terça-feira, 22 de março de 2016

"Timbuktu", de Abderrahmane Sissako


Timbuktu (2014)
Hoje pela manhã, mais uma tragédia anunciada, atentado terrorista em Bruxelas, pelo menos trinta mortes, ato assumido pelo Estado Islâmico. É óbvio o perigo do fanatismo fundamentalista religioso no mundo todo, mas é interessante abordar a realidade desumana em que vivem aqueles que estão inseridos nesse sistema, não por consciente escolha ideológica, pessoas que se acostumaram com uma rotina de medo, culpa e punição, administrada por agentes do ódio. É o que mostra o excelente “Timbuktu”, dirigido por Abderrahmane Sissako.

A sua impactante cena final rima com o símbolo metafórico utilizado no início, a perseguição no deserto, entre um veículo lotado de jihadistas com metralhadoras e um solitário filhote de veado. O animal, desamparado como a menina que acaba de perder os pais, assassinados em um julgamento, fugindo para lugar algum, sendo sufocada pelas tradições de seu povo, questionando repetidamente ao vento sobre a razão daquela violência. O pai dela, um músico pacífico, alguém que sequer sabe brigar corpo a corpo, motivado pela tristeza da filha com a morte de sua vaca, vai ao encontro do assassino para se vingar. Ele, a despeito dos pedidos da esposa, carrega um revólver. No calor da briga, sem querer, o revólver dispara, matando o seu oponente. Nesse momento, esse pai honrado passa então a ser julgado por homens sem honra, fanáticos armados que vivem pela guerra. Ele, que se arrepende de ter levado o revólver, julgado por pessoas que não se arrependem de assassinar estranhos a sangue frio.

A beleza da esposa, que lava os cabelos numa bacia, enquanto um jihadista aproveita a ausência do marido para flertar com ela. O hipócrita pudor que rege a exigência dele para que ela cubra o rosto, gesto que ela repudia. Essa cena resume o sistema absurdo e dicotômico que esses homens defendem: ele pode se encantar pela mulher casada e desrespeitar o marido dela, mas considera uma provocação ofensiva o simples ato da mulher em exibir sua cabeleira. O véu, ferramenta grosseira de submissão, uma sociedade tão datada quanto os dinossauros, mas com a sorte de não ter sofrido as consequências da queda de um meteoro. Como esquecer a forte cena em que a pobre mulher, que está sendo punida por cantar alegremente, recebe quarenta chicotadas? Com as lágrimas vertendo no rosto, o canto volta a ser escutado, resiliente, como instrumento de rebeldia. O corajoso roteiro apresenta outra personagem que resiste bravamente, uma espécie de bruxa que veste cores vivas, caminha com segurança entre os opressores, impede a passagem de um jipe dos jihadistas, em suma, um elemento verdadeiramente humano inserido naquele cenário desumano. Nessa atitude, a esperança de que algum dia o fanatismo fundamentalista religioso, assim como os dinossauros, faça parte apenas dos livros de História.

Em um dos momentos mais belos em sua poesia, que remete ao pianista de Polanski dedilhando o espaço vazio e a partida de tênis imaginária em “Blow Up”, os habitantes de Timbuktu, apreciadores do futebol que é proibido, brincam com uma bola imaginária em uma partida teatralmente perfeita. A resistência de um povo que, por um tremendo azar geográfico, nasceu em uma cultura retrógrada onde imperam o medo, a violência e a opressão. 

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