A filha do diretor François Truffaut, um dos pais da Nouvelle Vague, me deu a honra de entrevistá-la, abordando o legado artístico daquele que foi uma das minhas maiores inspirações nessa paixão pela Sétima Arte. Extremamente carinhosa e atenciosa, ela até enviou, como presente, a foto abaixo, que utilizo para emoldurar a postagem. Merci Laura.
O – Laura, em meu livro “Devo Tudo ao Cinema”, eu escrevo
sobre como Truffaut foi uma grande inspiração e me ensinou a resistir, enquanto
criança excessivamente tímida, desde quando li a respeito dele, adolescente,
pegando os cartazes dos filmes nos cinemas. O protagonista do livro se chama
Antonio, numa homenagem ao Antoine Doinel, alterego de seu pai. Eu estava tentando
me destacar como indivíduo naquele ambiente padronizado, o que me levou a colar
cartazes de cinema por todas as paredes do meu quarto. Anos mais tarde, já como
crítico de cinema, seu pai foi minha maior inspiração profissional, pela
coragem com que ele, como crítico, confrontou o comodismo do cinema que era
realizado na França. Você acha que ele tinha noção de sua própria importância,
não apenas como artista, mas por suas condutas pessoais? Ele ficaria surpreso
com o impacto de seu trabalho, ainda hoje, em cinéfilos e críticos do mundo
todo?
L - Eu sinceramente acho que ele não pensava nisso, toda sua
energia era focada em seu trabalho. Mas com certeza ele ficaria feliz ao saber
que alguns de seus filmes que foram tidos como fracassos na época, como “Duas
Inglesas e o Amor” e “Atirem no Pianista”, são agora bastante apreciadas.
O – Você afirmou uma vez que “A Noiva Estava de Preto”
havia sido a primeira vez em que você, conscientemente, aos oito anos de idade,
acompanhou o processo de produção e assistiu quando foi lançado. Como você
analisa a obra hoje?
L - A última vez que assisti na tela grande foi uns dois
anos atrás. Fiquei impressionada com a forma fluida que as diferentes partes, uma
para cada homem assassinado pela personagem de Jeanne Moreau, se relacionam. É
um filme de ritmo acelerado. A protagonista é estruturalmente difícil, quase
não é humana, exceto por uma ou duas cenas em que é permitida a ela uma maior
complexidade psicológica. Já os personagens masculinos são todos bem humanos,
de uma forma que seus papéis são mais desenvolvidos, ainda que possuam menos
cenas que ela. Eu gosto muito do súbito desfecho na prisão.
O – Você possui lembranças de infância ao lado de seu
pai na Cinemateca? Você, conscientemente, sente que a paixão dele por aquele local
causou impacto emocional na jovem menina de outrora?
L - Meu pai me levava na Cinemateca de vez em quando. Eu devia ter por volta de
quatro, cinco anos, na primeira vez. Fomos assistir a um filme do Chaplin: “Carlitos
nas Trincheiras”. Lembro que fiquei aterrorizada e tivemos que sair antes do
final da projeção. Depois, ele me levou pra assistir “O Romance de um
Trapaceiro” (de Sacha Guitry), que eu amei. Eu costumava ir muito lá sozinha.
Mas nós assistíamos juntos muitos filmes em outros cinemas. A Cinemateca era
especial porque todos na plateia compartilhavam a mesma devoção pelo cinema.
O – Como era a relação de seu pai com seus admiradores?
Gostava do assédio, de ser abordado? O que ele pensava sobre seus fãs?
L - Como diretor, meu pai não era sempre reconhecido em público. Isso mudou no
final dos anos setenta, talvez porque havia mais daqueles programas de
entrevistas na televisão. Caso ele estivesse trabalhando em público, por
exemplo, filmando uma cena na rua, ele não gostava de interrupções, claro. Ele
não pensava muito nesse aspecto da carreira, não frequentava festas, ele era
bem caseiro. Mas havia alguns admiradores com quem ele mantinha contato
frequente através de cartas, alguns deles se tornaram roteiristas e cineastas.
O – Eu acredito que a música era um fator importante em
sua mente criativa. Que tipo de música ele escutava em casa?
L - A música era muito importante pra ele, mas ele não escutava muito. Algumas
clássicas, como Haydn e Mozart, mas nunca ópera ou jazz. Alguns cantores
franceses. Charles Trenet, muito famoso a partir da década de trinta, era seu
favorito por causa das letras quase surrealistas. Ele sabia as letras de todas
as canções dele. Costumávamos escutar juntos por várias vezes a trilha sonora
de “Os Guarda-Chuvas do Amor”, assim como as trilhas de outros musicais de
Jacques Demy.
O – Como era a relação de seu pai com as cores no
cinema? Eu tenho a impressão de que ele não apreciava muito esse recurso. Ele
se sentia mais confortável filmando em preto e branco?
L - Excelente pergunta. Os primeiros filmes dele eram em preto e
branco por escolha, mas também por questões financeiras. Depois, os filmes
realmente precisavam ser feitos em cores para que pudessem ser comprados e
apresentados pelas redes de televisão. Ele tinha muitas teorias sobre o que
deveria ser evitado em filmes coloridos, especialmente aqueles de época (como “A História de Adèle H.”, “As Duas Inglesas e o Amor” e “O Quarto Verde”). Ele
acreditava que o público não deveria ver muito o céu, especialmente na luz do
dia, em filmes coloridos. A preocupação dele era que um céu ensolarado fizesse
o filme ficar com um ar de documentário.
Ele trabalhou com precisão essas teorias com seus
diretores de fotografia, especialmente Nestor Almendros, para escolher uma
paleta de cores para certos filmes. Ele ficou muito feliz quando Martin
Scorsese fez “Touro Indomável” em preto e branco, assim como Woody Allen fez a
mesma escolha em “Manhattan”, no final da década de setenta, início dos anos
oitenta. O sucesso desses filmes mostrou que ainda havia um público considerável
para o preto e branco, o que possibilitou ele fazer “De Repente, num Domingo”
em preto e branco. Mas isso não significava que ele não queria experimentar a
cor em seus outros filmes.
O – Os filmes dele, diferentes dos de Godard, por exemplo,
eram sentimentais e tinham um apelo universal. “O Quarto Verde”, “O Garoto
Selvagem” e aqueles com o personagem Doinel, por exemplo, demonstravam
interesse em despertar uma identificação emocional no público. Ele se expunha demais nesses projetos. Como
ator, esse aspecto ficava ainda mais evidente. Não havia técnica, método de
atuação, apenas coração, paixão. Qual era a visão dele para essas incursões na
frente da câmera?
L - Você está certo, não havia método de atuação. Para “O Garoto Selvagem”, ele
sabia que queria que o público focasse a atenção na criança, não no médico. Ele
sentia que o personagem do médico não era plenamente desenvolvido para um ator
profissional. Ele também não queria mostrar para algum ator os gestuais que o
ator então mostraria para a criança em cada cena, etc. Ele não queria nenhuma
interferência entre a criança e ele próprio, de certa forma.
Para “O Quarto Verde”, não sei exatamente o que o fez
decidir interpretar o personagem. Nós nunca discutimos sobre isso. Ele
provavelmente poderia ter escalado Charles Denner, o protagonista de “O Homem
que Amava as Mulheres”, feito pouco antes. Entre esses dois filmes, ele
trabalhou como ator apenas para Spielberg em “Contatos Imediatos de Terceiro
Grau”, pois ele queria entender melhor a experiência de ser um ator sendo
dirigido por outra pessoa.
Quando ele não atuava em seus próprios filmes, ele costumava
selecionar atores que se aproximavam dele na altura, como Jean-Pierre Léaud,
Charles Denner e Jean-Louis Trintignant.
O – Seu pai tinha alguma mania ou método peculiar
durante a preparação e a filmagem de seus projetos?
L - Acho que ele não tinha nenhuma mania específica. Ele era muito focado, mas
também conduzia em paralelo sua pequena produtora, então ele estava sempre trabalhando
e marcando presença no escritório, exceto quando estava filmando em locações
fora de Paris.
O – Em sua opinião, qual seria a relação de seu pai com
o cinema digital? Ele abraçaria a nova tecnologia? Qual acredita que seria a
opinião dele sobre o tipo de cinema que é realizado hoje?
L - Eu acredito que ele teria sentido saudade da película. Eu não acho que ele
gostaria de saber que as pessoas agora assistem aos filmes nas pequenas telas de
seus celulares. Mas ele gostava bastante de seu aparelho de televisão e ficou
muito empolgado quando os primeiros videocassetes foram inventados.
O – Os meus filmes favoritos dele são “A Noite
Americana”, “A Mulher do Lado”, “Os Incompreendidos” e “O Quarto Verde”. Eu imagino que os seus
favoritos variem com o tempo, mas quais seriam os selecionados hoje? Qual o
filme dele que você revisita com maior frequência? E quais são seus favoritos
dentre aqueles não dirigidos por ele?
L - Meus favoritos sempre mudam. Hoje em dia eu selecionaria
“O Garoto Selvagem”, “Atirem no Pianista” e “Beijos Proibidos”. Daqui a cinco
anos, possivelmente escolherei outros. Agora, com filmes em geral, seria uma
lista imensa: “Tristana” (Buñuel), “Annie Hall” (Allen), “Soberba” (Welles), “Ninotchka”,
“Quem é o Infiel?” (Mankiewicz), “Amores Parisienses”, “Fanny e Alexander”
(Bergman), “O Rio Sagrado” (Renoir), “Os Excêntricos Tenenbaums” (Wes
Anderson), “Os Guarda-Chuvas do Amor”, “Cantando na Chuva”, “Tudo Sobre Minha
Mãe” (Almodóvar), entre muitos outros.
O – Você poderia deixar uma mensagem para os cinéfilos
brasileiros que, assim como eu, amam o trabalho de seu pai?
L - É maravilhoso saber que meu pai, François Truffaut,
ainda é lembrado por cinéfilos no Brasil. Ele costumava me falar com carinho sobre
as viagens dele para aí, especialmente no período que visitou ao lado da minha
mãe, na época da estreia de “Jules e Jim”. A nação o impressionou bastante.
Excelente , poder fazer perguntas inteligentes e obter respostas nítidas e diretas, como se estivessem conversando na mesa de um Bar. Laura Truffaut foi muito delicada em te conceder esta entrevista bem esclarecedora para nós , fãs do pai dela.
ResponderExcluirParabéns pelo Blog e por essa ótima entrevista!
Octavio,parabéns pela entrevista!Coincidentemente,no site "O Melhor da Telona" fizeram um "Festival Truffaut".Baixei e assisti a diversos filmes."Duas inglesas e o amor",citado na entrevista,é muito bonito,delicado,gostei bastante.Também gostei de "O último metrô",com Catherine Deneuve e G.Depardieu e "De repente,num domingo",filmado em preto e branco,um certo clima Noir,com a belíssima Fanny Ardant e Jean-Louis Trintignant.Confesso que só havia assistido,até agora,"A história de Adèle H".Agora,virei fã do cineasta.
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