terça-feira, 3 de outubro de 2017

"Mãe!", de Darren Aronofsky


Mãe! (Mother! – 2017)
(O texto aborda detalhes da trama, então recomendo que seja lido após a sessão)

Como sempre afirmo, a expectativa deve ser sempre evitada, especialmente pelos profissionais da crítica. O indivíduo que paga ingresso e busca ser mimado pela arte, pode sair revoltado de uma sessão e falar mal do filme para todo mundo. Aquele que exercita a lucidez, mesmo não tendo compreendido a proposta da obra, reconhece os méritos técnicos e busca aprender. Acompanhando a repercussão nas redes sociais e sites especializados, percebo que parcela considerável dos detratores sequer captou a metáfora mais óbvia na trama, apenas uma das várias interpretações possíveis. Eu sinceramente torço para que o diretor, ateu declarado, esteja conscientemente construindo uma trilogia temática com viés crítico sobre religião, ele já exercitava isto desde seu primeiro longa-metragem: “Pi”, mas foi com “Noé”, seu trabalho anterior, que ele abraçou sem reservas o desafio. Ele agora segue explorando a necessidade humana de se apoiar em crenças sobrenaturais, trazendo o criacionismo para o terreno da realidade identificável, utilizando códigos do terror na estrutura do roteiro, objetivando evidenciar o absurdo inerente ao conceito.

Deus/Criador (Javier Bardem) e a Mãe/Natureza (Jennifer Lawrence) vivem no Paraíso, uma casa isolada e cercada de árvores, um terreno que visivelmente nunca foi pisado, a fotografia de Matthew Libatique banha o cenário com a antinatural luz da pureza, a perfeição, enquanto opta pela claustrofobia nas filmagens internas, planos fechados apontando a solidão que ambos sentiam. Para a surpresa dos dois, Adão (Ed Harris) aparece na porta com um ferimento na costela, acompanhado de Eva (Michelle Pfeiffer). Ele, frágil e passivo. Ela, coerente à sua imagem como causadora de todos os males no livro sagrado católico, desrespeitosa, cínica, excessivamente sexualizada, provocadora cruel. O casal invade a casa e, sem qualquer consideração com a dona, corrompe cada ambiente, danificando a propriedade. Pouco tempo depois, sem aviso, seus dois filhos, Caim e Abel (Domhnall Gleeson e Brian Gleeson) invadem também, culminando em um assassinato brutal.

O símbolo do criador sendo representado como poeta escritor é muito eficiente, criação artística e divina, há uma camada de interpretação menos alegórica que permite identificar a trama como um tratado sobre as dificuldades do processo criativo e o desejo narcisístico de ser reconhecido pelo trabalho. O bebê que é entregue à massa de adoradores, o livro que finalmente vai ser lido por outrem, o esforço do autor e o abandono do material que agora será adotado por cada leitor. Mas o viés religioso é muito mais instigante. O bebê Jesus, os seus ensinamentos, desvirtuados por vários interesses baixos, o pastor que fala em nome do criador e faz fortuna vendendo sua imagem. O mesmo povo que mata o bebê por negligência, no torpor da adoração excessiva, divide ele em pedaços e ingere sua carne em ritual, a celebração da falsa aparência, enquanto praticam o oposto do que ele pregou, destruindo a casa em sua ruidosa passagem, literalmente estuprando a mãe Terra. A personagem vivida por Kristen Wiig, a editora/apóstola, está pronta para utilizar os escritos do autor e lucrar em seu nome, uma organização que busca apenas conquistar o poder e manter-se relevante, injetando culpa, medo e penitência como elementos de controle social e político. E, num gesto de incrível coragem, Aronofsky mostra ela no terceiro ato sendo a fria líder armada em uma chacina, as guerras santas, o dedo que aperta o gatilho, ou se omite quando é conveniente.

Uma obra questionadora, que desafia o público e estabelece tensão na medida certa para satisfazer até mesmo aqueles interessados apenas no elemento do entretenimento. Ao ousar novamente em um produto mainstream, o diretor prova que ainda há vida inteligente na indústria. 

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