terça-feira, 21 de junho de 2016

A vergonhosa arte de cometer novamente os erros de ontem

Sobre o protesto da equipe do filme nacional em Cannes? Em uma democracia, o direito de protestar é inalienável sobre qualquer tema, ainda que você não concorde com os argumentos. É errado boicotar o filme, como tenho lido em algumas postagens nas redes sociais. A obra não pode ser prejudicada pela ideologia política de sua equipe. Se eu concordo com os argumentos? O “golpe” é uma falácia tão intelectualmente desonesta que custo a acreditar que adultos alfabetizados estão repetindo esse mantra por sincera ideologia. Na melhor das hipóteses, estão praticando uma impressionante dissonância cognitiva. Como estratégia no jogo político, essa técnica simplória de indução/influência utilizando uma palavra chave que é repetida exaustivamente, algo que qualquer estudante do primeiro período de publicidade aprende, pode até surtir algum efeito imediatista, mas está fadada ao descrédito em longo prazo. A mentira nunca granjeia respeito.

O texto acima eu postei nas redes sociais nesse final de semana, um posicionamento que foi abraçado pela maioria dos amigos virtuais, mas que também rendeu comentários contrários à ideia de que era errado boicotar o filme. Como respondi lá, não podemos revidar aquilo que consideramos errado com outra postura tão errônea quanto. É algo óbvio, parece sermão de tia da pré-escola, mas não poderia estar mais perto da verdade. Na história do cinema, para me ater à mesma mídia do caso citado, muitos dos melhores filmes que você já viu e se orgulha de citar como seus favoritos, foram dirigidos por pessoas que você não cogitaria convidar pra sua festa de aniversário.

Elia Kazan, quando foi homenageado na premiação da Academia de Hollywood, uma boa parte dos membros da plateia, colegas de profissão, fez questão de não aplaudir o diretor como forma de protesto. Alguns, como Richard Dreyfuss e Sean Penn, escreveram uma nota de repúdio na imprensa. O pai de Penn foi uma das vítimas do erro crasso cometido outrora por Kazan, ele foi um dos perseguidos pela lista negra do macartismo, iniciado pelo senador Joseph McCarthy, uma caça às bruxas contra os comunistas na indústria. Caso o artista tivesse condutas consideradas simpáticas ao comunismo, ainda que não fosse de fato comunista, ele já entrava no radar como um suspeito, o que já garantia boicotes e falsos rumores cruéis com o intuito de destruir a carreira e quebrar o espírito desses artistas. Muitos se suicidaram, já que não conseguiam emprego, outros precisaram assinar produções com nomes falsos, em suma, foi um dos momentos históricos mais vergonhosos da trajetória humana. Chaplin, por exemplo, um dos perseguidos, teve que se exilar na Suíça. E qual o papel de Kazan nisso? Ele foi um dos delatores mais dedicados. Mas devemos então odiar obras-primas dele, como: “Uma Rua Chamada Pecado”, “Sindicato de Ladrões” e “Um Rosto na Multidão”? Quer outro nome mais popular? Walt Disney. Você vai negar o brilhantismo de suas animações, ou vai boicotar “Branca de Neve e os Sete Anões” e “Pinóquio” na vida de seus filhos pequenos?

O pensamento lúcido, como sempre afirmo, é a única solução em longo prazo para o povo brasileiro. A obra não pode ser prejudicada pelas atitudes pessoais e pela ideologia política/religiosa de seus artistas. É preciso separar o homem de sua arte. Christian Bale é considerado um cara grosseiro, quase insuportável com seus colegas, mas não é justo negar seu talento em sua função. Hitchcock não deixou boas lembranças para Tippi Hedren, protagonista de “Os Pássaros”, ele foi considerado um carrasco por quase todas as atrizes de seus filmes, com acusações até de assédio sexual, mas seria um absurdo negar seu talento como mestre do suspense. Até mesmo você, que me lê nesse momento e se achava imune a qualquer questionamento, pode ser um crápula hipócrita para sua família e amigos, mas não gostaria de ter seu trabalho, pelo qual se dedica tanto, desprestigiado publicamente por causa dessa conduta pessoal. 

Quando você adota a lucidez como cajado inseparável no seu dia a dia, passa a enxergar todas as questões de forma diferente, passa a perceber os tons de cinza em cenários que antes eram marcados por conflitos extremistas, passa a valorizar mais a interpretação de texto, ao invés de passar os olhos rapidamente numa leitura diagonal que, acima de tudo, desrespeita a quem escreve. Não é o seu caso, caro leitor, querida leitora, mas é usual que eu tenha a necessidade de preparar o texto, com o cuidado de ser o mais claro possível na retórica, sabendo que terei que explicar depois o conteúdo dele, já que boa parte dos leitores dessa geração whatsapp parece ler pulando linhas, procurando apenas acolhimento ideológico ou buscando motivos para extravasar a raiva.

Segure firme no cajado da lucidez, estude, entenda a importância do contra-argumento respeitoso e boicote a própria língua (ou os dedos) antes de agredir outrem. Posso não concordar veementemente com os argumentos do diretor Kleber Mendonça Filho sobre a questão do “golpe”, como deixei claro no parágrafo inicial, posso ter achado equivocado o protesto, mas ele exerceu seu direito de protestar, admiro sua arte, aplaudo-o como cineasta. “O Som ao Redor”, seu projeto de 2012, entrou em minha lista dos dez melhores filmes no ano. Ainda não vi “Aquarius”, mas farei a crítica na semana de sua estreia nos cinemas brasileiros.

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