Noé (Noah - 2014)
Quando descobri que o diretor Darren Aronofsky, declarado
ateu, iria comandar um filme chamado “Noé”, eu comecei a ficar curioso. Não me
surpreendi ao constatar que seu roteiro causa a ira daqueles membros do público
que procuram nele uma satisfação ideológica religiosa padronizada. Já li
comentários de católicos que chamam o diretor de herege. E, seguindo a doutrina
católica, a acusação é correta. Como o tema da crítica é o filme, irei apenas
usar um parágrafo para dissertar sobre sua ideologia.
Alguns argumentos apontam o excesso de misticismo, o que chega a ser engraçado
quando analisamos a essência do que os acusadores acreditam como verdade
absoluta em seu livro sagrado. Conceitos presentes no roteiro, como o de Adão e
Eva descarnados e luminescentes, até o momento em que comem o fruto proibido,
são vistos pelos católicos com desagrado como puro misticismo. Só que existe um
detalhe que esses acusadores não perceberam: em nenhum momento o diretor
insinuou que estava realizando uma obra tradicionalmente bíblica. Os monstros
gigantes de lava são tão absurdos quanto qualquer evento ocorrido no Antigo
Testamento, como os “Nefilins”, gigantes vigilantes, mas por não terem sido
incluídos nos escritos sagrados, os evangélicos conservadores atiraram pedras
no projeto. Como era de se esperar de pessoas ideologicamente acabrestadas, que
não são especialistas sequer na crença que defendem tão passionalmente, focaram
a atenção demais no superficial e deixaram de captar a mensagem e a proposta do
filme. “Noé” não é uma adaptação do Gênesis. Ele possui muito mais conexão com
a Cabala Judaica e, com menos intensidade, o Gnosticismo Cristão. E, de fato,
para os católicos/evangélicos, o Gnosticismo é uma doutrina herética, por criar
oposição entre a matéria e o espírito, além da ideia de dois deuses. Quando
cada homem possui a centelha divina, panteísmo, ele é deus, não filho de deus.
A aproximação de Aronofsky com a Cabala (percebam a citação do filho de Noé ao
“Zohar”, texto sagrado da Cabala), não é novidade, basta assistir seu primeiro
longa: “Pi”, de 1998. Mas o que realmente importa é se o filme é eficiente ao
que se propõe.
Aronofsky é um cineasta autoral corajoso, qualidade que é perceptível em vários
momentos. Audácia que reside na própria escolha da lenda de Noé, talvez o
protagonista do evento mais metafórico dentre todas as metáforas bíblicas. Ele
estabelece sua crítica de forma contundente, elaborando uma polêmica
interessante como um homem adulto e maduro, diferente das birras infantis
eventuais de Lars von Trier, por exemplo. Inteligentemente ele compõe uma visão
do protagonista, vivido por Russel Crowe, ainda em piloto automático, como o
primeiro ecologista e adota o conceito da arca como um paralelepípedo de
dimensões gigantescas, com fidelidade ao livro sagrado, como se dissesse
debochadamente: desse absurdo inverossímil, não poderão reclamar. Anthony
Hopkins, numa ponta como o avô de Noé, ultimamente parece ter entregado sua
carreira nas mãos do agente, colocando como regra a ser respeitada que somente
leria roteiros em que fizesse anciões sábios. É frustrante ver um dos melhores
atores de sua geração sendo desperdiçado dessa forma. A excepcional fotografia
do usual parceiro do diretor, Matthew Libatique, estabelece uma aura constante
de pesadelo. Já a trilha sonora de Clint Mansell perde pontos pela repetição,
como que se ambicionasse “dizer” o que já está sendo mostrado na tela. Um pouco
de sutileza emolduraria melhor o conflito psicológico do protagonista, muito
mais agressivo do que a força da tempestade que se anuncia no horizonte.
Dentre os muitos questionamentos que o roteiro incita, acho interessante o
confronto entre a visão de mundo em que existe um deus que pune severamente os
pecadores com a destruição, em oposição a uma visão de mundo em que deus ama
intensamente até os pecadores, não se importando em ser destruído na garantia
de que eles sobrevivam. É uma crítica inteligente, nascida de uma mente
dedicada ao estudo e não a qualquer fé cega, resultando em uma obra que poderia
figurar ao lado de outras tão corajosas quanto no tema, como “A Última Tentação
de Cristo” e “A Vida de Brian”.
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