quinta-feira, 31 de agosto de 2017

"A Ceia dos Acusados" e "A Comédia dos Acusados", de W.S. Van Dyke


A Ceia dos Acusados (The Thin Man – 1934)
A Comédia dos Acusados (After The Thin Man – 1936)
Uma das minhas lembranças mais agradáveis envolvendo a época do Natal foi quando preparei uma maratona caseira com os seis filmes da série, material que era impossível de encontrar em VHS, mas que consegui nos primeiros anos de garimpo na internet. Na época, minha única preocupação era a escola, aproveitava cada segundo das férias com cinema em casa e livros. Eu ainda não havia lido nada de Dashiell Hammett, mas já tinha lido sobre a adaptação de sua obra mais leve, “The Thin Man”, uma mistura deliciosa de suspense detetivesco com screwball comedy. E, claro, a presença de uma das minhas musas cinematográficas mais queridas, Myrna Loy, interpretando Nora Charles, ajudou a intensificar o desejo de ter contato com estas produções. Ela não era só linda, sensual e charmosa, também exalava intelectualidade, em suma, irresistível. William Powell, que vive Nick Charles, é bem diferente do tipo descrito no livro, não é decadente, nem está fora de forma, mas como só li a obra mais tarde, não me incomodou. Vale ressaltar que “thin man” (magro) se refere à vítima do assassino, já li muitas críticas brasileiras que ligam o título ao protagonista. É impossível enxergar outro ator no papel, o domínio de cena, o timing cômico, a maneira como ele defende o texto, a química matadora com Loy. 

O caso a ser resolvido nunca faz sombra ao show da dupla nos momentos mais comuns, tentar acompanhar as reviravoltas é pedir para ficar confuso, o desenvolvimento é problemático, sendo bastante sincero, as tramas dos seis filmes se misturam em minha mente, não há nada especialmente interessante nas investigações. A maneira como o casal interage de forma desaforada é que engrandece o resultado. É como Nick explica logo na primeira cena do primeiro filme, mostrando para um atendente do bar como preparar melhor a bebida com a coqueteleira: “O mais importante é o ritmo”. O crime a ser resolvido é apenas a moldura para situações de cumplicidade encantadora. Ele, um detetive aposentado bon vivant que vive sob o efeito do uísque, trata sua profissão como algo comum, sem encanto. Ela, refinada dama da alta sociedade, fascinada pela aventura e pelo perigo, gosta de ser uma espécie de “Watson” na vida de seu marido. Entre eles, Asta, um adorável e ciumento fox terrier. Os dois primeiros filmes são os melhores, mas recomendo que todos sejam vistos em ordem cronológica. 

“A Ceia dos Acusados” foi filmado em apenas dezesseis dias, mérito do milagreiro diretor W.S. Van Dyke, de “Tarzan – O Homem Macaco”, que gostava de fazer poucos takes, o que explica o feeling espontâneo no set, algo que ajudou bastante na equação de sucesso da obra. Ele também foi o responsável por direcionar o foco dos roteiristas Frances Goodrich e Albert Hackett, casados na vida real, ao relacionamento do casal, deixando o mistério policial em segundo plano, atitude que não foi bem recebida pelos executivos da MGM. E pensar que já li um famoso crítico brasileiro se referir ao W.S. Van Dyke como “medíocre”. O sucesso inesperado de público garantiu a continuação com orçamento triplicado, “A Comédia dos Acusados”, título nacional horroroso, que traz um jovem James Stewart em um papel desafiador. Hammett foi contratado para escrever uma nova trama, a troca de farpas do casal é ainda mais hilária, até Asta recebe mais atenção, protegendo sua esposa canina dos galanteios de um cão vizinho. O filme foi um sucesso, o roteiro foi indicado ao Oscar.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Guilty Pleasures - "Aeroporto 75" e "Aeroporto 77"


Aeroporto 75 (Airport 1975 - 1974)
Aeroporto 77 (Airport '77 - 1977)
“Aeroporto”, dirigido por George Seaton em 1970, adaptado do popular livro de Arthur Hailey, inaugurou a era mais celebrada dos filmes de desastre, com sua estrutura narrativa que remetia ao clássico “Grande Hotel”, de Edmund Goulding. O elenco refinado e de relevância internacional, Burt Lancaster, Dean Martin, Van Heflin, George Kennedy, Jean Seberg e Jacqueline Bisset, o tema de amor composto por Alfred Newman e que virou sucesso na versão de Vincent Bell, além da utilização ousada da tela dividida, garantiram o interesse do público, o filme foi um tremendo sucesso nas bilheterias, apesar de ser chato como poucos, elegante e bem produzido, mas interminável.  Três filmes foram feitos inspirados livremente no conceito, artistas respeitados que representavam diferentes gêneros e épocas inseridos em uma situação de grave perigo. Sem ligação direta com o original, com exceção da participação de George Kennedy, os roteiros enfocavam no melodrama folhetinesco, com alívios cômicos rasos e uma satisfatória construção de suspense. 

“Aeroporto 75”, “Aeroporto 77” e “Aeroporto 80 – O Concorde”, apesar de abordarem tragédias aéreas, são, de fato, ferramentas de marketing positivo para os aviões em destaque, já que os problemas nunca são causados por falha técnica, as máquinas são tão avançadas tecnologicamente que até mesmo uma aeromoça sem experiência pode tomar o lugar do piloto e dar conta do recado. A quarta produção é lastimável, nem mesmo a presença da maravilhosa Sylvia Kristel, eterna “Emmanuelle”, consegue fazer a experiência ser menos constrangedora. Mas eu nutro carinho especial por “Aeroporto 75” e “Aeroporto 77”, ainda que estejam longe de ser considerados bons. A trilha sonora de John Cacavas, especialmente em 75, pode ser considerada uma das melhores da década. Os pilotos, Charlton Heston (75) e Jack Lemmon (77), dignidade e credibilidade indiscutíveis, você realmente acredita que eles seriam capazes de salvar o dia. O cinema de horror é representado em 77 por Christopher Lee, o Drácula da Hammer, e em 75 pela figura adorável da jovem Linda Blair, que agora, já livre da possessão demoníaca, faz amizade com uma freira cantora e passa o tempo inteiro deitada em uma cama. Gloria Swanson (75), James Stewart (77), Myrna Loy (75), Joseph Cotten (77) e Olivia de Havilland (77) representam a justa reverência à época de ouro da indústria, uma noção de respeito à memória cultural que infelizmente se perdeu em Hollywood. 

“Aeroporto 75” não foi pensado como uma espécie de releitura, a ideia original do roteirista Don Ingalls, nome respeitado na televisão, envolvia um típico projeto imediatista despretensioso para a tela pequena, mas o produtor da Universal ficou empolgado com a possibilidade de lucro certo ao revisitar o sucesso do início da década. O roteiro insere a figura descaracterizada do personagem de George Kennedy como tentativa desesperada de estabelecer alguma ligação. A direção ficou sob a responsabilidade de Jack Smight, nome sem créditos relevantes, que obviamente se divertiu muito com o material, o tom é assumidamente debochado. Não por acaso, 75 foi o escolhido pelos irmãos Zucker como base para as gags mais hilárias do espetacular “Apertem os Cintos... o Piloto Sumiu! ”. Karen Black abraça com muita dignidade o papel da pessoa comum que enfrenta uma situação absurda. Ao contrário do original, o interesse do roteiro está no exótico material humano dentro do avião, pouca atenção é dedicada aos profissionais em terra, elemento que facilita o investimento emocional do espectador. A sequência em que o piloto substituto é transferido, preso em um cabo de aço, do helicóptero para o avião, entrando pelo buraco na fuselagem, apesar de todos os truques visuais datados, segue eficiente. Produzido ao mesmo tempo que seu primo rico: “Terremoto”, dividindo boa parte da equipe técnica e elenco, “Aeroporto 75” vence com folga no cruel teste do tempo.

“Aeroporto 77” é pura picaretagem, adorável, maravilhosa picaretagem. “O Destino de Poseidon”, que considero o melhor filme catástrofe de todos os tempos, havia elevado os padrões em 1972, enchendo os cofres da FOX, mostrando a luta por sobrevivência em um transatlântico que vira de cabeça para baixo após ser atingido por uma onda. Por que não investir em uma trama em que um Boeing 747 atravessa o Triângulo das Bermudas e afunda no oceano? Unir o medo de voar com o medo de morrer afogado. Há um pouco da mística que envolve o local e, claro, a possibilidade de criar angustiantes sequências submarinas. Os roteiristas Michael Scheff e David Spector aceitaram o desafio e operaram um considerável milagre. A trama é muito mais absurda que a de 75, mas o tom não é de deboche, o trunfo do filme é se levar a sério, com a ajuda importante da interpretação sóbria e respeitável do sempre competente Jack Lemmon. 

sábado, 26 de agosto de 2017

Sobre a incompreensão da função da crítica e a parcela de culpa dos profissionais da área

Quando eu comecei a escrever sobre cinema, a imagem do crítico era menosprezada neste país pelo grande público, ele era visto como o "chato do contra", o "dono da verdade", aquele que diz o que deve ser visto e o que deve ser desprezado. Uma das minhas metas era, em longo prazo, melhorar este triste panorama. Mas parte considerável de culpa por esta equivocada visão que alimentou por décadas a incompreensão sobre a função da crítica recai nos ombros de muitos profissionais da própria crítica cinematográfica. Aqueles que segregam, aqueles que querem se sentir especiais, aqueles que diminuem os esforços dos outros sem pensar duas vezes. 

Quando o profissional utiliza o cinema como base possível para extravasar sua arrogância, ele acaricia o próprio umbigo, satisfaz o ego, atrai seus semelhantes (pedantes que necessitam de autoafirmação intelectual) e afasta todos aqueles que verdadeiramente amam a arte, ou que estão começando a se interessar, uma fagulha que deve ser sempre estimulada. O crítico medíocre precisa traçar uma linha imaginária na areia e garantir que está com os pés fincados no "lado certo", deslegitimando os outros, tolos, amadores, irrelevantes. Para ele, "a regra é clara". Só que não existe uma regra, uma única maneira de se escrever profissionalmente sobre cinema. A crítica profissional acadêmica é estruturada nos critérios do profissional que a escreve, logo, naquilo que ele defende como correto, ele não segue uma tabela. François Truffaut, por exemplo, escrevia movido por paixão. Ele então não pode ser considerado um profissional da "crítica acadêmica"? Escrever com paixão não é o mesmo que escrever sem embasamento teórico. 

Como sempre afirmo, a fascinação pela arte crítica reside exatamente na pluralidade de análises, especialmente naquelas que argumentam visões opostas. Se a análise acadêmica fosse conduzida por robôs (única forma de não ser subjetiva), obviamente não haveria oposição de ideias, mas também não creio que haveria público. Como o palestrante chato que passa duas horas falando em tom monocórdico e sem brilho nos olhos, com trinta livros abertos na mesa, para meia dúzia de rostos bocejantes. Ele busca apenas o status social/profissional, não se importa com o receptor. O que fascina o cinéfilo é sentir, por trás de toda a exposição teórica, o profundo amor do profissional pelo material que analisa. O ideal seria que todos os veículos impressos presenteassem o público com o maior número possível de textos sobre cinema, mas creio que isto não seja financeiramente atraente, o que diz muito sobre o nível educacional do brasileiro. Mas, como salientei em texto recente, aquele que não é impedido pela preguiça intelectual sabe que veículos impressos são apenas uma fonte de informação.

Eu celebro todos aqueles que escrevem na área movidos pela paixão e contaminados pelo vírus do garimpo intelectual. O crítico de cinema não é chato, o chato é ser arrogante em qualquer área. 

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

"Bingo: O Rei das Manhãs", de Daniel Rezende


Bingo: O Rei das Manhãs (2017)
O cinema brasileiro está começando a entender que a versatilidade temática é fundamental na construção de uma indústria, as histórias menos convencionais podem operar a mágica do encantamento que urge pela revisão. É exatamente o que acontece em “Bingo: O Rei das Manhãs”, dirigido por Daniel Rezende e com fotografia de Lula Carvalho, uma obra em que podemos sentir em cada cena, em cada detalhe, o amor profundo pelo material. Quem era criança na década de oitenta será automaticamente hipnotizado pela impecável recriação da época, desde toques sutis como a fonte da legenda que remete às fitas VHS, passando pela seleção musical matadora, até algumas soluções narrativas propositalmente ingênuas (como o interlúdio musical onírico de revide e o recurso visual de comunicação entre pai e filho) que evocam a doçura poética de clássicos do período, como “Cinema Paradiso”.

O roteiro de Luiz Bolognesi equilibra com maestria o drama e a comédia, sem medo de ousar nos dois, inserindo doses generosas de pimenta e recusando se desviar do lado mais sombrio da trama, sendo espertamente coerente com o espírito anárquico do protagonista. O texto cômico é extremamente eficiente, ajudado por um elenco verdadeiramente inspirado. Se a trava emocional imposta pela devoção religiosa da diretora do programa limita seus movimentos, opção física inteligente que sugere desconforto e a necessidade de ser respeitada profissionalmente, Leandra Leal permite que a natural revolta interna de Lúcia seja liberada em breves e intensos segundos de descontração. É brilhante a forma como o filme trabalha o elemento da teatralidade, força motriz no circo televisionado e no púlpito do templo evangélico, versões altamente diluídas de impulsos genuínos e que visam prioritariamente o lucro financeiro.

A mãe do palhaço, maravilhosa Ana Lúcia Torre, atriz sensível que é afastada dos palcos e passa a ser subutilizada pelos produtores em funções tolas, obrigada a ver jovens de rostos bonitos e mentes vazias dominando o cenário artístico nacional. A cena em que ela enfrenta com dignidade esta realidade é emocionante, um primor técnico, envolvida e acariciada pelas sombras de suas glórias de outrora, esquecida por um povo sem memória. Vladimir Brichta, vivendo Augusto/Bingo, está impressionante, irrepreensível, como é triste ver um talento como ele sendo usualmente desperdiçado em rasas telenovelas. Perceba como ele constrói o personagem inicialmente no olhar, nos gestos que gradativamente vão se tornando mais claudicantes à medida em que seu psicológico já fragilizado (pela insegurança profissional, por querer ser mais do que um corpo nas pornochanchadas) avança rapidamente em espiral descendente com o vício das drogas, até que, no terceiro ato, despido existencialmente, porém, com sua vaidade intacta, ele limita seus movimentos, seu espaço físico, rimando com o ponto de partida da mulher que ama, que, por sua vez, tendo conquistado segurança profissional, aceita relaxar um pouco. Os dois se completam.

Inspirado livremente na vida de Arlindo Barreto, o filme é o clássico conto do azarão que consegue a grande chance e, inebriado pela fama, perde contato com suas raízes e precisa reencontrar o caminho. No limiar do abismo ele percebe que a resposta estava ao seu lado o tempo todo, o filho pequeno, seu legado. O azarão temático em um gênero nacionalmente dominado por mínimas variações afinadas por um mesmo diapasão, “Bingo: O Rei das Manhãs” é um dos melhores filmes do ano.

TOP - 2004


1 - Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of The Spotless Mind), de Michel Gondry
"... O roteiro brilhante de Charlie Kaufman nos induz a questionar a nossa frágil psique, com a angústia de alguém em lidar com a indiferença do outro. Apaga-se a memória, mas ele ainda existe..."


2 - Peixe Grande (Big Fish), de Tim Burton
"... A perspectiva da morte faz com que o jovem busque conhecer aquela incógnita falastrona, que sempre o deixava envergonhado em suas festas com seus arroubos criativos. Angustiado com a recusa do pai em se mediocrizar, tornar-se comum, o seu filho então decide conduzir uma pequena investigação, que acaba levando-o a constatar que somente a fantasia, o lírico, realmente satisfaz de forma plena..."


3 - Encontros e Desencontros (Lost in Translation), de Sofia Coppola
"... A insegurança demonstrada na posição fetal da jovem e o tédio que ele expressa no desleixo com que preenche seu lado da cama. Lentamente percebemos a mão dele vencendo o medo da entrega do sentimento, a insegurança pela diferença de idades, procurando o toque que simboliza naquele momento muito mais que um beijo..."


4 - Colateral (Collateral), de Michael Mann
"... A estética e o ritmo, aliados à competência de Tom Cruise e Jamie Foxx, garantem o impacto sensorial em um dos melhores filmes do gênero nos últimos anos..."


5 - Má Educação (La Mala Educación), de Pedro Almodóvar
"... O diretor insere temas perturbadores de uma forma onírica e demasiadamente humana, desafiando o espectador a acompanhar seu raciocínio, proposta corajosa..."


6 - A Paixão de Cristo (The Passion of the Christ), de Mel Gibson
"... Por trás da ideologia questionável de Gibson, anestesiando os ensinamentos de amor e compaixão do personagem ao favorecer a agonia da purificação pela dor, não há como negar que a obra é um primor técnico..."


7 - Todo Mundo Quase Morto (Shaun of The Dead), de Edgar Wright
"... Esqueça o título nacional horroroso, Edgar Wright é uma das melhores surpresas do cinema na história recente, subvertendo as expectativas do público e firmando uma caligrafia autoral no gênero da comédia..."


8 - Primer, de Shane Carruth
"... O segredo reside no desinteresse do autor em construir algo convencional, agradável, para o público, o que resultou em uma trama que nunca seria comprada por qualquer estúdio, nenhum teria coragem de arriscar perder dinheiro com algo tão desafiador..."


9 - Diário de Uma Paixão (The Notebook), de Nick Cassavetes
"... O filme de romance que, sem querer reinventar a roda, renova as esperanças no gênero, comandado pelo competente filho de John Cassavetes, que aproveita o embalo e presta linda homenagem à sua mãe, Gena Rowlands..."


10 - A Vila (The Village), de M. Night Shyamalan
"... O diretor brinca com sua característica mais conhecida, a reviravolta final, trabalhando o conceito vazio do resgate do passado histórico como forma de lidar com um grande trauma, uma sociedade que conscientemente rejeita a lógica por uma mentirosa sensação de conforto..."

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Guilty Pleasures - "Sexta-Feira 13 - Parte 7" e "Jason Vai Para o Inferno"


Sexta-Feira 13 - Parte 7: A Matança Continua (Friday the 13th Part 7: The New Blood - 1988)
Jason Vai Para o Inferno: A Última Sexta-Feira (Jason Goes to Hell: The Final Friday - 1993)
O primeiro filme é bom, o segundo é excelente, o terceiro e o quarto são muito bons, o quinto é desprezível, o sexto é ótimo, apesar de representar uma mudança drástica de tom, mas os quatro posteriores costumam ser sempre citados como bombas nucleares. E, de fato, eles são mesmo. “Jason X” e “Sexta-Feira 13 – Parte 8: Jason Ataca Nova York” merecem constar na lata de lixo da história do gênero. O problema é que eu tenho um carinho especial por “Sexta-Feira 13 – Parte 7” e “Jason Vai Para o Inferno”, ainda que enxergue todos os defeitos, são meus guilty pleasures na querida franquia do assassino imortal de Crystal Lake.

O diretor John Carl Buechler pode não ter demonstrado muito talento em seu ofício, as atuações no sétimo filme estão entre as piores da série, mas é inegável que contribuiu impecavelmente para a cultura pop mundial ao lutar com os produtores pela escalação de Kane Hodder, amigo com quem havia trabalhado em um projeto anterior, para viver Jason Voorhees. Os engravatados do estúdio não enxergavam no rapaz o senso de ameaça, afinal, qualquer dublê poderia defender as cenas do monstro mudo com o rosto coberto por uma máscara. Mas o diretor sabia que Hodder traria algo novo, seguiu sua intuição, os fãs agradecem até hoje! O segredo é que ele realmente amedrontava as suas vítimas nas filmagens, a respiração pesada, a movimentação do corpo, a brutalidade com que executava as coreografias intencionava transmitir para o elenco o real sentimento de alguém que percebe que está nas mãos de um louco extremamente agressivo. Aliada ao toque visual inteligente do diretor, que decidiu fazer pela primeira vez a figura do assassino remetendo diretamente às várias “cicatrizes de guerra” sofridas nas produções anteriores, esta versão consegue resgatar o senso de perigo de um personagem que já havia se transformado em deboche. Quando Jason é libertado da corrente que o manteve debaixo do rio por dez anos, apesar da motivação tola envolvendo o trauma de infância da telecinética Carrie genérica (vivida por Lar Park Lincoln), você se sente atraído por aquela inexplicável força da natureza. Outro elemento que retorna em doses generosas após o monástico sexto projeto é a nudez gratuita, maravilhosa distração que compensa os diálogos constrangedores e o desenvolvimento patético dos coadjuvantes jovens.

O nono filme já não é tão fácil de defender, qualquer pessoa acima dos dez anos de idade é capaz de concluir que não é bom. O problema é que eu tinha dez anos quando ele estreou no Brasil. Aluguei várias vezes o VHS nos anos seguintes, vibrei com a sequência final em que a luva do Freddy Krueger aparece e carrega a máscara de Jason para o inferno, em suma, guardo boas lembranças. Mas, analisando carinhosamente, vale ressaltar uma qualidade inegável, o nível de gore é impressionante, algo que não era comum na franquia. O diretor Adam Marcus consegue ser menos expressivo que o Buechler, o tom é de projeto amador, o roteiro inventa uma irmã para Jason e uma adaga mágica que, mesmo tendo visto várias vezes a obra, ainda não consigo entender como se encaixa na trama. Kane Hodder infelizmente aparece menos desta vez, explode logo no início, reaparece ao final como se nada tivesse acontecido, o “espírito” do monstro vai possuindo corpos de vítimas, opção que, em teoria, serviria como sopro de ar fresco, caso o conceito fizesse qualquer sentido na história. É uma adorável bobagem despretensiosa com jeitão de picaretagem independente, sobra espaço até para uma homenagem a H.P. Lovecraft e ao “Evil Dead”, de Sam Raimi, utilizando em uma cena o livro Necronomicon, obviamente guardado na casa dos Voorhees. A sequência inicial propõe uma crítica hilária às convenções do slasher e da própria série, com a equipe da SWAT armando uma cilada para o assassino, utilizando como cobaia uma beldade policial disfarçada de descerebrada seminua adolescente.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

TOP - 25 Melhores Filmes Brasileiros de Todos os Tempos


O cinema brasileiro é rico em temas, o problema é que muitos diretores não conseguem fazer seu trabalho ser comercialmente disponível, poucos conseguem atravessar o funil e ir além dos festivais de cinema. Há uma massa de intelectuais brasileiros que desprezam o cinema de gênero, professores de faculdades de cinema estimulam em seus alunos esta atitude errada. Uma nova geração de críticos, da qual faço parte, está lutando diariamente para mudar esta triste realidade em longo prazo.

Alguns destes filmes que eu selecionei nem sequer são lembrados por estes profissionais veteranos, mas demonstram a versatilidade, coragem e bom humor destes artistas que geralmente trabalham com orçamento muito baixo. Da era silenciosa aos tempos modernos, todos os gêneros, drama, romance, suspense, comédia, horror, documentário, filmes infantis e intensos filmes de ação. Aqui estão os 25 melhores filmes brasileiros:

25 – Os Saltimbancos Trapalhões (1981)
"Os Trapalhões" eram um grande sucesso no Brasil, um grupo de comédia amado por crianças e adultos, mas nunca fizeram algo tão ousado quanto este filme. Adotando a estrutura de um musical infantil (músicas escritas por Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov, adaptado ao português por Chico Buarque), vale a pena enfatizar o roteiro ousado, a bela mensagem dos pobres artistas de circo unidos como uma oposição corajosa aos atos ultrajantes de um ditador, um elemento que engrandece o resultado com um excitante simbolismo.

24 – Noite Vazia (1964)
Walter Hugo Khouri, inspirado por Antonioni e os jovens cineastas franceses da Nouvelle Vague, lida com a angústia de quem, em teoria, não teria motivos para sofrer, os problemas existenciais da burguesia. Os personagens são hipócritas incapazes de exercer o esforço necessário para escaparem da inércia, o confinamento no apartamento simboliza o medo de enfrentar o mundo.

23 – Assalto ao Trem Pagador (1962)
Com base em um caso real que aconteceu no Rio de Janeiro, quando uma gangue atacou o trem pagador da Central do Brasil, Roberto Farias consegue criar um ótimo filme de assalto com muito pouco orçamento, pressionando o dedo sobre a ferida da sociedade preconceituosa e racista da época. O elenco brilhante, com destaque para Eliezer Gomes, Grande Otelo e Reginaldo Faria, ajuda a elevar ainda mais a qualidade do filme.

22 – O Caso dos Irmãos Naves (1967)
O filme de Luís Sérgio Person, corajosamente nos anos da ditadura militar, conta a verdadeira história de prisão, tortura e morte de Joaquim e Sebastião Naves, injustamente acusados ​​de um crime. Presos e torturados, os irmãos são obrigados a confessar um crime que não cometeram. Um dos casos mais emblemáticos de erro judicial no Brasil.

21 – O Bandido da Luz Vermelha (1968)
Rogério Sganzerla, com muito pouco orçamento, experimentou (e subverteu loucamente) com as convenções do thriller de Hollywood. Fugindo da lógica populista dominante no Cinema Novo, não há heroísmo na pobreza, não há esperança, apenas a devastação direcionada a tudo e a todos.

20 – O Gato de Madame (1957)
Amácio Mazzaropi foi um dos maiores nomes do cinema brasileiro, profundamente amado pelas pessoas, apesar de ser humilhado na vida por críticos profissionais que desprezaram seu trabalho. Ele lutou para estabelecer uma indústria cinematográfica autossustentável no país. Neste projeto, dirigido por Agostinho Martins Pereira, ele foi favorecido por um roteiro corajoso que extraiu o humor ácido das críticas sociais, zombando de praticamente todos os conceitos estabelecidos, principalmente sobre políticos e a utopia socialista, com citações como: "Democracia é como uma melancia, verde de esperança por fora, mas vermelha por dentro, queimando com o desejo de mandar em tudo."

19 – Abril Despedaçado (2001)
Walter Salles tornou-se conhecido no mercado exterior com "Central do Brasil", mas foi com o projeto seguinte que conseguiu o equilíbrio sensorial perfeito. Inspirado pelo livro do albanês Ismail Kadaré, adaptado ao cenário do nordeste brasileiro, o roteiro é um conto de vingança entre duas famílias, mas não se concentra na violência, o interesse é no desenvolvimento de personagens expostos aos níveis mais profundos da miséria humana.

18 – Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro (2010)
O primeiro filme explodia na cara do espectador como uma espingarda, o segundo é como um tiro de bala dumdum, penetra no corpo e causa maiores danos internos. A reflexão crítica que o roteiro de José Padilha propõe é o elemento que o torna um produto superior no gênero ação, o inimigo não é apenas o criminoso violento nas ruas, mas também o sistema político podre que governa a sociedade em que a violência está inserida.

17 – Lavoura Arcaica (2001)
A fidelidade ideológica de Luiz Fernando de Carvalho às páginas do livro de Raduan Nassar pode ser percebida inicialmente na preocupação do diretor por uma construção detalhada, desde o uso do texto original, através das ideias inteligentes no figurino de Beth Filipecki, até a elegância funcional do Gordon Willis brasileiro: Walter Carvalho.

16 – Pixote - A Lei do Mais Fraco (1981)
A realidade cruel das ruas é evidenciada pelo diretor Hector Babenco, em seu melhor trabalho, abordando a perda de inocência em crianças expostas a um mundo de crime e prostituição. O pequeno Pixote é enviado a um reformatório, mas descobre que o sistema está corrompido, e que talvez ele estivesse mais seguro longe das garras da lei.

15 – Ganga Bruta (1933)
Iniciado em 1931, este filme mudo dirigido por Humberto Mauro sofreu consideráveis ​​atrasos. O produtor Adhemar Gonzaga sonhou em filmar o projeto na Amazônia, que acabou por não acontecer, com problemas de dinheiro. Ainda assim, a produção simbolizava uma maturidade profissional do cinema brasileiro, com cenas internas capturadas por quatro câmeras, algo usual em Hollywood na época, mas novidade para a indústria cinematográfica brasileira.

14 – Viagem ao Fim do Mundo (1968)
Com forte inspiração nas obras da filósofa francesa Simone Weil, simbolizada no monólogo existencialista de uma freira sobre a hipocrisia da religião, especialmente como uma ferramenta política, um ponto extremamente atual em uma sociedade em que um candidato que se declara ateu não vence a eleição, o filme do diretor Fernando Coni Campos, embora seja parte do movimento Cinema Novo, pode ser visto como uma antítese da celebração da rebelião sofisticada nas obras de Glauber Rocha, já que seu experimentalismo visual não parece buscar inspiração na melancolia poética do neorrealismo italiano.

13 – O Lobo Atrás da Porta (2013)
O roteiro do diretor Fernando Coimbra, que estreia de forma promissora com a coragem de um veterano como Michael Haneke, se atreve a seguir o caminho do gênero de suspense com personalidade, ajudado pelas ótimas atuações de Leandra Leal e Milhem Cortaz.

12 – Terra em Transe (1967)
Glauber Rocha disse que estava tentando fazer algo que fundisse o cinema intelectual que foi feito na Europa (o surgimento da Nouvelle Vague), com Hollywood. Misturando John Ford e Eisenstein. Em "Terra em Transe", ele conseguiu criar sua obra-prima, aproximando-se mais eficientemente de seus desejos artísticos.

11 – Casa de Areia (2005)
A riqueza do roteiro complementada por uma entrega magistral das atrizes, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, mãe e filha na vida real, cria poesia orgânica, que convida o público a pensar e se emocionar neste inesquecível conto de solidão dirigido por Andrucha Waddington.

10 – A Hora da Estrela (1986)
Não é difícil concluir que esta bela adaptação de Suzane Amaral para o livro de Clarice Lispector, fiel à essência e eficiente na sua execução, é o melhor filme brasileiro da década de oitenta, verdadeira flor no asfalto. A sensibilidade do roteiro, que funciona com uma simplicidade incomum no período, uma época em que todos os cineastas brasileiros pareciam tentar imitar a cacofonia visual de Glauber Rocha, que, por sua vez, emulava experimentos franceses, cativa o espectador já nas primeiras cenas, quando conhecemos a protagonista: Macabéa, vivida por Marcélia Cartaxo.

9 – Cabra Marcado Para Morrer (1984)
Eduardo Coutinho fazia uma espécie de cinema intensamente emocional, original, corajoso, que forjava uma audiência consciente e crítica, um elemento essencial, principalmente por causa da maneira como sua lente aborda um tema que, em outras mãos, poderia se tornar algo panfletário, manipulador, reduzindo tudo a uma visão simplista.

8 – Filme Demência (1986)
Produzido pela Embrafilme, um roteiro escrito por Carlos Reichenbach e Inácio Araújo, esta pérola ainda é raramente comentada por cinéfilos brasileiros, o trabalho mais pessoal do diretor. Idealizado em tempos de crise nacional, a ideia original teve que ser abortada após cortes no orçamento e acabou por ser transformada em uma versão para "Fausto" de Goethe.

7 – De Vento em Popa (1957)
O movimento Cinema Novo dos anos 70 capitalizou com a pobreza, mas a crítica política e social desses filmes empalidece em comparação com a imagem de Oscarito mantendo seu disfarce como cientista aristocrático, um conceito cômico que atinge o alvo com mais pungência do que todos os chamados "revolucionários" cineastas brasileiros fariam nos anos seguintes.

6 – Navalha na Carne (1969)
O diretor Braz Chediak conseguiu estabelecer uma atmosfera opressiva praticamente insuportável, dominada por planos fechados e longas tomadas, com um uso sábio do silêncio, que vai além dos primeiros trinta minutos com apenas sons diegeticos. O texto corrosivo de Plínio Marcos, defendido de forma naturalista pelos atores consome o ambiente claustrofóbico, a sala fétida e desorganizada que serve como microcosmo de uma sociedade hipócrita.

5 – Vidas Secas (1963)
A inteligência do diretor de fotografia Luiz Carlos Barreto, com lente nua, sem filtros, deixando a luz explodir, esmagando os personagens no terreno escaldante. O chiado das rodas do carro de boi é a trilha sonora ensurdecedora, colocando o espectador em um estado alterado e desconfortável, imediatamente imerso na realidade desesperada da família sertaneja.

4 – O Despertar da Besta (1970)
O filme já começa ao som de "Ave Maria", que é implacavelmente interrompida pelo som de um grito de horror. Somente esse elemento seria um argumento suficiente para a estúpida ditadura militar agir como censura. Eles não apenas impediram que o filme fosse exibido nos cinemas, queimaram as cópias. Recuperado nos anos oitenta, continua sem lançamento comercial. Com um roteiro refinado de Rubens F. Lucchetti, baseado em um argumento de José Mojica Marins cheio de metalinguagem, que, no contexto da época, ousou falar sobre o comportamento humano de uma forma que ainda hoje é corajosa.

3 – Limite (1931)
Este belo filme mudo foi amado por David Bowie e selecionado para restauração por Martin Scorsese. Desconhecido pelo público brasileiro, reconhecido no exterior como obra-prima, o filme de Mário Peixoto usa a sobreposição poética de imagens desarticuladas e muito simbolismo, abordando o infortúnio da humanidade diante da limitação universal.

2 – O Pagador de Promessas (1962)
Em 1962, um jovem chamado Anselmo Duarte, ator em filmes como "Sinhá-Moça" e "Aviso aos Navegantes", decidiu dirigir uma história à frente de seu tempo. Ele trouxe a Palma de Ouro, do Festival de Cannes, despertando a inveja de seus colegas.

1 – Cidade de Deus (2002)
Fernando Meirelles conseguiu capturar a revolta brasileira com as taxas crescentes de violência urbana e o sentimento absurdo de impotência diante de um sistema que parece proteger os criminosos, a impunidade em todos os níveis, canalizando essa raiva coletiva para a estética de seu filme. É rápido, é brutal, é real.

* Lista preparada para o site norte-americano "Taste of Cinema". Link para a postagem original, com os textos em inglês e sem cortes: http://www.tasteofcinema.com/2017/the-25-best-brazilian-movies-of-all-time/

Sobre a preguiça intelectual do público e o "Bonequinho" do Globo

Você já deve ter lido várias vezes que "se o Bonequinho está dormindo, pode ir, que o filme é bom". O comentário é maldoso, tolo, além de revelar mais sobre aquele que o defende, o típico indivíduo que se orgulha em dizer que despreza críticos de cinema porque "tem opinião própria". No português claro, um bronco. Há uma questão fundamental, a incompreensão da função da crítica por grande parte do público. O usual é encontrar comentários bastante agressivos direcionados aos profissionais da área. Um absurdo, tremenda falta de respeito, especialmente quando partem de colegas. O problema não é a avaliação do crítico, que fala diretamente aos critérios que ele utiliza. O que vale ser discutido é o jornal utilizar apenas uma avaliação para cada obra. 

O público que já não valoriza leitura no dia a dia, pouca atenção dedica ao texto crítico, vê o "Bonequinho" e decide em poucos segundos se vai comprar o ingresso. O problema realmente grave é a tremenda falta de interesse do brasileiro, hoje em dia o indivíduo tem acesso pleno à informação. Se ele se baseia apenas em uma fonte, triste constatação. Como sempre afirmo, o mais correto é ler variados textos críticos, especialmente os discordantes, agregando aquelas análises à reflexão que a pessoa vai fazer após a sessão. Jogar pedra no crítico é estupidez, atestado de ignorância. Se o jornal não abre espaço maior para a crítica cinematográfica, uma pena, reflete apenas o pensamento comodista e preguiçoso de grande parte dos seus leitores. Futebol recebe páginas e mais páginas de análises, cinema recebe nota de rodapé, esta é a cara do Brasil. 

Buscar informação é elemento essencial, o Globo e seus "Bonequinhos" são apenas uma fonte de informação. E, acima de tudo, são profissionais que merecem respeito. Se os responsáveis não consideram financeiramente viável abrir mais espaço em suas páginas para o cinema, você pode encontrar dezenas de textos críticos na internet sobre uma mesma obra. Encare com mais atenção seu próprio reflexo no espelho e se pergunte com sinceridade: Eu realmente demonstro interesse no tema?

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Sobre o conceito de "filme velho" e o valor da revisão

O filme em preto e branco, mudo ou falado, em suma, aquela obra que foi lançada décadas antes de você nascer. É comum ler comentários de adultos que citam estes títulos com a certeza de que resgatam algo provavelmente esquecido, como se já antecipassem a resposta debochada: "Isso não é do meu tempo, coroa". Por vezes, a própria pessoa já se defende, dizendo de forma depreciativa que o filme é velho. Como assim? Velho é aquilo que você conhece há muitos anos. Se você tem dezoito anos e está começando a se interessar por cinema, TODOS os filmes já produzidos são NOVOS.

É importante, como crítico de cinema e um apaixonado autodidata pelo garimpo desde a infância, utilizar este espaço para tentar fazer você entender que, por mais que muitos jovens e adultos primem pelo limitado pensamento imediatista, o mais correto é apreciar a arte como algo atemporal. Aprofundando a análise, a forma como o indivíduo enxerga o passado é sintomática de seu nível educacional. Vale traçar um paralelo com o desrespeito generalizado com os idosos na sociedade. Como sempre afirmo, incentive em seus filhos desde cedo o amor pelo garimpo cultural. Aquele que não vê beleza no antigo, ou que sequer dá chance de conhecer estas obras, por preconceito tolo ou preguiça, está fadado a acordar um belo dia e perceber que já não é mais existencialmente relevante, afinal, envelheceu.

A pessoa debocha porque você está vendo um filme repetido. O clássico "este eu já vi" simplesmente não faz sentido na apreciação cinematográfica. O ato de rever um filme é fundamental. Imagine escutar a canção apenas uma vez. Imagine beijar a pessoa amada apenas uma vez. Quem vê o filme apenas uma vez enxerga no cinema um passatempo pueril, facilmente substituível por uma partida de gamão, ou um treino de cuspe à distância. O amor urge pelo reencontro.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Nos Embalos do Rei do Rock - "Com Caipira Não Se Brinca"


“Viva Las Vegas” foi filmado antes, mas lançado depois de “Kissin’ Cousins”, o que já evidencia uma característica fundamental do segundo, a produção de baixíssimo orçamento, filmada em duas semanas. O empresário, preocupado com os custos do refinamento do anterior, quis garantir que o próximo compensaria na rapidez, então convocou o produtor Sam Katzman, especialista em extrair leite de pedra. Apesar dos obstáculos naturais, os cortes financeiros são facilmente perceptíveis se comparados à “O Seresteiro de Acapulco”, por exemplo, o roteiro de Gene Nelson e Gerald Drayson Adams, especialista em tramas leves e agradáveis, como “A Princesa do Nilo”, foi indicado para o prêmio do sindicato de roteiristas na categoria musical.


Com Caipira Não Se Brinca (Kissin' Cousins - 1964)
Josh Morgan (Elvis Presley) é um oficial do Exército que precisa visitar parentes caipiras e convencê-los a permitirem que uma base de mísseis seja instalada em suas terras.

Se fosse lançado alguns anos antes, teria sido elogiado pela crítica como despretensiosa comédia, o problema foi o timing, os Beatles invadiam os Estados Unidos, a juventude vibrava com a atitude roqueira dos garotos britânicos, já não tinham paciência para ver Elvis, o ídolo rebelde de outrora, inserido em uma trama cômica caricatural sulista. Mas, em revisão, o filme segue divertido, espécie de primo pobre de “Sete Noivas Para Sete Irmãos”, utilizando sua estrutura simples como base para sequências encantadoras emolduradas por boas canções.

O diretor Gene Nelson era dançarino, o que garantiu o alto nível das coreografias no terceiro ato. O trabalho rendeu a ele uma nova parceria com Elvis, no inferior “Feriado no Harém”, no ano seguinte. O elenco era ótimo, com Glenda Farrell, veterana de obras como “Almas no Lodo”, clássico gângster da Warner, o impecável Arthur O’Connell, que já havia trabalhado com Elvis em “Em Cada Sonho Um Amor”, e a bela Yvonne Craig, que namorou com o cantor durante um tempo, irresistível em seu misto de ingenuidade e malícia, que se tornaria mundialmente conhecida anos depois como a Batgirl da série “Batman”, com Adam West. O elemento inovador foi o truque visual que permitia que Elvis realizasse dois papeis, o militar elegante da cidade grande e o seu primo caipira abrutalhado, a diferença estava apenas na cor do cabelo. O recurso é executado favorecendo o humor, não há intenção alguma de aprofundar o desenvolvimento dos personagens. O cantor havia acabado de conquistar a faixa preta de karatê, uma de suas paixões, ele estava motivado, trabalhando nuances de interpretação que diferenciassem um tipo do outro. O grupo feminino das “mulheres gavião”, beldades da montanha que perseguem os homens que se aproximam do local, elemento que realça o tom antinatural de desenho animado, funciona exatamente por ser coerente com o todo.

A trilha sonora não é especialmente boa, mas as canções funcionam dentro da proposta. “Kissin’ Cousins” (a segunda versão, escutada ao final, com o cantor defendendo o sotaque puxado nas linhas entoadas pelo caipira), a irônica balada “One Boy, Two Little Girls”, “Once is Enough”, “Tender Feeling” e “There’s Gold in The Mountains” merecem destaque dentro da filmografia de Elvis. O sucesso nas bilheterias, comparado com “Viva Las Vegas” e sua refinada produção, estimulou o Coronel Parker a investir sem medo nos anos seguintes em uma fórmula duvidosa: filmagens rápidas, baixo custo e muitas canções.

A Seguir: Amor à Toda Velocidade (Viva Las Vegas)

terça-feira, 15 de agosto de 2017

"Ladrões de Sabonete" e "Volere Volare", de Maurizio Nichetti


Ladrões de Sabonete, de Maurizio Nichetti (Ladri di Saponette - 1989)
Maurizio Nichetti é uma espécie de Woody Allen italiano, menos talentoso, menos carismático, mas que compensa na ousadia temática. “Ladrões de Sabonete”, em revisão, funciona melhor na teoria, o esperto jogo em diferentes níveis narrativos homenageando o neorrealismo e criticando duramente a forma como o cinema se tornou subproduto televisivo.

A execução poderia ser menos truncada, o ritmo melhora consideravelmente no terceiro ato, quando os personagens das duas mídias começam a interagir ludicamente. Nos segmentos em que acompanhamos a família diante do aparelho de televisão, dedicando pouca atenção ao filme que está sendo transmitido, o humor atinge seu ponto alto, aquelas pessoas claramente enxergam arte como simples distração imediatista, o texto trabalhado pelos atores na tela pequena tem o mesmo valor dos jingles dos produtos que são vendidos nos intervalos comerciais. Trazendo para a realidade brasileira, é por este motivo que as telenovelas, em essência, serão sempre entretenimento raso, apesar dos valorosos esforços das equipes criativas. 

Nichetti vive o protagonista do drama e, nos segmentos ambientados nos estúdios da emissora, vive ele mesmo, um diretor decepcionado com o pouco caso dos executivos com seu projeto, “Ladrões de Sabonete”, referência ao clássico “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio De Sica. A trama do filme dentro do filme é propositalmente irrelevante, a graça está na forma como a montagem interrompe o investimento emocional do espectador em cenas importantes com a inserção frequente da publicidade em cores vibrantes. Quando a confusão invade o reino da fantasia, emulando “A Rosa Púrpura do Cairo”, que Woody Allen havia lançado quatro anos antes, modificando a obra, o diretor revoltado decide resolver a questão na marra, garantindo alguns bons momentos. Mas, de modo geral, o exercício de estilo acaba chamando mais atenção que o conteúdo. O roteirista/diretor entregaria seu melhor trabalho dois anos depois.


Volere Volare, de Maurizio Nichetti e Guido Manuli (1991)
Eu tenho a vívida lembrança de ter conhecido essa pérola numa exibição televisiva noturna no início dos anos noventa, creio que na Bandeirantes, mas o que me interessava na ocasião era a frequente nudez feminina e a ideia incrível de inserir técnicas de desenho animado neste contexto. Somente pude apreciar melhor a obra em revisão, alugada em VHS anos depois. E agora, na sessão para a preparação deste texto, já conhecendo a filmografia de Nichetti, constato que representa o equilíbrio perfeito entre estilo e conteúdo, o grande problema de seus filmes.

A ideia nasceu após o sucesso mundial de “Uma Cilada para Roger Rabbit”, a trama é insanamente pouco convencional, ele interpreta um tímido sonoplasta de desenhos animados, enquanto o irmão, seu sócio, prefere se encarregar das dublagens de produções eróticas, convocando mulheres maravilhosas para o trabalho que é realizado no melhor estilo “método de atuação de Lee Strasberg”. Angela Finocchiaro vive uma prostituta exótica que se encarrega de satisfazer teatralmente seus clientes, cada um mais doido que o outro, uma artista do sexo, na literal definição do termo. A gradual transformação do sonoplasta em um cartoon, recurso que garante cenas hilárias, simboliza o medo dele diante da possibilidade de contato sensual com o sexo oposto, conceito que cai como luva no tom absurdo do roteiro. Ao contrário de sua amiga ambiciosa, que prioriza clientes ricos, Martina (Finocchiaro) encara seu trabalho como uma missão socialmente relevante, já que permite que loucos extravasem nela sua psicopatia, em variados níveis de periculosidade, de forma inofensiva para a sociedade, elemento que a humaniza sobremaneira.

É fascinante a opção por fazer do tradicional final feliz um abraço sem concessões no surreal, com a divertida entrega dela às possibilidades do sexo com o cartoon, ao invés do caminho óbvio narrativo da solução para o bizarro problema. Uma comédia que jamais seria lançada nos dias de hoje, um sopro de ar fresco em um gênero usualmente escravo da repetição. 

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

"O Cidadão Ilustre", de Gastón Duprat e Mariano Cohn


O Cidadão Ilustre (El Ciudadano Ilustre - 2016)
Ao optar pelo caminho do autoaprimoramento constante, o indivíduo conscientemente dá seus primeiros passos na estrada rumo à solidão. Quanto mais aperfeiçoada a sensibilidade, mais irritantes se tornam os rituais sociais envernizados pela mentira, quanto mais estimulado o desejo por aprender, mais apreço pela simplicidade generosa e menos paciência com aqueles que necessitam dificultar o discurso por pura insegurança existencial. A deprimente realidade é que grande parte das pessoas se satisfaz sendo medíocre. O cidadão ilustre, o escritor (Oscar Martínez) que conquistou o respeito profissional longe de seu país representa a negação de tudo o que os acomodados de sua cidade natal desesperadamente defendem. Ao aceitar o convite honorário e retornar após quarenta anos, o veterano mestre das palavras identificou rapidamente o ímpeto que o fez querer fugir outrora daquele coletivo de tolos, deselegantes, oportunistas, desinteressados, agressivos e invejosos.

O roteiro envolve com humor críticas ferinas àquela sociedade que, não muito diferente da realidade brasileira, prefere fingir não perceber que o aroma fétido que os perturba diariamente advém da lata de lixo que negligentemente esquecem aberta. A falta de pontualidade (o descaso do motorista com o horário do evento de seu passageiro), a hipocrisia de manifestar interesse temporário na obra de alguém apenas visando status social (as palestras dele cada vez mais vazias, com pessoas visivelmente enfadadas), o favorecimento injusto por interesse político (sequência do concurso de pintura), o elogio que nasce por pura necessidade financeira (o estranho que pede uma cadeira de rodas para o filho), a paixão avassaladora que busca apenas um passaporte (a jovem que seduz o escritor na intenção de viver uma vida melhor na Europa), o bronco estúpido que se sente superior por ter casado com a antiga namorada do homenageado, em suma, o pior pesadelo na vida de alguém que lutou tanto para ser uma pessoa melhor.

Mas há um elemento que compensou todos os absurdos vividos por ele, uma réstia de luz que brotou de onde menos se esperava, o jovem atendente do hotel, educado, de fala mansa, que, com toda delicadeza, ofereceu seus despretensiosos escritos para a avaliação do visitante. Naquela cortês figura que os clientes arrogantes nunca valorizam reside a matéria nobre que jamais será reconhecida naquela cidade, o sonho profissional que nunca será estimulado, a força de espírito que será pisada até se tornar uma lembrança melancólica em uma rotina frustrante, o reflexo no espelho do veterano, a mão estendida que implora por ajuda em uma massa de zumbis. E o homem, esgotado e pronto para abandonar novamente aquele esgoto a céu aberto, dedica então preciosos minutos para oferecer ao garoto o melhor presente de sua vida: esperança. Se ele conseguir salvar pelo menos um indivíduo valoroso, a viagem terá valido a pena.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Sétima Arte em Cenas - "A Filha Americana", de Karen Shakhnazarov


A Filha Americana (Amerikanskaya Doch - 1995)
Abandonado pela mulher que decide viver com um americano rico no país do Tio Sam, músico russo vai ao seu encontro, dez anos mais tarde, visando restabelecer os laços com a filha pré-adolescente.

Alguns textos estrangeiros criticam, por exemplo, a forma como a pequena menina é esperta demais para sua idade, uma grande bobagem, somente profissionais muito insensíveis são incapazes de enxergar que a proposta da obra é ser como uma fábula cômica, não há qualquer traço de realismo na abordagem, poxa, o desfecho entrega uma criança pilotando um helicóptero! Conheci o filme por intermédio da CPC – UMES filmes, que está realizando um belíssimo trabalho resgatando clássicos e pérolas modernas do cinema russo. Gostei de “Tigre Branco”, do mesmo diretor, mas “A Filha Americana” me encantou sobremaneira com sua simplicidade de roteiro e execução.

Karen Shakhnazarov é muito versátil, ele desta feita propositalmente bebe da fonte dos melodramas norte-americanos, apostando em soluções narrativas cômicas corriqueiras nestes trabalhos, sem qualquer toque de cinismo, o tom é de reverência. Na época da produção, após a queda de União Soviética, a relação entre as duas nações começava a dar sinais de vida, a filha americana, vivida pela adorável Allison Whitbeck, que, vale salientar, carrega o projeto nas costas com impressionante carisma, representando a intenção sincera de união. Há um momento maravilhoso que representa bem este leitmotiv, o pai, vivido por Vladimir Mashkov, após fugir com a filha, relaxa em um bar nos Estados Unidos cantando em russo, os clientes felizes, genuinamente interessados na arte do estranho. Aquelas pessoas não conhecem a canção, sequer compreendem a letra, mas se divertem com a melodia. Ao ver uma bela garçonete, ele, emulando Elvis Presley, canta “Love me Tender” em inglês, colocando carinho em cada palavra, o clima no ambiente é de amor e respeito. 

A cena evidencia que a união entre culturas diferentes é sempre o melhor caminho, o fascínio em tentar compreender o outro, ao invés de alimentar o medo do desconhecido, menos muros, mais pontes.





* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "CPC- UMES Filmes".

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

"Shirley Valentine", de Lewis Gilbert


Shirley Valentine (1989)
Filmes com temática feminina são normalmente vistos com preconceito por grande parte dos críticos, com certa razão, já que, na maioria das vezes, abusam dos clichês e apostam no melodrama folhetinesco, resultando em variações daqueles livros românticos de banca de jornal. Para cada comédia romântica verdadeiramente interessante, original e inteligente, existem dez genéricos imediatistas. “Shirley Valentine”, dirigida por Lewis Gilbert, em 1989, é uma dessas ótimas exceções.

O texto esbanja um senso de humor ácido, amparado por uma estrutura deliciosamente farsesca, com o constante uso da quebra da quarta parede. A protagonista, vivida competentemente por Pauline Collins, conversa com o público, uma troca de experiências, já que, em algumas cenas, a personagem parece seguir a resposta do público, como quando recoloca os óculos escuros ao perceber seu marido se aproximando, perto do desfecho. Quase podemos escutar o público feminino na plateia dizendo em tom orgulhoso: “Não desce do salto, Shirley”. E ela sinaliza imediatamente para a câmera que escutou o conselho. Esse diálogo franco com o público-alvo funciona porque é alicerçado em grandes verdades, algo que se estabelece logo na primeira cena, quando vemos a mulher confidenciando sua solidão para a parede de sua cozinha.

A química é irresistível, ficamos encantados com essa pessoa minimizada pelo acúmulo de decisões equivocadas, mas que, como a bonita música-tema cantada por Patti Austin evidencia, ainda busca reencontrar aquela garota que foi outrora, o pássaro que nasceu para voar, porém, desencantado com os sonhos desfeitos, acordou numa manhã e não se reconheceu no espelho de sua gaiola.

Hábitos simples, como dançar e sorrir em uma manhã chuvosa, substituídos implacavelmente no cotidiano por uma postura submissa ao marido, vivido por Bernard Hill, um estranho grosseiro cuja única conexão aparente é a aliança no dedo, fruto de uma antiga decisão inconsequente, um contrato assinado por mãos jovens e que não haviam sido ainda castigadas pela realidade da vida.

A simpatia dela contrasta violentamente com a insensibilidade dele, demonstrando no subtexto uma tremenda resiliência de Shirley. Qualquer mulher na mesma situação já teria se enclausurado na amargura profunda, sem traço de esperança visível no horizonte. O prato simples, ovos com batata frita, que ele agressivamente rejeita no início do filme, é o mesmo que ela oferece aos clientes do restaurante, no terceiro ato, quando já está avançando no processo de reinicialização do seu sistema pessoal, mostrando que sua autoconfiança, primeiro elemento que é dizimado numa relação fundamentada em ofensas gratuitas, não foi abalada por aquele evento. Ela viaja para a Grécia, realizando seu maior sonho, sem utilizar qualquer muleta psicológica, superando até mesmo a indiferença da amiga que a havia convidado.

“Você beijou minhas estrias!”

Shirley utiliza o silêncio como ambientação para refletir sobre suas decisões, aprendendo que deve buscar a satisfação sexual. Quando descobre que seu amante grego, vivido por Tom Conti, é, na realidade, um mulherengo, ela não se sente ofendida. O que importa para ela é que aquele homem a enxergou como a mulher interessante e bela que sempre foi. Como ela afirma assustada, após fazerem amor, ele havia beijado as suas estrias.

Ela chega a invejar a atitude gazeteira e libertária dele, aproveitando cada momento de sua existência. Talvez, Shirley tivesse se tornado uma conquistadora, abraçando as possibilidades apaixonantes da vida, caso não tivesse se prendido tão cedo em um ritual secular de hipocrisia. Essa identificação carinhosa, simbolizada na cena em que ela o flagra passando mais uma cantada em uma turista, é a constatação definitiva da sublimação de sua insegurança. 

“Eu não me apaixonei por ele. Eu estou me apaixonando pela ideia de viver”.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

"Em Ritmo de Fuga", de Edgar Wright


Em Ritmo de Fuga (Baby Driver - 2017)
Analisando unicamente a trama, “Em Ritmo de Fuga” não traz nada novo, ou especialmente interessante, não é esta a proposta. É em essência, algo explícito já na arte do pôster, uma nostálgica homenagem a filmes e videogames em que o automóvel é figura central, como “Driver”, “Grand Theft Auto”, “Operação França” (1971), “Mad Max” (1979), “Bullitt” (1968), “The Driver” (1978), “The Blues Brothers” (1980) e ao gênero de filmes de assaltos.

O jovem protagonista, Baby, vivido por Ansel Elgort, sofreu um acidente de carro na infância que o deixou com um zumbido permanente no ouvido, problema que ele ameniza escutando música o tempo todo. Ele trabalha para um gângster como motorista de fuga, com uma frieza impressionante, não há emboscada que ele não consiga reverter com as mãos firmes no volante e a canção certa tocando no iPod. Os tipos criminosos que ele ajuda são caricaturas hilárias de personagens durões do cinema dos anos oitenta, com destaque para Jamie Foxx e Jon Hamm. O chefe do bando, mais uma aula minimalista de Kevin Spacey, pensa controlar o rapaz, mas, na realidade, faz parte dos experimentos das fitas de remixes preparadas por Baby, que, ao registrar secretamente diálogos comuns, frases simplórias, cria música a partir do cotidiano, tentando trazer ordem ao caos. Como ele se sente culpado por não ter podido fazer nada para salvar os pais na infância, ele conquista algum conforto nesta despretensiosa alquimia sonora. Quando o amor de uma garçonete, bela Lily James, apresenta novas possibilidades, ele começa a repensar suas escolhas perigosas.

A genialidade do filme está na forma como a trilha sonora exerce papel fundamental em cada cena, nos momentos grandiosos e naqueles aparentemente irrelevantes. O próprio título do filme faz referência a uma canção de Simon and Garfunkel. O som é o coração pulsante da obra, todas as decisões criativas da direção são pensadas como coreografia musical, cada freada do carro sincronizada com a batida, o ritmo dos tiros disparados em uma sequência frenética rima com a trilha, o gestual de um personagem está em harmonia com a letra, o movimento dos corpos responde diretamente ao estímulo sonoro, enfim, um trabalho minucioso e esteticamente muito original.

Edgar Wright é um diretor muito competente por entender que a montagem, até mesmo o enquadramento, podem servir à comédia, ele não fica refém do texto. Ao administrar com inteligência este aspecto ele consegue, como um maestro de orquestra, manipular o ritmo e evoluir a narrativa sem recorrer à diálogos expositivos, criando uma linguagem própria altamente intuitiva e universalmente compreensível.