terça-feira, 9 de setembro de 2014

"Noé", de Darren Aronofsky


Noé (Noah - 2014)
Quando descobri que o diretor Darren Aronofsky, declarado ateu, iria comandar um filme chamado “Noé”, eu comecei a ficar curioso. Não me surpreendi ao constatar que seu roteiro causa a ira daqueles membros do público que procuram nele uma satisfação ideológica religiosa padronizada. Já li comentários de católicos que chamam o diretor de herege. E, seguindo a doutrina católica, a acusação é correta. Como o tema da crítica é o filme, irei apenas usar um parágrafo para dissertar sobre sua ideologia. 

Alguns argumentos apontam o excesso de misticismo, o que chega a ser engraçado quando analisamos a essência do que os acusadores acreditam como verdade absoluta em seu livro sagrado. Conceitos presentes no roteiro, como o de Adão e Eva descarnados e luminescentes, até o momento em que comem o fruto proibido, são vistos pelos católicos com desagrado como puro misticismo. Só que existe um detalhe que esses acusadores não perceberam: em nenhum momento o diretor insinuou que estava realizando uma obra tradicionalmente bíblica. Os monstros gigantes de lava são tão absurdos quanto qualquer evento ocorrido no Antigo Testamento, como os “Nefilins”, gigantes vigilantes, mas por não terem sido incluídos nos escritos sagrados, os evangélicos conservadores atiraram pedras no projeto. Como era de se esperar de pessoas ideologicamente acabrestadas, que não são especialistas sequer na crença que defendem tão passionalmente, focaram a atenção demais no superficial e deixaram de captar a mensagem e a proposta do filme. “Noé” não é uma adaptação do Gênesis. Ele possui muito mais conexão com a Cabala Judaica e, com menos intensidade, o Gnosticismo Cristão. E, de fato, para os católicos/evangélicos, o Gnosticismo é uma doutrina herética, por criar oposição entre a matéria e o espírito, além da ideia de dois deuses. Quando cada homem possui a centelha divina, panteísmo, ele é deus, não filho de deus. A aproximação de Aronofsky com a Cabala (percebam a citação do filho de Noé ao “Zohar”, texto sagrado da Cabala), não é novidade, basta assistir seu primeiro longa: “Pi”, de 1998. Mas o que realmente importa é se o filme é eficiente ao que se propõe. 

Aronofsky é um cineasta autoral corajoso, qualidade que é perceptível em vários momentos. Audácia que reside na própria escolha da lenda de Noé, talvez o protagonista do evento mais metafórico dentre todas as metáforas bíblicas. Ele estabelece sua crítica de forma contundente, elaborando uma polêmica interessante como um homem adulto e maduro, diferente das birras infantis eventuais de Lars von Trier, por exemplo. Inteligentemente ele compõe uma visão do protagonista, vivido por Russel Crowe, ainda em piloto automático, como o primeiro ecologista e adota o conceito da arca como um paralelepípedo de dimensões gigantescas, com fidelidade ao livro sagrado, como se dissesse debochadamente: desse absurdo inverossímil, não poderão reclamar. Anthony Hopkins, numa ponta como o avô de Noé, ultimamente parece ter entregado sua carreira nas mãos do agente, colocando como regra a ser respeitada que somente leria roteiros em que fizesse anciões sábios. É frustrante ver um dos melhores atores de sua geração sendo desperdiçado dessa forma. A excepcional fotografia do usual parceiro do diretor, Matthew Libatique, estabelece uma aura constante de pesadelo. Já a trilha sonora de Clint Mansell perde pontos pela repetição, como que se ambicionasse “dizer” o que já está sendo mostrado na tela. Um pouco de sutileza emolduraria melhor o conflito psicológico do protagonista, muito mais agressivo do que a força da tempestade que se anuncia no horizonte. 

Dentre os muitos questionamentos que o roteiro incita, acho interessante o confronto entre a visão de mundo em que existe um deus que pune severamente os pecadores com a destruição, em oposição a uma visão de mundo em que deus ama intensamente até os pecadores, não se importando em ser destruído na garantia de que eles sobrevivam. É uma crítica inteligente, nascida de uma mente dedicada ao estudo e não a qualquer fé cega, resultando em uma obra que poderia figurar ao lado de outras tão corajosas quanto no tema, como “A Última Tentação de Cristo” e “A Vida de Brian”.

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