segunda-feira, 14 de julho de 2014

Chumbo Quente - Django Livre

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Django  Livre (Django Unchained – 2012)
Tarantino é um apaixonado pela arte. Como todo apaixonado, ele acumula em sua memória afetiva cinematográfica, inúmeras referências de diversos gêneros e épocas. Seus filmes resultam da união jazzística de várias emoções que marcaram sua infância e juventude, sem interesse pela opinião dos profissionais que analisam friamente. Ele apenas se preocupa em satisfazer aqueles que transpiram a mesma paixão, os cinéfilos que passionalmente não se preocupam se o roteiro se arrasta em alguns momentos, ou se algum personagem não é desenvolvido da melhor forma possível. Em seu universo criativo, um estilo de luta pode ser criado utilizando o título de um filme de Richard Fleischer, da década de setenta, que no Brasil se chama: “Mandingo – O Fruto da Vingança”, sobre uma fazenda onde escravos eram treinados para lutarem entre si. Então, por mais que o analista frio em mim perceba alguns problemas de ritmo no segundo ato (vinte minutos a menos, por exemplo, trabalhariam a favor do potencial emotivo do desfecho), como cinéfilo devotado, eu já perdi a conta das vezes que assisti. Aliás, gostaria que fossem quatro horas, ao invés de quase três. Esta é a melhor forma de entender o trabalho do diretor e analisá-lo: afinar seu clarinete e buscar acompanhá-lo em sua divertida blowing session, valendo-se apenas de seu instinto.

Iniciando pelo logotipo da Columbia, que representa a personificação feminina da América, em sua versão clássica, seguido pelos primeiros acordes do excelente tema criado por Luis Bacalov para o “Django” original de Sergio Corbucci (de 1966), o filme se apresenta como uma eficiente máquina do tempo. Reaproveitando de forma criativa o fenômeno popular que em sua época originou mais de trinta produções, que capitalizavam diretamente com o sucesso do personagem vivido por Franco Nero (processo semelhante ocorreu com Bruce Lee, além de outros heróis do Western italiano, como “Sabata”), o roteiro utiliza o cenário da escravidão negra americana como estopim para um conto de vingança. O personagem de Christoph Waltz se apropria do tema (escrito por Bacalov) de “O Rei do Oeste” (de 1971), compartilhando o mesmo nome do personagem vivido por Klaus Kinski. Como seu passado é misterioso, a letra da canção, que fala sobre um pistoleiro que busca vingar seu irmão pacífico, acaba insinuando o que pode estar por trás dos atos de seu caçador de recompensas. Tarantino seleciona canções de diversas fontes, conseguindo fazê-las soarem como se tivessem sido precisamente escritas para as cenas em que ele as insere, como o tema de “Trinity é Meu Nome”, de Franco Micalizzi, que emoldura o melhor momento da trama.

Existe uma personagem secundária, uma pistoleira (vivida pela dublê Zoë Bell, que trabalhou com o diretor em “Kill Bill”) que esconde seu rosto com um lenço vermelho e aparece com algum destaque em algumas cenas, mas depois nunca mais é procurada pelas câmeras. Lendo o roteiro nos momentos em que ela aparece, consta como um figurante masculino sem nenhuma importância. O que poderia ser apenas uma brincadeira interna, já que como dublê, ela está acostumada a fazer seu rosto não ser notado, acaba se tornando nas mãos do diretor um “easter egg”, semelhante ao que ocorreu com “Boba Fett” (de “O Império Contra-Ataca”, que ganhou fãs e maior participação nos filmes seguintes, mesmo aparecendo poucos segundos), com o público já demonstrando querer saber mais sobre aquela enigmática figura.

O humor, elemento essencial em suas obras, vai desde o pastelão (membros de uma embrionária Ku Klux Klan tendo dificuldade em enxergar pelos buracos em seus capuzes) até as ironias mais refinadas, envoltas em diálogos longos e espirituosos, marca registrada do diretor. Revelar alguns detalhes sobre personagens acabaria por estragar algumas surpresas, mas preciso salientar a forma inteligente com que o roteiro insere um coerentemente estereotipado Samuel L. Jackson, interpretando, nas palavras de Malcom X, um “house negro”. Leonardo DiCaprio literalmente dá seu sangue, ferindo sua mão em uma das cenas, como um arrogante proprietário de uma fazenda. Jamie Foxx utiliza seu excelente timing cômico e, mesmo nos momentos em que o herói sofre, sutilmente pisca em cumplicidade com o público, como que convidando todos a participarem na brincadeira de mocinho e bandido.

O estofo cultural, não somente cinematográfico, que o diretor utiliza em suas referências, desde a utilização da lenda alemã “O Anel dos Nibelungos” (de onde se retira o nome da jovem vivida por Kerry Washington) até quando cita a pouco comentada ascendência negra do escritor Alexandre Dumas (de “O Conde de Monte Cristo”), como ferramenta de discurso de um personagem ao combater o racismo de outro, demonstram um zelo raro em seu ofício. 

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