O’Neal buscando inspiração para seu personagem nos trejeitos de um dos grandes da comédia muda: Harold Lloyd. O título original, referência ao bordão do Pernalonga, evidencia a terceira inspiração para a trama. Ao reinventar o formato com conhecimento pleno de suas engrenagens, atualizando apenas o contexto, ousando exatamente por se afastar da autocelebração exagerada de quem prestou atenção apenas na estética, equívoco cometido no moderno “Abaixo o Amor”, de 2003, o roteiro de Buck Henry, Robert Benton e David Newman encantou o público da época. Gosto bastante da atuação de Barbra Streisand, nesse que considero o seu melhor momento, ainda que ela sempre afirme que não aprecia o filme, possivelmente porque o diretor competente foi o primeiro que realmente dirigiu ela em cena e soube domar seu estrelismo. Em dado momento, O’Neal brinca com sua participação em “Love Story”, dizendo que a frase famosa do filme (“Amar é nunca ter que pedir perdão”) era a maior bobagem que já havia escutado. Isso pode ter origem em um evento ocorrido na fase da pré-produção, quando Bogdanovich estava buscando um ator para o projeto e foi ver uma sessão do lacrimoso romance, uma experiência terrível que o fez rir do início ao fim, mas serviu para ele enxergar em O’Neal, alguém que nunca havia trabalhado em uma comédia, o tipo exato que ele procurava. 


* A caixa "O Cinema da Nova Hollywood", com os seis filmes e ótimos documentários, está sendo lançada em DVD pela distribuidora Versátil, com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito.

sábado, 2 de abril de 2016

TOP - Os Filmes de James Bond


10 - 007 – O Amanhã Nunca Morre (Tomorrow Never Dies, 1997)
Muitos elementos deste filme remetem ao sucesso: “O Espião que me Amava”, talvez o mais forte destes refira-se a Bond Girl chinesa Wai Lin (Michelle Yeoh), sucessora de uma rara exceção na franquia, até aquele momento, a agente soviética interpretada por Barbara Bach no filme de 1977. A chinesa prova não precisar ser salva pelo espião, demonstrando sua perícia em cenas muito bem orquestradas. A veterana atriz Judi Dench retorna como a superiora de 007 e seus diálogos com o agente são um ponto alto do filme. Um exemplo é quando responde secamente ao almirante Roebuck (Geoffrey Palmer), após o mesmo duvidar de sua capacidade e firmeza no cargo: “pelo menos não corro o risco de pensar com a cabeça errada”. A cena de ação mais lembrada é a espetacular fuga do herói em seu BMW 750, dentro de uma claustrofóbica garagem. A invenção de Q (Desmond Llewelyn) é conduzida manualmente por um pequeno telefone celular, o que fará com que o agente possa manobrar o automóvel deitado no banco de trás. Um verdadeiro show de destruição, muito bem realizado pela equipe técnica. O compositor John Barry em uma conversa com Barbara Broccoli indicou um jovem talento que, em sua opinião, poderia elaborar uma trilha sonora à altura do agente secreto mais famoso do cinema. O escolhido foi David Arnold que misturou a techno music com a clássica sinfonia de Barry, criando uma trilha moderna, com personalidade e estilo. Pierce Brosnan supera seu trabalho no filme anterior, demonstrando muito mais confiança e serenidade. A recepção dos críticos foi boa, muitos elogios focaram-se na trama, abordando os malefícios da imprensa, quando utilizada em mãos erradas. Um problema ainda atual e bastante verdadeiro. O décimo oitavo filme da série é largamente apoiado na ação e pirotecnia, o que afasta um pouco o tom de espionagem inerente ao personagem criado por Fleming.


9 - 007 – Somente Para Seus Olhos (For Your Eyes Only, 1981)
O filme anterior havia ajudado a transformar o agente secreto em um super-herói espacial. Mesmo tendo sido um sucesso de público, o produtor Albert Broccoli sentiu que precisava retornar às raízes, encontrar-se novamente com o personagem idealizado por Ian Fleming. O primeiro passo dado foi a importante escolha de quem iria comandar o novo filme, quem seria o responsável por dar o novo tom a ser utilizado nos próximos projetos. Acertadamente decidiram-se por John Glen, um experiente editor de filmes de ação, que havia dirigido magistralmente a sequência da perseguição de trenós do filme de 1969: “A Serviço Secreto de sua Majestade”. O diretor foi o responsável por incutir na série um tom mais ameaçador, com cenas de ação de tirar o fôlego. O roteiro criado por Richard Maibaum seria uma colcha de retalhos, incluindo trechos da antologia de contos original: “For Your Eyes Only”, “Risico” e de “Live and Let Die”. Roger Moore já com cinquenta e três anos de idade, sentia-se um pouco constrangido por conquistar somente com o olhar e poucas insinuações, mulheres trinta anos mais novas. A solução encontrada pelos roteiristas foi trazer soluções cômicas para algumas cenas. Méritos para o diretor John Glen, que conseguiu trazer um pouco mais de seriedade à versão do agente interpretado por Moore, fazendo-o tomar parte em cenas brutais, como a do carro do vilão Locque no desfiladeiro, onde um chute certeiro de 007 foi o suficiente para que o automóvel caísse penhasco abaixo. Moore não queria gravar a cena, pois ia contra sua abordagem, porém Glen o confrontou e o persuadiu, garantindo com sua coragem e competência o comando das próximas quatro produções da franquia.


8 - 007 Contra o Satânico Dr. No (Dr. No, 1962)
A dupla de produtores Albert R. Broccoli e Harry Saltzman captaram a essência das obras de Ian Fleming e inseriram toques geniais, como o “cano da arma” no início de cada filme, a sequência inicial tensa que leva a um final em suspense, seguido por um magistral título colorido e povoado de belas silhuetas femininas, conceito criado por Maurice Binder. Outros toques importantes são a bebida favorita do agente, sua Vodka-Martini “shaked but not stirred” e acima de tudo sua famosa apresentação: “Bond... James Bond”. Elementos que, de forma espontânea, entraram no imaginário coletivo do público, tornando-se referências pop até hoje repetidas por pessoas de todas as idades. Para o protagonista, muito a contragosto dos executivos da United Artists, contrataram um jovem escocês motorista de caminhão chamado Thomas Sean Connery. Ele exalava certa arrogância que combinava perfeitamente com o personagem. Acredito sinceramente que sem a contribuição deste ator, não haveria uma franquia tão lucrativa até hoje. Seu sarcasmo em cena, o charme que ele imprimiu no personagem foi tão marcante que mesmo após várias encarnações, muitos ainda o consideram o melhor intérprete do agente secreto. Para viver Honey Ryder, jovem ingênua e valente que cruza o caminho do agente, foi chamada uma suíça filha de diplomata e que procurava sua grande chance, após participar de filmes pequenos e inexpressivos. Ursula Andress entrou para a história ao sair do mar em um ousado, para a época, biquíni branco, munida de um cinturão de couro onde carregava uma faca de caça. Estava iniciada a era das Bond Girls, que com o passar dos anos tornou-se um posto cada vez mais desejado por jovens atrizes. Para o papel do vilão Dr. No, convocaram Joseph Wiseman, que foi bastante elogiado pela excentricidade e ar exótico que incutiu ao personagem, uma moldura para todos os futuros vilões da franquia.


7 - 007 - Operação Skyfall (Skyfall, 2012) 
A direção de Sam Mendes é elegante e inteligentemente autoral, mas sem nunca esquecer que precisa entregar o que os jovens fãs buscam, mas também abraçar aqueles que assistiram Sean Connery no cinema. Ele conduz os acontecimentos com o herói, potencializando o medo em suas variadas formas: medo de ser substituído, medo de ser superado, medo da solidão. Como consequência, humaniza-o sem descaracterizá-lo. O vilão Raoul Silva, vivido brilhantemente por Javier Bardem, busca vingança contra M, ela o abandonou quando era um agente do MI6, mas, na realidade, sofre mais pelo ciúme do carinho que ela nutre por Bond. Ao fazê-lo claramente homossexual, ainda que, felizmente, fugindo da estereotipação, o roteiro entrega diálogos inesperados e engraçados, como quando ele tenta seduzir o herói, que está amarrado em uma cadeira. Ralph Fiennes (Gareth Mallory, o M que nos acostumamos a ver sendo interpretado por Bernard Lee, só que numa versão mais jovem), Naomie Harris (uma Eve Moneypenny muito mais interessante, tendo estabelecido uma real química com o herói, algo que torna o usual jogo de sedução entre os dois, muito mais verossímil) e Ben Whishaw (um Q adolescente, possibilitando um relacionamento de irmão mais novo com 007) completam a gênese da criação de Fleming, preenchendo lacunas que até os fãs mais esperançosos não acreditavam que seriam preenchidas. Daniel Craig está totalmente confortável no personagem, que desta vez enfrenta a si mesmo, física e mentalmente. Levado a buscar em seu passado, que sempre buscou esquecer, a força que necessita para continuar realizando seu trabalho, mesmo que o governo de seu país o considere uma relíquia dispensável em um mundo onde um jovem de pijamas em seu laptop pode ser mais eficiente que ele. Skyfall é a propriedade de sua família na Escócia, local rústico cheio de passagens secretas. Em uma delas reside a essência inocente daquela criança de outrora, elemento captado com sensibilidade nos créditos de abertura, mostrando o olhar do personagem escondido atrás dos escombros, como que se escondendo. Simbolicamente representa o único elo entre o garoto medroso que ele um dia foi e o homem audacioso que precisa ser. 


6 - 007 – O Espião Que Me Amava (The Spy Who Loved Me, 1977)
Pela primeira vez na franquia, James Bond iria ser acompanhado de uma Bond Girl tão inteligente quanto ele, um reflexo do crescente movimento feminista pelo mundo. A agente secreta da KGB Anya Amasova, também conhecida como Triplo-X, foi interpretada pela bela atriz nova-iorquina Barbara Bach, que foi escolhida por Broccoli ao fazer um teste, totalmente desnuda, para um filme italiano. Ela sabe que o espião foi o responsável pela morte de seu namorado, um sósia de George Lazenby, demonstrando a revanche moral dos produtores, jurando assim vingar-se de 007 ao final da missão. O duelo psicológico pleno em sedução entre os dois agentes mostra-se uma bem-vinda novidade no caminho da série.  O filme inovou também com uma ótima gadget, a Wet Bike, um projeto do que viria a ser o atual Jet Ski. Como se já não fosse suficiente, o filme contém uma cena histórica e eterna no cânone: o mergulho submarino do carro Lótus Esprit. Após uma perseguição dramática envolvendo motocicletas e helicópteros, o espião leva seu automóvel para o fundo do mar, surpreendendo seus inimigos ao se transformar em um submarino. O forte impacto que esta cena teve na época, elevou ainda mais o padrão de excelência para os próximos projetos, que acabariam tornando-se durante um breve período um show onde se priorizava o espetáculo, acrobacias cada vez mais ousadas, mesmo que visualmente pouco eficientes, deixando o roteiro um pouco de lado. Celebrando o décimo filme da lucrativa franquia, determinou-se que havia chegado a hora de uma canção que falasse, não dos vilões ou da trama, mas sim do próprio protagonista. Marvin Hamlish, compositor deste projeto, criou então a canção “Nobody Does it Better” (Ninguém Faz Melhor), interpretada com emoção por Carly Simon.


5 - 007 – Permissão Para Matar (Licence to Kill, 1989)
Utilizando uma cruel sequência inserida no segundo livro de Ian Fleming: “Live and Let Die”, os produtores decidiram criar para este filme, o último dirigido por John Glen, uma razão consistente para que o agente ousasse se rebelar contra seus superiores e planejasse cuidadosamente um ato de vingança. O traficante de drogas latino Franz Sanchez, interpretado magistralmente por Robert Davi, sequestra Felix Leiter (David Hedison), o velho amigo de James Bond, logo após seu casamento. Sanchez assassina friamente a esposa e, com extremo sadismo, assiste enquanto o homem tem suas pernas destroçadas lentamente por tubarões. Obviamente o agente irá partir em uma missão de vingança, onde utilizará sua inteligência para infiltrar-se na gangue do vilão e, ganhando sua confiança, destruí-lo moralmente e fisicamente. Impossível imaginar Roger Moore ou até mesmo Sean Connery, capitaneando obra tão crua, muito se disse na imprensa inglesa da época, sobre a ausência do estilo tradicional da franquia, parecendo mais com os filmes de ação que eram realizados pelos americanos. A importância de Timothy Dalton na franquia é, por algumas pessoas e sem razão, subestimada. Acredito que quanto mais estabelecida for uma franquia, mais interessantes são os desvios realizados, as obras em que os roteiros ousam novos caminhos, muitas vezes subvertendo suas próprias verdades, desafiando a fidelidade ao cânone.


4 - 007 - Cassino Royale (Casino Royale, 2006)
Daniel Craig aparenta ser um lutador de MMA em comparação com Sean Connery, porém a mudança é entendida se percebermos a real intenção dos produtores e de Martin Campbell: mostrar a transformação de uma pedra bruta em diamante, cortando as arestas sem piedade. O jovem agente sequer dá importância a qual bebida tomar, contanto que mate sua sede. Por pura imaturidade, cometerá o erro primário de se apaixonar. Este evento e suas consequências irão moldar indelevelmente o caráter do espião, levando-o a dar o primeiro passo rumo ao personagem estabelecido nos filmes da década de sessenta. A ausência de elementos fundamentais da franquia, como o personagem Q e a secretária Moneypenny, irritaram muito os fãs mais devotos. Faz-se preciso entender que esta fase representa mais um degrau na evolução do personagem. Como ficaria provado anos depois, não seria um definitivo adeus aos elementos clássicos, mas sim um promissor “até breve”. Os produtores decidiram dar um passo atrás, como que um respiro final antes do salto, algo que ocorre com frequência nesta produção, graças à excelente utilização do Parkour, que inclusive funciona também no nível narrativo, pois diz muito sobre a intempestividade desse 007 1.0, que atravessa paredes ao invés de abrir portas. Com essa decisão, não só conseguiram trazer novos fãs à franquia, como também abriram um leque de oportunidades nunca antes abordadas.


3 - 007 Contra Goldfinger (Goldfinger, 1964)
Tudo começou quando os empreendedores produtores Albert Broccoli e Harry Saltzman contrataram o diretor Guy Hamilton para substituir Terence Young, que estava indisponível na época. O novo diretor idealizou uma sequência inicial fora do contexto do filme, algo que não era usual na indústria, com o estilo das matinês de aventura nos cinemas, abraçando a literatura pulp. A cena em que o espião sai da água com seu equipamento de mergulho e revela por baixo dele um sofisticado e impecável smoking de paletó branco com um cravo na lapela, tornou-se a personificação exata do personagem. A ideia de Hamilton tornou-se uma tendência muito explorada, de forma cada vez mais inventiva, nos sucessivos filmes da franquia. Outro símbolo de 007 que faz sua estreia neste projeto é o seu automóvel Aston Martin DB5, munido com um assento ejetável, um localizador, muitos anos antes do GPS ser criado, escondido na mala, cortinas de óleo e fumaça, metralhadoras sob os faróis e placas rotativas. Terence Young havia sido o responsável pela elegância e charme do protagonista, que recebia sugestões nos sets de filmagem, mas os aspectos mais fantasiosos e criativos foram idealizados por Guy Hamilton. 


2 - 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade (On Her Majesty´s Secret Service, 1969)
Independente dos problemas que causou e de sua equivocada atitude, eu ainda considero a atuação de George Lazenby coerente com o que o roteiro pedia. Ele interpretou um herói diferente do vivido por Connery, um homem sensível, que chora o trágico assassinato da mulher amada na cena mais impactante do filme. Suas cenas de batalha corporal ainda estão entre as melhores da série, podendo ser comparadas às demonstradas por Daniel Craig nos filmes mais recentes. O ponto forte do filme foi a magistralmente editada perseguição na neve, com a equipe de esquiadores profissionais liderados por Willy Bogner, realizando feitos esteticamente belos e que se tornaram um símbolo da franquia. É um filme formidável, desde sua sequência inicial musicada por John Barry, que espertamente remete aos filmes anteriores, passando pela bela montagem romântica ao som de “We Have All the Time in The World”, última canção gravada por Louis Armstrong, até seu desfecho surpreendentemente triste. Peter Hunt em sua única participação na cadeira de diretor realiza uma obra pungente e apaixonada, que merece obter um melhor lugar no coração dos fãs da série, até por sua fidelidade ao livro original.


1 - Moscou Contra 007 (From Russia With Love, 1963)
Neste segundo filme, a gênese do personagem torna-se completa com a inclusão do personagem Q, vivido em dezesseis filmes por Desmond Llewelyn, um armeiro da organização MI6 que oferece ao nosso herói as últimas novidades do ramo tecnológico, as famosas gadgets que sempre o salvam no último segundo. Ao longo da série estes equipamentos acabaram influenciando o mundo real, como a máquina de café expresso em “Viva e Deixe Morrer”, os telefones nos carros, os pagers e o jet ski, criado para “O Espião que me Amava”, tornando-se um grande equívoco analisá-los sem contextualizá-los em seu tempo. Outros elementos iniciados nesta obra, que iriam ser abraçados pelo inconsciente coletivo dos cinéfilos: as cenas pré-créditos iniciais, sempre estabelecendo um momento de tensão, muitas vezes um cliffhanger e a canção-tema, no anterior havia sido utilizada uma canção genérica: “Kingston Calypso”, sem relação com a trama, que desta feita foi interpretada de forma refinada por Matt Munro. Dentre as empolgantes sequências de ação, destaco a caótica batalha no campo cigano ao som da excelente trilha “007”, composta por John Barry, a perseguição ao agente perpetrada por um helicóptero, baseada livremente na cena clássica de “Intriga Internacional”, de Hitchcock, e o sensacional embate final entre o herói e o calculista Grant, que consegue emular com perfeição o senso de perigo e suspense construído no livro.