A Pele Que Habito (La Piel que Habito – 2011)
O filme já se inicia evidenciando a “gaiola” em que o
personagem (Elena Anaya) vive. Na primeira vez que o vimos, a câmera flerta com
a imagem desfocada dele, antes mesmo do nome de Almodóvar aparecer, enquanto
negras grades aparecem em foco. Um detalhe que não dura sequer quatro segundos
em cena, porém de extrema importância, denotando assim o esmero técnico da
produção. Ainda nos primeiros minutos da obra, a câmera nos apresenta
sutilmente o livro que ele recebe, e que aparecerá lendo em outros momentos, como forma de tornar-se a “mulher” idealizada por seu criador.
A escritora
escolhida: Alice Munro, famosa pela forma como aborda as ambiguidades
humanas, unindo com eficiência o “lugar comum” e o “fantástico”, porém sempre
com leveza. Mais adiante na trama, veremos que o personagem também lê sobre o
trabalho de Louise Bourgeouis, famosa artista plástica, que o
inspira a realizar artesanais esculturas ao longo do filme e o salva de seu
destino trágico, como descrito pelo próprio diretor nos créditos finais.
Detalhes que não subestimam a inteligência do público, muito pelo contrário,
dependem da cultura geral daquele que o assiste. Aos três minutos,
Almodóvar já estabelece o essencial que precisamos saber sobre o personagem:
vive aprisionado, interior e exteriormente, sob o olhar atento de alguém, a
câmera na parede do quarto, que parece querer “modelá-lo” a seu bel prazer. Ainda
nas cenas iniciais, o personagem procura algo em seu guarda-roupa e podemos ver
vários vestidos rasgados, denotando algum tipo de revolta. Claro que o público, que começa a ver “desarmado”, percebe esse “truque” apenas ao revisitar a
obra, mas esse exemplo mostra como a Sétima Arte é rica em minúcias, quando
existe um cineasta competente no comando.
Quando o personagem vivido por Antonio Banderas adentra sua
mansão, ocorre algo imperceptível aos olhos do cinéfilo menos atento: ele se
encaminha para o quarto da vítima, porém rapidamente rejeita tal escolha, analogamente
uma rejeição à sua condição natural, e segue para o quarto ao lado, onde
continua a espioná-lo pela câmera. Outro exemplo de que nada é por acaso em
obras de qualidade: a câmera segue a mão de Banderas, que pega um controle
remoto num criado-mudo. O momento dura frações de segundo, mas ao lado do
controle encontra-se um livro coerente à abordagem do diretor: “O Gene Egoísta”
de Richard Dawkins, que apresenta uma teoria que explica a evolução das
espécies na perspectiva do gene e não do organismo, renovando o “Darwinismo”,
que vê os genes como simples veículos através dos quais os organismos se
reproduzem.
Pouco tempo depois, o protagonista busca terminar com seu
tormento, porém é salvo na última hora por seu criador. A câmera então focaliza
em fortes arranhões nos dois seios, como numa tentativa de extirpar com sangue
aqueles símbolos femininos de seu corpo. Após o estupro sofrido, pelo homem
vestido de tigre, seu criador chega a cogitar matá-lo, mas no último instante
atira apenas no estuprador e corre para abraçar sua criação. Este evento é o
divisor de águas na relação dos dois. Aos seus olhos, não existe mais
“Vicente”, mas sim a resistente pele que ele habitava: “Vera”. Almodóvar deixa
implícito que o personagem de Banderas era um homossexual vivendo uma vida de
aparências, com esposa e filha, pois se entrega lascivamente ao amor com sua
criação, enquanto “Vicente” prova-se um heterossexual, que apenas aceita o sexo
com ele, como forma de engendrar uma possível fuga. Ele evita em todos os
momentos consumar a relação, mostrando-se nitidamente desconfortável.
Almodóvar demonstra sua genialidade ao construir esses dois personagens: o
homossexual Robert (Banderas), com todas as características masculinas,
enquanto o heterossexual Vicente (Jan Cornet/Elena Anaya), com um emprego visto
pela sociedade como típico de mulheres. Na visão do cineasta, assumidamente
homossexual, nossa identidade sexual é ditada geneticamente, independente da
“pele” que habitamos. A última fala da obra cristaliza todo o leitmotiv trabalhado,
quando o protagonista consegue fugir de sua “gaiola” exterior e interior, ao
reencontrar sua mãe e afirmar a ela e a si mesmo: “Eu sou Vicente”.
Estes são apenas alguns dos muitos detalhes a serem
analisados neste filme, que melhora a cada vez que o assistimos. Esta
interpretação é apenas uma das várias possíveis, o que evidencia o brilhantismo
de Pedro Almodóvar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário