sexta-feira, 3 de novembro de 2017

"Os Deuses Malditos", de Luchino Visconti


Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei - 1969)
Eu lembro vividamente de quando, na fase de transição entre a infância e a adolescência, escutei pela primeira vez sobre o holocausto nazista. A minha mente não conseguia acreditar que algo tão absurdamente cruel tivesse acontecido. Como toda criança, eu superestimava a inteligência dos adultos. Como é possível? O povo alemão abraçar as loucuras ideológicas de Hitler não entrava na minha cabeça. E a professora na época alertava que era necessário mantermos vigilância para que isto não acontecesse novamente. Sem pensar duas vezes, afirmei internamente: Impossível! Hoje, analisando lucidamente o comportamento de manada de grande parte do povo brasileiro ao debater política, esta propensão asquerosa ao apedrejamento, estimulado por formadores de opinião imbecis que ganham fama na internet com vídeos em que satisfazem a necessidade de tolos inseguros por autoafirmação abusando dos discursos de ódio, enxergo perfeitamente a natureza do mal, o ovo da serpente.

A rápida escalada fascista, o conservadorismo extremista hipócrita e, por conseguinte, o impulso grosseiro por censura artística, elementos perigosos nas mãos de analfabetos funcionais. Sem pesquisar minimamente, motivado apenas pela manchete sensacionalista, o povo já toma partido e soma na fila do linchamento social. Imagine o que um líder carismático de índole ruim faria com tal coletivo barulhento de acéfalos. Se a sociedade não acordar logo e tomar vergonha na cara, estamos condenados a repetir o sombrio passado em um futuro próximo. Luchino Visconti trabalha estes temas em “Os Deuses Malditos” com aquela ferina elegância usual em sua carreira, alcançando o tom psicologicamente apocalíptico do "Saló" de Pasolini, utilizando como força motriz provocadora a frieza contemplativa de quem se depara com o abismo e sorri consciente de que não há redenção. 

Utilizando como alegoria a decadência de uma família alemã que se corrompe por ganância, encontrando na máquina nazista terreno fértil para extravasar a maldade que escondiam sob o verniz da alta sociedade, o roteiro prima por vasculhar a raiz do problema, ao invés de simplesmente retratar o poder de sedução do partido político, o texto joga luz nos indivíduos, evidenciando o processo doentio que permite a absorção de sistemas repugnantes, o interesse pequeno por poder e glória sem esforço que faz com que pessoas comuns se tornem monstros, cobras autofágicas sem bússola ética. A trilha sonora de Maurice Jarre pontua de forma debochada esta grandiosidade ilusória e cafona inerente aos personagens. No elenco, Ingrid Thulin, Helmut Berger, Charlotte Rampling, Dirk Bogarde e Florinda Bolkan, um grupo que se despe existencialmente para as câmeras. 

A fotografia de Pasqualino De Santis e Armando Nannuzzi garante uma qualidade etérea que insinua o desapego como leitmotiv, afinal, a barbárie moral na trama envolve incesto, pedofilia, traições, figuras sem escrúpulos que perderam o senso de identidade. Referências são feitas a alguns episódios históricos, como o expurgo na Noite das Facas Longas ocorrido em 1934, com os Essenbeck na narrativa representando os Krupp, família que irresponsavelmente financiou os nazistas com sua fábrica de armas. O ditador não pensa duas vezes antes de cuspir naqueles que o ajudaram a conquistar seu posto, ele liquidou a SA, a milícia paramilitar nazista. A sequência da bebedeira orgiástica que simboliza este momento é o ponto alto do filme. 

Se ao final da sessão você concluir que se trata de uma página virada na História, olhe com mais atenção ao seu redor. 

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