terça-feira, 30 de setembro de 2014

"Sobrevivente", de Baltasar Kormákur


Sobrevivente (Djúpið - 2012)
Esse belo filme islandês, baseado em um evento real, pende mais para a alegoria existencialista do recente Até o Fim, ou as metáforas de As Aventuras de Pi, do que para o espetáculo formulaico de Náufrago e seus similares. O diretor Baltasar Kormákur não se interessa em estabelecer uma conexão emocional entre o espectador e o protagonista, um estranho cujo passado desconhecemos. O interesse está na reflexão que ele propõe, instigada por uma contemplação distante, voyeurística, não nas lágrimas que facilmente verteriam apenas com alguns acordes de violino.

O incrível ato de sobreviver por longas seis horas no gelo das águas do Atlântico Norte após o naufrágio do seu pesqueiro, filmado sem computação gráfica, quando todos os seus companheiros morreram instantaneamente, faz com que Gulli, Olafsson, numa excelente atuação, como o Kaspar Hauser de Herzog, se torne um ser superior. Por mais exasperante que seja o segundo ato, com a luta do homem comum contra as forças implacáveis da natureza, somente no terceiro ato é que compreendemos a mensagem que está sendo transmitida, com o retorno daquele guerreiro para sua vida ordinária em uma pequena comunidade. Ele a havia deixado como um desinteressante beberrão e inconsequente, mas estava sendo recebido agora como algo exótico que desafiava a ciência, um Übermensch Nietzschiano a ser estudado e celebrado pela imprensa, um herói nacional.

O sentimento de desajuste social, sua timidez perante as câmeras, sua resiliência ao negar qualquer modificação pessoal causada pela tragédia, são elementos que demonstram a negação consciente do protagonista em ser transformado em um estereótipo de heroísmo por estranhos financeiramente interessados na eterna lembrança de sua desgraça. Ele viveu um momento ruim, mas isso não modificou sua essência, não fez com que ele se tornasse alguém mais interessante socialmente. Como ele mesmo insinua em uma cena, ninguém realmente se importa com o que aconteceu, tudo não passa de uma estatística midiática para preencher temporariamente as páginas dos jornais com manchetes sensacionalistas. Gulli nunca temeu a morte e recusa a falsidade daqueles que se aproximam dele pelo herói que ele nunca foi, ele quer apenas ser esquecido pelos urubus sociais, voltar ao trabalho e ao convívio diário com seu cachorro.

sábado, 27 de setembro de 2014

Cine Samurai - "Lady Snowblood"

Link para os textos do especial:


Lady Snowblood – Vingança na Neve (Shurayukihime – 1973)
Adaptado do mangá de Kazuo Koike, responsável também pelas aventuras do “Lobo Solitário”, esse filme é atualmente citado sempre como a principal inspiração de Quentin Tarantino em seu “Kill Bill”, mas o verdadeiro mérito dele é a forma como reflete a ansiedade de uma era, combinado com uma visão filosófica da violência, simbolizada pela vingança da protagonista contra uma agressão ocorrida antes de seu nascimento, vivida competentemente por Meiko Kaji, como um fardo perpetuamente cíclico, conceito envolto por uma camada de excessos comuns aos chambara grindhouse do início da década de setenta, influenciados pela violência dos projetos sobre a Yakuza, com o diretor Toshiya Fujita estendendo tomadas, congelando quadros, experimentando com o fotógrafo Masaki Tamura no intuito de potencializar o impacto emocional em cada cena. Comparado à densidade temática do original, o projeto do americano é um divertido desenho animado.

A jovem Yuki que nasce na prisão, acaba se preparando a vida toda para o encontro com os estupradores de sua mãe. Ela é a metafórica filha do ódio, desprovida de qualquer emoção que não seja a retribuição em sangue, fruto de várias relações que sua mãe mantinha com colegas da prisão. A escolha de retratá-la como uma guerreira hábil, porém falível, ajuda na construção do suspense, mostrando sua natureza instável e sua batalha para conter a raiva, evidenciada, por vezes, em sutis gestos e expressões. Ela não é uma máquina de guerra, mas uma espécie de revolucionária que reflete sua nação, elemento evidenciado pela decisão de entregar a narração dos eventos nas mãos de um jornalista, vivido por Toshio Kurosawa, que, eventualmente, traça subliminares paralelos sociais entre os atos daquela que investiga e as mudanças políticas que tomavam de assalto a sociedade japonesa.  

* A distribuidora Versátil está lançando o filme em uma versão dupla, recentemente restaurada, com sua sequência: “Uma Canção de Amor e Vingança”.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Faces do Medo - "O Lobisomem" (1941)

Link para os textos do especial:


O Lobisomem (The Wolf Man – 1941)
O filme dirigido por George Waggner tem uma importância tremenda, já que moldou muitas das particularidades que o personagem viria a apresentar nos esforços seguintes. A interpretação de Lon Chaney Jr., com a ajuda impecável do maquiador Jack Pierce, definiu para toda uma geração o conceito da licantropia, incluindo a ideia da clássica transformação nas noites de lua cheia, a infecção pela mordida e a periculosidade fatal da prata. Elementos criados pelo roteirista Curt Siodmak, que muitos acreditavam equivocadamente que havia se inspirado em lendas ciganas, copiados à exaustão até hoje.

O aspecto mais interessante é que, diferente de todos os filmes de terror do estúdio na época, o inteligente roteiro levanta suspeitas sobre a real existência do monstro, fazendo com que cada personagem possa encontrar explicações racionais ou metafóricas para todos os acontecimentos, sem que haja a necessidade de se recorrer aos elementos sobrenaturais. Isso eleva a qualidade do projeto e o torna mais atraente em revisões. Fica claro que o problema do protagonista também é psicológico, algo que já é estabelecido na definição inicial da licantropia, nos créditos iniciais, como uma doença da mente, sendo reforçada ainda a palavra “lenda” em maiúsculas. Assistindo o filme por esse viés, a tragédia do personagem é ainda mais forte, mostrando o malefício da crença exagerada em superstições.

O personagem do padre, num esperto toque do roteiro, chega a afirmar que a luta contra a superstição é tão árdua quanto lutar contra satã. E, basta pensar que esse tema foi trabalhado com tanta coragem em 1941, enquanto hoje em dia ainda vivemos numa sociedade onde é comum o “exorcismo” de pessoas no neopentecostalismo, quando na realidade se trata apenas de, na pior das hipóteses, malandragem ou problemas psicológicos, para compreender que a obra vai muito além do usual entretenimento no gênero. 

* O filme está sendo lançado pela distribuidora "Classicline".

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Cine Noir - Um Lance no Escuro

Link para os textos do especial:


Um Lance no Escuro (Night Moves – 1975)
O detetive particular Harry Moseby é contratado por uma atriz decadente de Hollywood, vivida por Janet Ward, para investigar o desaparecimento de sua filha, que teria fugido para a Flórida. Ele vai atrás da moça para tentar trazê-la de volta, e acaba descobrindo uma série de histórias mal explicadas. 

Alguns podem se lembrar do filme pelos excelentes diálogos do roteiro de Alan Sharp, como a esperta utilização do assassinato de Kennedy como argumento em uma discussão, ou a definição dada pelo protagonista para as obras do diretor francês Eric Rohmer: “Seus filmes são como assistir a tinta secando na parede”, enquanto outros nunca irão se esquecer da sensualidade de uma ninfeta Melanie Griffith, mas o maior mérito do filme, possivelmente o melhor na carreira de Arthur Penn, foi ajudar a revitalizar o Noir em sua essência mais desconcertante, com uma trama tão confusa quanto a do clássico “À Beira do Abismo”, apresentando um detetive, vivido impecavelmente por Gene Hackman, que se mostra incapaz de compreender o escopo da sórdida armadilha em que está se metendo. 

O ator, que possui a qualidade de transmitir uma fragilidade facilmente identificável, deixa transparecer gradativamente em sua postura corporal a dor que acomete seu personagem. Ele decide se tornar um detetive para evitar analisar a si próprio, evitar se encarar no espelho, passando então a investigar detalhes da vida dos outros, compensando profissionalmente a triste constatação de ser miseravelmente culpado pelas mazelas em sua vida, como a traição de sua esposa, vivida por Susan Clark. A angústia do gênero encaixou perfeitamente nos anseios do público desiludido americano pós-Watergate, uma crueza que é captada pela lente da fotografia realisticamente brutal de Bruce Surtees, responsável por Dirty Harry e Lenny, realizando milagres com o baixo orçamento. 

A metáfora visual que define o filme, a última cena, brilhantemente finaliza o arco narrativo do personagem, que, assim como nós, aceita estar totalmente desorientado. Essa é a beleza das tramas dos melhores Noir, inserir o protagonista em um cenário tão corrupto e lamacento, desprovido de virtudes, que a possibilidade da morte acaba se tornando a mais acalentadora, exatamente por trazer com ela a liberdade. 

* O filme está sendo lançado, em versão restaurada, pela distribuidora Versátil, com um making of de nove minutos. 

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Entrevista com Laura Truffaut

A filha do diretor François Truffaut, um dos pais da Nouvelle Vague, me deu a honra de entrevistá-la, abordando o legado artístico daquele que foi uma das minhas maiores inspirações nessa paixão pela Sétima Arte. Extremamente carinhosa e atenciosa, ela até enviou, como presente, a foto abaixo, que utilizo para emoldurar a postagem. Merci Laura.


O – Laura, em meu livro “Devo Tudo ao Cinema”, eu escrevo sobre como Truffaut foi uma grande inspiração e me ensinou a resistir, enquanto criança excessivamente tímida, desde quando li a respeito dele, adolescente, pegando os cartazes dos filmes nos cinemas. O protagonista do livro se chama Antonio, numa homenagem ao Antoine Doinel, alterego de seu pai. Eu estava tentando me destacar como indivíduo naquele ambiente padronizado, o que me levou a colar cartazes de cinema por todas as paredes do meu quarto. Anos mais tarde, já como crítico de cinema, seu pai foi minha maior inspiração profissional, pela coragem com que ele, como crítico, confrontou o comodismo do cinema que era realizado na França. Você acha que ele tinha noção de sua própria importância, não apenas como artista, mas por suas condutas pessoais? Ele ficaria surpreso com o impacto de seu trabalho, ainda hoje, em cinéfilos e críticos do mundo todo?

L - Eu sinceramente acho que ele não pensava nisso, toda sua energia era focada em seu trabalho. Mas com certeza ele ficaria feliz ao saber que alguns de seus filmes que foram tidos como fracassos na época, como “Duas Inglesas e o Amor” e “Atirem no Pianista”, são agora bastante apreciadas.

O – Você afirmou uma vez que “A Noiva Estava de Preto” havia sido a primeira vez em que você, conscientemente, aos oito anos de idade, acompanhou o processo de produção e assistiu quando foi lançado. Como você analisa a obra hoje?

L - A última vez que assisti na tela grande foi uns dois anos atrás. Fiquei impressionada com a forma fluida que as diferentes partes, uma para cada homem assassinado pela personagem de Jeanne Moreau, se relacionam. É um filme de ritmo acelerado. A protagonista é estruturalmente difícil, quase não é humana, exceto por uma ou duas cenas em que é permitida a ela uma maior complexidade psicológica. Já os personagens masculinos são todos bem humanos, de uma forma que seus papéis são mais desenvolvidos, ainda que possuam menos cenas que ela. Eu gosto muito do súbito desfecho na prisão.


O – Você possui lembranças de infância ao lado de seu pai na Cinemateca? Você, conscientemente, sente que a paixão dele por aquele local causou impacto emocional na jovem menina de outrora?

L - Meu pai me levava na Cinemateca de vez em quando. Eu devia ter por volta de quatro, cinco anos, na primeira vez. Fomos assistir a um filme do Chaplin: “Carlitos nas Trincheiras”. Lembro que fiquei aterrorizada e tivemos que sair antes do final da projeção. Depois, ele me levou pra assistir “O Romance de um Trapaceiro” (de Sacha Guitry), que eu amei. Eu costumava ir muito lá sozinha. Mas nós assistíamos juntos muitos filmes em outros cinemas. A Cinemateca era especial porque todos na plateia compartilhavam a mesma devoção pelo cinema. 

O – Como era a relação de seu pai com seus admiradores? Gostava do assédio, de ser abordado? O que ele pensava sobre seus fãs?

L - Como diretor, meu pai não era sempre reconhecido em público. Isso mudou no final dos anos setenta, talvez porque havia mais daqueles programas de entrevistas na televisão. Caso ele estivesse trabalhando em público, por exemplo, filmando uma cena na rua, ele não gostava de interrupções, claro. Ele não pensava muito nesse aspecto da carreira, não frequentava festas, ele era bem caseiro. Mas havia alguns admiradores com quem ele mantinha contato frequente através de cartas, alguns deles se tornaram roteiristas e cineastas. 


O – Eu acredito que a música era um fator importante em sua mente criativa. Que tipo de música ele escutava em casa?

L - A música era muito importante pra ele, mas ele não escutava muito. Algumas clássicas, como Haydn e Mozart, mas nunca ópera ou jazz. Alguns cantores franceses. Charles Trenet, muito famoso a partir da década de trinta, era seu favorito por causa das letras quase surrealistas. Ele sabia as letras de todas as canções dele. Costumávamos escutar juntos por várias vezes a trilha sonora de “Os Guarda-Chuvas do Amor”, assim como as trilhas de outros musicais de Jacques Demy. 

O – Como era a relação de seu pai com as cores no cinema? Eu tenho a impressão de que ele não apreciava muito esse recurso. Ele se sentia mais confortável filmando em preto e branco?

L - Excelente pergunta. Os primeiros filmes dele eram em preto e branco por escolha, mas também por questões financeiras. Depois, os filmes realmente precisavam ser feitos em cores para que pudessem ser comprados e apresentados pelas redes de televisão. Ele tinha muitas teorias sobre o que deveria ser evitado em filmes coloridos, especialmente aqueles de época (como “A História de Adèle H.”, “As Duas Inglesas e o Amor” e “O Quarto Verde”). Ele acreditava que o público não deveria ver muito o céu, especialmente na luz do dia, em filmes coloridos. A preocupação dele era que um céu ensolarado fizesse o filme ficar com um ar de documentário.

Ele trabalhou com precisão essas teorias com seus diretores de fotografia, especialmente Nestor Almendros, para escolher uma paleta de cores para certos filmes. Ele ficou muito feliz quando Martin Scorsese fez “Touro Indomável” em preto e branco, assim como Woody Allen fez a mesma escolha em “Manhattan”, no final da década de setenta, início dos anos oitenta. O sucesso desses filmes mostrou que ainda havia um público considerável para o preto e branco, o que possibilitou ele fazer “De Repente, num Domingo” em preto e branco. Mas isso não significava que ele não queria experimentar a cor em seus outros filmes. 

O – Os filmes dele, diferentes dos de Godard, por exemplo, eram sentimentais e tinham um apelo universal. “O Quarto Verde”, “O Garoto Selvagem” e aqueles com o personagem Doinel, por exemplo, demonstravam interesse em despertar uma identificação emocional no público.  Ele se expunha demais nesses projetos. Como ator, esse aspecto ficava ainda mais evidente. Não havia técnica, método de atuação, apenas coração, paixão. Qual era a visão dele para essas incursões na frente da câmera?

L - Você está certo, não havia método de atuação. Para “O Garoto Selvagem”, ele sabia que queria que o público focasse a atenção na criança, não no médico. Ele sentia que o personagem do médico não era plenamente desenvolvido para um ator profissional. Ele também não queria mostrar para algum ator os gestuais que o ator então mostraria para a criança em cada cena, etc. Ele não queria nenhuma interferência entre a criança e ele próprio, de certa forma. 

Para “O Quarto Verde”, não sei exatamente o que o fez decidir interpretar o personagem. Nós nunca discutimos sobre isso. Ele provavelmente poderia ter escalado Charles Denner, o protagonista de “O Homem que Amava as Mulheres”, feito pouco antes. Entre esses dois filmes, ele trabalhou como ator apenas para Spielberg em “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”, pois ele queria entender melhor a experiência de ser um ator sendo dirigido por outra pessoa.

Quando ele não atuava em seus próprios filmes, ele costumava selecionar atores que se aproximavam dele na altura, como Jean-Pierre Léaud, Charles Denner e Jean-Louis Trintignant.


O – Seu pai tinha alguma mania ou método peculiar durante a preparação e a filmagem de seus projetos?

L - Acho que ele não tinha nenhuma mania específica. Ele era muito focado, mas também conduzia em paralelo sua pequena produtora, então ele estava sempre trabalhando e marcando presença no escritório, exceto quando estava filmando em locações fora de Paris. 

O – Em sua opinião, qual seria a relação de seu pai com o cinema digital? Ele abraçaria a nova tecnologia? Qual acredita que seria a opinião dele sobre o tipo de cinema que é realizado hoje?

L - Eu acredito que ele teria sentido saudade da película. Eu não acho que ele gostaria de saber que as pessoas agora assistem aos filmes nas pequenas telas de seus celulares. Mas ele gostava bastante de seu aparelho de televisão e ficou muito empolgado quando os primeiros videocassetes foram inventados. 

O – Os meus filmes favoritos dele são “A Noite Americana”, A Mulher do Lado, “Os Incompreendidos” e “O Quarto Verde”. Eu imagino que os seus favoritos variem com o tempo, mas quais seriam os selecionados hoje? Qual o filme dele que você revisita com maior frequência? E quais são seus favoritos dentre aqueles não dirigidos por ele?

L - Meus favoritos sempre mudam. Hoje em dia eu selecionaria “O Garoto Selvagem”, “Atirem no Pianista” e “Beijos Proibidos”. Daqui a cinco anos, possivelmente escolherei outros. Agora, com filmes em geral, seria uma lista imensa: “Tristana” (Buñuel), “Annie Hall” (Allen), “Soberba” (Welles), “Ninotchka”, “Quem é o Infiel?” (Mankiewicz), “Amores Parisienses”, “Fanny e Alexander” (Bergman), “O Rio Sagrado” (Renoir), “Os Excêntricos Tenenbaums” (Wes Anderson), “Os Guarda-Chuvas do Amor”, “Cantando na Chuva”, “Tudo Sobre Minha Mãe” (Almodóvar), entre muitos outros.

O – Você poderia deixar uma mensagem para os cinéfilos brasileiros que, assim como eu, amam o trabalho de seu pai? 

L - É maravilhoso saber que meu pai, François Truffaut, ainda é lembrado por cinéfilos no Brasil. Ele costumava me falar com carinho sobre as viagens dele para aí, especialmente no período que visitou ao lado da minha mãe, na época da estreia de “Jules e Jim”. A nação o impressionou bastante. 


domingo, 21 de setembro de 2014

Sétima Arte em Cenas - "O Garoto"

Link para os textos do especial:


O Garoto (The Kid – 1921)
O pecado da mulher, vivida por Edna Purviance, havia sido a parentalidade irresponsável, que Chaplin simboliza pela sobreposição da imagem do sacrifício de Cristo, carregando sua cruz montanha acima, numa espécie de paralelo com o mito de Sísifo. A cruz da mulher é o bebê. Sua solidão, evidenciada num intertítulo, encontra ressonância na cena seguinte, que mostra o pai do bebê, um homem que não se importa em resgatar do fogo a foto dela, evidenciando que o relacionamento não era alicerçado no amor e no companheirismo. A mulher já estava sozinha antes mesmo de ter o bebê. Ao deixar sua cruz no automóvel de uma família rica, a angústia que sente é sublinhada pela beleza da trilha sonora composta pelo próprio Chaplin.

Quando o vagabundo aparece, por volta dos cinco minutos, reconhecemos nele uma versão adulta daquele bebê, um cavalheiro que foi despejado da sociedade, um fardo a ser perseguido pelas autoridades policiais, um órfão existencial cuja nobreza se esconde por trás dos trapos. Nada mais lúdico que o encontro entre esses dois elementos, que se alternam na posição de pai e filho em vários momentos, como quando o garoto prepara o café da manhã, desperte a ira da sociedade que os abortou, representada na clássica cena em que as autoridades do orfanato tentam separar os dois. Corajosamente o roteiro critica o conceito de “cuidados apropriados”, quando, na realidade, o garoto seria levado para um local onde deixaria de ser um indivíduo, passando a ser uma estatística social.

O equilíbrio entre as cenas cômicas e aquelas que desenvolvem a trama é perfeito. É perceptível o cuidado do diretor com cada sequência desse seu primeiro filho artístico. Quando a mulher é mostrada em ato de caridade com os meninos da rua, devolvendo alegremente para a sociedade a sorte que a fez mudar radicalmente de vida, sendo agora uma artista famosa, o roteiro presenteia sua gratidão com aquilo que ela mais desejava: o reencontro com seu filho, ainda que ela não tivesse essa informação. O rosto de Jackie Coogan, admirando aquela estranha, é capaz de partir o coração do mais frio dos homens. É tocante a forma como ele, sabendo que a mulher já está distante e não o observa, acena uma melancólica despedida. O garoto se despedindo inconscientemente daquela doce ilusão que viveu por alguns segundos.

O momento em que o vagabundo corre por sobre os telhados das casas, perseguindo o veículo que conduz o garoto ao orfanato, culmina numa das cenas mais bonitas em sua filmografia, o beijo na boca do menino, o lúdico gesto absoluto de amor em seu próprio reflexo no espelho. 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

"O Mesmo Amor, a Mesma Chuva", de Juan José Campanella


O Mesmo Amor, a Mesma Chuva (El Mismo Amor, La Misma Lluvia – 1999)
Uma obra-prima de sensibilidade e paixão. Além de ser um ótimo ponto de partida para se interessar a conhecer melhor o cinema argentino. Depois desse projeto, o diretor Juan José Campanella iria se tornar mundialmente reconhecido por “O Filho da Noiva” e, especialmente, “O Segredo dos seus Olhos”. 

Jorge Pellegrini, vivido pelo competente Ricardo Darín, é uma jovem promessa da literatura argentina, mas acaba desperdiçando seu talento escrevendo contos simplórios para uma revista. Em uma noite chuvosa ele conhece Laura, a bela Soledad Villamil, uma garçonete que está à espera do namorado, do qual não tem notícias desde que ele partiu para o Uruguai alguns meses antes. Jorge e Laura ficam muito unidos e a moça, ciente do grande talento do rapaz, tenta convencê-lo a singrar sem medo os bravios mares da literatura. Essa história cativante atravessa vários anos, passando por diferentes momentos políticos do país, porém sempre focada na evolução dos personagens principais.

O filme possui várias cenas memoráveis, como a poderosa crítica que Campanella reserva aos seus colegas de profissão. Jorge assiste em um pequeno cineclube a exibição de um curta-metragem baseado em um de seus contos. Todas as suas ideias são distorcidas pelo jovem diretor, que criou um emaranhado de cenas sem nenhuma conexão entre si. O trabalho exibido nos remete às experiências cinematográficas de diretores como Godard e Antonioni, porém a crítica aponta para todos os que administram sua arrogância na criação de obras tidas como “não comerciais”. O que o diretor deixa claro pelos lábios de Darín é que não existe cinema que não seja comercial. Toda a sensibilidade passional do conto escrito pelo personagem se perdeu em todo aquele jogo de luzes e cortes de câmera essencialmente desumanizadores.

O trabalho é brilhante e popular. O romance soa natural e nos cativa desde o primeiro momento. A crítica política existe, porém como uma moldura, nunca como a pintura. Em nenhum momento se mostra apelativo ou simplista, todos os elementos se unem com perfeita simetria. É daqueles filmes que se tornam melhores a cada revisão.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

"O Grande Gatsby", de Baz Luhrmann


O Grande Gatsby (The Great Gatsby - 2013)
Ainda que não seja necessário, recomendo que a leitura da obra seminal de F. Scott Fitzgerald sobre a fragilidade do "Sonho Americano", anteceda a sessão do filme. A mais famosa versão cinematográfica até o momento era a protagonizada por Robert Redford, que fracassava em diversos aspectos, inclusive como adaptação. Baz Luhrmann acerta onde todos erraram, demonstrando entender perfeitamente a essência do livro, incorporando-a ao seu próprio estilo de rebeldia elegante, que combina perfeitamente com a proposta do autor.

Nick Carraway (Tobey Maguire) e Jay Gatsby (Leonardo DiCaprio) representam facetas antagônicas da personalidade do autor: o tímido e respeitoso jovem que se deslumbra com os excessos da alta sociedade e o homem seguro, que utiliza seu carisma e posses para impressionar a mulher que deseja. No meio do fogo cruzado, Daisy Buchanan (Carey Mulligan), personagem parcialmente inspirada em Zelda, esposa do autor, escrava de seu amor pelo enriquecimento material, porém indiferente à afeição humana, uma caricatural crítica aos valores amorais da aristocracia da América dos anos 20. Todos os personagens utilizam as pessoas como peões nos tabuleiros de seus desejos, descartando-as como se nada valessem, após o cumprimento de suas funções em seus planos. Gatsby talvez seja o único que não tenha sido corrompido pela sua riqueza, pois a utiliza objetivamente para galgar os degraus que o encaminham ao seu sonho pessoal. Ele não necessita de todo aquele luxo, conseguiria se destacar até mesmo na pobreza. Fitzgerald, captado com maestria por Luhrmann, aponta o dedo para a banalização dos valores humanos, na incessante busca pelo ilusório status que advém do sedutor e corruptível brilho do ouro.

O diretor exercita seu estilo, misturando música contemporânea, como o hip-hop que emoldura nosso primeiro vislumbre da fictícia cidade e o primeiro encontro de Carraway com o mundo boêmio, e canções da época, como a espirituosa "Let´s Misbehave", de Cole Porter, além de utilizar generosamente o auxílio da computação gráfica nos exteriores, o que realça o tom de artificialidade que envolve a trama e os personagens. Interessante também é a forma como o roteiro utiliza de forma inteligente a inalcançável luz verde do píer, elemento importante no livro, como um tema visual recorrente, que simboliza o desejo de Gatsby por alcançar Daisy, prendê-la em seu mundo. "O Grande Gatsby" é um filme que deixaria seu autor orgulhoso.

"Além da Escuridão - Star Trek", de J.J. Abrams


Além da Escuridão - Star Trek (Star Trek Into Darkness - 2013)
O diretor J.J. Abrams dá uma aula de como revitalizar uma franquia, sem necessariamente desrespeitar seu legado e o trabalho árduo dos profissionais que a construíram. Com inteligência, os roteiristas Alex Kurtzman, Roberto Orci e Damon Lindelof, abraçam o cânone estabelecido na Série Clássica, inclusive inserindo elementos para os fãs mais atentos, como o medo que Chekov sente ao pensar que usará o uniforme vermelho, além de citações a personagens, como Harry Mudd e a presença dos inesquecíveis Tribbles, assim como o compositor Michael Giacchino, que faz uma breve referência em uma cena a uma melodia marcante do episódio "Amok Time", o primeiro da segunda temporada. 

O que mais me surpreendeu foi o competente equilíbrio, tão raramente alcançado, entre a necessidade de se atingir o público jovem que busca prioritariamente a ação e os fãs que buscam identificar no roteiro o necessário respeito com o objeto de sua devoção. É, ao mesmo tempo, um reboot e uma continuação das três temporadas da Série Clássica e dos seis projetos para o cinema, com William Shatner e Leonard Nimoy. Fico esperançoso com o futuro de "Star Wars", nas mãos de Abrams. Benedict Cumberbatch (John Harrison) consegue impor sua presença de forma ameaçadora e segura, criando o antagonismo perfeito para o heroísmo inconsequente e, ainda, essencialmente inseguro do jovem Capitão Kirk, vivido por Chris Pine, confortável como um ponto de transição entre o moleque brigão do primeiro filme e a rebelde elegância do personagem eternizado por Shatner.

Spock (Zachary Quinto) recebe maior destaque, inclusive como alívio cômico, com sua relação com Uhura (Zoe Saldana), garantindo momentos engraçados e que remetem ao espírito de camaradagem do trio Spock-Kirk-McCoy, algo que soava pouco orgânico no filme anterior. Existem alguns problemas na costura do roteiro, minimizando o efeito de algumas soluções narrativas ou tirando delas a credibilidade, mas furos existem em praticamente todos os projetos. O que importa é que, durante a experiência, esses furos não sejam perceptíveis, como um mágico que nos ilude com a mão direita, enquanto opera o truque com a esquerda. E Abrams é um excelente ilusionista.

Tesouros da Sétima Arte - "Amor Profundo"


Amor Profundo (The Deep Blue Sea - 2011)
Com uma excelente interpretação de Rachel Weisz, que vive uma personagem vítima de suas próprias escolhas, este poderoso drama de Terence Davies que capta a poesia da dor, se destaca no oceano de projetos apáticos e formulaicos em seu gênero, nos anos recentes.

As primeiras palavras ditas no filme, após cerca de dez minutos de pura beleza musical, com o concerto de Samuel Barber para violino e orquestra, emoldurando a tentativa de suicídio de Hester (Weisz), soam frágeis. Ela ama com o mesmo senso obsessivamente trágico de uma "Madame Bovary", de Gustave Flaubert, ignorando de forma masoquista o tratamento, por vezes, grosseiro, de seu objeto de paixão. Freddie (Tom Hiddleston) constantemente a ignora, vivendo da autocomiseração de seu amargor pós-guerra. Ele também é a antítese de Sir William (Simon Russel Beale), o emocionalmente estável marido de Hester, que concede a ela o conforto de uma vida financeiramente segura.

Com a consciência de se tratar de um tesouro a ser explorado por atores dedicados, o roteiro, de Davis, adaptado da peça de Terence Rattigan, abraça cada nuance expressa nos diálogos. A construção utiliza generosamente interlúdios musicais, como árias em uma ópera. Acertando ao fugir da frieza característica nos projetos que tratam do tema, sendo elegante, mérito da excelente fotografia do alemão Florian Hoffmeister, e narrativamente envolvente.

"Amor Profundo" é um biscoito fino, indicado para aqueles que já possuem familiaridade com o estilo do diretor ou que realmente sejam criteriosos com o entretenimento que buscam.

"Depois de Lúcia", de Michel Franco


Depois de Lúcia (Después de Lucía - 2012)
Como alguém que já sofreu na adolescência com estes atos de violência física e psicológica, afirmo que nunca assisti uma obra que retrate tão fielmente a angústia que envolve o "bullying". Normalmente utilizado pelas lentes do cinema como ferramenta de humor, com o valentão intimidando o nerd, amenizando com absurdos estereótipos uma prática muito comum, que ocorre em todas as escolas. Violência nascida de um desvio de caráter, levando aquele adolescente a continuar praticando este tipo de intimidação pelo resto da vida, em trotes universitários, brigas nos campos de futebol ou em discussões no trânsito, por exemplo.

O diretor Michel Franco acerta ao evitar qualquer clichê ou melodrama, apostando no completo silêncio. A câmera quase sempre estática acentua a imersão do público, obrigado a focar sua atenção por vezes em eventos que ocorrem quase fora do enquadramento. Não há alívios cômicos, a, por vezes, insuportável tensão é mantida do início ao fim. A jovem Alejandra está emocionalmente abalada com a morte de sua mãe, a Lúcia do título, e sente seu pai cada vez mais distante, o que acaba deixando-a vulnerável no ambiente social em que passa grande parte de seu tempo: a escola. A divulgação de um vídeo dela em um momento íntimo promove uma perseguição hipócrita, pois aqueles mesmos jovens, como se mostra em uma cena, não viam mal algum em expor suas aventuras sexuais. Evitando passar para seu perturbado pai mais um problema, ela corajosamente suporta sozinha todas as provações diárias. Aquele que não é violento, não costuma saber lidar instintivamente com a violência. O terceiro ato é radicalmente diferente, em ritmo e tom, entregando um desfecho extremamente satisfatório, evidenciando ainda mais a clara inspiração nos trabalhos de Michael Haneke, ainda que ideologicamente incoerente em sua catarse.

A intenção óbvia é causar com seu indefensável impacto, uma necessária reflexão. O que leva um jovem a buscar humilhar um colega que nada lhe fez? Quais as razões por trás da cumplicidade silenciosa daqueles que testemunham estes atos? Qual a influência dos pais neste processo? Perguntas que o roteiro nos direciona, aguardando uma resposta em nossas consciências. Filme obrigatório!

"Pietá", de Kim Ki-duk


Pietá (Pieta - 2012)
A estética busca chocar o espectador, com farta utilização de câmera tremida e enquadramentos bizarros, utilizando o zoom como se uma criança tivesse roubado a câmera do pai. A trama pede este estilo? Com certeza, não. A história é rasa e caberia em um bom curta-metragem. A gordura extra consiste em cenas de gratuita violência ou repetições imagéticas típicas de cineastas pseudo-cults, daqueles que se regozijam em indicar nos créditos iniciais que este é seu projeto de número "x".

O diretor Kim Ki-duk nos apresenta um estudo pretensioso sobre a insensibilidade, física e moral. Para deixar bem clara sua tese, ele insere duas cenas onde o protagonista e a mulher misteriosa que diz ser sua negligente mãe, interrompem o fechar de uma porta com as mãos, sem denunciar qualquer abalo emocional. Poderia se dizer que estas cenas representam obstáculos psicológicos intransponíveis, mas na realidade não é nada tão profundo, apenas duas pessoas que se mostram apáticas. Sentimento que é reforçado diversas vezes, como no momento em que o jovem corta um pedaço de sua própria carne para testar a mulher, fazendo-a comer. Sem sutileza, pois o diretor faz questão de focar por segundos o sangue que escorre de sua perna. A polêmica cena de estupro incestuoso, que causou revolta nos cinemas, não se mostra eficiente, pois envolve dois personagens unidimensionais, mais vazios que um "Hulk". Poderiam ser efeitos em computação gráfica, que não faria diferença alguma.

Gang-Do (Lee Jung-jin) estampa sempre em seu rosto uma frieza desumana, elemento que complementa suas ações de forma óbvia. Ele abate os animais, deixando suas vísceras molharem o chão, tornando-o escorregadio, antes de consumi-los. Qual a razão? Além de ser uma pessoa muito pouco higiênica, deve-se deixar bastante evidente sua natureza animalesca. Ele é mau, muito mau. E a enigmática mulher? Ela é "enigmática", então nada melhor que colocá-la entoando uma bizarra canção de ninar, mesmo que em detrimento de qualquer racionalidade ou propósito, pois ela afirma momentos depois que mal teve tempo de vê-lo quando bebê, então como saberia sua canção favorita?

"Pietá" é visualmente interessante, venceu o "Leão de Ouro" em Veneza, mas seu realizador não é corajoso como Lars Von Trier ou Gaspar Noé. Um cineasta provocador? Analisando essa obra e as anteriores, acho que está mais para um filho mimado querendo chamar a atenção de pais pouco atenciosos. Ele atravessa pela casa quebrando vasos, com um sorriso no canto da boca, como se aguardasse ansioso pela atenção que receberá ao ser repreendido.

Faces do Medo - "Os Invasores de Corpos"


Os Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers - 1978)
Esse é um dos melhores exemplos de como uma refilmagem pode ser superior ao filme original, além de ser uma adaptação mais fiel ao livro que o originou, um clássico de Jack Finney. A invasão alienígena, que tomava de assalto um vilarejo, transportada eficientemente para a cidade grande, modificando o foco da opressão claustrofóbica para a paranoia do anonimato, onde o individualismo parece se perder, um conceito profético para os dias atuais, com a sociedade se tornando cada vez mais padronizada e se olhando menos nos olhos.

O suspense é estabelecido com perfeição já em seu primeiro ato, com destaque para uma breve cena que muitos nem lembram, onde um padre, vivido por Robert Duvall, é visto se balançando junto às crianças em um parque, direcionando um olhar sombrio para a câmera. Você percebe que existe algo de muito esquisito ocorrendo naquele lugar. O terceiro ato é aterrorizante, não dando tempo para o espectador respirar. Foi o primeiro trabalho valoroso de Philip Kaufman na direção. Anos depois ele criaria, com George Lucas, o roteiro de "Os Caçadores da Arca Perdida". Todos os elementos funcionam, da crítica social aos efeitos visuais, até o alívio cômico interpretado por Jeff Goldblum.

Don Siegel, o diretor do filme original de 1956, faz uma ponta como o motorista de táxi que conduz os personagens de Donald Sutherland e Brooke Adams. É interessante salientar a forma como o diretor utiliza a cor vermelha, como uma representação simbólica da perda de entusiasmo e do conformismo que sucedem à duplicação. Outro detalhe interessante e que evidencia a inteligência criativa de Leonard Nimoy, a meia-luva que utiliza em apenas uma mão, foi decisão do próprio ator, buscando tornar seu personagem mais enigmático.  Os créditos finais são apresentados em tenebroso silêncio, aspecto que funcionou com a proposta, mas não foi algo pensado, um complemento perfeito para os arrepiantes momentos que o antecedem. Diferente do desfecho acomodado da adaptação anterior, o público é brindado com uma cena genuinamente apavorante, satisfazendo plenamente o intelectual e o sensorial. 

sábado, 13 de setembro de 2014

"O Homem Duplicado", de Denis Villeneuve


O Homem Duplicado (Enemy - 2013)
É impossível analisar profundamente a obra sem revelar segredos, mas tentarei abordar os aspectos comuns ao livro original e sua adaptação, a fidelidade à mensagem de José Saramago e a inteligência do roteirista Javier Gullón, que utilizou a base crítica do escritor português e a reforçou com personalidade, utilizando aquilo que é exclusivo da linguagem cinematográfica, criando uma simbologia que é sutilmente perceptível no decorrer da trama.

O livro é rico no senso de humor peculiar do autor, com as constantes intervenções do senso comum a questionar os atos do protagonista, mas o filme escolhe deixar totalmente de lado esse viés, reduzindo a jornada literária hercúlea do professor deprimido em busca de sua duplicata - que descobre existir ao assistir despretensiosamente um filme - ao estritamente necessário para o entendimento do espectador que não leu a obra. A duração é curta, os eventos são rápidos e as motivações dos personagens são estabelecidas de forma sucinta, mas a simbologia aracnídea evidenciada desde a primeira cena ajuda a fazer compreender que estamos vendo uma ágil fábula urbana, não um profundo estudo psicológico como nas páginas de Saramago.

O roteiro capta sutis analogias do autor ao totalitarismo e, como em toda fábula, as potencializa generosamente. Conhecemos o professor (Jake Gyllenhaal) exatamente enquanto ele tentava ensinar aos seus alunos sobre a obsessão do Estado em controlar o povo, entregando “pão e circo” e mantendo-os ignorantes, pois é mais fácil manipular um gado com preguiça de pensar. Como educador, ele é o principal alvo daqueles que tencionam o regime ditatorial, já que é o responsável por incitar nos jovens o estímulo ao questionamento. Tomadas rápidas mostram o que parece ser uma teia de aranha sobre a cidade, ilusão criada pelo ângulo da câmera ao focar simples cabos elétricos. E essa é apenas uma das várias exposições simbólicas que são mostradas, algumas sutis e outras explícitas, mas que não serão aqui reveladas por respeito à experiência do leitor.

Em outro momento, uma rápida tomada aérea transforma vários prédios em um imenso labirinto, reforçando a batalha diária dos indivíduos que se espremem pelos “corredores”, muitas vezes sem encontrar sentido para tal esforço. Uma “teia” que anestesia enquanto sufoca gradativamente sua vítima. O totalitarismo, nas palavras do próprio professor, “tolhe todas as formas de expressão individual”, exatamente o que ocorre com ele quando descobre surpreso que não é mais um indivíduo, que existe uma duplicata exata sua, uma perfeita antítese, vivendo uma vida de aventuras, um artista especialista em representar outros papéis. No livro, esse aspecto é aprofundado, inserindo no professor a vergonha pelo nome de batismo, Tertuliano, fazendo questão de chamá-lo sempre pelo nome completo, ocasionando situações que eu gostaria que tivessem sido aproveitadas pelo roteiro.

O que se mantém é a diferenciação dos personagens pela aliança no dedo do ator. O diretor Leos Carax, em seu excelente Holy Motors, abordou o tema com maior ousadia e criatividade, mas com uma proposta bastante diferente. O foco de Denis Villeneuve é na parábola sociológica macro, não nos conflitos existenciais do micro. Uma das adições que considerei mais válida foi na construção narrativa da personagem da noiva do ator (Sarah Gadon), que agora tem participação ativa, alterando para melhor sua contraparte literária, tornando suas ações mais complexas e interessantes, especialmente no terceiro ato. O resultado é, como nas melhores adaptações, uma obra complementar que respeita o material original, compreendendo perfeitamente sua mensagem, mas dando um passo além. Saramago ficaria orgulhoso. 

"O Grande Hotel Budapeste", de Wes Anderson


O Grande Hotel Budapeste (The Grand Hotel Budapest - 2014)
Existe um pouco da elegância cômica de Ernst Lubitsch, uma melancolia que ecoa a de “O Tempo Redescoberto” de Marcel Proust, criativas gags sonoras que remetem a Jacques Tati, uma respeitosa reverência à fictícia Freedonia dos Irmãos Marx, até mais explicitamente uma homenagem a Blake Edwards, em uma das situações mais engraçadas no terceiro ato e na inspiração em “Clouseau”, eterno Peter Sellers, nos trejeitos do personagem de Ralph Fiennes, mas também vejo grande similaridade com a abordagem metafórica, proposta por Vicki Baum em seu livro “Grande Hotel”, do estabelecimento de hospedagem como um microcosmo humano, um personagem que respira e evolui na história. O aspecto fabulesco, realçado pelo estilo visual inimitável do diretor, com a fotografia do usual parceiro Robert Yeoman, e pelo constante uso dos cenários pintados na paisagem, evidencia ainda mais a contundência emocional da mensagem, que se revela cada vez mais tocante em revisões. 

O roteiro de Wes Anderson é inspirado no trabalho literário do austríaco Stefan Zweig, autor de “Carta de uma Desconhecida” (que foi adaptado no belo clássico dirigido por Max Ophuls), que é representado na trama em duas fases de sua vida por Jude Law e Tom Wilkinson, mas cuja personalidade também é percebida na construção do personagem de Fiennes, em seu melhor papel em muitos anos. Somos presenteados com uma trama que é apresentada pela ótica criativa do autor, as lembranças que ele conta a partir das lembranças do dono do hotel, enquanto jovem impressionável, vivido por F. Murray Abraham e pelo promissor estreante Tony Revolori. Esse recurso narrativo possibilita, com o auxílio de uma espécie de “MacGuffin” (o quadro do garoto com a maçã), uma intensa experimentação com vários gêneros, como o filme de espionagem, o filme de prisão, o giallo italiano, a comédia pastelão e até o terror, representado especialmente pelo personagem vivido por Willem Dafoe. 

O resultado pode ser menos cálido e emocionalmente envolvente que o anterior “Moonrise Kingdom”, mas compensa com o senso de humor mais acessível e um ritmo empolgante, como se o diretor quisesse mostrar que pode brincar competentemente no terreno das produções formulaicas dos estúdios, sem perder sua personalidade. 

"A Canção da Estrada", de Satyajit Ray


A Canção da Estrada (Pather Panchali - 1955)
No final da década de quarenta, o cineasta francês Jean Renoir visitou a Índia para gravar "O Rio Sagrado". Na ocasião, conheceu Satyajit Ray, um jovem apaixonado por cinema e que trabalhava na época como ilustrador de capas de livros. Ray ajudou o diretor a encontrar várias locações para o filme e aproveitou para falar a ele sobre sua vontade de tornar-se um cineasta. Renoir o incentivou a continuar sonhando e ao regressar ao seu país, deixou para trás um homem modificado. O jovem indiano havia ilustrado uma versão do livro "Pather Panchali" e se identificava com a trajetória de vida do pequeno protagonista Apu. Foi enviado para Londres a trabalho e nos três meses que lá ficou, assistiu a noventa e nove filmes, entre eles o neo-realista italiano "Ladrões de Bicicleta", que serviu como motivação para que ele decidisse investir em suas ideias e realizar uma adaptação cinematográfica de sua obra literária favorita. Muitas das imagens criadas para o livro acabaram sendo transpostas para o filme.

O filme foi feito com uma verba irrisória. Sua equipe técnica e artística nunca havia trabalhado nesta área, as gravações tiveram que ser interrompidas várias vezes por falta de dinheiro e o filme só conseguiu ser completado com a ajuda do governo indiano. Todo o esforço e dedicação valeram à pena, pois foi um enorme êxito de público e crítica no mundo todo. O lendário cineasta americano John Houston deu o empurrão necessário à confiança do indiano, quando filmava na Índia e a pedidos do próprio, assistiu um pequeno trecho do filme, que ainda não havia sido completado, e fez questão de notificar ao Museu de Arte Moderna de Nova York que um talento imensurável se mostrava no horizonte. Ele recebeu um prêmio especial no prestigiado Festival de Cannes em 1956 e continua sendo respeitado até hoje. Ray desenvolve no filme um trabalho lírico e singelo sobre a infância e a união familiar. A história simples se passa num pequeno vilarejo no interior da Índia, onde uma mulher cuida sozinha de sua filha adolescente enquanto seu marido passa a maior parte do tempo longe de casa, procurando sem muito sucesso, realizar seus sonhos profissionais. O pequeno Apu nasce no meio do fogo cruzado entre três mulheres distintas: uma mãe digna, que se recusa a aceitar ajuda nos momentos de dificuldade, sua irmã sonhadora e sua tia à beira da morte. A trama é irrelevante, deixando em primeiro plano um relato realista do dia a dia desta pequena família, que sobrevive à pobreza, expectativas frustradas e tragédias naturais com uma força de espírito incomum.

Vários momentos ficam guardados na memória, como a celebrada cena onde Apu e sua irmã correm para ver a passagem de um trem, evento que, de tão fascinante e mágico, por representar uma nova perspectiva de realidade num futuro distante, acaba ocasionando a reconciliação entre os irmãos, que haviam discutido por causa de um pedaço de papel. Porém as imagens as quais sempre me recordo ao falar deste filme são as que envolvem a bela relação entre a filha adolescente e sua amada tia, como quando a jovem rouba frutas de pomares alheios para levar para a velha senhora, que sempre a recebe com um largo sorriso sem dentes.

A Seguir: "O Invencível" (1956)

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

"O Lobo Atrás da Porta", de Fernando Coimbra


O Lobo Atrás da Porta (2013)
Esse filme é um raro exemplo de perfeição em todos os quesitos, do elenco principal ao coadjuvante, da fotografia excelente de Lula Carvalho à montagem, da trilha sonora ao roteiro e direção. Uma trama que envolve, ilude, manipula e surpreende, com exibição de pleno entendimento na linguagem utilizada. O roteiro do diretor Fernando Coimbra, estreando de modo promissor com a coragem de um Michael Haneke, ousa trilhar o caminho do cinema de gênero com personalidade, desobedecendo a uma informal cartilha que é passada a todos os estudantes da área e que incentiva de maneira simplista o desprezo por gêneros como medíocre enlatado estrangeiro, escondendo a incompetência e o medo de errar na prática de aperfeiçoamento das fórmulas. 

O filme é autoral e minimalista, mas inteligentemente não é anti-indústria. O impactante resultado final incita naturalmente o boca a boca no espectador, mérito exatamente das convenções do gênero bem executadas que a obra abraça. A história em si, um suspense que pode remeter a clássicos como "Atração Fatal", não é particularmente original, mas a forma como a câmera rejeita qualquer gordura extra, focando-se no quebra-cabeça que se estabelece logo no início, demonstra necessária segurança e não o complexo de inferioridade usual em tentativas nacionais similares nas quais os cineastas buscam transformar qualquer fiapo de trama em algo esteticamente revolucionário. 

Até mesmo os alívios cômicos representados principalmente pelo colega de trabalho do protagonista e pela comediante Thalita Carauta, elementos que costumam existir numa realidade paralela à trama, funcionam como movimentadores da narrativa principal. E é válido salientar que somos apresentados a personagens tridimensionais, com motivações bem fundamentadas, algo que não é essencial no gênero - que permite sem maiores problemas as caricaturas, tal como no já citado "Atração Fatal". Até mesmo o personagem vivido por Emiliano Queiroz, aparecendo pouco e sem dizer uma palavra, acaba se mostrando narrativamente essencial no entendimento do enigma comportamental que envolve a protagonista. 

Não saberia por onde começar os elogios às atuações de Leandra Leal e Milhem Cortaz. A bela e talentosa atriz entrega um desempenho assustador, transmitindo na sutileza de olhares a vulnerabilidade da personagem, atravessando os diversos estágios psicológicos de seu arco narrativo, indo da doçura à intensa crueldade em questão de segundos. Cortaz continua sendo uma força da natureza, praticante da difícil arte de fazer todos os diálogos do roteiro soarem como improvisos naturais, sempre com um toque de ironia. Ele vive um homem preso em um relacionamento desgastado, que acaba encontrando a injeção de ânimo no arriscado desafio amoroso que enxerga numa jovem que conheceu num transporte público, um simbólico motivo condutor do roteiro e que se apresenta desde os créditos iniciais até o desfecho, representando o fator desconhecido que se esconde nas várias encruzilhadas decisórias diárias na vida de todo indivíduo. 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Tesouros da Sétima Arte - "7 Caixas"

Links para os textos do especial:
http://www.devotudoaocinema.com.br/p/tesouros-da-setima-arte.html



7 Caixas (7 Cajas - 2012)
Como sempre digo, o cinema necessita apenas de boas ideias. O baixo orçamento, a ausência de uma indústria nacional, nada é desculpa para a carência de criatividade. E é exatamente essa lição que os roteiristas e diretores paraguaios Juan Carlos Maneglia e Tana Schembori entregam com esse thriller, que traz referências que vão do alemão “Corra, Lola, Corra” ao trabalho de câmera de Danny Boyle, compondo um retrato autêntico da pobreza de personagens que são os órgãos responsáveis pela vida caótica de um mercado popular em Assunção. 

O protagonista, vivido competentemente pelo jovem Celso Franco, sonha com o escapismo transmitido pelo entretenimento televisivo, ferramenta mostrada como eficiente construtora de desejos. Ele somente se interessava em adquirir um celular por causa do recurso de filmagem. Ao se deparar com sua própria imagem projetada naquelas telas mágicas, um leitmotiv que se repete com variações algumas vezes durante o filme, o garoto pobre encontra alguma esperança naquela existência momentânea e ilusória, uma possibilidade de fugir do seu cotidiano triste. Para conseguir o dinheiro necessário para a compra do celular, ele aceita uma proposta de serviço enigmática: transportar rapidamente sete caixas lacradas de madeira, conteúdo desconhecido, até um destino que ele somente descobrirá durante o trajeto. Quanto menos se souber da trama, melhor será a experiência. Como ponto negativo no roteiro, mas perdoável no contexto da obra, uma excessiva utilização de coincidências. Por exemplo: uma cena desnecessária que é inserida no primeiro ato apenas como forma de mostrar que um policial X flerta com uma personagem, apenas para que no segundo ato esse mesmo policial, dentre os vários que poderiam estar presentes no local, servisse como facilitador na resolução de um conflito narrativo.

Ainda que o projeto surpreenda na qualidade do suspense que estabelece, o que realmente o eleva a um patamar superior quando comparado a outros similares é a perfeita utilização do dinamismo na missão do garoto no estilo clássico dos filmes de ação americanos, com a inclusão de vários elementos com interesses conflitantes e câmeras que atravessam por baixo de mesas em perseguições empolgantes, como um McGuffin “hitchcockiano”, enquanto o verdadeiro conto moral envolve a subtrama de uma jovem grávida que está prestes a dar à luz. A mesma mulher que é estabelecida logo nos primeiros minutos como alguém que tenta desesperadamente vender o celular que se torna o objeto de desejo do protagonista. O desfecho do arco narrativo da mulher irá contrastar contundentemente com o do garoto, deixando clara a intenção do roteiro, uma mensagem muito mais perene que qualquer convenção de seu gênero. Podemos ficar fascinados pelas câmeras que seguem, em POV, as rodinhas dos carrinhos de mão em planos-sequência de ação que não deixam nada a dever para aquelas realizadas em indústrias já estabelecidas, mérito também do fotógrafo Richard Careaga, mas são as atitudes silenciosas que se manterão nas mentes do público, várias horas após a sessão.

"Noé", de Darren Aronofsky


Noé (Noah - 2014)
Quando descobri que o diretor Darren Aronofsky, declarado ateu, iria comandar um filme chamado “Noé”, eu comecei a ficar curioso. Não me surpreendi ao constatar que seu roteiro causa a ira daqueles membros do público que procuram nele uma satisfação ideológica religiosa padronizada. Já li comentários de católicos que chamam o diretor de herege. E, seguindo a doutrina católica, a acusação é correta. Como o tema da crítica é o filme, irei apenas usar um parágrafo para dissertar sobre sua ideologia. 

Alguns argumentos apontam o excesso de misticismo, o que chega a ser engraçado quando analisamos a essência do que os acusadores acreditam como verdade absoluta em seu livro sagrado. Conceitos presentes no roteiro, como o de Adão e Eva descarnados e luminescentes, até o momento em que comem o fruto proibido, são vistos pelos católicos com desagrado como puro misticismo. Só que existe um detalhe que esses acusadores não perceberam: em nenhum momento o diretor insinuou que estava realizando uma obra tradicionalmente bíblica. Os monstros gigantes de lava são tão absurdos quanto qualquer evento ocorrido no Antigo Testamento, como os “Nefilins”, gigantes vigilantes, mas por não terem sido incluídos nos escritos sagrados, os evangélicos conservadores atiraram pedras no projeto. Como era de se esperar de pessoas ideologicamente acabrestadas, que não são especialistas sequer na crença que defendem tão passionalmente, focaram a atenção demais no superficial e deixaram de captar a mensagem e a proposta do filme. “Noé” não é uma adaptação do Gênesis. Ele possui muito mais conexão com a Cabala Judaica e, com menos intensidade, o Gnosticismo Cristão. E, de fato, para os católicos/evangélicos, o Gnosticismo é uma doutrina herética, por criar oposição entre a matéria e o espírito, além da ideia de dois deuses. Quando cada homem possui a centelha divina, panteísmo, ele é deus, não filho de deus. A aproximação de Aronofsky com a Cabala (percebam a citação do filho de Noé ao “Zohar”, texto sagrado da Cabala), não é novidade, basta assistir seu primeiro longa: “Pi”, de 1998. Mas o que realmente importa é se o filme é eficiente ao que se propõe. 

Aronofsky é um cineasta autoral corajoso, qualidade que é perceptível em vários momentos. Audácia que reside na própria escolha da lenda de Noé, talvez o protagonista do evento mais metafórico dentre todas as metáforas bíblicas. Ele estabelece sua crítica de forma contundente, elaborando uma polêmica interessante como um homem adulto e maduro, diferente das birras infantis eventuais de Lars von Trier, por exemplo. Inteligentemente ele compõe uma visão do protagonista, vivido por Russel Crowe, ainda em piloto automático, como o primeiro ecologista e adota o conceito da arca como um paralelepípedo de dimensões gigantescas, com fidelidade ao livro sagrado, como se dissesse debochadamente: desse absurdo inverossímil, não poderão reclamar. Anthony Hopkins, numa ponta como o avô de Noé, ultimamente parece ter entregado sua carreira nas mãos do agente, colocando como regra a ser respeitada que somente leria roteiros em que fizesse anciões sábios. É frustrante ver um dos melhores atores de sua geração sendo desperdiçado dessa forma. A excepcional fotografia do usual parceiro do diretor, Matthew Libatique, estabelece uma aura constante de pesadelo. Já a trilha sonora de Clint Mansell perde pontos pela repetição, como que se ambicionasse “dizer” o que já está sendo mostrado na tela. Um pouco de sutileza emolduraria melhor o conflito psicológico do protagonista, muito mais agressivo do que a força da tempestade que se anuncia no horizonte. 

Dentre os muitos questionamentos que o roteiro incita, acho interessante o confronto entre a visão de mundo em que existe um deus que pune severamente os pecadores com a destruição, em oposição a uma visão de mundo em que deus ama intensamente até os pecadores, não se importando em ser destruído na garantia de que eles sobrevivam. É uma crítica inteligente, nascida de uma mente dedicada ao estudo e não a qualquer fé cega, resultando em uma obra que poderia figurar ao lado de outras tão corajosas quanto no tema, como “A Última Tentação de Cristo” e “A Vida de Brian”.

"O Mestre", de Paul Thomas Anderson


O Mestre (The Master – 2012)
Paul Thomas Anderson requisita de seu público, algo mais que sua atenção por algumas horas. Assistir "O Mestre" sem prévio conhecimento, mesmo que básico, sobre o tema que o influenciou, prejudica a experiência. O personagem, vivido brilhantemente por Philip Seymour Hoffman, é inspirado no controverso escritor L. Ron Hubbard, criador de boas obras de ficção científica, como "Campo de Batalha: Terra", mas lembrado sempre pelo seu legado mais questionável: a cientologia, uma crença que envolve o conceito de reencarnação, hipnose e, extraoficialmente, trambicagem, seus seguidores acreditam em vidas passadas de até sessenta trilhões de anos, inclusive assinam contratos válidos para até um bilhão de anos de serviço. No roteiro original, o nome da esposa do personagem era Mary Sue, o mesmo da esposa de Hubbard, mas acabou sendo trocado para Peggy. Algumas passagens do roteiro causaram a ira do praticante da cientologia: Tom Cruise, amigo do diretor, com quem realizou: "Magnólia", como a frase proferida pelo filho do carismático líder, enquanto escutava o pai em seus sermões: "ele vai inventando, improvisando, todo o seu discurso".

Todo o elenco entrega atuações inspiradas e precisas. Amy Adams talvez seja a que menos se destaca, porém faz o mais difícil: ser o esteio emocional de um mentiroso profissional, sem aparentar submissão, que seria o mais óbvio. Como o roteiro é trabalhado em sutilezas, naquilo que não é dito, sua reação à chegada do personagem de Joaquin Phoenix, um inconsequente em um ninho de previsíveis, se alterna entre a necessidade de apoiar seu marido e o medo ao perceber que aquele homem pode ter despertado no líder algo mais que amizade. Qualquer atriz não tão competente reduziria a personagem a um arremedo de estereótipos.

Phoenix, em uma atuação impecável, vive um homem das cavernas, agarrado aos instintos mais primitivos do ser humano. Conseguimos ler o que se passa em sua mente, por trás de cada risada debochada e fora de hora, conseguimos prever o que o move em cada ação intempestiva. Excessivamente sexualizado, vide a cena com a mulher de areia e o teste Roschach, serve como contraponto ao mestre (Hoffman), que inibe seus impulsos sexuais, conduzindo à cena mais impactante, com Amy Adams. Alcoólatra, ele carrega em seu corpo o peso de suas decisões, numa caracterização assustadora, a tristeza por ter deixado a única menina que amou. Talvez a tristeza maior tenha sido ele reconhecer internamente a existência de tal sentimento. O mestre então busca dessensibiliza-lo com o processo de testes que o levarão a integrar "A Causa". O aspecto mais interessante na caracterização do mestre, talvez seja a forma como ele reage "dentro e fora" de seu personagem. Quando confrontado por elementos exteriores, a polícia, por exemplo, ele se mantém no controle, assustadoramente calmo e resiliente. Porém quando confrontado por pessoas envolvidas em sua seita, ele se mostra incapaz de formular qualquer tipo de argumento.

O que pode afastar boa parte do público é o desinteresse de Anderson em mastigar o desfecho, entregando resoluções que podem soar inconclusivas. O foco está no personagem de Phoenix, o que pode frustrar aqueles que buscavam aprofundamento na relação entre o mestre e sua crença. O filme não aponta o dedo em deboche, apenas mostra uma realidade, cada vez mais comum, inclusive no Brasil, que, de tão extremista e absurda, não precisaria de qualquer crítica. Bastaria o bom senso.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

"Até o Fim", de J.C. Chandor


Até o Fim (All is Lost – 2013)
É espantosa a precisão de J.C. Chandor, responsável pelo roteiro e direção, ao narrar essa batalha do homem contra as forças da natureza. Tendo passado por uma experiência quase fatal na adolescência, quando conseguiu se desprender das ferragens de seu carro, após uma forte colisão, ele constrói nesse filme uma fascinante parábola sobre a fragilidade da mortalidade, sobre a beleza triste de um homem que lamenta sua própria morte. Seu trabalho anterior, o excelente “Margin Call – O Dia Antes do Fim”, já demonstrava a força autoral do cineasta, mas nada indicava que ele seria audacioso a ponto de, em seu segundo projeto, desconstruir a estrutura de um subgênero e abordá-lo de forma nova. Inicialmente, temos uma introdução convencional narrada pelo protagonista, mas ainda nos primeiros minutos percebemos que estamos pisando em um terreno novo.

Ponto essencial de ruptura: Não precisamos nos conectar emocionalmente com o personagem. O roteiro não perde tempo em flashbacks idílicos, sequer introduz dicas consideráveis sobre a vida do homem de quem não sabemos o nome (Robert Redford). A Virginia Jean que dá nome ao barco pode ser sua esposa, sua mãe, sua filha ou ninguém em especial, não importa. O anel em seu dedo pode ser uma aliança, como também pode não simbolizar coisa alguma. Com exceção da narração no início, que pode ser direcionada a alguém ou à sua própria consciência, o filme praticamente é todo estruturado em silêncio. Cada espectador irá criar sua própria história sobre o homem e suas motivações.

É lindo que, até mesmo o tom espiritualista que o coloca como metáfora do encontro humano com sua própria finitude, não seja estimulado por nenhuma manipulação imagética (como nas obras de Terrence Malick), mas nasça espontaneamente nas análises daqueles que possuam internamente essa disposição. Aprendemos a admirar sua incrível resiliência perante provações cada vez mais estafantes, tecnicamente emolduradas pela eficiente trilha sonora de Alex Ebert, com o diretor exibindo competência ao aproveitar-se da clássica estrutura do suspense, alternando entre a angustiante antecipação (mérito para a atuação de Redford, que convence de perigos que não estamos necessariamente testemunhando) e a eventual resolução, com breves momentos lúdicos esporádicos para recuperarmos o fôlego. É um erro “ler” o filme com os olhos da razão, buscando verossimilitude nas atitudes do personagem ou perdendo tempo tentando decifrar seu histórico. Assim como o recente “As Aventuras de Pi”, trata-se de uma grande alegoria travestida de conto de sobrevivência.

Não existe o elemento da outridade, clichê em qualquer obra similar. Até mesmo Ernest Hemingway presenteou o seu Santiago com um espadarte que lhe serviu de confidente silencioso. O homem que acompanhamos não interage ou interdepende de ninguém. Ele apenas existe a partir do outro, nesse caso, o espectador. No horizonte se insinua cada vez mais ameaçadora uma devastadora tempestade, que aniquilaria facilmente o barco mais resistente, um destino inevitável, como a morte. O barco de nosso Sísifo fica cada vez mais desgastado, após cada obstáculo superado, mas existe alguma força inexplicável que, contra todas as probabilidades, mantém o homem acreditando que aquele “corpo” irá resistir. Numa analogia ao “O Velho e o Mar”, o homem é o peixe, restando ao final apenas a alma. Apenas? 

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Razzle Dazzle - "Dirty Dancing"

Links para os textos do especial:


Dirty Dancing – Ritmo Quente (Dirty Dancing – 1987)
É curioso perceber que a crítica especializada foi bastante hostil com o filme em sua estreia, o saudoso Roger Ebert chegou a dar cotação mínima, elogiando apenas a criatividade do título. O fato é que, passados 27 anos, ele ainda garante altos índices de audiência em suas frequentes exibições, fazendo parte do universo pop, com suas cenas sendo representadas em festas de casamento ao redor do mundo. Existe algo de especial nele que atrai pessoas de todas as classes sociais, algum elemento que faz com que o público se interesse em repetir diversas vezes a mesma experiência. Esse fator mágico que evidencia a negação do cinema como equação matemática, onde o conceito subjetivo de perfeição pode comportar uma soma de defeitos.

O diretor Emile Ardolino, que só alcançaria o gosto do público novamente cinco anos depois, com a comédia de Whoopi Goldberg: “Mudança de Hábito”, era especialista em documentários sobre o mundo da dança, tendo lutado para provar à roteirista Eleanor Bergstein que, mesmo sem um projeto de ficção no currículo, seria capaz de dirigir aquela obra, inspirada em eventos reais ocorridos na juventude da escritora. A coreografia, essencial por ser parte da narrativa em um musical, foi elaborada por Kenny Ortega, discípulo de Gene Kelly. A opção por dançarinos que soubessem atuar foi crucial no resultado final, fazendo com que nenhum momento soasse forçado, artificial. Por trás da trama aparentemente simples e usual nos chamados “chick flicks”, uma adolescente sempre colocada pra escanteio e que encontra sua voz ao lado de um rapaz mais velho, existe um subtexto que poucos discutem. Quando se analisa mais profundamente, costuma ser abordada a questão óbvia do feminismo, mas quase nunca é citada a referência ao livro “A Nascente”, de Ayn Rand. Uma cena muito rápida, onde o arrogante garçom que engravida a dançarina (Cynthia Rhodes), que considerava uma classe inferior, se recusa a ajudar, entregando o livro para Baby (Jennifer Grey), como sugestão de leitura, afirmando que “algumas pessoas importam, outras não”.

O livro celebra o Objetivismo, os esforços de gênios criativos que conduzem suas vidas focadas completamente nos seus objetivos profissionais. A necessidade de precisar recusar ceder a qualquer impulso que tire o indivíduo de sua trilha, para que eventualmente obtenha sucesso pleno profissional e felicidade pessoal. O garçom estava tomando de forma torta a filosofia do livro para defender seus atos, considerando-se uma versão do protagonista Howard Roark, já que até mesmo o estupro deveria ser desculpado quando perpetrado por um indivíduo extraordinário. A desorientada irmã de Baby, aquela a quem ele realmente intencionava sugerir o livro, deveria, em seu ponto de vista, encontrar identificação com as personagens femininas das páginas, perdoando seu impulso sexual e considerando-se privilegiada por ser desejada. Mas Baby se ofende com a indicação literária, atacando-o agressivamente, ameaçando até causar sua demissão caso ele se aproximasse de sua irmã. Esse é o momento em que ela, sem ajuda de ninguém, existencialmente “sai do escanteio”, muito antes do clássico desfecho, onde é convocada por Johnny (Patrick Swayze) para o palco.

Ela já demonstra força de caráter desde o início, conquistando o respeito de Johnny com sua reação ao erro na primeira dança, quando estava se adaptando apressadamente a uma coreografia que pertencia a uma dançarina profissional, aquela que havia sido violentada e necessitava do dinheiro para o aborto, um tema que o filme aborda de forma corajosa para sua época. Ao invés de colocar tudo a perder, ela improvisa um passo esquisito, mas funcional, sem medo da vergonha. Diferente do que muitos pensam ao terminar o filme, não se trata da história de uma patinha feia, Baby tinha consciência de que era um cisne desde o início. A simbologia da cena em que ele a levanta no ar é interpretada usualmente de forma machista. Não se trata do príncipe encantado que escolheu salvar a dama em apuros. Johnny é quem aprende e amadurece, sendo salvo e inspirado pela integridade de caráter da jovem. Ele a levanta no ar como forma simbólica de salientar a grandeza da personagem, acima de todos os comuns. Ao final da dança, Swayze sublinha o trecho da canção que explicita sua gratidão: “And i owe it all to you” (e eu devo tudo a você).