quarta-feira, 30 de setembro de 2015

"O Espelho", de Andrei Tarkóvski


O Espelho (Zerkalo – 1975)
Poucos filmes são tão herméticos, um fascinante amontoado das memórias do diretor, a sua expressão mais pura de poesia filmada. Tarkóvski utiliza os mesmos atores ao retratar fases distintas da vida do moribundo narrador, com generosa inserção de interlúdios emoldurados por poemas de seu pai, recitados pelo próprio. Os fragmentos apresentados representam sempre a maneira como essas recordações são despertadas na mente do homem, o que possibilita cenas intensamente surrealistas, como o vento que trespassa a relva em harmonia com os movimentos de um enigmático visitante, a utilização da água como símbolo indomável do tempo, ou, de forma mais sutil, um incêndio que sinaliza o elemento do divino na natureza, compondo uma jornada proustiana, sem concessões, no inconsciente fragilizado de alguém que busca respostas em seu passado distante.

No início, vemos o filho do protagonista, o seu legado, vendo na televisão uma hipnóloga tentando eliminar a gagueira de um jovem, um momento que parece a execução de uma mágica. Na parede, propositalmente, a sombra do microfone que capta o som da cena, a afirmação da teatralidade essencial naquele processo de sugestão mental, ou, indo mais além, uma afirmação da teatralidade na vida. A superação do bloqueio do garoto, uma alegoria para a coragem conquistada pelo diretor, com grande sensibilidade, de revisitar e compartilhar com seu público as suas experiências pessoais, inclusive, confessando erros cometidos. A desconstrução meticulosa de sua existência, perscrutando arrependimentos e angústias, como forma de tentar compreendê-la melhor. O mais incrível é constatar como podemos nos identificar, em variados níveis, com o resultado dessa autoanálise do realizador. Acho arrebatadora a transição da imagem da mãe dele no filme, vivida por Margarita Terekhova, para o rosto envelhecido da mãe real do diretor no espelho. Em breves segundos silenciosos, ele transmite uma sensação inexplicável de nostalgia que toca, sem dúvida, até o espectador mais desinteressado.

O esforço pela compreensão da narrativa em um primeiro contato, equívoco compreensível, pode minimizar o impacto de uma obra que merece ser degustada em algumas revisões. Somente na terceira sessão, especificamente para a elaboração desse texto, é que pude enxergar a emoção contida no desfecho. Alguns detalhes ganham mais significado, como o sentimento da solidão representado pela rápida evaporação do líquido deixado na mesa pela xícara de chá quente, na cena protagonizada pelo filho dele, quase sempre mostrado sofrendo calado o abandono, como na perturbadora cena em que o menino se encara no espelho, enquanto aguarda o retorno da mãe. Ele descobre que sua essência psicológica, a formação de seu indivíduo, foi forjada, para o bem e para o mal, no conflito de experiências de seu distante pai e de sua passiva mãe, encontrando, inicialmente, tremenda resistência no ato de revisitar a infância, simbolizada pela casa cuja porta principal está sempre trancada. Ele só consegue se enxergar através dessa arqueologia parental. Alexei, como nós, tenta identificar sua face original, sem as cicatrizes deixadas pelo tempo, no espelho de suas memórias.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora “Versátil”, na caixa “A Arte de Andrei Tarkóvski”, que inclui também: “A Infância de Ivan”, “Nostalgia” e “Tempo de Viagem”, além de documentários analisando as obras.

domingo, 27 de setembro de 2015

Faces do Medo - "Os Meninos", de Narciso Ibáñez Serrador

Link para os textos do especial:


Os Meninos (¿Quién puede matar a un niño? – 1976)
O início, em tom documental, evidencia o sofrimento das crianças, de diferentes épocas e lugares, através das guerras, com a perda brutal de uma inocência que é extirpada pelos atos doentios dos adultos. As perturbadoras cenas reais já preparam o espírito do espectador para a contundência da crítica que será trabalhada pelo diretor Narciso Ibáñez Serrador, em uma alegoria que insere um casal de estrangeiros em uma ilha dominada por crianças. Elas, como os pássaros no clássico de Hitchcock, representam o elemento do revide, uma justa e incontrolável retribuição metafórica, despertada pelo impulso destrutivo e antinatural do homem. Como sugestão de leitura em um tema similar, recomendo o excelente conto: “O Pequeno Assassino”, de Ray Bradbury.

É impressionante a coragem do roteiro, estabelecendo desde o princípio uma onipresente sensação de maldade, ainda que a câmera evite captar efetivamente a violência, como na sequência de ataque ao idoso. A sugestão é intensamente mais apavorante. A fotografia, de José Luis Alcaine, que viria a ser parceiro frequente de Almodóvar em seus projetos, utiliza com inteligência a natureza isolada do local para aprisionar cada vez mais os personagens. Ao revestir os atos sádicos das crianças com um verniz de diversão, a cena da piñata humana, a trama aperta o dedo na ferida, fazendo lembrar os soldados que extravasam a tensão da batalha humilhando os adversários mortos. Sem revelar muito sobre a trama, em respeito aos que ainda irão assistir, vale ressaltar também que Evelyn (Eve, Eva), vivida por Prunella Ransome, já tem dois filhos e está grávida, como ficamos sabendo no decorrer da história, de um bebê que sobreviveu a uma tentativa de aborto. Esse detalhe enriquece a alegoria proposta pelo filme, inserindo uma importante crítica à parentalidade irresponsável. 

Um excelente filme que merece maior reconhecimento, provocador como poucos, um verdadeiro soco no estômago. 


* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora “Versátil”, em versão integral e restaurada, como parte da caixa: “Obras-Primas do Terror 3”, que inclui também:  "Banho de Sangue" (Mario Bava), "A Inocente Face do Terror" (Mulligan), "Magia Negra” (Attenborough), "Carnaval de Almas" (Herk Harvey) e "Farsa Trágica" (Tourneur), além de documentários sobre as produções. 

Sétima Arte em Cenas - "A Infância de Ivan", de Andrei Tarkóvski

Link para os textos do especial:


A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo – 1962)
Uma criança psicologicamente destruída pela guerra, tentando, com incrível resiliência, esforço transmitido elegantemente na opção do diretor pelas poéticas sequências oníricas, manter viva uma réstia de inocência, confrontando a crueldade dos adultos. Toda sua família foi assassinada pelos nazistas. Como sugestão, veja a obra numa dobradinha com “Os Meninos”, de Narciso Ibáñez Serrador, que apresenta uma crítica menos sutil, porém, tão eficiente quanto, sobre o mesmo tema.

Nesse primeiro trabalho, o menos hermético em sua filmografia, Andrei Tarkóvski exercita sua sensibilidade ao introduzir no roteiro o elemento do sonho, algo inexistente na obra original de Vladimir Bogomolov, abusando do recurso de imagens em negativo e truques com ângulo de câmera, na tentativa de emular a atmosfera de irrealidade, amalgamando esses artifícios a um resgate emotivo de suas próprias memórias, compondo cenas inesquecíveis como a dos cavalos comendo maçãs, ou, especialmente, logo no início do filme, o voo do menino, aquela que considero uma das mais perfeitas representações desse elemento no cinema. A cada sonho revelado, indo do idílico inofensivo ao sombrio premonitório de uma tragédia iminente, nós conseguimos enxergar claramente a gradativa morte da esperança.

A cena que insere a obra no especial ocorre no poderoso desfecho, o último sonho, a forma altamente simbólica encontrada pelo diretor de transferir a carga de culpa para a consciência do espectador. Sem revelar muito, em respeito àqueles que ainda não viram o filme, a cena nos conduz por vislumbres da realidade de uma infância que o menino não teve oportunidade de experimentar. A mãe sorridente que se afasta zelosa e a interação divertida com outras crianças, contrastando com a presença perturbadora de uma vigilante árvore seca. Ele vê uma menina, o flerte ingênuo, a corrida para tentar alcançar aquela figura. O relacionamento que ele nunca irá vivenciar. Ivan então a ultrapassa, correndo sobre as águas. Ele parece ter se tornado sobre-humano, até que a figura da árvore, a maléfica interferência adulta, interrompe bruscamente seu caminho.

* O filme está sendo lançado em DVD, na caixa “A Arte de Andrei Tarkóvski”, pela distribuidora “Versátil”, que inclui também: “O Espelho”, “Nostalgia” e “Tempo de Viagem”, além de documentários analisando as obras.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

"Na Natureza Selvagem", de Sean Penn


Na Natureza Selvagem (Into The Wild – 2007)
Como é simbólica a breve cena que mostra o posicionamento correto dos garfos na mesa. Qual a razão de haver um posicionamento correto para garfos em uma mesa? A angústia dos pais, que prezam acima de tudo o status da família, ao perceberem que o filho não vê necessidade de trocar seu carro antigo por um novo. Os rituais, a teatralidade que esconde a hipocrisia, a formação universitária em uma função profissional que não interessa ao estudante, válida apenas por ser uma garantia de conforto financeiro no futuro. Qual noção de conforto? O executivo que veste a gravata apertada no andar mais alto de sua empresa daria tudo para estar, por alguns momentos, admirando o pôr do sol na beira do mar.

Em vários momentos chegamos a falar abertamente com o personagem: Já está bom, você conseguiu se afastar da presença opressiva e psicologicamente danosa dos pais, encontrou um porto seguro na figura de estranhos, o casal de hippies, o idoso gentil e carente, até mesmo uma jovem apaixonada. Agimos exatamente como esses personagens, procurando entender o que motiva o rapaz a seguir desatando laços, esse desejo insaciável pelo isolamento. Emile Hirsch, que vive Chris McCandless, facilita esse investimento emocional com sua atuação, captando muito bem os extremos da aventura existencial desse recém-formado, que decide viajar sem rumo pelos Estados Unidos em busca de uma subjetiva noção de liberdade. Ele consegue superar as tentações sociais, como o roteiro transmite na boa sequência em que o jovem vislumbra uma versão alternativa de sua realidade, o escravo da ganância em modelo industrial, com sorrisos e maneirismos calculados para satisfazer a imagem que os outros projetam nele.

A estrutura do filme pode ser confusa, porém, parece pensada exatamente com o intuito de fugir do melodrama comum. O diretor Sean Penn, com mão segura, busca uma conexão fragmentada, ajudado pela fotografia de Eric Gautier, uma emoção despertada mais pela constatação da coragem e do amadurecimento do protagonista, ao invés da lágrima que seria vertida facilmente na opção pela linearidade nessa bonita história real. Gosto também de como a trama evidencia a importante transformação daqueles que conhecem o rapaz na jornada, verdadeiramente tocados por aquele andarilho enigmático.

E, o elemento mais importante, o roteiro não faz do personagem um herói, muito pelo contrário, sublinha a irresponsabilidade inerente à sua decisão e, acima de tudo, no poderoso desfecho, a conscientização do erro cometido. O ser humano não precisa dos rituais, mas, sem dúvida, precisa ser humano. A solidão de Chris, seu calvário autoimposto. A lição foi aprendida da maneira mais dura, o “Alasca” que ele buscava com sua inconsequente arrogância adolescente, o objetivo primordial, era a compreensão da necessidade do perdão. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

"Nocaute", de Antoine Fuqua


Nocaute (Southpaw - 2015)
Jake Gyllenhaal, que está provando extrema competência na seleção de papéis, é a alma de “Nocaute”, primeiro trabalho verdadeiramente interessante do diretor Antoine Fuqua após o distante “Dia de Treinamento”. A entrega do ator, irrepreensível em cena, consegue disfarçar, na maior parte do tempo, a fragilidade do roteiro de Kurt Sutter, responsável por episódios da série “The Shield”, em sua primeira experiência no cinema. A sua insegurança é facilmente perceptível na forma como a estrutura episódica da trama se debruça em todos os clichês melodramáticos de filmes similares, prejudicando o essencial investimento emocional do público nos conflitos do protagonista. 

O ritmo é agitado em teoria, a narrativa se movimenta freneticamente, porém, é difícil estabelecer empatia genuína por qualquer núcleo, o que acaba passando a impressão de lentidão, com as resoluções óbvias arrastando ainda mais o inferior segundo ato. A fórmula parece ter sido copiada de uma seleção dos melhores momentos da franquia “Rocky”, uma visão já bastante diluída, que funcionava na metáfora de Stallone, mas, inserida em um contexto que tenta, com mão pesada, emular a complexidade de um “Touro Indomável”, acaba tornando tudo menos verossímil. 

Vale destacar as excelentes sequências de luta no ringue, ponto alto, talvez, realistas demais, o que não é necessariamente funcional, já que salienta o quão caricatural são os alicerces que as sustentam. Após minutos acreditando em cada gota de sangue vertida, somos conduzidos a uma cena que parece saída de uma novela mexicana. Contribuindo para essa quebra da ilusão, Rachel McAdams, que vive a esposa do pugilista, parece uma atriz iniciante em um teste de elenco, forçando as caras e bocas, sem qualquer indício de sutileza. O problema piora quando ela divide cenas importantes com Gyllenhaal, dificultando a imersão do espectador. Já Forest Whitaker, como o típico treinador linha dura, em poucas cenas, eleva a qualidade do espetáculo.

O nível de manipulação emocional é alto no terceiro ato, o esforço da trilha sonora do saudoso James Horner é tremendo nesse sentido. A despeito disso, o drama não se sustenta, colocando toda a responsabilidade nos ombros do protagonista, que, por melhor que seja, especialmente em buscar os redentores subtextos em diálogos mal escritos, não conseguiria vencer essa luta sequer na soma dos pontos. 

"Ricki and The Flash - De Volta pra Casa", de Jonathan Demme


Ricki and The Flash - De Volta pra Casa (Ricki and The Flash - 2015)
A roteirista Diablo Cody mostrou potencial em sua estreia, com o ótimo “Juno”, porém, parece que foi propaganda enganosa. Após tentativas tímidas, ela retorna com essa bobagem bem-intencionada, que nem mesmo a direção segura de Jonathan Demme consegue salvar. 

Meryl Streep, que brilhou em “Mamma Mia”, provando tremenda versatilidade, dessa vez, novamente na área musical, é prejudicada por um personagem escrito sem qualquer traço de organicidade em suas motivações, um problema grave nas cenas de conflito familiar, quando contracena com sua filha na vida real, a competente Mamie Gummer. Kevin Kline e Audra McDonald, incrivelmente estereotipados, parecem trabalhar com o esboço de um rascunho, vergonhosamente esquecidos em cena. 

A estrutura do segundo ato, com canções em excesso, quase sempre executadas na íntegra, ainda que filmadas com muita personalidade, não ajudam a avançar a narrativa, servindo apenas para quebrar ainda mais o pouco ritmo conquistado no superior primeiro ato. A previsibilidade das situações é quase amadorística, falta tato e sensibilidade, o que minimiza o impacto pretendido no desfecho. 

Fica a sensação clara de que o projeto é apenas um veículo para a protagonista brincar de exercitar seu talento como cantora, quando, com a inserção de algumas sequências mais intimistas, conhecendo o talento da roteirista na elaboração de bons diálogos, poderia ser um fantástico tratado sobre o ressentimento de uma mãe, que, na busca de seus sonhos profissionais, percebe as consequências devastadoras do afastamento de seus filhos.

domingo, 20 de setembro de 2015

Devo Tudo ao Cinema - S01E07 - É Possível Fazer Cinema Sem Recursos? (2 de 5)

É possível fazer cinema sem recursos? Nessa segunda parte, abordo com maior profundidade as minhas experiências práticas com curtas-metragens.


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Woody Allen - "Um Misterioso Assassinato em Manhattan"

Link para os textos anteriores desse especial que se leva tão a sério quanto o próprio Woody:

Recado de divulgação em versão antisaramaguiana:
Há agora uma ruptura godardiana nesse especial celebrado regionalmente por seu organizado sistema cronológico motivada pelo lançamento em DVD dessa obra até então inédita no nosso mercado de home vídeo pela distribuidora “Classicline” em lançamento exclusivo numa parceria com a Livraria Cultura.

Nunca um ponto final foi tão aguardado nesse mundo sem vírgulas. A questão é que, devido a uma análise ponderada sobre a atual situação cultural de nossa nação, constatei a acachapante irrelevância de qualquer senso, inclusive, do bom senso e, especialmente, do senso de ridículo. O filho que talvez eu tenha no futuro, caso haja futuro para o Brasil, coerentemente desrespeitando o senso de tempo e espaço, olhou bem fundo em meus olhos hoje e me perguntou se as mulheres sapiens irão evoluir até se tornarem as senhorinhas sapiens, e, caso isso eventualmente ocorra, será que elas continuarão assistindo ao especial de final de ano do Roberto Carlos? Eu, com meus abrangentes conhecimentos científicos, apoiei minha mão em seus ombros, sorri de canto de boca, espirrei, pois estou gripado; busquei inspiração por um segundo no pai da ciência: Noé, o famoso velhinho da Arca; então aguardei mais alguns segundos, para disfarçar que estava recebendo instruções de um ponto eletrônico, consegui me desviar de duas balas perdidas em nosso país pacífico, e respondi com garbo e elegância: Não sei.

Comunicado urgente:
O maior sucesso de público na Bienal do Livro, o fenômeno literário brasileiro do momento, a jovem vlogger, atriz canastrona e DJ, Kaplévstokra, acaba de avisar ao seu criterioso grupo de fãs pré-adolescentes que, logo depois de postar várias selfies patrocinadas em seu instagram, desmaiou no evento por alguns minutos. A razão? Ela conheceu pessoalmente sua cantora preferida, Nani Moratto, compositora teen dos hits com prazo de validade absurdamente curto: “Nossa, perdi meu celular!” e “(Como pode) Fui trocada por um Playstation”. Seguranças no local informam que, nos estandes próximos, autores talentosos e que efetivamente escreveram cada linha de seus livros, disputavam uma partida de “Paciência” com as moscas.

O garoto, aparentando inexplicável desorientação, virou as costas, ligou a televisão para assistir ao mais famoso programa de entrevistas do horário nobre, na maior emissora de televisão nacional, onde, pelos últimos quinze minutos, o apresentador celebrava a vida e a obra de um jovem e desconhecido artista do cenário hip-hop tupiniquim, que, entre outras peculiaridades, afirmou sorridente ter a mania de defecar antes de seus shows. A plateia aplaude e o entrevistador peca pela omissão, enquanto morrem à míngua em suas casas todos os grandes artistas brasileiros que não conseguem um ínfimo segundo de divulgação na televisão. Com muita raiva de ter sido despertado antes da hora, ainda mais nesse específico espaço geográfico, ele desligou a televisão e me fez jurar que só nascerá, caso realmente seja necessário, quando eu, porventura, estiver morando na Suíça. Como não tenho verba sequer para pegar um ônibus e comer um sanduba em Vilar dos Teles, já que cometi o erro crasso de tentar trabalhar com cultura, essa futilidade desvalorizada, em uma nação onde os livros mais vendidos são escritos por ghost-writers e o maior líder político nunca terminou de ler um, fui obrigado a fechar os olhos e torcer para aquela alucinação sumir.

O que me conduz, num surto de conveniência absurda, ao tema do filme: o sumiço de um corpo, o mistério por trás de um caso fatal de coronária...


Um Misterioso Assassinato em Manhattan (Manhattan Murder Mystery – 1993)
Entediada, uma dona de casa (Keaton) passa a suspeitar que seu vizinho, um velhinho aparentemente pacato, matou a esposa. Obcecada pelo possível homicídio, ela tenta a todo custo convencer seu marido (Allen) a ajudá-la a resolver o caso.


Como é fascinante perceber a química irresistível entre Woody Allen e Diane Keaton, uma das melhores parcerias do cinema. O humor que brota em cacos sutilmente inseridos entre diálogos, um constante jogo de cena entre dois artistas que deixam claro o amor e o respeito que sentem um pelo outro. Após um longo hiato, simbolizado pela irregular era “Mia Farrow”, a dupla se reúne em uma trama que homenageia a fórmula dos clássicos thrillers detetivescos hollywoodianos. O diretor sempre quis abordar esse universo, então aproveitou um momento tenso em sua vida para relaxar na condução do projeto, merecidas férias. Essa atitude mais despretensiosa nas filmagens acaba se refletindo positivamente no resultado final, considerado por muitos como o filme mais engraçado dele na década.

Nas cenas mais tensas, colocando em prática os ensinamentos de Hitchcock, Allen faz questão de revelar para o público os perigos, deixando-o sempre à frente dos personagens, o que potencializa o suspense, equilibrado com o seu característico senso de humor, elemento que, em tom diferente, também se fazia presente nos filmes do mestre britânico. Gosto bastante da maneira como o roteiro insere a obsessão da esposa como o catalisador de uma bem-vinda renovação naquela relação bastante desgastada. A investigação atrapalhada conecta novamente o casal. É interessante também como a trama, numa camada de interpretação menos aparente, coloca em conflito o conceito de arte socialmente tida como séria e respeitável, o marido não suporta escutar ópera, e a arte popular, o cinema, especificamente o de gênero, que ludicamente emoldura o desfecho, com a referência direta ao “A Dama de Shangai”, de Orson Welles. 

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Faces do Medo - "Magia Negra", de Richard Attenborough


Magia Negra (Magic – 1978)
É possível traçar uma das inspirações para o filme no clássico britânico: “Na Solidão da Noite”, de 1945, no aterrorizante conto dirigido pelo brasileiro Alberto Cavalcanti. Há também uma boa dose de Norman Bates, o clássico protagonista de “Psicose”, na interpretação competente de Anthony Hopkins, vivendo o perturbado ventríloquo Corky. O roteiro, escrito por William Goldman, autor do livro original, acerta ao fazer do protagonista alguém por quem o público simpatiza, por mais bizarras que suas atitudes se tornem no decorrer da trama. O retorno dele para a casa onde viveu na infância, uma alegoria para o esforço de sua psique em procurar o ponto em que sua mente tomou o perigoso atalho da loucura, é uma maneira inteligente de inserir um interesse romântico relevante, algo raro, na personagem vivida pela linda Ann-Margret, alguém que sempre foi secretamente apaixonada por ele.

A direção elegante de Richard Attenborough, que buscava no apelo popular do gênero de terror a verba para realizar seu ambicioso projeto dos sonhos: “Gandhi”, explora no primeiro ato a gradual progressão do protagonista, um artista sem presença de palco, que, como num passe de mágica, reaparece transformado em um competente showman, com seu boneco Fats ganhando a simpatia das plateias. É inteligente a forma visual que o diretor encontra de salientar o processo irremediável de degradação mental, com criador e criatura vestindo roupas idênticas, potencializando o impacto de cenas teoricamente tranquilas, estabelecendo e alimentando o suspense, que explode com menor sutileza no terceiro ato.

O desfecho insinua a possibilidade de um elemento sobrenatural, porém, prefiro enxergar o filme como a narrativa de um homem psicologicamente destruído, perdendo o controle sobre suas ações e amedrontado pela necessidade de satisfazer os sonhos profissionais projetados pelo pai moribundo. Ele, inseguro e sem vocação alguma para aquilo, um filho querendo provar seu valor. A cena mais espetacular, mérito da atuação de Hopkins, ocorre quando o empresário do artista, vivido por Burgess Meredith, pede para que ele fique apenas cinco minutos sem representar a voz do boneco. Uma joia que merece ser redescoberta pela nova geração, tão carente de bons filmes no gênero. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil", na caixa "Obras-Primas do Terror 3", que contém também: "Banho de Sangue" (Mario Bava), "A Inocente Face do Terror" (Mulligan), "Os Meninos" (Serrador), "Carnaval de Almas" (Herk Harvey) e "Farsa Trágica" (Tourneur), além de documentários sobre as produções. 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

"Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert


Que Horas Ela Volta? (2015)
Tentarei utilizar o espaço de forma construtiva, já que a obra está repercutindo positivamente, sendo, em um ano especialmente fraco para o cinema nacional, um farol de boas intenções, que, com exceção dos pontos salientados no texto, resulta em um produto acima da média. Iniciando, utilizo como exemplo uma cena no primeiro ato, em que a empregada dá um presente pra patroa, que reage sem sutileza, sugerindo que ela o guarde pra ser usado em alguma ocasião especial. Ao final, a empregada, sozinha, carrega o presente e o papel que o embrulhava. A patroa que, na mesma cena, demonstra não saber o nome da filha da empregada. Caricatural demais, até para os padrões de Roberto Benigni em “A Vida é Bela”. É uma cena importante, que estabelece com mão pesada demais essa relação das duas. Vale salientar, no entanto, que é muito interessante que esse conflito minimalista ocorra à luz de um cenário de teatralidade, já que a patroa estava sendo filmada por uma equipe em uma entrevista, uma analogia bem esperta de Anna Muylaert, infelizmente enfraquecida pelos problemas já citados.

Outro problema grave: Regina Casé sinaliza para o espectador, em todas as cenas, com caras e bocas pouco sutis, que ele deve sentir pena de seu personagem, com a edição prolongando sempre os desfechos desses momentos, um apreço quase sádico por uma espécie de comiseração imagética, um sentimento que deveria ser despertado naturalmente pela execução do roteiro. Imagine Chaplin, no clássico final de “Luzes da Cidade”, para compreender exatamente como a piedade pode ser transmitida de forma inteligente e muito menos manipulativa. Essa atitude, além de evidenciar o histrionismo da atriz, em pouco tempo, desgasta o investimento emocional, passando a nítida impressão de que a trama subestima completamente a inteligência do público. E essa impressão pode ser sentida também nas tentativas de humor, como na cena onde a empregada tenta dispor as xícaras de forma moderna, mais elegante, na bandeja. Sem timing cômico algum, a situação se estende desnecessariamente, transformando Val em uma caricatura tão ingênua que irritaria Jerry Lewis em seus antigos projetos.

Patroa cruel, insensível, com uma empregada ingênua, boazinha, pobre coitada. Karine Teles, uma das mais competentes atrizes do cinema nacional, consegue, na maior parte do tempo, operar a difícil alquimia de fazer com que essa visão estereotipada soe crível, trabalhando o subtexto das cenas, como na sutil maneira em que busca o desenlace rápido, quando abraça a filha da empregada, próxima à mesa de jantar. Perceba também a expressão em seu rosto numa cena, mais adiante, onde ela agradece Val, estando com o braço imobilizado, trabalhando em sua cama. Já que os diálogos não ajudam, ela, como toda boa atriz, foca sua atenção nos detalhes, olhares que a câmera capta perifericamente, movimentos do corpo, aqueles elementos que parecem imperceptíveis, porém, são registrados quase que subliminarmente pelos olhos do espectador, agregando valor narrativo em revisões. A antítese do método utilizado por Casé. 

A mensagem social poderia ser exibida com mais tato, o terceiro ato deveria se apoiar menos em soluções convenientes, mas, sem dúvida, o filme satisfaz emocionalmente. É o melhor trabalho da diretora até o momento. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Aki Kaurismäki e os Cowboys de Leningrado


Os Cowboys de Leningrado Vão à América (Leningrad Cowboys Go America - 1989)
Os Cowboys de Leningrado Encontram Moisés  (Leningrad Cowboys Meet Moses - 1994)
Total Balalaika Show (1994)
A qualidade que mais me atrai no cinema de Aki Kaurismäki está sintetizada em seus projetos com os Leningrad Cowboys, onde podemos encontrar a essência do autor provocador que deixou envergonhado o ministro da cultura finlandês ao atravessar o tapete vermelho de Cannes, em 2002, na ocasião da exibição de seu ‘O Homem Sem Passado’, dançando um frenético twist. E, de certa forma, essa atitude aparentemente tola, porém, política dele, essa debochada desconstrução do ritual sisudo da premiação, fala diretamente a um comportamento compartilhado por nós, brasileiros, uma insegurança artística que necessita do aval estrangeiro, o aplauso do outro que agrega valor ao santo de casa.

Esse desapego às noções patrióticas exageradas, uma projeção do complexo de inferioridade, é perceptível intensamente em ‘Os Cowboys de Leningrado Vão à América’, de 1989, ‘Os Cowboys de Leningrado Encontram Moisés’ e ‘Total Balalaika Show’, ambos de 1994, além dos dois curtas musicais: ‘Those Were The Days’ (1992) e ‘These Boots’ (1993), que satirizam alguns clássicos clichês do cinema hollywoodiano. E, diferente do que se costuma rotular de ‘filme de arte’, conceito que considero equivocado, essas obras exalam uma leveza insanamente irresponsável, de anarquia quase adolescente, criando uma atmosfera agradável que estimula a empatia imediata com o público, facilitando a assimilação de um subtexto de caráter sociopolítico relevante.

Você consegue enxergar nessas obras, como em outras do diretor, a tentativa de construir uma versão idealizada do passado, algo evidenciado no forte viés de crítica ao capitalismo moderno, o vazio criativo que se recebe quando o objetivo se torna apenas comercializar produtos que satisfaçam, de forma já testada e aprovada, o consumidor pouco criterioso, em cenas como aquela que inicia o primeiro filme. A banda, uma visão da rebeldia padronizada americana, apropriada pelo estrangeiro em tons exagerados, simbolizados pelo caricatural topete rockabilly, executa com disposição uma canção folk, em seu país natal, para a apreciação de um possível patrocinador, mas, sem piedade, recebe como conselho o leitmotiv da trama: “Uma porcaria, não é comercial. Vão pra América, lá eles consomem qualquer coisa.”. Kaurismäki, utilizando como ponte a indústria fonográfica, aponta o dedo também para a nova geração de Hollywood, alicerçada no desejo voraz de entregar apenas o óbvio, reutilizações de histórias que garantiram boas bilheterias, numa demonstração do pavor em ousar correr riscos, a antítese da função de um artista, que deve buscar sempre entregar aquilo que o público não imaginava que queria, porém, surpreendido com a nova expressão que encara no próprio reflexo do espelho, aprende que não consegue mais viver sem.

Essa melancolia é trabalhada de forma carinhosa, sem o peso da angústia, o objetivo é que ela se imponha sorrateiramente após a sessão, quando o humor imediatista se esvai da memória, deixando apenas a essência. Na primeira trama, o impacto posterior parece ser maior, exatamente porque há uma despretensão encantadora no roteiro, com gags espalhadas de forma generosa, da piadinha mais simples, visual, como o baixista que, após ensaiar durante muito tempo fora de casa, acaba congelando, sendo carregado na viagem em um caixão com orifícios para a passagem do majestoso topete e dos longos bicos dos sapatos; passando pela foto de Abraham Lincoln emoldurada na parede, um avô de um deles que foi para a América e nunca tiveram mais informações sobre seu paradeiro; até a exibição de uma comédia visual mais sutil, como no momento em que o líder da banda, vivido por Matti Pellonpää, informa que eles precisam aprender rapidamente a falar inglês, ainda no aeroporto, já que na América só dão espaço para os americanos. Segundos antes do corte na cena, podemos ver que o líder, dando o exemplo, já demonstra estar se adaptando à nova realidade, como um clássico cowboy, cuspindo no chão.

O ato de não querer aprender a língua é visto como um capricho típico de quem deixou o sucesso subir à cabeça, reforçando no subtexto cômico a escravidão consciente à linha de produção industrial que despeja na sociedade, diariamente, robôs consumistas que atualizam orgulhosamente os modelos de suas marcas favoritas, seguindo o molde da cultura dominante, mas, miseravelmente, ignoram o folhear das páginas de um livro. A adoção desse tom crítico, no contexto angustiante da época em que foi filmado, um período de incertezas sobre a reinserção da União Soviética no mercado mundial, comprova a corajosa lucidez ideológica do diretor, incapaz de se manter calado enquanto testemunha a desvalorização crescente da identidade cultural de cada povo. É certeira a forma como o roteiro retrata a relação entre os membros da banda e os mexicanos, o público estereotipado que é indicado para eles, como forma de lucro garantido. “Aqui temos algo diferente, o Rock and Roll”. O arrogante empresário americano enxerga a identidade cultural de outros povos como o receptáculo ideal para o estilo de música que eles apresentam, da mesma forma que o cinema hollywoodiano clássico enxergava como exotismo inferior qualquer pedaço de chão além de suas fronteiras.

Algumas piadas, aparentemente tolas, como o bico longo do sapato que é sempre pregado, reduzindo o tamanho, antes de eles entrarem no carro, escondem uma ironia elegante. A imagem que se busca, na tentativa desesperada de se adequar aos anseios de outrem, na prática, resulta em algo sem sentido, tremendamente desconfortável ou puramente ineficiente, de caráter ornamental, que não resiste ao primeiro contato com a realidade cotidiana. É como o personagem do idiota da vila, careca, entrando na barbearia e pedindo um topete como o de seus ídolos, ou como o brasileiro que, na celebração de Natal, come nozes, castanhas e amêndoas, tentando simular a temperatura gélida americana, enquanto transpira no nosso causticante verão de Dezembro. O roteiro debocha dessa necessidade de aceitação, inserindo sequências hilárias onde membros da banda conversam animadamente em impávido inglês, com gestual caricato, sobre os temas mais absurdos. “Você sempre é assassinado em Nova York. Eu vi isso na televisão”. Não importa o teor do que se diz, quando o sotaque é inglês, qualquer bobagem recebe mais atenção de seu interlocutor.

Após aprender sobre Rock and Roll em uma loja de discos, os Cowboys tentam a sorte em Memphis, terra símbolo de Elvis Presley, essência da rebeldia musical que a indústria americana empacotou e vende até hoje. Eles até tentam cativar o público hostil de um bar com sua música tradicional, mas acabam sendo impelidos à execução de um cover pouco confortável de “Rock and Roll is Here to Stay”, como introvertidos brincando em um jogo de imitação. Ao final, a humilhação máxima, o músico tenta coletar moedas em seu saxofone. O líder, no entanto, antecipando sua participação no filme seguinte, já demonstra maior capacidade de adaptação, almoçando um prato de bife com batatas-fritas, enquanto o restante da banda está sentado na sarjeta, pegando sereno.

Após a fome saciada, ele pede um saquinho para guardar os restos da comida, porém, quem recebe o agrado é o cachorro de rua. Esse é outro momento cômico aparentemente tolo, que esconde uma camada crítica poderosa. O empresário adaptado aos costumes americanos, simbolizado na escolha do alimento, já se enxerga como filho legítimo da nação, sentimento que o motiva a tratar aquele elemento estrangeiro como sendo inferior aos cães de rua. Que eles se alimentem com cebolas cruas, é mais que suficiente, já que contaminam diariamente a pureza do solo americano. E, na ânsia de fazerem parte daquela realidade, ainda que visivelmente incomodados, eles comem as cebolas. Como é mostrado em uma cena no início do filme, bebês da região com topete e botas, eles já nascem preparados para esse eventual amálgama cultural.

O segundo filme reapresenta o líder da banda, agora com uma longa barba, transformado em um profeta que se autointitula Moisés, aquele que irá conduzir seus amigos, alguns já adaptados aos estereótipos mexicanos, para a terra prometida, de volta para casa. Mas, sendo capitalista, “Jesus salva, mas Moisés investe”, ele não pode voltar sem adquirir presentes, o que o obriga a ficar mais um tempo naquela variação de Sodoma e Gomorra, afinal, “negócio é negócio, mas Moisés é Moisés”. A hilária crítica se potencializa ao descobrirmos que o objetivo dele é roubar o nariz da Estátua da Liberdade, provável referência ao roubo do nariz do ditador em “O Dorminhoco”, de Woody Allen. O tom cômico é menos acentuado, com o roteiro apostando em críticas mais cínicas, por exemplo, ao sistema religioso, evidente no momento em que Moisés discute com um membro da banda, ambos utilizando trechos aleatórios da Bíblia como arma, numa tentativa de vencerem teatralmente essa disputa de egos.

A reflexão trabalhada nos dois filmes nos conduz à catarse no épico registro da apresentação da banda em Helsinque, acompanhados pela orquestra, coral e pelos dançarinos das forças armadas da Rússia. O resultado é impressionante e deixaria o comediante Andy Kaufman, mestre do nonsense, constrangido, com tenores dividindo o palco com os Cowboys, entoando versões austeras de músicas tradicionais russas, como ‘Polyushko-polie’ e ‘Dark Eyes’, e interpretando clássicos do cancioneiro brega americano, como ‘Delilah’, alternando para o pop chiclete da década de sessenta, com ‘Happy Together’, até um incrível finale ao som de ‘Those Were The Days’, clássico russo, símbolo de produto que venceu no mercado externo e ganhou reconhecimento internacional adaptado com gravações em inglês, onde cabe até uma inserção da francesa ‘Padam, Padam’, medalhão de Edith Piaf.

A apresentação representa a atitude libertária, ao combinar Gimme All Your Lovin’, do ZZ Top, com trechos do hino da União Soviética e um coral, que se segura frequentemente para não rir, enquanto insere o cântico de Aleluia. Essa é a verdadeira atitude Rock and Roll, diferente do que usualmente é vendido como heavy metal, adultos infantilizados brincando em um eterno dia das bruxas. Ou, como em uma das melhores cenas do primeiro filme, após irritarem com sua música um grupo hostil de motoqueiros no Texas, uma variação dos mesmos adultos infantilizados da sociedade, os Cowboys resolvem o problema com um cover de ‘Born to be Wild’, que ativa o padrão mental que faz com que os agressores se sintam parte de um imaginário coletivo confortável.

Ao final da longa jornada, os rapazes descobrem que a grama do vizinho não é tão verde, a imagem idealizada dos americanos era apenas uma projeção de frustrações internas, complexo de vira-latas motivado por crises socioeconômicas e pela insegurança consequencial. E, numa demonstração de inteligência, acabam optando pelo ato mais rebelde: a arte de não se levar a sério. 

* O texto foi escrito para o catálogo da Mostra "O Cinema de Aki Kaurismäki" (RJ e SP).

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

"Um Filme Para Nick", de Wim Wenders

Links para textos sobre filmes do diretor:
Paris, Texas:
No Decurso do Tempo:


Um Filme Para Nick (Lightning Over Water – 1980)
O realizador Nicholas Ray encontra-se às portas da morte e tem como última vontade a realização de um filme sobre a odisseia de um pintor adoentado que viaja até a China em busca da cura para a sua doença. Em seu auxílio, vai o amigo Wim Wenders, que se debatia com a finalização de outro projeto pessoal: “Hammett”. Juntos, discutem a forma de pôr as suas ideias em prática, mas se apercebem que o estado de saúde de Ray não lhes permitirá muita margem de manobra.


Eu me recordo que tomei conhecimento dessa obra com o boom inicial da internet, dias inteiros para conseguir baixar apenas um arquivo, já que não encontrava de forma alguma em meus garimpos pelas videolocadoras. Na época, com muita alegria, vi a possibilidade tangível de me aprofundar nas filmografias completas dos grandes diretores mundiais, algo impossível na era do VHS. E esse filme teve um impacto muito forte, tanto que preferi me afastar; somente o revi agora, para escrever esse texto. Nicholas Ray, uma carreira composta de temas corajosos, um lobo solitário que injetou uma carga de densidade dramática pouco usual, em variados gêneros, na Hollywood dos anos cinquenta. Até mesmo no épico bíblico “Rei dos Reis”, projeto dos sonhos do produtor Samuel Bronston, ele conseguiu deixar sua marca autoral, elemento que ainda mantém o filme relevante nos dias de hoje.

Enfrentando a mortalidade desse realizador, em estágio terminal de câncer no pulmão, o amigo Wim Wenders, ao invés de lamentar a inevitável perda que viria em breve, encara o evento por uma ótica mais digna, alternando ficção, com diálogos improvisados, e um registro documental, por vezes filmado com Betacam, com muita granulação e um som ruim, o que simbolicamente foi pensado pela dupla como o câncer do filme. Com a saúde dele se deteriorando rapidamente, os médicos aconselharam a equipe a seguir filmando para que ele não entrasse em depressão. E a última sequência antes do epílogo, com os dois amigos conversando no quarto do hospital, emociona pela tremenda força de caráter de Ray, já com a mente desorientada, lutando para continuar de pé até o gongo final. Gosto muito de dois momentos, a breve recriação livre de “Rei Lear” e, especialmente, a cena em que Wenders toma o lugar de Ray, na cama do hospital. O segundo, com seu tapa-olho dos áureos dias, um misto de figura paterna/mestre/autor; o desfecho devastador, onde os dois discutem sobre a necessidade de terminar a cena e gritar: “Corta!”. Wenders, como um filho temendo ficar desamparado, rejeita a ação, pede para ele não verbalizar o comando definitivo.

"Olhei para o meu rosto, e o que vi?
Não uma pedra de granito como identidade.
Azul apagado, pele machucada, lábios enrugados e tristeza.
Mas, sim, uma vontade louca de reconhecer e aceitar
O rosto de minha mãe.”

O filme não é sobre como lidar com a morte, mas, sim, sobre a própria morte, protagonista impiedosa e incontrolável. Ela tira a direção das mãos de Ray, após cerca de uma semana de trabalho, entregando para Wenders o desafio de conduzir a obra. Nas primeiras sequências, podemos perceber que se trata de Ray interpretando o pintor, porém, poucas cenas depois, nós enxergamos claramente os remendos criados de última hora, enxertando a dura realidade na composição do que havia se tornado a última grande batalha de um guerreiro, alguém que não demonstrou medo algum de se expor em seus momentos de maior fragilidade. É triste, mas há uma beleza nesse desprendimento emocional, uma noção transcendental de que o cinema, veículo de expressão do artista por toda sua vida adulta, também seria responsável por conduzir ele em seus ritos finais. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Cine Giallo - "O Segredo do Bosque dos Sonhos", de Lucio Fulci


O Segredo do Bosque dos Sonhos (Non si Sevizia um Paperino – 1972)
Esse é daqueles filmes que, dois minutos depois do fim, ainda se recuperando do impacto, você tem vontade de aplaudir de pé. Lucio Fulci, diretor pouco valorizado, conseguiu criar um corajoso tratado único sobre temas espinhosos como preconceito, pedofilia, hipocrisia, superstição e religião, sem medo de controvérsias.

Vou evitar revelar muito sobre a trama, um tremendo desserviço, especialmente nesse caso. Em um vilarejo dominado pelo misticismo, crianças são assassinadas, conduzindo os policiais na direção de uma bruxa praticante de vodu, vivida pela brasileira Florinda Bolkan. O roteiro abre o leque de possibilidades, mostrando que todos são suspeitos, já que não há sinal algum de qualquer senso de moralidade ou ética nas atitudes dos moradores. Até mesmo as crianças, que acabam sendo vítimas, são apresentadas praticando atos de sadismo, sem nenhum traço de empatia. O único que se mostra puro e bem-intencionado é o padre. Uma das personagens, vivida pela bela Barbara Bouchet, é uma viciada em drogas que busca reabilitação, uma jovem ousada que parece ter uma fixação em se insinuar sexualmente para os meninos da região.

O mais interessante é como a história subverte qualquer expectativa, inclusive, visualmente, uma característica simbolizada em uma das cenas mais interessantes na história do Giallo, verdadeiramente inesquecível, um brutal linchamento acompanhado na trilha sonora pela programação exótica de uma estação de rádio, tendo, em seu ápice dramático a linda composição de Riz Ortolani: “Quei giorni insieme a te”, cantada por Ornella Vanoni. A impressionante sequência ganha ares ainda mais épicos e poéticos em revisão, conhecendo o desfecho da trama.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil" na caixa "Giallo", que conta também com: “Tenebre”, “O Estranho Vício da Sra. Wardh” e “Seis Mulheres Para o Assassino”, além de vários documentários muito interessantes.

A cultura é mais forte que a espada


Quem acompanha meu trabalho há mais tempo sabe que, durante quatro anos, com brevíssimos hiatos em épocas festivas, escrevia dois textos semanais de temática social/política em minha extinta coluna no site da jornalista Anna Ramalho. Eu era constantemente convidado para repercutir esses assuntos em programas de rádio, os textos batiam recordes de acessos e eram muito compartilhados. Quando releio, percebo que abordei praticamente todos os absurdos que ocorreram nesse longo período, sempre tentando apertar o dedo na ferida, provocar a reflexão. E, de uns tempos pra cá, alguns leitores estão me questionando sobre a razão de eu ter decidido me focar mais nos textos sobre cinema, minha área de atuação, deixando um pouco de lado essa verve mais contundente. Acho que hoje, Sete de Setembro, é um ótimo dia para revelar esses motivos. Eu cansei. O desabafo não inspira o ser humano a realizar gestos nobres, ele apenas se reconhece no reflexo do espelho e segue seu caminho.

O único elemento que verdadeiramente tem o potencial para inspirar modificações estruturais no ser humano é a Arte, a literatura, o cinema, a música, o interesse constante em aprimorar sua cultura. A delicadeza e a elegância são mais fortes que a espada do ódio. E, por mais problemas que nossa nação esteja acumulando, a culpa não reside nos ombros do sistema, do governo, do outro. O povo, o conjunto de indivíduos, é o responsável pelo sistema, que apenas reflete atualmente em seu vidro embaçado o completo desinteresse, a preguiça intelectual de adultos psicologicamente infantilizados que, com raras exceções, aceitam desperdiçar suas vidas em profissões que não suportam, perseguindo cegamente rituais sociais desgastados e incansavelmente buscando a aprovação enquanto produto padronizado de uma indústria falida.

A espada de ódio levantada apenas convoca esse povo para uma guerra que já foi perdida. O amor e o genuíno interesse de um adulto que compreende a importância da parentalidade responsável, a nobreza de um jovem que valoriza mais a leitura de um livro, a sorte da criança que é estimulada a colocar sua criatividade em ação, ao invés de se aprisionar nas telinhas dos tablets. Esses indivíduos podem modificar o sistema em longo prazo. Eu não posso dedicar mais tempo alimentando o conformismo daqueles que querem apenas chafurdar na lama da autocomiseração, tolos que ainda discutem política como se vivessem em uma revista em quadrinhos ambientada em um universo sem tons de cinza, com o herói e o vilão desenhados em tintas fortes caricaturais. Peões facilmente manipulados, joguete dos espertos, que defendem com agressividade um sistema podre e, que, obviamente, só pode fazer nascer de seus galhos frutos doentes.

Não temos absolutamente nada a comemorar no dia de hoje, estamos vivendo um período vergonhoso. Não basta ir às ruas fazer carnaval fora de época, gritando palavras de ordem, quando a engrenagem interna não é substituída. A revolução não será televisionada, ela ocorre no silêncio do quarto de um indivíduo que, contra todas as probabilidades e sem estímulo algum do sistema, decide ser alguém melhor. E o único combustível, a inspiração mais eficiente para esse tipo de mudança estrutural reside na cultura, em todas as suas vertentes. Agora precisamos que o ser humano dê o próximo passo em sua evolução.

Sétima Arte em Cenas - "Imagens", de Robert Altman


Imagens (Images – 1972)
Robert Altman, inspirado por “Persona”, de Bergman, criou sua obra mais enigmática, apoiando-se no talento de Susannah York, que vive a esquizofrênica Catherine, uma mulher que revive diariamente as lembranças de suas relações amorosas anteriores, lutando para controlar seu desejo sexual reprimido, enquanto resiste a um matrimônio falido, ainda que ela tente mascarar o desgaste com exibições esporádicas de ciúme. O marido, excelente interpretação de René Auberjonois, personifica o conformismo, sempre com piadinhas tolas e uma preocupação exagerada com o cabelo, simbologia para a importância da imagem, da fachada, em sua vida. 

Marcel, uma das visões dela, um amigo próximo, uma clara projeção de sua carência afetiva, apresentando-se como um tarado que se dedica a boliná-la especialmente na frente do marido. O subconsciente dela se provocando até o ponto em que espera conquistar a coragem para se libertar daquela insuportável zona de conforto existencial. Susannah, filha pequena de Marcel, é inicialmente introduzida como uma espécie de esqueleto no armário de suas memórias, o “eu” infantil de Catherine, salientando como sua criação reprimida forjou muitos de seus problemas adultos. Ao se encontrar com a menina, uma exata cópia dela, num toque sutil de genialidade, o roteiro faz com que as duas mostrem a língua, reforçando a identificação emocional.

A razão de o filme constar nesse especial é um momento que ocorre logo no início da trama, uma cena que dá o tom psicológico da experiência quase alucinógena que está por vir. Altman conseguiu, com um recurso visual simples, adentrar com segurança no universo do horror. A mulher, deitada na cama, está conversando com o marido, que caminha pelo quarto e pelo banheiro. Ela está perturbada por uma ligação, onde uma voz feminina havia insinuado que ele estava com uma amante, revelando inclusive o endereço onde ele estava. E recomendo que memorize o endereço e preste muita atenção no terceiro ato, quando a personagem retorna para sua casa, para constatar a genialidade do roteiro. 

A discussão é conduzida pela câmera em ângulos que sublinham a normalidade da situação, o que potencializa o choque do público quando o truque é realizado. A câmera se aproxima cada vez mais dos rostos, os lábios lentamente se encontram. O olho dela se abre e escutamos um berro arrepiante, a câmera se distancia e enxergamos outro homem sentado na cama. Ela corre para se esconder no banheiro, sendo seguida pelo homem do passado. E, quando seu corpo se revira em desespero no chão, a câmera foca o reflexo no espelho, o marido assustado com a inexplicável reação da esposa. Poucas vezes o cinema transmitiu com tanta inteligência os primeiros estágios da loucura, sem qualquer manipulação emocional, optando pela ausência total de trilha sonora. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil", com uma ótima entrevista com o diretor, abordando os bastidores da filmagem. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Make 'Em Laugh - "Um Tiro no Escuro", de Blake Edwards


Um Tiro no Escuro (A Shot in The Dark – 1964)
O embrião dessa obra-prima da comédia era um roteiro que Peter Sellers leu e odiou. Ele entregou a trama nas mãos do diretor Blake Edwards, que, auxiliado por William Peter Blatty, autor de “O Exorcista”, solucionou o problema ao substituir o protagonista insosso pelo personagem coadjuvante de “A Pantera Cor-de-Rosa”, Jacques Clouseau, que, até aquele momento, não passava de um esboço interessante trabalhado por Sellers, sem os elementos característicos que viriam a eternizar o atrapalhado inspetor francês. Enquanto o filme anterior era um veículo para o charme de David Niven, nesse, com total liberdade narrativa garantida por um fiapo de história, o diretor teve a chance de explorar ao máximo cada situação, procurando o potencial cômico até mesmo nas cenas menos convencionais. Essa opção injetou um frescor único, potencializado pela postura séria do protagonista, que verdadeiramente acredita ser o mais competente para o serviço, para o desespero de seu superior, interpretado pelo ótimo Herbert Lom.

Ao iniciar com um longo plano-sequência, emoldurado pela trilha de Henry Mancini, estabelecendo o cenário confuso da cena do crime, o roteiro já brinca com o incoerente conceito de culpabilidade conveniente da literatura de mistério, onde, por vezes, nem mesmo o autor parece saber a identidade do assassino até começar a escrever o último capítulo. Assim como o Hercule Poirot, de Agatha Christie, Clouseau faz questão de reunir todos os suspeitos para uma longa exposição de sua perícia, antes de apontar o culpado. O problema é que, diferente do belga orgulhoso, a cópia francesa é incapaz de caminhar dois passos sem pisar nos pés de alguém. Até mesmo a simples teatralidade do cronometrar de relógios se torna um obstáculo, somente superado pela forma desastrada com que o inspetor pratica a arte da sinuca. A beleza da suspeita mais óbvia, vivida por Elke Sommer, é realçada com ares oníricos pela fotografia de Christopher Challis, transmitindo para o público a mesma sensação de fascínio que ela causa no protagonista. Graham Stark, como o assistente do inspetor, rouba a cena em todos os seus momentos, conseguindo transparecer em seu rosto o desprezo que sente pelo colega, potencializando o efeito cômico das tiradas de Sellers. Vale perceber também como Edwards emula Hitchcock, algo que já se mostrava presente no filme anterior, com claras referências ao “Ladrão de Casaca”.

Gosto especialmente da repetição visual, que me remeteu ao estilo de Jacques Tati, com os disfarces excêntricos do herói sendo impiedosamente abortados pela ação policial, por falta de licença para executar os serviços. E, claro, uma das cenas mais hilárias, em sua simplicidade, da história do cinema: a nobreza de Clouseau ao escutar gritos femininos em um salão fechado. Wes Anderson prestou homenagem a essa sequência em seu recente “O Grande Hotel Budapeste”. 

Devo Tudo ao Cinema - S01E06 - Visitando a Dubladora Marisa Leal (1 de 2)

Octavio Caruso e Gui Monteiro visitam a dubladora Marisa Leal, num bate-papo descontraído sobre essa arte.



Cine Giallo - "Seis Mulheres Para o Assassino", de Mario Bava


Seis Mulheres Para o Assassino (Sei donne per l’assassino – 1964)
Isabella, uma jovem modelo, é assassinada por uma misteriosa figura mascarada numa Casa de Moda, pertencente à Condessa Cristiana. Quando o namorado de Isabela se torna suspeito do assassinato, o diário da vítima, contendo informações que relacionem a jovem ao assassino, desaparece. 


É interessante constatar uma das possíveis inspirações para o detetivesco Rorschach, de “Watchmen”, no assassino sem rosto dessa ótima incursão de Mario Bava no giallo, subgênero que ele havia criado, dois anos antes, com “A Garota Que Sabia Demais”, também conhecido como “Olhos Diabólicos”. A ausência de expressão, a teatralidade das luvas de couro pretas, a frieza na execução de seus atos, uma composição fiel ao espírito daquelas obras policiais psicologicamente despretensiosas, livrinhos de bolso de apelo imediatista, não exatamente de capas amarelas como a dos italianos, que comprávamos com trocados nas bancas de jornal. O triste é pensar que, apesar da beleza experimental inserida em cada frame do projeto, muitos críticos ainda encontrem argumentos para o menosprezo com o gênero, aplaudindo outros, tão criativos quanto, como o noir.

O trabalho com cores, sempre um atrativo especial nas obras do diretor, vive aqui um momento de glória, sendo impossível destacar apenas uma, dentre as várias sequências que poderiam facilmente ser emolduradas. Adicionando uma boa dose de sadismo ao tempero de sua tentativa anterior, além de um bom MacGuffin na figura do diário que incrimina praticamente todos os personagens, o roteiro utiliza os crimes como desculpa para o diretor pensar esteticamente sua coreografia do medo, conseguindo transmitir visualmente, com ajuda da atmosfera estabelecida pela iluminação, cenas que potencializam a dança da morte, fazendo com que esqueçamos, enquanto público, o desinteresse aparente em firmar as motivações por trás das ações dos personagens, característica que se tornaria usual nos slashers americanos, que, sem o estímulo visual inteligente e refinado do realizador italiano, não passavam de tola diversão inofensiva.

Como ocorria com Kubrick, por exemplo, a câmera de Bava transformava uma trama simples em um material interessante em diversas camadas. 

* O filme está sendo lançado numa versão restaurada em DVD, pela distribuidora “Versátil”, na caixa “Giallo”, que conta também com: “Tenebre”, “O Estranho Vício da Sra. Wardh” e “O Segredo do Bosque dos Sonhos”, além de vários documentários muito interessantes.

"Depois da Tormenta", de Curtis Bernhardt


Depois da Tormenta (Payment on Demand – 1951)
Joyce (Bette Davis) é uma dama da sociedade rica, cujo marido infeliz quer o divórcio. Ela começa a pensar nos momentos que viveu ao seu lado, refletindo sobre as engrenagens dessa relação.


Bette Davis se saía melhor quando operava sob o comando de um diretor com personalidade, que aparava suas arestas, como foi o caso de seus trabalhos com William Wyler. Curtis Bernhardt foi o responsável por um dos melhores trabalhos da atriz: “Uma Vida Roubada”, de 1946, e conseguiu extrair dela mais um impecável estudo de personagem. A estrutura é melodramática, com recursos datados, especialmente no terceiro ato, além de certa inconstância nas motivações da manipuladora protagonista, porém, a forma inteligente como o roteiro trabalha os flashbacks, mostrando várias fases no relacionamento do casal, numa anatomia das causas da separação, compensa qualquer falha. Hoje, a temática pode parecer simples, mas, em sua época, a postura da trama com relação ao divórcio, sem se debruçar em qualquer viés sensacionalista, deve ter sido impactante.

O comportamento da sociedade e, especialmente, das filhas, foge ao padrão moralista e machista do período. O filme foi finalizado antes da estreia de “A Malvada”, porém, o estúdio RKO adiou pacientemente o lançamento para aproveitar o vácuo do sucesso da obra de Mankiewicz. A atuação de Davis eleva a qualidade do material escrito, como sempre, com sua facilidade em resumir toda a agressividade dos diálogos em seu rosto, uma fúria contida. O mais interessante, um elemento que continua atual, é a crítica à hipocrisia da alta sociedade, que esconde suas frustrações e o vazio existencial com festas intermináveis e apreço exagerado pela adulação, uma pressão social que só existe na mente daqueles que optam pela escravidão a esses grilhões de futilidade. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

"O Julgamento de Viviane Amsalem", de Ronit e Shlomi Elkabetz


O Julgamento de Viviane Amsalem (Gett - 2014)
Como roteirista, eu sempre acreditei que o melhor caminho criativo é a restrição do ambiente em que ocorrem os conflitos dos personagens, o clássico conceito do “menos é mais”, como no caso da obra-prima de Sidney Lumet: “12 Homens e Uma Sentença”. E o trunfo dessa produção israelense reside na subversão do cenário usual dos dramas de tribunais, trabalhando com eficiência a claustrofobia de forma interna, palpável no desespero da esposa, já que o elemento externo, a sala dos juízes rabinos, iluminada e em tons brancos, não poderia aparentar ser mais confortável e harmoniosa. 

A pressão está confinada às expressões angustiadas da protagonista, interpretada por Ronit Elkabetz, que dirige o filme com seu irmão, Shlomi, com uma segurança invejável, mantendo a tensão em suas quase duas horas de diálogos, praticamente um teatro filmado. Os alívios cômicos brotam de forma inteligente no roteiro, com a função de salientar o absurdo da situação, a estupidez do machismo dominante em quase todas as ideologias religiosas. Em uma das cenas, o próprio irmão da personagem, ao testemunhar em sua defesa, inicia dizendo que, por mais que a ame, o marido dela canta tão bonito na sinagoga, parece até um pássaro, um homem perfeito. Ele complementa, para o choque dela, que já está vivenciando esse pesadelo burocrático há anos: “Uma mulher precisa ter limites”. As leis são criadas pelos homens, que se protegem em sua estupidez e insegurança.

O marido, uma amarga incógnita, não se preocupa em fornecer sequer um argumento para sua insistência no matrimônio, chegando ao ponto de, numa demonstração de total consciência do favoritismo da justiça, simplesmente se ausentar dos apontamentos no julgamento. Um dos juízes afirma, em uma cena importante, após escutar a reclamação do advogado da esposa, por ele ter questionado suas ações: “Todas as vidas dos homens estão em julgamento”. Esse julgamento patriarcal que abusa de conveniências, o que se escora no subjetivo elemento divino, é um dos alvos da trama, que expõe o ritual desumano de divórcio naquela sociedade, encabeçado por aqueles que acreditam deter uma autoridade superior, sempre posicionando a mulher abaixo de um mínimo nível de dignidade, precisando do consentimento do marido para obter a liberdade. Um dos muitos acertos da produção é nunca questionar esses procedimentos, estimulando a visão crítica que nasce da simples constatação, às claras, da tremendamente injusta escalada de absurdos inerentes ao fundamentalismo religioso. 

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

terça-feira, 1 de setembro de 2015

"Procurando Sugar Man", de Malik Bendjelloul


Procurando Sugar Man (Searching for Sugar Man – 2012)
O artista vive do material que nasce de seu sacrifício diário, ele se alimenta do resultado lúdico de sua total entrega emocional, uma espécie de vampiro autossuficiente. O sucesso, o lucro, os aplausos, são mais benéficos àqueles que se modificam ao experimentarem o produto, os receptores generosos e dedicados que aprenderam cedo em suas vidas a importância essencial do acúmulo de cultura, especialmente quando se percebem inseridos, padronizados numa linha industrial de pensamento, em uma sociedade que se perde cada vez mais na mediocridade narcisista do materialismo imediatista. O reconhecimento de um artista é apenas a forma mais justa de gratidão para com aqueles que verdadeiramente pavimentam a estrada criativa que inspira os seres humanos em suas realizações mais nobres.

Sixto Rodriguez, por muitos anos, acreditou ter sido irrelevante, totalmente desconhecido em seu país de origem, mas, na África do Sul, ignorava que era um músico idolatrado e que vendeu mais que Elvis Presley, responsável, com suas letras, por catalisar modificações políticas e comportamentais significativas nesse povo tão distante de sua realidade. Após dois discos que fracassaram em vendas na década de setenta, ele, com a integridade daqueles que não vivem de uma imagem mentirosa, continuou trabalhando, encontrando formas de ser útil à sua comunidade e, de forma modesta, pagar suas contas mensais. Sua mão calejada, o fruto de seus trabalhos como pedreiro, toca a guitarra com a delicadeza de um poeta; ele se transforma já nos primeiros acordes; morre a dura realidade e desperta o sonho.

O diretor Malik Bendjelloul consegue executar essa história fantástica em um ritmo preciso, sem pretensiosa gordura extra, como os melhores documentários, numa escalada de emoção que conduz a uma catarse inesquecível em seu desfecho. É lindo enxergar nos olhos desse filósofo a recusa em aceitar os mimos provenientes de seu resgate artístico, buscando compreender o que mudou no mundo, já que ele seguia sendo o mesmo.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora “Versátil”, em parceria com a “Livraria Cultura”, em uma ótima edição, com um rico documentário, entrevistas e até um trecho de uma apresentação contemporânea do artista.