Uma das primeiras coisas que notamos ao revisitar o filme
nesses tempos medíocres da ditadura do “politicamente correto” é sua coragem.
Só na primeira meia-hora já somos levados às gargalhadas com pelo menos dois
momentos impagáveis, que nunca teriam sobrevivido na pós-produção de um projeto
infanto-juvenil “mainstream” atual. A tentativa desastrada de consertar uma
pequena estátua do Davi de Michelangelo quebrada, resultando em uma hilária “ereção”,
o que leva uma das crianças a reclamar: “Era a parte favorita da minha mãe”. Piada
fantástica que passa batida pela percepção do público infantil, num dos vários exemplos
de inteligência do roteiro. E o que dizer dos conselhos do pequeno Corey
Feldman à empregada latina? Fingindo traduzir as regras da patroa, o roteiro (de
Chris Columbus, baseado em história de Steven Spielberg) faz o menino defender
um diálogo que menciona maconha, heroína e cocaína, escandalizando a pobre
mulher. Parece bobeira, mas duvido que um produtor se arrisque da mesma forma
hoje em dia. Mas não é só a coragem que engrandece esse filme. Mesmo excluindo
o fator da nostalgia de quem assistiu quando criança, ele ainda se sustenta
incrivelmente bem como um entretenimento emocionante, mérito especial do versátil
diretor Richard Donner.
Não conheço nenhum outro filme infanto-juvenil que trabalhe
tão bem o tema clássico do companheirismo e do trabalho em equipe. Quando somos
crianças, conceitos como honra e lealdade são prioridades. A pena é que crescemos
e, em muitos casos, a ambição acaba atuando contra o caráter. O grupo que
assistimos compartilha uma amizade crível, ainda que ele seja encaminhado para
uma odisseia fantasiosa. Ao longo do filme, nossa criança interior acaba se
sentindo parte da equipe. Quem não desejou ter um pai como o do pequeno inventor
Data (Ke Huy Quan), que numa cena especialmente emocionante afirma que o menino
havia sido sua melhor invenção? E quem não formou na infância um grupo como os “Goonies”?
Não procurávamos tesouros de piratas, mas fazíamos de pequenos e
insignificantes eventos, espetaculares aventuras. Ao final do dia, tanto eles
quanto nós descobrimos que o mais importante na vida não é encontrar o “tesouro”,
mas os percalços da jornada. E acima de tudo, os laços de amizade. O objetivo
principal dos garotos era salvar o lar, o local onde eles compartilharam sonhos
e frustrações, sorrisos e lágrimas; o símbolo máximo do amor que cada indivíduo
da equipe nutre pelos amigos e pelo ideal em comum. Evitando a separação,
agarram-se aos sonhos da infância, como bem representado no lindo abraço
coletivo no desfecho na praia. Melancólicos, assistem à distância o símbolo de
tudo o que irão gradativamente perder com a maturidade.
Normalmente os textos que abordam o filme focam no grupo de
aventureiros, mas o elemento que sempre me leva de volta no tempo é Sloth (John
Matuszak). O arco narrativo dele é fascinante. Inicialmente mostrado como um
enigma monstruoso a ser temido, acaba se revelando um sonhador gentil. Preso e
afastado de qualquer ser humano, sua única forma de interagir é pelo
entretenimento que assiste na televisão. Como é bonito constatar que ele veste
uma camiseta do “Superman”, um símbolo de valores íntegros, como se o
personagem fosse o responsável lúdico pela preservação de sua sanidade enquanto
prisioneiro maltratado. A Arte como ferramenta que inspira e reforça o caráter.
Uma criança pura em um corpo bruto e deformado, que encontrará identificação
imediata no desejo exploratório das crianças. Ele se torna um herói por
encontrar no sorriso sincero dos “Goonies” o reflexo da criança que ele poderia
ter sido.
***
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Eu realmente me emociono lendo algum texto que destaque os pontos edificantes (e são muito) dessa obra-prima infanto-juvenil! Amizade, lealdade, união, superação, perseverança, até a descoberta do "primeiro amor/primeiro beijo"... ta tudo lá.
ResponderExcluirE Octavio, além das duas perfeitas cenas descritas por você como ousadas e corajosas (concordo mesmo que sejam, e que hoje teriam ficado na sala de edição!!!), ainda menciono o risco de terem colocado um personagem visualmente monstruoso (como é o Sloth) para transformá-lo num bondoso e heróico personagem... se já não bastasse a camisa do Superman, como bem lembrado um símbolo do altruísmo e bondade (além de ter sido o filme anterior do Donner tb, rs), Sloth é um ponto motivador de QUEBRA DE PRECONCEITO... o feio sendo bonito por atos (Sloth), o estranho sendo aceito (ET), o deslocado sendo popular (Ferris Bueller); elementos que são valiosíssimos até hoje nos filmes infanto-juvenis, mas que foram explorados com perfeição nos filmes dos anos 80.
Enfim, quando Mickey encontra Willie-Caolho, o choro do menino representa aquilo que a maioria das crianças acaba perdendo pelo meio do caminho: a CRENÇA NOS SEUS PRÓPRIOS SONHOS. Mickey acreditou, Mickey formou "Os Goonies" e Mickey os levou até lá... Mickey buscou seu sonho até o fim. Se os garotos ficarão juntos até a velhice, ninguém sabe, mas que essa aventura marcou o caráter de cada um deles para sempre, disso ninguém terá mais dúvida!
Grande abraço, Octavio, e eu sempre me empolgo nessa sua seção (como pode perceber, rs).