segunda-feira, 14 de março de 2016

A Arte de Arthur Penn


Um de Nós Morrerá (The Left Handed Gun – 1958)
Baseado na peça de Gore Vidal, esse ótimo faroeste revisionista foi o primeiro longa-metragem dirigido por Arthur Penn, que captura toda a ambiguidade da trajetória do lendário fora-da-lei Billy the Kid.

O filme de estreia do diretor Arthur Penn, após vários trabalhos em teleteatros, já deixava perceptível a sua ousadia, o pé na porta da indústria, um faroeste que desconstruía o gênero, adaptado de uma peça escrita por Gore Vidal. Muitas das conotações de homossexualidade contidas no texto original foram amenizadas, deixadas no subtexto de alguns diálogos, algo compreensível no contexto de sua época. O resultado acabou sendo prejudicado por uma interferência agressiva dos produtores, mas o elemento importante da desmistificação do pistoleiro Billy the Kid, vivido por um irrepreensível Paul Newman, em papel que foi pensado para James Dean, segue eficiente até hoje. O protagonista dá voz às angústias dos jovens da década de cinquenta, emulando sutilmente até certos trejeitos dos rebeldes de “Juventude Transviada” e “O Selvagem”. Peckinpah homenagearia várias sequências do filme, até repetindo enquadramentos, em: “Pat Garrett e Billy the Kid”, de 1973. E, como curiosidade, vale prestar atenção no começo do namoro de Penn com a câmera-lenta, um recurso que ele viria a aperfeiçoar na sua obra mais celebrada: “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas”.


Mickey One (1965)
Em Chicago, um comediante conhecido como Mickey One é perseguido pela máfia.

Com a traumática pós-produção de “Um de Nós Morrerá”, sem nenhum controle criativo, e a fraca recepção dos críticos norte-americanos, Penn foi agradecer os aplausos dos jovens críticos franceses, ficando amigo de Truffaut. Ele então decidiu agregar ao seu trabalho aqueles maneirismos visuais. O sistema em Hollywood, censurado pelo código de produção, estava bastante desgastado, grande parte do público começava a prestar mais atenção aos cineastas europeus e reduzia o cinema norte-americano ao cenário fantasioso das comédias românticas, bobagens imediatistas, ou aqueles épicos bíblicos problemáticos. Mas talvez o diretor tenha se escorado demais nas influências da Nouvelle Vague, criando um pretensioso neo-noir kafkiano onde o protagonista, vivido por Warren Beatty, está em constante fuga, uma óbvia metáfora para as perseguições macartistas, com o roteiro entregando algumas ótimas ideias bem executadas, mas o senso de perigo nunca chega a efetivamente prender a atenção do espectador. O mérito fica com o estilo, a elegante fotografia do veterano europeu Ghislain Cloquet e a trilha jazzística composta por Eddie Sauter, com o reforço do saxofone de Stan Getz. Uma obra importante no contexto da Nova Hollywood.


Deixem-nos Viver (Alice’s Restaurant – 1969)
Inspirando-se livremente na música “Alice’s Restaurant”, de Arlo Guthrie, um clássico da contracultura dos anos 60, Penn cria um dos retratos definitivos da cultura hippie no cinema.

O policial exigiu que ele entregasse o cinto, antes de ser preso, para evitar que ele se enforcasse na cela. Mas quem iria se enforcar por ter despejado lixo em local proibido? E depois ele cumpriu seu dever no alistamento militar para a Guerra do Vietnã, pulando junto com o psiquiatra do exército aos repetidos berros de: “Eu quero matar!”. Dois trechos da canção de Arlo Guthrie que considero brilhantes em sua crítica à imbecilidade do militarismo. O filme, protagonizado pelo próprio Arlo, se torna ainda mais fascinante para aqueles que já conhecem a história da música, um tesouro que precisava ser resgatado, já que continua eficiente e, até ouso dizer, narrativamente é mais impactante hoje. Penn conhecia o músico e não se sentia confortável em tomar parte na produção, mas encontrou o viés emocional que buscava no bem-humorado trecho final da canção: “Você pode conseguir tudo o que quiser no restaurante da Alice, menos a própria Alice”. O foco do roteiro é um tema que o diretor prezava mais do que martelar os horrores da guerra, a cultura que estava sendo alimentada pelos jovens norte-americanos como uma fuga lúdica de todas as convenções ditadas por seus pais, representada na família formada por Arlo, Alice e seus amigos, a simbólica ceia que eles compartilham na igreja abandonada. O despejo do lixo, crime que impediu o alistamento, a hipocrisia inerente ao militarismo e sua cultura de padronização, destruindo o indivíduo. Os temas são abordados de forma leve, coerente à ideologia hippie, culminando em um desfecho poderoso em sua opressiva “paz”. Alice, solitária na porta da igreja, vestida de noiva, reconhece internamente que o frágil sonho está fadado a acabar.


Amigos Para Sempre (Four Friends – 1981)
Jovem imigrante iugoslavo e seus dois melhores amigos dividem o amor por uma mesma mulher. Os quatro jovens atravessam a década de 60, vivendo suas incertezas e desilusões.

Essa obra é uma excelente introdução para os trabalhos do diretor, ainda que pouco lembrada na filmografia dele, complementando com um verniz mais terno a sua visão sobre a juventude da conturbada década de sessenta, sempre colocando em conflito os impulsos de vitalidade e os grilhões da opressão. A idealização da coragem e da integridade artística que a jovem que sonha em ser Isadora Duncan representa para os três amigos, o respeito deles em desviar o rosto quando ela deliberadamente tenta seduzir eles deixando o seio à mostra, uma analogia para os sonhos ingênuos que aquela geração nutriu, simbolizados pela meta do homem na lua firmada por Kennedy, minuciosamente desconstruídos com o passar dos anos, com o filho poeta se tornando o reflexo exato do pai bronco que outrora desprezava. A cena impactante da festa de casamento, uma aula de montagem, a esperança morrendo sem glória, dando lugar à estupidez da guerra, ao mundo sombrio personificado na trama pelo incesto e consequencial suicídio do sogro. O rapaz finge não enxergar o óbvio, até que a ilusão se desfaz em tragédia. Um filme que ganha muito em revisão, essencial!


* A caixa "A Arte de Arthur Penn" está sendo lançada em DVD pela distribuidora Versátil, com a curadoria impecável de Fernando Brito.

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