Link para os textos do especial:
Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever – 1977)
Quando se fala do filme, todo mundo celebra as coreografias
de Tony Manero (John Travolta) na pista da discoteca “2001”. São imagens tão
icônicas, com a onipresença das canções dos Bee Gees, que até levam muita gente
a associar equivocadamente esse pesado drama sem final feliz ao gênero musical.
Isolando a obra do diretor John Badham fora do contexto da época, considero-a
bastante problemática em diversos aspectos, ainda que o charme se mantenha. Não
gosto, por exemplo, do didatismo e do excesso de diálogos expositivos, como no
momento posterior ao que Tony descobre que vai receber um aumento
insignificante de 2,50, mas reage com a alegria de quem finalmente percebe que
está sendo reconhecido como igual por seu superior. A cena é perfeita, com
direito a um alívio cômico eficiente, mas o roteiro encaixa na sequência uma
desnecessária confrontação entre pai e filho na mesa de jantar, onde é
verbalizada novamente, sem sutileza alguma, essa angústia existencial do
personagem. Esse tipo de repetição ocorre mais algumas vezes ao longo do filme,
como na conversa com o irmão que larga a batina, onde o texto
desnecessariamente bate numa tecla que já havia sido resolvida elegantemente em
uma silenciosa cena anterior. Mas há uma razão para o filme estar nesse meu
especial: os espetaculares dez minutos iniciais.
Com um mínimo de diálogos, em exatos dez minutos, o roteiro
apresenta perfeitamente o protagonista como ser tridimensional, conectando-o
emocionalmente ao público. E é interessante lembrar que, para o público
americano da época, Travolta era como um Zac Efron em início de carreira,
marcado por seu papel como o adocicado Vinnie Barbarino no seriado “Welcome
Back, Kotter”, então podemos mensurar o impacto dessa introdução naqueles que
foram assistir ao filme apenas por sua presença. A primeira imagem, um trem em
movimento, insinua que estamos diante de uma realidade que busca transição, locomoção
entre dois ambientes díspares, alguém que não está satisfeito e quer mudanças. A
canção “Staying Alive” (Sobrevivendo) começa a tocar, emoldurando os passos
confiantes desse jovem pela rua. Os olhos dele, como os de uma águia, caçando a
atenção dos transeuntes, especialmente as mulheres, um garanhão. Então o corte
da câmera nos mostra um elemento aparentemente dissonante: o balde de tinta que
ele carrega displicentemente. Começamos a ver que existe algo de errado nessa
equação. Acabamos descobrindo que ele trabalha como funcionário em um modesto armazém,
apenas mais uma estatística num coletivo de uniformes apáticos recebendo ordens
e atendendo senhoras indecisas (uma ponta da mãe do ator).
Ele busca se destacar como indivíduo, mas somente consegue
essa realização ao dançar na discoteca. Somos levados então a acompanhar a
transformação do jovem na persona que ele adota naquele local sagrado, numa
montagem que se assemelha à “suit-up” de um herói, aquela que envolve a
aceitação da vestimenta como símbolo diante da batalha. Em seu quarto vemos pôsteres
de filmes que sutilmente ajudam a decifrar as motivações psicológicas do jovem.
Ele se identifica com “Rocky”, o azarão que veio do nada e conseguiu mostrar
seu valor, mas também possui a arrogância natural de Bruce Lee, posicionado
sobre sua cama (elemento arraigado), enquanto a figura de Stallone fica ao lado
do espelho, pois é como ele gostaria de ser, o reflexo que gostaria de
enxergar. Já a presença do Al Pacino barbudo de “Serpico” é apenas uma brincadeira
interna, já que ambos os filmes compartilham o mesmo roteirista: Norman Wexler.
Na mesma cena, um corte rápido apresenta o “campo de batalha”, a pista de
dança, coerentemente mostrada em uma tomada em ângulo “God’s Eye View”.
Outro ponto importante que é estabelecido na mesma cena, a
relação de pai e filho, essencial para entendermos como funciona a psique do
rapaz. Somos levados a estranhar a reação debochada do pai ao olhar para o
decote no pôster de Farrah Fawcett, como se ele não concordasse com a atração de
seu filho pela bela mulher. Mas na cena seguinte ficamos descobrindo a razão: o
irmão padre, tratado pelos pais como um santo, com direito a foto em uma
espécie de altar improvisado. Eles queriam que ele fosse como o irmão. E o
jovem sabe disso. Ao mesmo tempo, numa rápida cena, vemos que a irmã caçula
idolatra Tony, quando ela demonstra interesse por sua opinião sobre um de seus
desenhos. Ela fica feliz ao saber que ele irá colocar o desenho em sua parede.
Percebemos então quem é a âncora de doçura que mantém o rapaz na linha. E,
finalizando, durante a janta, Tony é o único que esconde totalmente sua “camisa
de batalha” com uma toalha. Claro que o objetivo principal é mostrar a
preocupação risível dele em não sujar a roupa, mas implicitamente o roteiro
evidencia simbolicamente o desconforto dele na presença do pai. Somente quando
o pai se levanta e sai de cena, ele deixa sua camisa à mostra. Em apenas dez
minutos ficamos entendendo totalmente o protagonista.
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