quinta-feira, 31 de julho de 2014

Faces do Medo - "A Aldeia dos Amaldiçoados"

Link para os textos do especial:


A Aldeia dos Amaldiçoados (Village of the Damned – 1960)
Em uma cidade da Inglaterra todos, de forma inexplicável, desmaiam por algumas horas. Meses depois, as mulheres ficam grávidas. Mas a crianças que nascem demonstram ter estranhos poderes.


A refilmagem da década de noventa, dirigida por John Carpenter, existe apenas para reforçar a contundência do original, que de maneira mais objetiva e simples, transmitia melhor a mensagem contida no livro “The Midwich Cuckoos”, do inglês John Wyndham. A versão mais recente, por incrível que pareça, ficou datada, enquanto a obra dirigida pelo alemão Wolf Rilla continua eficiente na atmosfera opressiva que envolve cada aproximação das crianças, potencializada pela trilha sonora de Ron Goodwin, que faria “Frenesi”, de Hitchcock. O horror é trabalhado onde melhor prospera, no subconsciente do espectador, que acaba sempre imaginando situações mais sombrias do que qualquer roteirista poderia conceber. O brilho nos olhos das crianças foi um recurso inserido para o mercado americano, enquanto os ingleses ficaram com uma versão mais sutil da execução dos poderes alienígenas. É difícil imaginar o filme sem esse traço característico.

A presença de George Sanders e Barbara Shelley traz respeitabilidade e ainda mais refinamento, servindo como a âncora de humanidade que torna tudo crível, tendo a ameaça das crianças loiras como uma alegoria para o pavor de se formar uma juventude como a que apoiou Hitler na Alemanha. O garoto Martin Stephens, líder do grupo, faria no ano seguinte o excelente “Os Inocentes”, de Jack Clayton. O que mais gosto no roteiro é o arco narrativo do personagem de Sanders, um professor extremamente racional que é confrontado com uma parentalidade inesperada, com uma esposa muito mais jovem em um relacionamento desgastado, desprovido de emoções. Ele reage inicialmente com fascínio perante um evento fantástico, deixando pela primeira vez em muito tempo sua emoção subjugar sua razão, até perceber desolado que aquele nascimento não representava uma bênção, mas sim uma maldição que afetaria todo o mundo. Essa triste constatação conduz a obra ao seu impactante desfecho.

O cinema clássico de horror não costuma ser valorizado pelas distribuidoras nacionais, ainda que exista um público imenso que adoraria encher suas estantes com as obras marcantes do gênero, então o esforço da Versátil deve ser novamente celebrado, pois está lançando no mercado um elegante digistack com seis influentes filmes inéditos, em versões restauradas e com extras. O filme abordado nesse texto e mais “A Noite do Demônio” (tema do próximo texto), “O Chicote e o Corpo”, “A Orgia da Morte”, “O Túmulo Vazio” e “Na Solidão da Noite”. Com seu usual selo de qualidade, nós esperamos que o horror seja abraçado com o mesmo carinho que está sendo depositando nos clássicos de samurai, outro estilo que era ignorado mercadologicamente por aqui. 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Cine Bueller - "Comando para Matar"

Link para os textos do especial:


Comando para Matar (Commando – 1985)
É fácil entender o apelo do filme com minha contraparte infantil quando descubro que ele foi escrito por Jeph Loeb, um dos melhores profissionais dos quadrinhos, responsável por obras-primas como “Batman – O Longo Dia das Bruxas”. A trama não se leva a sério em nenhum momento, recheada de frases de efeito e conclusões estapafúrdias para cenas de ação completamente absurdas, como quando após uma brutal perseguição de carros, numa situação que caberia perfeitamente nas páginas do Hulk, Arnold Schwarzenegger, com um braço estendido, segura pelo tornozelo o vilão desesperado na beira de um precipício.

Eu repetia todas as cenas em casa com meus bonecos “Comandos em Ação”, da Estrela, e “S.O.S. Comandos”, fabricados pela Gulliver, que vários anos depois eu fui descobrir que eram versões nacionais da linha de bonecos feita exatamente para o filme. Eu achava que o Cronos era muito parecido com o herói John Matrix que eu assistia com os olhos grudados na televisão de quatorze polegadas, com direito ao mesmo corte de cabelo e uniforme, mas não imaginava que se tratava do boneco oficial do personagem, que a empresa brasileira tratou de trocar o nome para não ter que pagar os custos de licenciamento. Sempre que recordo essa época, não consigo deixar de pensar que nenhuma criança se tornava mais violenta por brincar com granadas de plástico e facas do “Rambo”, peças que faziam parte dessas coleções, assim como as camuflagens de guerra, minhas favoritas. Era uma geração que foi ensinada a saber discernir a diferença entre a realidade e a ficção escapista, enquanto hoje, com a aprovação de leis absurdas, até mesmo os desenhos animados infantis estão com os dias contados na televisão aberta.

Voltando ao filme dirigido por Mark L. Lester, acho interessante salientar que ele, de certa forma, foi responsável por um clássico do gênero, muito mais lembrado e respeitado, o “Duro de Matar” (Die Hard – 1988). O projeto nasceu de uma ideia para a sequência, adaptada do livro “Nothing Lasts Forever”, de Roderick Thorp, que, por sua vez, era a continuação literária de uma ótima adaptação protagonizada no cinema por Frank Sinatra: “Crime sem Perdão” (The Detective – 1968). Então seria justo afirmar que o filme de Bruce Willis é o filho natural da bizarra união cinematográfica entre Schwarzenegger e Sinatra. Brincadeiras a parte, acho fascinante vasculhar os bastidores desse mundo mágico. É impossível falar do filme sem citar a excelente dublagem da Herbert Richers, com o embate entre Garcia Júnior (Arnold) e André Filho (Vernon Wells), captando perfeitamente o espírito debochado do roteiro, um pastiche do subgênero “action hero” (o que Bud Spencer e Terence Hill representam, por exemplo, para o Spaghetti Western), transposto em cenas como a incrível queda do herói, de um avião em movimento acima dos prédios, direto em uma poça d’água, levantando-se com a roupa seca em segundos, como se nada tivesse acontecido. Frases como: “Eu como boinas-verdes no café da manhã”, ditas por um ex-combatente que se camufla como um tanque de guerra humano e mata o vilão com um imenso cano de ferro atravessado na barriga, parecem saídos das páginas dos quadrinhos.

E são esses elementos que mantém a obra como um entretenimento eficiente ainda hoje, enquanto praticamente todos os representantes do gênero da década de oitenta, vistos hoje, causam apenas vergonha alheia. Parece que estão planejando uma refilmagem, mas não duvido que os “espertos” produtores cometam o equívoco primordial de levar a sério a trama nessa releitura, arruinando o projeto. É uma pena que eu não tenha guardado o pôster do filme que tomava quase metade da minha parede em meados da década de oitenta. Bons tempos em que uma criança podia ter como herói um brutamonte com granadas no peito e empunhando uma metralhadora apoiada no trapézio. 

terça-feira, 29 de julho de 2014

Make 'Em Laugh - Monty Python


O tipo de humor realizado pelo grupo Monty Python está acima de qualquer avaliação comum, essencialmente anárquico e revolucionário, um oásis abundante e atemporal em um deserto de ideias preguiçosas em seu gênero. Eric Idle, Graham Chapman, Michael Palin, Terry Jones, John Cleese e Terry Gilliam foram os responsáveis por essa incrível bagunça organizada que era veiculada na série “Monty Python Flying Circus”, entre os anos de 1969 e 1974.

Tentemos imaginar o choque que o episódio de estreia da primeira temporada causou no público britânico que o assistia. Antes mesmo da abertura, Michael Palin aparecia vestido como um eremita e dizia apenas: “It´s...”,  sendo seguido de forma retumbante pelos créditos iniciais, em forma de animação criada por Terry Gilliam. Logo depois vemos Mozart como o personagem principal de uma hilária cena, que conduzia a algo completamente fora de sintonia com o que vinha sendo apresentado até então, dando passagem para um tópico sobre a melhor piada do mundo, onde a irreverência do grupo atinge seu ápice, para terminar com mais uma aparição do eremita que simplesmente não diz a que veio. Isso sem falar nas interrupções de cenas pela metade, antes da piada ser finalizada, para a entrada de outro segmento, aparentemente sem nenhuma relação com o anterior, mas que no último instante surpreende o incauto espectador com a entrada em cena do caricato Mozart que iniciou o episódio. A liberdade criativa do grupo era revigorante ao se despir de qualquer senso moralista, mandando o politicamente correto às favas. Todos os episódios das duas primeiras temporadas mantiveram o nível de qualidade, outra coisa rara no humor realizado até hoje. Logo, a Sétima Arte utilizaria seus talentos em obras de importância fundamental para o gênero.

O primeiro projeto intitulado “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” (Monty Python and the Holy Grail -1975) se passa durante a Idade Média e acompanha as aventuras do Rei Arthur e seus Cavaleiros da Távola Redonda em uma busca incessante pelo Santo Graal. Na realidade, o contexto é apenas uma desculpa para o grupo demolir cada convenção já criada sobre o tema, inserindo detalhes curiosos sobre a velocidade de uma andorinha em voo, desvendando verdades sobre o famoso Sir Robin, o “não-tão-bravo-quanto-Sir-Lancelot” e demonstrando a tenacidade do Cavaleiro Negro que se manteve na luta mesmo após ver seus braços e pernas decepados. O segundo projeto intitulado “A Vida de Brian” (Life of Brian - 1979) é o meu favorito, foi como conheci o grupo nos meus tempos de pré-adolescente, apresentado em uma sessão matinal, pasmem, por um ótimo professor de História em um colégio de freiras. A obra tem a ousadia de fazer graça em cima de temas sagrados. Brian nasceu na Judeia no mesmo dia que Jesus Cristo, porém na manjedoura ao lado. Ele é tido como um messias e luta contra esta fama repentina, fugindo de seus fiéis que o perseguem pela cidade. Dentre as muitas sequências impagáveis, destaco o encontro entre Brian (Graham Chapman) e um Pilatos de língua presa, o que encaminha a cena para inúmeras gargalhadas dentro e fora do roteiro. O final é um espetacular símbolo do humor do grupo: crucificado, o jovem angustiado testemunha uma corajosa tentativa de resgate perpetrada pelo Esquadrão Suicida dos Judeus. Ao final, só lhe resta cantar preso à cruz: “Sempre olhe para o lado bom da vida”, com direito a coreografia. Em 1983 o grupo realizou “O Sentido da Vida” (The Meaning of Life), um conjunto de cenas burlescas ao extremo e que tentam explicar, ao estilo Python, qual seria a razão de nossa existência. Mesmo sendo levemente inferior aos outros filmes, contém sequências fabulosas, como a celebração musical onde um católico explica aos seus inúmeros filhos porque terá que doá-los para experiências científicas, já que o Vaticano proíbe os métodos anticoncepcionais e ele ficou sem dinheiro para sustentar sua prole, cantando a sutil: “Todo Esperma é Sagrado”.

Sinceramente, odeio a expressão comumente utilizada: “Um humor que não é para todos” (assim como sua parente próxima: “esse filme não é para todos”). Acredito que não existe tal coisa, mas sim a comédia bem realizada e a comédia mal realizada. O Monty Python conduzia com extrema competência seu trabalho e aqueles que não se sentirem confortáveis com seu humor, devem procurar e encontrar no reflexo do espelho as razões que os impedem. Aos que ainda não conhecem o trabalho anárquico do grupo, fica a sugestão: O que estão esperando? A “Inquisição Espanhola”?

quinta-feira, 24 de julho de 2014

"O Samurai", de Jean-Pierre Melville


O Samurai (Le Samouraï – 1967)
Jef Costello é um assassino profissional metódico que procura seguir o Bushido, o código de honra samurai, na Paris dos anos 60. Seus atos são cuidadosamente planejados nos mínimos detalhes e ele nunca foi surpreendido em ação. Uma noite, porém, ele é flagrado por uma testemunha durante uma execução. A partir de então tudo muda...


O mundo estava impactado na década de sessenta com os trabalhos de Akira Kurosawa e Hiroshi Inagaki, com vários cineastas adotando a filosofia oriental como base para seus trabalhos. John Sturges homenageou “Os Sete Samurais” em “Sete Homens e Um Destino”, Sergio Leone idealizou sua versão para “Yojimbo” em “Por Um Punhado de Dólares”, mas foi o francês Jean-Pierre Melville que melhor captou a essência dos códigos de ética e conduta do Bushido, sem copiar um molde pronto e ousando inserir na equação elementos do Noir, realizando uma homenagem com muita personalidade. O diretor já brincava de Tarantino, antes do americano sair das fraldas, utilizando referências visuais diretas e desconstruindo-as com coragem. Não é coincidência que o filme seja um dos favoritos do criador de “Pulp Fiction”.

Ele transpira em sua estrutura uma crítica aos próprios medalhões da Nouvelle Vague, demonstrando a insatisfação de Melville com o movimento, uma consequência natural de seu desentendimento com Godard, amigo de longa data, que com “Viver a Vida” abraçava um estilo que o colega crítico não considerava como “cinema”. Melville estava conscientemente se afastando daqueles profissionais, que já executavam mecanicamente um pastiche de algo que outrora havia sido esteticamente revolucionário, ele estava aceitando o fato de que era um lobo solitário, um tigre em uma floresta, como o protagonista Jef Costello, vivido por Alain Delon. E esse sentimento de inadequação, tão real fora das páginas do roteiro, acabou sendo transposto para a obra, que respira contestação em cada cena. As manobras de Jef para escapar da perseguição da polícia pelo metrô são um exemplo perfeito da recusa do cineasta pelo tédio intelectualoide, uma construção refinada de suspense que bebe generosamente da fonte dos grandes filmes americanos de gangsters.

A fotografia de Henri Decaë evidencia uma Paris cinza, decadente, uma realidade que eleva por contraste a presença austera de Jef, com seu indefectível impermeável, um alienígena na real acepção da palavra ou um herói de quadrinhos dos anos 40, perdido em tempo e espaço. Somos levados a entender que todos os inocentes possuem parcela de culpa, enquanto toda culpa carrega essencialmente em suas motivações uma parcela de inocência. Essa ambiguidade que atinge todos os personagens é o que enriquece a obra em revisões. Fiel ao código de honra, Jef sabe que é um animal em extinção numa floresta de cínicos, mas cabe a ele decidir se afastar coerente à maneira que viveu, fazendo o seu desleal oponente acreditar que teve alguma parcela de culpa em seu ocaso. Ao perder, ele acaba ganhando. 

* O filme está sendo lançado em DVD, em versão restaurada, pela distribuidora Versátil.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

"Batman - A Máscara do Fantasma", de Eric Radomski e Bruce Timm


Batman – A Máscara do Fantasma (Batman: Mask of the Phantasm – 1993)
Quando os mais temidos gangsters da cidade são sistematicamente eliminados, o Cavaleiro das Trevas sente-se ludibriado. Mas rondando as noites de Gotham está um novo e sombrio vilão, o Fantasma, uma figura sinistra ligada de alguma maneira ao passado do herói. Poderá o Homem-Morcego esquivar- se da polícia, capturar o Fantasma e limpar seu nome?


Uma das minhas primeiras grandes lembranças cinematográficas de criança foi de ser impactado pela massiva campanha de marketing do “Batman” de Tim Burton. Eu tinha álbum de figurinhas, adesivo de janela, chaveiro, adaptação do filme em quadrinhos, vinil com a trilha sonora e bonecos, além de ter uma festa de aniversário temática com o Michael Keaton ornamentando o bolo. Era impossível não perceber naquele ano que o personagem havia conquistado a tela grande. Alguns anos depois, sem a mesma intensa divulgação, eu fiquei conhecendo a animação que abordo nesse texto. Eu tinha por volta de nove anos, já me considerava mais maduro do que aquele menino de outrora, que colecionava um terrível álbum cujas figurinhas pareciam ser sempre as mesmas, só que em diversos ângulos.

O que me perturbava era que eu não havia gostado da animação, não tinha me cativado emocionalmente. Eu tinha memorizado todos os diálogos clássicos do confronto cinematográfico entre Keaton e Jack Nicholson, ficava repetindo: “você já dançou com o demônio sob a luz do luar?”, como se não houvesse amanhã. Mas aquilo era desenho animado, coisa de criança, algo que tinha certeza de que já havia deixado de ser. O caso é que precisei apenas rever o filme uns anos depois, para que eu entendesse a razão do estranhamento: o roteiro não era infantil. Em muitas maneiras, o trabalho de Paul Dini, Alan Burnett, Eric Radomski e Bruce Timm estava à frente de seu tempo, com o diferencial importante de não terem precisado retirar da equação sombria o elemento da diversão. Mesmo depois do bom “Batman – O Retorno” e da excelente trilogia de Christopher Nolan, eu continuo achando que essa animação é a melhor representação do personagem nessa mídia. Um produto que foi imaginado como apêndice de uma série televisiva, feito às pressas e sem expectativa dos produtores, mas que foi abraçado ternamente pelo severo tempo.

A trama, inspirada por “Ano Um” e, especialmente, “Ano Dois” (Frank Miller e Mike Barr, respectivamente), era violenta e com influências do Noir, mas o fator mais interessante e atípico era o tempo dedicado ao aprofundamento nas motivações dos personagens. Analisando em comparação com as inferiores animações similares produzidas pela DC hoje, onde o foco está sempre nas cenas de ação, merece reconhecimento o interesse na construção psicológica do protagonista, em cenas soturnas e, num toque de gênio, silenciosas. Eu considero espetacular aquele breve momento onde Bruce Wayne (Kevin Conroy) finalmente aceita o fardo de sua vida, consciente de que estava abdicando de todos os seus sonhos, vestindo o manto do morcego. Com utilização expressionista de sombras e uma trilha sonora épica de Shirley Walker, testemunhamos a reação apavorada de Alfred (Efrem Zimbalist Jr.) ao perceber que está agora diante de um estranho, um elemento da natureza que caminha lentamente em passos fúnebres, como se carregasse o peso da culpa em suas costas. Essa simples cena alcançou o que nenhuma adaptação conseguiu até hoje, resumindo perfeitamente a essência do que representa o personagem. 

terça-feira, 22 de julho de 2014

Faces do Medo - "Frankenstein"

Link para os textos do especial:


Frankenstein (1931)
No livro original de Mary Shelley, o monstro é chamado até de demônio pelo seu criador, o frustrado estudante Victor Frankenstein, porém sua aparência difere totalmente daquela que o cinema eternizou, com cabelos esvoaçantes e dentes de modelo fotográfico. Ele era belo e inteligente, carecia apenas de equilíbrio emocional, devido aos longos períodos de solidão. Claro que a indústria não poderia, naquele período, imaginar um filme onde a monstruosidade fosse mais de origem psicológica, por conseguinte, exteriorizaram o horror, inicialmente no curta dos estúdios de Thomas Edison, em 1910, porém nada se compara à figura icônica, fruto da parceria entre Boris Karloff e o maquiador Jack Pierce, com os parafusos no pescoço e os grunhidos.

Empolgados com o sucesso recente de “Drácula”, o produtor Carl Laemmle Jr. convidou o diretor James Whale para trabalhar na adaptação, que tinha a difícil missão de superar o charme do vampiro de Bela Lugosi e ajudar a estabelecer a reputação do estúdio no gênero. Com uma ingenuidade que continua fascinante, o filme evita revelar o ator que interpreta o monstro nos créditos e escolhe iniciar com Edward Van Sloan, que o público conhecia como o Van Helsing, alertando o público sobre o conteúdo apavorante da obra. No roteiro, Frankenstein se tornou o sobrenome do Dr. Henry, vivido por Colin Clive.

E, mesmo com todas as paródias que foram realizadas ao longo das décadas, de Abbott e Costello a Mel Brooks, chama a atenção como o original ainda se mantém eficientemente assustador, com um clima pesado e cenas fortes e ousadas, como aquela onde o monstro se encontra com uma menina perto de um lago. O desfecho, com ele sendo responsável pelo afogamento dela, mostra como a trama é focada na complexidade do personagem, como no posterior “O Homem Invisível”, com o rosto do monstro transparecendo sua ignorância, fazendo com que sejamos levados a sentir pena de sua condição, seu profundo medo e imediato remorso, sentimentos que Karloff transmite com perfeição. O monstro como vítima, um conceito que foi se perdendo em futuras adaptações.

*O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline". 

sábado, 19 de julho de 2014

O Guardião do Legado


A Partida (Okuribito – 2008)
O que morre é o corpo, desaparece nas labaredas da cremação ou é dissolvido de volta à mãe terra. Sobrevive o legado, as boas atitudes que continuarão inspirando próximas gerações, o sentimento passado e que, de tão sincero, continua a ressoar em todos aqueles que foram tocados por sua presença. Como aceitar que a máquina responsável por essa infinidade de sensações, após seu desligamento, seja manipulada com desleixo por estranhos? Daigo (Masahiro Motoki) precisava aprender essa lição, quando aceitou sobrepujar seus preconceitos e medos, voltando ao trabalho após uma primeira experiência traumática. Ele sonhava em encantar o mundo com seu talento como violoncelista, mas teve que se contentar em ser o responsável por preparar os mortos para o velório, uma função que sua esposa inicialmente despreza.

O sensível roteiro de Kundo Koyama, que estreava em longas, merece ser ressaltado. São muitas as metáforas espalhadas no filme, como os salmões que, como Sísifo, seguem lutando para atravessar a correnteza de um rio, sabendo que todo o esforço será retribuído eventualmente com a morte. Caso não houvesse a finitude, não seríamos capazes de valorizar essa experiência mágica. O diretor Yojiro Takita não evita pesar sua mão nos momentos emotivos, mas nunca soa gratuito ou forçado. Ele consegue tratar um tema complicado com extrema leveza, focando nas modificações internas que ocorrem no rapaz. O trabalho de Daigo como músico é celebrar a Arte daqueles que já morreram, eternizando em suas melodias o trabalho e a vida de artistas que ele sequer conheceu pessoalmente, exatamente o mesmo que acontece quando ele se encarrega de embelezar um cadáver, reverenciando em gestos delicados e pura gentileza aquele corpo estranho que outrora amou e foi amado. A alegoria é belíssima, quando ele percebe que seu sonho não foi anulado pelos percalços da vida, apenas se intensificou. E essa constatação é mostrada em uma montagem, emoldurada pela linda trilha sonora de Joe Hisaishi, que alterna sua ritualística rotina profissional com algumas cenas suas tocando seu querido instrumento na solidão do topo de uma onírica colina.

O conflito que o protagonista carrega por toda a vida, o afastamento precoce de seu pai, um borrão em sua memória, pode ser visto como o elemento menos interessante na trama. O que realmente importa é a evidência de uma sociedade que está sendo enterrada pelo tempo, com suas tradições sendo desrespeitadas. A casa de banho que se mantém apenas pela disposição de sua dona, o progressivo desinteresse do público pela música clássica, símbolos de decadência. E, por incrível que pareça, o jovem que foi atraído por engano ao trabalho, acaba se tornando o guardião desse rico passado, o responsável por guiar essa tocha para a próxima geração. Todo o resto é eficiente melodrama, mas essa bonita mensagem principal é que opera a mágica da multiplicação de lágrimas, o elemento que mantém o filme na memória de quem assiste. 

Sétima Arte em Cenas - "À Queima-Roupa"

Link para os textos do especial:


À Queima-Roupa (Point Blank – 1967)
Após um assalto, Walker é baleado e deixado para morrer por seu amigo Reese e por sua própria esposa, que é amante de Reese. Eles ficam ainda com a parte do golpe que cabia a Walker, US$ 93.000. Meses depois, Walker decide se vingar e recuperar o seu dinheiro.


É interessante contextualizar de forma resumida o filme em sua época, para entendermos melhor sua importância. Os estúdios de cinema já estavam perdendo terreno para a comodidade do entretenimento televisivo desde a década de cinquenta, fazendo com que eles apostassem cada vez mais em espetáculos grandiosos coloridos, épicos bíblicos e musicais. Já em meados da década de sessenta, esse recurso começou a dar mostras de desgaste, com o fracasso de “Cleópatra” sendo o símbolo da queda desse império. O mercado americano então se abriu para jovens cineastas dispostos a correrem riscos, antenados com os produtos que vinham do exterior, com obras tematicamente mais ousadas e estruturalmente libertárias, como os trabalhos de Godard e Antonioni. E 1967 foi um ano decisivo nessa transformação, com “À Queima-Roupa” sendo um dos símbolos maiores dessa mudança radical de atitude.

O diretor inglês John Boorman bebeu generosamente da fonte da Nouvelle Vague para compor sua trama, adaptada livremente de “The Hunter”, escrita por Richard Stark (pseudônimo de Donald Westlake). O escritor havia imaginado Jack Palance como a opção perfeita para viver o protagonista, mas teceu muitos elogios à atuação de Lee Marvin. Como o estúdio não estava interessado em realizar uma série de filmes, por contrato os produtores não poderiam utilizar o nome do personagem principal do livro, então “Parker” virou “Walker”. O livro é bastante simples, típica literatura pulp de segundo escalão, mas a adaptação tornou-se uma obra-prima em seu gênero, mérito do estilo com que Boorman abordou a sisífica narrativa, reinventando o Noir e revelando uma camada de interpretação onde podemos acreditar que estamos assistindo os passos de um fantasma em um conto de vingança, abusando do uso expressionista das cores e de uma montagem elíptica, criando cenas incríveis como a que citarei no próximo parágrafo.

Essa cena totalmente antinatural, que dura pouco mais de um minuto, serve para mostrar a onipresença desse fantasma, como ele caminha em uma espécie de dimensão paralela, imperturbável e focado em seu objetivo. Ele já possui a informação que procurava e sua caçada já está em andamento. A montagem transforma uma linha de roteiro, uma simples caminhada dele até o apartamento, em algo épico. Ele é mostrado andando em um longo corredor, com o som dos seus passos tendo importância essencial, como um metrônomo psicológico não-diegético que persiste enquanto são mostradas tomadas do cotidiano apático de sua traidora esposa, como um tratamento de pele que é multiplicado por espelhos. Walker não é apenas um homem em busca de vingança, ele se torna uma entidade, algo quase sobrenatural. Nesse momento, a trilha sonora de Johnny Mandel começa a ser escutada, como se acompanhasse jazzisticamente o ritmo dos passos, que se tornam parte da música, escutados até mesmo quando o personagem é mostrado dirigindo seu automóvel. Os passos dão lugar a uma sinfonia de tiros, quando ele finalmente atinge seu objetivo, seguidos então pelo completo silêncio. O protagonista é mostrado como alguém tão perigoso dentro da narrativa, que consegue, metaforicamente, até mesmo controlar a linguagem da obra em que está inserido. 

*O filme está sendo lançado em DVD, numa versão restaurada, pela distribuidora "Versátil".

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Star Wars - O Império Contra-Ataca

Link para o texto anterior:


O Império Contra-Ataca (The Empire Strikes Back – 1980)
É interessante perceber que o filme, atualmente considerado o melhor da franquia, recebeu muitas críticas desanimadoras em sua estreia. O produto era estranho na indústria, com seu desinteresse em explicar o contexto aos novos espectadores, suas transições antiquadas que remetiam aos seriados de sci-fi do cinema, além de uma atmosfera muito sombria e que contrastava bastante com a divertida aventura samurai espacial lançada dois anos antes. A Força estava com o competente diretor Irvin Kershner, que, diferente do criador da saga, sabia dirigir atores. A alma do projeto reside na fantástica trilha sonora composta por John Williams, em sua melhor incursão na saga. Ele não somente estabeleceu a identidade sonora da ameaça imperial com a wagneriana “The Imperial March”, como também humanizou uma marionete em “Yoda’s Theme”, com a inestimável ajuda do competente Frank Oz.

A estrutura do roteiro de Lawrence Kasdan e Leigh Brackett (do clássico noir “À Beira do Abismo”) era ousada, expandindo o universo estabelecido em “Star Wars” com camadas de interpretação, injetando filosofia e elementos como traição, na figura de Lando Calrissian (Billy Dee Williams), além de uma pessimista conclusão em aberto. Com o personagem Yoda (Frank Oz), George Lucas faz nova reverência ao mestre Akira Kurosawa, inserindo sua versão de “Dersu Uzala” no pantanoso Dagobah. O trio principal, formado por Luke Skywalker (Mark Hamill), Leia Organa (Carrie Fisher) e Han Solo (Harrison Ford), evita a coerente caricatura do anterior, que não pedia qualquer aprofundamento, com suas motivações agora recebendo tanta atenção quanto as, por vezes trágicas, consequências de suas decisões.


A ideia de iniciar com o ataque do Wampa em Hoth, ainda que tenha sido um artifício para justificar a cicatriz no rosto de Hamill, vítima de um acidente de carro meses antes das filmagens, possibilitou uma das cenas símbolo dessa mudança de atitude, com o resgate perpetrado por Solo e o eventual acondicionamento do herói entre as tripas de um Tauntaun, para mantê-lo aquecido. Em outro breve e poderoso momento, podemos ver que existe um homem desfigurado por baixo do elmo negro de Darth Vader (David Prowse – James Earl Jones), uma figura envolta em mistério. Como hoje sabemos, a saga é um work in progress, por mais que Lucas afirme que já estava tudo planejado desde o início. O público em 1980 ignorava completamente qualquer informação sobre esse personagem, o que o tornava ainda mais ameaçador. A surpreendente revelação ao final, conduzindo a trama para um viés de tragédia edipiana, como retratada por Freud em “Um Distúrbio de Memória na Acrópole”, com direito a uma chocante mão decepada, ecos de um complexo de castração, que acaba culminando na subjugação do pai pelo filho, levando à formação do superego. Todas essas discussões elevam o entretenimento a mais do que o batido conto de maturidade, com inspiração no monomito (a jornada do herói) de Joseph Campbell, trabalhado no filme anterior.

*A editora “Darkside Books” está lançando, em um único volume de capa dura, os romances inspirados nos três primeiros filmes do universo fantástico criado por George Lucas: Uma Nova Esperança, O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Make 'Em Laugh - "Mister Roberts"

Link para os outros textos do especial:


Mister Roberts (1955)
Em pleno auge da Segunda Guerra Mundial, o tenente Doug Roberts (Henry Fonda) é um oficial da Marinha dos Estados Unidos trabalhando a bordo de um navio de carga. Roberts mantém o controle no velho cargueiro militar, mas deseja ser transferido para a frota naval que está no Pacífico lutando contra os japoneses, mas seu superior, o excêntrico Capitão Morton (James Cagney), impede que ele deixe o barco.


Essa comédia militar, pouco lembrada, merece constar em qualquer lista temática ao lado de “Dr. Fantástico”, “M.A.S.H” e “A Recruta Benjamim”, entre outros. Fez sucesso na época, resultando em uma sequência horrorosa “O Barco do Desespero” (Ensign Pulver – 1964), além de uma série de TV. Foi o primeiro grande filme do inesquecível Jack Lemmon, numa atuação que rendeu a ele um Oscar de coadjuvante. Tem o icônico James Cagney, em uma participação pequena, mas muito importante. E, num papel recusado por Marlon Brando, Henry Fonda repetiu seu trabalho na Broadway, como o personagem título, que havia rendido a ele um prêmio Tony. É interessante pensar que uma obra com tantos talentos tenha se perdido no tempo, ainda mais se pensarmos que sua produção foi tremendamente tumultuada. 

Inicialmente foi dirigida por John Ford, que confrontou os produtores para que Fonda ficasse com o papel, já que eles queriam alguém mais jovem. Só que ele não imaginava que o ator se mostraria tão insatisfeito nas filmagens, o que levou o diretor, em um ato de fúria provavelmente motivado pelo álcool, a socar o amigo. Após vários pedidos de desculpas, Ford foi afastado (direto para o clássico “Rastros de Ódio”), para a entrada de Mervyn LeRoy (dos excelentes “Na Noite do Passado”, “A Ponte de Waterloo” e “Flores do Pó”), que numa parceria com Joshua Logan, diretor da peça original, confidenciando ao elenco que manteria respeitosamente a visão de Ford, finalizou a obra.

Os elementos cômicos variam entre a proposta de Ford pelo humor físico, como na cena da sinfonia de binóculos, e pelos espirituosos diálogos, com destaque para a carismática presença de Ensign Pulver (Lemmon), que se apavora ao cogitar a possibilidade de encarar o tirânico personagem de Cagney. Gosto da cena em que o trio formado por Roberts (Fonda), Pulver e Doc (William Powell, em seu último trabalho) forja um scotch, adicionando refrigerante e tônico capilar. E, pode ser loucura, mas sempre acreditei que Gene Roddenberry se inspirou em Roberts e Doc para estabelecer a relação entre o Capitão Kirk e McCoy, de “Jornada nas Estrelas”. O aspecto mais interessante no roteiro é o arco narrativo de Pulver, que vai da apatia covarde até a bravura, graças à inspiração nascida das atitudes de Mister Roberts. Um homem capaz de abdicar daquilo que mais desejava, participar ativamente da batalha, pelo bem-estar de seus companheiros. 

Naquela “banheira” onde o tédio era uma constante, a verdadeira guerra já era travada internamente, entre o caráter e a inglória submissão. O desfecho, um momento emocionante que fica retido na mente dos que assistem, apresenta o despertar da coragem em Pulver, que aceita o manto de oposição do Mister Roberts, finalmente conquistando o respeito de seus irmãos forçados. Enquanto houver um homem íntegro na embarcação, a crueldade do comandante terá um oponente à altura.

*O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora “Classicline”.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Azul é a Cor Mais Quente


Azul é a Cor Mais Quente (La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2 - 2013)
A polêmica adaptação da graphic novel de Julie Maroh recebeu a Palma de Ouro em Cannes no meio do furacão social causado pela legalização do casamento homossexual. É uma pena que o burburinho acerca do filme envolva suas longas cenas explícitas de sexo, já que teoricamente o coloca no mesmo patamar de várias outras produções apelativas e vazias do mundo todo. Isso não favorece aqueles, provavelmente grande maioria, que irão às sessões buscando satisfazer esse estímulo, pois estarão tensos procurando nudez gratuita, enquanto o ótimo retrato intimista e nada panfletário sobre maturidade sexual proposto pelo diretor tunisiano Abdellatif Kechiche, será relegado para segundo plano. Seu projeto anterior “Vênus Negra”, já havia me impressionado pela coragem em estilo e substância, mas acredito que ele tenha conseguido elevar o nível.

Seus invasivos close-ups emolduram quase sensorialmente a trajetória de descobertas da jovem Adèle (Adèle Exarchopoulos, em promissora estreia), que percebe não sentir interesse pelos rapazes com quem tenta flertar. Constatação que culmina num simples passeio pelas ruas de Paris, onde o vislumbre de um casal afetuoso de lésbicas, especialmente a segura Emma (Léa Seydoux), que ostenta corajosa cabeleira azul, acaba causando-lhe profunda angústia e reavaliação interna. Ao invés de focar-se na batalha psicológica de alguém em revelar sua homossexualidade em um mundo preconceituoso, algo cinematograficamente mais óbvio, o roteiro inova ao ir além e discutir os desafios inerentes de um casal após a “saída do armário”. Nós acompanhamos a protagonista em sua rotina diária, em tomadas que a mostram dormindo, fantasiando sonhos eróticos, comendo e entretida em conversas fúteis, estabelecendo uma gradativa conexão emotiva, onde ela se revela mediante a exposição de seus medos e a consequente superação deles.

Diferente de Emma, que é uma artista independente que se nutre da liberdade para a realização de seu trabalho, Adèle é uma simples menina tímida e reprimida por uma sociedade machista, com objetivos de vida inofensivos e que não necessitam do elemento da ousadia. O atrito sexual desses dois polos tão díspares resulta em uma fascinante explosão de cumplicidade, com corpos que se exploram vorazmente, analisada pela câmera voyeur com interesse antropológico. E o relacionamento transcorre de maneira realística, sem se esquivar dos problemas que ocorrem em qualquer relação de intimidade, evitando um erro cometido em vários projetos de temática similar, onde promovem a celebração do amor homossexual como algo melhor (uma vertente do que Spike Lee faz com relação aos negros, por exemplo, lutando pela exaltação da diferença ao invés da homogeneização). Inserindo na discussão o conceito existencialista de Jean-Paul Sartre, o objetivo principal dessa excelente obra fica claro: apontar a hipocrisia que leva o público a se chocar com as cenas de amor, enquanto se mostram indiferentes à brutal estupidez da homofobia. 

"A Caça", de Thomas Vinterberg


A Caça (Jagten - 2012)
O diretor dinamarquês Thomas Vinterberg provou com "A Caça", ter amadurecido em seu estilo, enquanto seu polêmico colega de Dogma 95 (ainda que, com maior senso de marketing pessoal), Lars Von Trier, continua "falando muito e fazendo pouco". Escolhendo revisitar o tema de seu primeiro filme: "Festa de Família", mas sem a estética crua, ele abraçou o potencial emocional de um protagonista cuja inocência nos é apresentada de início.

A bela fotografia de Charlotte Bruus Christensen auxilia ao emoldurar o cair das folhas de outono, inclusive como metáfora, simbolizando o crepúsculo de um homem oprimido, sendo complementada pela excelente interpretação de Mads Mikkelsen, que foge de sua zona de conforto, oferecendo um retrato humano e passional. Nenhuma chance é dada a ele, pois todas as famílias da região agarram-se ao inconsciente coletivo do pavor, temendo que ele se aproxime de suas crianças. Lucas (Mads) é um homem bom, adorado por seu filho e seus alunos, incapaz de cometer atos tão cruéis. Somos levados então a um calvário pessoal, onde progressivamente todos os membros da comunidade passam a duvidar de sua inocência. A jovem Annika Wedderkopp (Klara) surpreende com uma excepcional atuação infantil, diferente da celebrada menina de "Indomável Sonhadora", que apenas seguia instruções do diretor. Vinterberg nunca apela para o óbvio, enaltecendo mártires e pintando com tintas fortes os vilões, pois prefere mostrar todos como seres humanos falíveis e propensos a escolhas erradas. O leitmotiv da confiança é explorado até o brilhante desfecho, onde o roteiro ainda inclui uma poderosa crítica social e religiosa.

O simples benefício da dúvida já seria o suficiente para auxiliar no processo angustiante em que o protagonista se vê vitimado, mas a mensagem que o filme aborda é cruel em sua veracidade: a sociedade,desde o início dos tempos, sempre esteve propensa ao apedrejamento coletivo, algo que requer menos argumentação que a árdua tarefa de tentar enxergar a flor no lodo. 

"Amor", de Michael Haneke


Amor (Amour - 2012)
O ato de desaparecer, minguar sereno em direção ao grande desconhecido, sentindo cada vez mais pesada a luz cálida do amanhecer, por sabê-la representar a incontestável evidência de que mais uma noite terminou. Como se preparar para exercitar este desapego pessoal? Aquela complexa máquina que sempre agia em harmonia com seus desejos, quando menos se espera, começa a desaprender dia após dia um antigo hábito. A inefável sensação de impotência perante as coisas mais simples, como afugentar um pombo que adentra por uma janela, torna as noites cada vez mais bucólicas. Até o momento em que você não distingue mais a noite do dia, o real do imaginário, sobrando apenas o amor.

Michael Haneke consegue traduzir em imagens, sem nenhuma insinuação de melodrama, esta mixórdia de sentimentos. Iniciando por estabelecer um calculado choque sensorial, somos logo apresentados ao casal (vivido por Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant) de professores de música octogenários. A câmera não nos ajuda a reconhecê-los no meio de uma plateia lotada, fazendo-nos buscá-los rosto a rosto. Quando enfim os encontramos, nada mais desvia nossa atenção. A sutileza na ternura do olhar que o homem direciona à sua companheira, emocionada após o início do concerto de piano com um tema de Schubert, diz praticamente tudo que precisamos saber sobre aquela relação. A partir daquele momento seremos testemunhas do último ato dos dois no teatro da vida.

O diretor austríaco escolhe filmar este réquiem em um apartamento modelado com exatidão para simular o de seus pais, ambiente cuja geografia conhece de olhos fechados, transparecendo a atmosfera de intimidade necessária para que suas câmeras se tornassem uma extensão de seu coração. Nós passamos a maior parte do tempo naquele ambiente, enclausurados, como o casal, entre as quatro paredes. Identificamo-nos e, em certos momentos, desejamos desviar os olhos, mas não temos a mesma opção da filha (vivida por Isabelle Huppert). Ela os visita esporadicamente, buscando separá-los com o triste conforto dos asilos, afastá-los como problemas a serem resolvidos. Reparem no detalhe de como o homem conduz sua amada pela casa, com passos lentos e trôpegos, porém abraçados como se daquele gesto lhes valesse a vida. Agarrados um ao outro, percorrem aquele espaço outrora tão pequeno, como se desbravassem um oceano revolto. Quanto mais buscam nadar em direção à costa, mais as ondas os carregam para trás.

"Amor" é corajosamente simples em sua estrutura, mas conta com o auxílio de dois excelentes intérpretes e um tema difícil, conduzido com elegante objetividade por parte do autor. Quando não se distingue mais o amor da indiferença, Haneke direciona seus personagens para uma conclusão inesquecível, o supremo ato de quem verdadeiramente ama: desapegar.

Chumbo Quente - Django Livre

Link para os textos do especial:


Django  Livre (Django Unchained – 2012)
Tarantino é um apaixonado pela arte. Como todo apaixonado, ele acumula em sua memória afetiva cinematográfica, inúmeras referências de diversos gêneros e épocas. Seus filmes resultam da união jazzística de várias emoções que marcaram sua infância e juventude, sem interesse pela opinião dos profissionais que analisam friamente. Ele apenas se preocupa em satisfazer aqueles que transpiram a mesma paixão, os cinéfilos que passionalmente não se preocupam se o roteiro se arrasta em alguns momentos, ou se algum personagem não é desenvolvido da melhor forma possível. Em seu universo criativo, um estilo de luta pode ser criado utilizando o título de um filme de Richard Fleischer, da década de setenta, que no Brasil se chama: “Mandingo – O Fruto da Vingança”, sobre uma fazenda onde escravos eram treinados para lutarem entre si. Então, por mais que o analista frio em mim perceba alguns problemas de ritmo no segundo ato (vinte minutos a menos, por exemplo, trabalhariam a favor do potencial emotivo do desfecho), como cinéfilo devotado, eu já perdi a conta das vezes que assisti. Aliás, gostaria que fossem quatro horas, ao invés de quase três. Esta é a melhor forma de entender o trabalho do diretor e analisá-lo: afinar seu clarinete e buscar acompanhá-lo em sua divertida blowing session, valendo-se apenas de seu instinto.

Iniciando pelo logotipo da Columbia, que representa a personificação feminina da América, em sua versão clássica, seguido pelos primeiros acordes do excelente tema criado por Luis Bacalov para o “Django” original de Sergio Corbucci (de 1966), o filme se apresenta como uma eficiente máquina do tempo. Reaproveitando de forma criativa o fenômeno popular que em sua época originou mais de trinta produções, que capitalizavam diretamente com o sucesso do personagem vivido por Franco Nero (processo semelhante ocorreu com Bruce Lee, além de outros heróis do Western italiano, como “Sabata”), o roteiro utiliza o cenário da escravidão negra americana como estopim para um conto de vingança. O personagem de Christoph Waltz se apropria do tema (escrito por Bacalov) de “O Rei do Oeste” (de 1971), compartilhando o mesmo nome do personagem vivido por Klaus Kinski. Como seu passado é misterioso, a letra da canção, que fala sobre um pistoleiro que busca vingar seu irmão pacífico, acaba insinuando o que pode estar por trás dos atos de seu caçador de recompensas. Tarantino seleciona canções de diversas fontes, conseguindo fazê-las soarem como se tivessem sido precisamente escritas para as cenas em que ele as insere, como o tema de “Trinity é Meu Nome”, de Franco Micalizzi, que emoldura o melhor momento da trama.

Existe uma personagem secundária, uma pistoleira (vivida pela dublê Zoë Bell, que trabalhou com o diretor em “Kill Bill”) que esconde seu rosto com um lenço vermelho e aparece com algum destaque em algumas cenas, mas depois nunca mais é procurada pelas câmeras. Lendo o roteiro nos momentos em que ela aparece, consta como um figurante masculino sem nenhuma importância. O que poderia ser apenas uma brincadeira interna, já que como dublê, ela está acostumada a fazer seu rosto não ser notado, acaba se tornando nas mãos do diretor um “easter egg”, semelhante ao que ocorreu com “Boba Fett” (de “O Império Contra-Ataca”, que ganhou fãs e maior participação nos filmes seguintes, mesmo aparecendo poucos segundos), com o público já demonstrando querer saber mais sobre aquela enigmática figura.

O humor, elemento essencial em suas obras, vai desde o pastelão (membros de uma embrionária Ku Klux Klan tendo dificuldade em enxergar pelos buracos em seus capuzes) até as ironias mais refinadas, envoltas em diálogos longos e espirituosos, marca registrada do diretor. Revelar alguns detalhes sobre personagens acabaria por estragar algumas surpresas, mas preciso salientar a forma inteligente com que o roteiro insere um coerentemente estereotipado Samuel L. Jackson, interpretando, nas palavras de Malcom X, um “house negro”. Leonardo DiCaprio literalmente dá seu sangue, ferindo sua mão em uma das cenas, como um arrogante proprietário de uma fazenda. Jamie Foxx utiliza seu excelente timing cômico e, mesmo nos momentos em que o herói sofre, sutilmente pisca em cumplicidade com o público, como que convidando todos a participarem na brincadeira de mocinho e bandido.

O estofo cultural, não somente cinematográfico, que o diretor utiliza em suas referências, desde a utilização da lenda alemã “O Anel dos Nibelungos” (de onde se retira o nome da jovem vivida por Kerry Washington) até quando cita a pouco comentada ascendência negra do escritor Alexandre Dumas (de “O Conde de Monte Cristo”), como ferramenta de discurso de um personagem ao combater o racismo de outro, demonstram um zelo raro em seu ofício. 

domingo, 13 de julho de 2014

"O Homem de Aço", de Zack Snyder

Crítica postada originalmente na semana de estreia do filme.


O Homem de Aço (Man of Steel - 2013)
O maior acerto da produção é, por incrível que pareça, a atenção dada ao aspecto alienígena do herói. Como a população da Terra reagiria caso descobrisse que não estamos sozinhos no universo? Infelizmente, a questão é pouco explorada, limitando-se a mostrar as pessoas olhando assustadas para o céu. Com certeza, o susto faria parte desta revelação, mas o roteiro poderia trabalhar o impacto dessa descoberta, potencializando ainda mais as importantes escolhas finais do protagonista. A subtrama do Codex poderia ter sido mais bem desenvolvida, já que é parte essencial no plano do vilão, mas acredito que o conceito receba maior atenção na sequência.

Zack Snyder e Christopher Nolan buscaram a mesma verissimilitude de Richard Donner, mas com uma proposta totalmente diferente. Estruturalmente, o filme se assemelha ao "Batman Begins", com a inserção de vários flashbacks. Esse formato atrapalha a conexão emocional, mas não creio que a intenção era ser um filme emocionante, e deixa tudo muito didático. Quando menos esperamos, começa a pancadaria desenfreada. Seria ótimo se, ao invés de quarenta minutos de ação ininterrupta (tecnicamente excelente, vale salientar), tivessem cortado uns vinte minutos da exibição de CGI e dedicado esse tempo no melhor desenvolvimento dos personagens secundários, suas motivações. Algumas linhas de diálogo expositivo não são suficientes para que sintamos algo por um personagem (e isso é crucial, por exemplo, na relação que se estabelece entre Clark e Jonathan Kent). E mesmo as caricaturas, como era o caso do Perry White no filme clássico, precisam ser carismáticas. Caricaturas austeras tendem a ser apagadas ao menor sinal de luz.

A impressão nítida é de que havia cenas importantes que foram suprimidas, especialmente com Perry White (Laurence Fishburne) e a estagiária vivida por Rebecca Buller. Toda uma sequência dramática no terceiro ato é comprometida simplesmente por não termos nenhuma conexão emocional com os personagens. A Lois Lane de Amy Adams é um amálgama da sua contraparte investigativa escrita por John Byrne, com a sua contraparte vivida por Erica Durance na série "Smallville". A relação que se estabelece entre os dois, ainda que possa ser considerada por alguns um desvio desrespeitoso, vejo como uma inversão coerente e que pode proporcionar momentos interessantes na sequência. Russel Crowe (Jor-El) possui muito mais tempo em cena que Kevin Costner (Jonathan Kent), o que evidencia o enfoque no elemento alienígena. Acho que isso foi o causador de grande parte das reclamações dos críticos estrangeiros, pois eles buscavam a humanidade terna e alegre do personagem vivido por Reeve nos filmes clássicos. Costner não consegue, com poucos diálogos, fugir do estereótipo. Mas ele possui o carisma necessário para disfarçar o problema. Já Diane Lane (Martha Kent), recebe maior atenção no roteiro, com pelo menos duas cenas onde sua personagem, a despeito dos fracos diálogos, foge da caricatura. Michael Shannon (Zod) consegue emular o exagero canastrão imortalizado por Terence Stamp, mas com camadas de subtexto nas cenas em que fica preso ao fraco diálogo. Quando o roteiro não ajuda, um bom ator consegue transformar uma frase comum em algo espetacular. A bela Antje Traue (Faora) hipnotiza o espectador em cada cena, sem o subtexto que é perceptível nas cenas de Zod, já que ela é uma máquina assassina sem emoção. Ela é um espelho perfeito de como Kal-El poderia ser, caso nunca houvesse saído de Krypton.

Henry Cavill transmite a força que o personagem demanda, mas não com a elegância de Reeve. Mas é importante esclarecer que o herói que ele interpreta nesse filme não é o mesmo "Superman" que Reeve defendia, mas, sim, um deslocado estranho em uma terra estranha, buscando entender a si próprio (muito bacana o detalhe do livro de Platão que aparece em suas mãos) e se sentir "abraçado". Um herói em desenvolvimento, que ainda age por impulso e pode errar. Dizer que as atitudes dele não são coerentes com a mitologia do personagem é um equívoco. Diferente do que muitos pensam, "Superman" é um herói que foi constantemente modificado, dependendo da equipe criativa nos quadrinhos ou do interesse dos realizadores das versões em desenho ou live action. Ele não voava até Max Fleischer decidir que seria visualmente mais interessante em suas animações, dois anos depois da criação do personagem. A "Kryptonita", por exemplo, só foi criada nas aventuras da rádio, sendo depois inserida nos dois seriados de cinema com Kirk Alyn e nos quadrinhos. Cada autor realizou pequenas ou grandes modificações, seja para atualizá-lo ou torná-lo mais interessante para públicos-alvo diferentes. David S. Goyer e Christopher Nolan não somente respeitaram a essência do personagem, como arriscaram inserir nuances que aprofundam ainda mais suas motivações. Se eu tivesse que selecionar a obra nos quadrinhos que melhor espelha esse retorno às telas, seria: "Terra Um - Volume 1" (de J. Michael Straczinski), ainda que seja possível perceber forte influência de outras, como a fase "John Byrne", "Origem Secreta" (de Geoff Johns), "O Legado das Estrelas" (de Mark Waid) e "All-Star Superman" (de Grant Morrison).

A trilha sonora de Hans Zimmer utiliza sem timidez um grupo de bateristas, auxiliando na catarse dramática, mas poderá frustrar aqueles que buscam a conexão emocional e nostálgica com a fanfarra épica de John Williams. Não existem temas definidos para cada ambiente, somente duas linhas facilmente distinguíveis: Kal-El e Clark Kent, artificialidade e humanidade. Excelente a utilização do solo de guitarra de George Doering, em alguns momentos, mas não é exatamente algo novo na carreira do compositor, os mais atentos irão captar certa semelhança com a trilha de "Maré Vermelha", por exemplo. 

"O Homem de Aço" possui vários problemas em sua estrutura, mas é eficiente em sua proposta e estabelece um caminho promissor para a sequência, que se seguir a "fórmula" de Christopher Nolan, será melhor. Algo me diz que essa possível trilogia será encerrada em um tom emotivo e com foco na ação, com a utilização do vilão "Apocalypse". 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Obrigado, André Setaro


Quem leu meu livro “Devo Tudo ao Cinema”, conhece o personagem Plínio, o crítico de cinema que é um ídolo na área para o jovem Antonio. Ele é um amálgama de alguns profissionais que, com extrema competência, representam a fonte de cultura onde me embriaguei constantemente numa adolescência em que respirava Sétima Arte nas vinte e quatro horas do dia, sete dias por semana. Ontem faleceu uma dessas pessoas, André Setaro. Nos últimos três anos, eu tive a oportunidade e o privilégio de manter contato mais próximo com ele, através das redes sociais, podendo confirmar todos os adjetivos que sempre havia escutado sobre ele.

Talvez seja difícil para você, caro leitor, compreender como funciona esse meio da crítica cinematográfica. Quando você está começando, tendo como leitores fiéis apenas seus familiares e amigos próximos, tudo o que te impulsiona é o sonho. Você não está seguro de sua competência, fica buscando criar uma identidade própria, um estilo que seja interessante o suficiente para que seja percebido numa multidão de jovens sonhadores com o mesmo objetivo. Você chega tímido nas primeiras cabines de imprensa, torcendo para que alguém sorria pra você e lhe estenda a mão. São raros os que possuem a humildade de, estando conscientes de sua competência, não temerem qualquer competição, abraçando genuinamente aquele estranho como um potencial colega, como parte da equipe. Eu não conheci Setaro numa cabine, nunca nos vimos pessoalmente, mas ele foi um dos primeiros profissionais experientes da área que tirou um minutinho de seu dia para deixar um comentário elogioso em um de meus textos no extinto veículo “cinema.com.br”, onde escrevi por vários anos.

Algum tempo depois, nos reencontramos virtualmente. Eu já tinha conseguido galgar alguns degraus, escrevendo para alguns veículos, quando percebo a presença do amigo baiano novamente comentando um texto. Era um aval muito importante ler um “Excelente e revelador artigo”, escrito por um veterano mestre na área. Ele sempre se fazia presente nas postagens, num triste universo virtual onde um vídeo tolo de um bêbado caindo no chão recebe quinze mil compartilhamentos, enquanto o texto que você passou a madrugada inteira escrevendo, com sorte, recebe uns três ou quatro. Ano passado eu lancei meu livro na Bienal e fazia questão de enviar um pra ele, mas Setaro sabia a dificuldade de se lançar um livro no Brasil, ele fez questão de pagar o valor de capa e o frete. Ele valorizava o trabalho dos colegas.

Apenas duas semanas atrás, recebi uma bela mensagem privada dele, sobre o livro que ele havia acabado de ler. Gostaria de compartilhar com vocês o conteúdo: “Eu li com muito prazer o seu livro. Educação sentimental stendhaliana, quando a vida se conjuga com o imaginário das imagens em movimento. Livro revelador de uma descoberta, bem escrito e de estimulante leitura. Obrigado por tê-lo escrito”. Eu fiquei emocionado, devo ter lido umas dez vezes e mostrei pros familiares, antes de agradecer a ele, afirmando o orgulho que sentia por estar recebendo esse elogio tão importante. O meu amigo então respondeu de forma breve, a última mensagem dele para mim: “Você merece!!!!!”. Caro leitor, você pode imaginar a dor que senti ao descobrir, por intermédio do amigo Marcelo Janot (outro profissional que também faz parte daquele amálgama), sobre o falecimento de Setaro. Eu não costumo lamentar a morte de artistas, pois eles alcançam a verdadeira eternidade através de suas obras e na memória dos seres pensantes, mas sentirei muita falta de trocar palavras com esse generoso baiano, imaginando com melancolia a quantidade de textos maravilhosos que ele ainda tinha a oferecer para todos nós apaixonados pelo cinema. Vocês podem conhecer/revisitar esse primoroso legado em seu blog: http://setarosblog.blogspot.com.br/.

Obrigado por tudo, amigo. Você cumpriu seu trabalho com louvor nessa breve jornada.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

"Ela", de Spike Jonze


Ela (Her - 2013)
E Spike Jonze conseguiu mais uma vez superar as expectativas de seus admiradores. O que nos faz humanos? A capacidade de sermos afetados pelo outro, sentir compaixão e desejo. O protagonista vivido por Joaquin Phoenix trabalha inserindo emoções no subconsciente de estranhos, criando cartas escritas à mão para seus clientes. O futuro se mostra através de aparatos tecnológicos requintados, mas a realidade dos homens é exatamente a que vivemos hoje: pessoas que se cruzam nas ruas e não se encaram; corpos carentes de calor humano mesmo quando próximos. A terrível solidão que se experimenta em grupo.

Samantha (Johansson), a voz feminina do sistema operacional, uma ideia que gradualmente se revela através da percepção de Theodore (Phoenix), personificando o elemento que carecia na vida dele: algo/alguém que se importa. Só que ela não é real, mas apenas o resultado de uma dedicada pesquisa no banco de dados dele. Ela suspira, não por necessitar de oxigênio, mas por calculisticamente perceber o efeito no processo identificatório (Freud considerava “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”) que esse simples som causa no ser humano. E, tão interessante quanto, temos a personagem vivida por Amy Adams, única mulher com quem ele se relaciona sem demonstrar insegurança. Ela defende uma das melhores frases, o leitmotiv da obra: “Apaixonar-se é uma loucura. É como uma forma de insanidade socialmente aceitável”.

Num toque de gênio, Jonze encaminha o protagonista a uma situação crucial, onde tendo a opção de (com a permissão de sua “parceira”) experimentar o sexo fisicamente com uma substituta, ele a considera algo menos real, incapaz de emular com ela os sentimentos que compartilha diariamente com Samantha. Ciúme, insegurança, medo... Autênticas emoções que nascem do convívio, nos longos momentos de cumplicidade serena após a usual satisfação sexual dos primeiros meses de uma relação. Ao lembrar-se de sua esposa, vivida por Rooney Mara (ele se recusa a formalizar o divórcio, mesmo sabendo que não há mais possibilidade de retorno), ele percebe que está apenas ativando uma versão dela em sua memória afetiva, algo facilmente manipulável. A nostalgia embeleza tudo o que toca. O que é, afinal, real? Como quando sentimos pena na poética “morte” de HAL 9000 no clássico de Stanley Kubrick, acabamos nos surpreendendo com o nível de afeto que desenvolvemos ao longo da trama pelo casal.

Como em todo filme de Jonze, revelar demais sobre a trama é um equívoco e um desrespeito pela experiência do público, então contenho minha vontade de filosofar mais sobre as múltiplas interpretações que ela suscita, finalizando com a afirmação de que “Ela” é um dos melhores filmes do ano. 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Sétima Arte em Cenas - "Os Embalos de Sábado à Noite"

Link para os textos do especial:


Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever – 1977)
Quando se fala do filme, todo mundo celebra as coreografias de Tony Manero (John Travolta) na pista da discoteca “2001”. São imagens tão icônicas, com a onipresença das canções dos Bee Gees, que até levam muita gente a associar equivocadamente esse pesado drama sem final feliz ao gênero musical. Isolando a obra do diretor John Badham fora do contexto da época, considero-a bastante problemática em diversos aspectos, ainda que o charme se mantenha. Não gosto, por exemplo, do didatismo e do excesso de diálogos expositivos, como no momento posterior ao que Tony descobre que vai receber um aumento insignificante de 2,50, mas reage com a alegria de quem finalmente percebe que está sendo reconhecido como igual por seu superior. A cena é perfeita, com direito a um alívio cômico eficiente, mas o roteiro encaixa na sequência uma desnecessária confrontação entre pai e filho na mesa de jantar, onde é verbalizada novamente, sem sutileza alguma, essa angústia existencial do personagem. Esse tipo de repetição ocorre mais algumas vezes ao longo do filme, como na conversa com o irmão que larga a batina, onde o texto desnecessariamente bate numa tecla que já havia sido resolvida elegantemente em uma silenciosa cena anterior. Mas há uma razão para o filme estar nesse meu especial: os espetaculares dez minutos iniciais.

Com um mínimo de diálogos, em exatos dez minutos, o roteiro apresenta perfeitamente o protagonista como ser tridimensional, conectando-o emocionalmente ao público. E é interessante lembrar que, para o público americano da época, Travolta era como um Zac Efron em início de carreira, marcado por seu papel como o adocicado Vinnie Barbarino no seriado “Welcome Back, Kotter”, então podemos mensurar o impacto dessa introdução naqueles que foram assistir ao filme apenas por sua presença. A primeira imagem, um trem em movimento, insinua que estamos diante de uma realidade que busca transição, locomoção entre dois ambientes díspares, alguém que não está satisfeito e quer mudanças. A canção “Staying Alive” (Sobrevivendo) começa a tocar, emoldurando os passos confiantes desse jovem pela rua. Os olhos dele, como os de uma águia, caçando a atenção dos transeuntes, especialmente as mulheres, um garanhão. Então o corte da câmera nos mostra um elemento aparentemente dissonante: o balde de tinta que ele carrega displicentemente. Começamos a ver que existe algo de errado nessa equação. Acabamos descobrindo que ele trabalha como funcionário em um modesto armazém, apenas mais uma estatística num coletivo de uniformes apáticos recebendo ordens e atendendo senhoras indecisas (uma ponta da mãe do ator).

Ele busca se destacar como indivíduo, mas somente consegue essa realização ao dançar na discoteca. Somos levados então a acompanhar a transformação do jovem na persona que ele adota naquele local sagrado, numa montagem que se assemelha à “suit-up” de um herói, aquela que envolve a aceitação da vestimenta como símbolo diante da batalha. Em seu quarto vemos pôsteres de filmes que sutilmente ajudam a decifrar as motivações psicológicas do jovem. Ele se identifica com “Rocky”, o azarão que veio do nada e conseguiu mostrar seu valor, mas também possui a arrogância natural de Bruce Lee, posicionado sobre sua cama (elemento arraigado), enquanto a figura de Stallone fica ao lado do espelho, pois é como ele gostaria de ser, o reflexo que gostaria de enxergar. Já a presença do Al Pacino barbudo de “Serpico” é apenas uma brincadeira interna, já que ambos os filmes compartilham o mesmo roteirista: Norman Wexler. Na mesma cena, um corte rápido apresenta o “campo de batalha”, a pista de dança, coerentemente mostrada em uma tomada em ângulo “God’s Eye View”.

Outro ponto importante que é estabelecido na mesma cena, a relação de pai e filho, essencial para entendermos como funciona a psique do rapaz. Somos levados a estranhar a reação debochada do pai ao olhar para o decote no pôster de Farrah Fawcett, como se ele não concordasse com a atração de seu filho pela bela mulher. Mas na cena seguinte ficamos descobrindo a razão: o irmão padre, tratado pelos pais como um santo, com direito a foto em uma espécie de altar improvisado. Eles queriam que ele fosse como o irmão. E o jovem sabe disso. Ao mesmo tempo, numa rápida cena, vemos que a irmã caçula idolatra Tony, quando ela demonstra interesse por sua opinião sobre um de seus desenhos. Ela fica feliz ao saber que ele irá colocar o desenho em sua parede. Percebemos então quem é a âncora de doçura que mantém o rapaz na linha. E, finalizando, durante a janta, Tony é o único que esconde totalmente sua “camisa de batalha” com uma toalha. Claro que o objetivo principal é mostrar a preocupação risível dele em não sujar a roupa, mas implicitamente o roteiro evidencia simbolicamente o desconforto dele na presença do pai. Somente quando o pai se levanta e sai de cena, ele deixa sua camisa à mostra. Em apenas dez minutos ficamos entendendo totalmente o protagonista. 

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O Cinema de Mizoguchi - "Senhorita Oyu"

Link para o texto anterior:


Senhorita Oyu (Oyû-Sama – 1951)
Existe uma parcela de críticos que consideram esse um dos pontos mais baixos na carreira de Kenji Mizoguchi, mas eu discordo totalmente. O alvo do estúdio Daiei era o público feminino do pós-guerra, então o diretor entregava para esse mercado, com rapidez e elegância, melodramas de qualidade superior, alternando-os a projetos mais pessoais e autorais, como “Oharu: Vida de Uma Cortesã”, que o consagraria no mercado internacional com um Leão de Prata, no Festival de Veneza.

Levando a trama, que originalmente no livro “Ashikari” de Junichiro Tanizaki se passava na Era Meiji, para o Japão contemporâneo, o roteiro de Yoshikata Yoda utiliza o erotismo inerente à obra do escritor ao delinear o triângulo amoroso. A história aborda uma cruel negociação entre a bela viúva Oyu (Kinuyo Tanaka), sua irmã submissa (Nobuko Otowa) e o cunhado (Yûji Hori), por quem ela realmente se apaixona, iniciando então um jogo de sedução e negação de desejo. O aspecto mais interessante é que Oyu finge não perceber que o cunhado compartilha de seu sentimento, aproveitando em vários momentos para sadisticamente provocá-lo, numa intensa dominação psicológica elevada pela excelente interpretação de Tanaka. O mesmo roteiro, em mãos menos sofisticadas, com certeza não estaria sendo lembrado nesse texto.  

A fotografia de Kazuo Miyagawa, em sua primeira parceria com o diretor após seu reconhecimento mundial por “Rashomon” (de Kurosawa), entrega verdadeiras pinturas em cada cena, como aquela que finaliza o drama do personagem vivido por Hori, caminhando sem rumo em direção à luz da lua, após ter afirmado com seu sacrifício a maior declaração de amor possível.  É possível notar até certa influência de “Aurora”, de Murnau. A contribuição de Miyagawa, com seus infinitos tons de cinza entre o preto e o branco, na carreira de Mizoguchi é crucial, pois transformou a identidade visual de seus filmes, trabalhando experimentalmente com profundidade de campo. 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

TOP - Filmes Sobre Política (Parte 3 de 3)

Links para os textos anteriores:
20 - 11
10 - 6



5 - Rede de Intrigas (Network – 1976)
Quando o veterano jornalista Howard Beale (Peter Finch) é demitido, ele sofre um violento colapso nervoso diante das câmeras. Mas, depois que os seus enfraquecidos números de audiência sobem por causa das suas críticas ferozes, ele é readmitido e reinventado como o "profeta louco das ondas da TV". Evidentemente, quando o tal "profeta" perde a capacidade de seduzir o público, alguma providência tem que ser tomada contra ele. De preferência, diante das câmeras e com uma plateia dentro do estúdio.


O filme de Sidney Lumet mostra os reais interesses que existem por trás de qualquer programação televisiva, com uma visão assustadoramente atual e pungente sobre os limites (ou falta de) do bom senso e da ética. Os diálogos escritos genialmente por Paddy Chayefsky são verdadeiras catarses, estimulando aplausos até mesmo naqueles que assistem ao filme hoje no conforto de seus sofás. O que era considerado uma fábula que instigava a vigilância, pode ser percebido como a realidade de hoje, com o sensacionalismo dominando as estações de televisão, dos programas de auditório ao jornalismo. Fica claro que ninguém se importa mais com valores, quando chegamos ao ponto de uma criança pode ligar a televisão de manhã e assistir um absurdo teste de fidelidade. Não importa mais o nível da baixaria, contanto que represente melhores índices de audiência. O entretenimento é apenas uma desculpa para vender produtos nos intervalos comerciais. A caixa, como o personagem de Peter Finch chamava, apenas ficou maior e mais fina, mas o que ela representa continua sendo, em grande parte, o lado desprezível do ser humano.


4 - Sob o Domínio do Mal (The Manchurian Candidate – 1962)
Pergunte ao Major Bennett Marco (Frank Sinatra) e ele dirá que o Sargento Raymond Shaw (Laurence Harvey) é um herói digno de Medalha de Honra. Mas, apesar do que diz, Marco desconfia do contrário. Um pesadelo estranho e recorrente lhe dá a desconfortável sensação de que Shaw é alguém muito menos heróico e muito mais traiçoeiro. Seria mesmo Shaw um traidor? Conseguiria Marco convencer o Exército de suas suspeitas? E onde se encaixa nisso tudo a influente e rigorosa mãe de Shaw (Angela Lansbury)? São muitas as perguntas. E o tempo muito curto e precioso.


Dirigido por John Frankenheimer, Frank Sinatra vive um herói militar que retorna para casa após a guerra, somente para perceber que foi usado em uma trama de espionagem, onde por meio de hipnose foi levado a assassinar até mesmo membros de seu próprio pelotão. Poucos filmes abordam a paranoia de forma tão eficiente, pois ao invés de focar-se nos extremismos políticos, mostra que o indivíduo comum é o que está mais suscetível à manipulação. Um thriller político que continua tão eficiente quanto em sua estreia, misturando influências do Noir, uma belíssima fotografia de Lionel Lindon, com um texto que critica duramente a utilização da televisão como ferramenta política. Sua abordagem foi profética no caso do assassinato de Kennedy, fator que envolve o projeto numa aura sombria e o torna ainda mais contundente.  


3 - Todos os Homens do Presidente (All The President’s Men – 1976)
Em uma noite comum, no Edifício Watergate, luzes revelam quatro criminosos pegos no ato. Por causa dos acontecimentos daquela noite, naquele prédio, um presidente dos Estados Unidos acabou sendo levado para fora da Casa Branca. Dois repórteres de Washington, Bob Woodward (Robert Redford) e Carl Bernstein (Dustin Hoffman) agarraram a história e mantiveram-se agarrados a ela, desafiando dúvidas e negações. 


O diretor Alan J. Pakula mostra a extrema dedicação de dois jornalistas contra os vários tentáculos do corrupto sistema político. Na essência da trama está a razão do temor dos políticos por uma imprensa livre. De certa forma, uma obra que complementa “Rede de Intrigas”, mostrando o lado benéfico da mídia. O roteiro nos coloca praticamente sentados na mesa com os protagonistas, por vezes em detrimento de uma fluência narrativa, possibilitando que vivenciemos com exatidão de detalhes uma investigação jornalística. Uma abordagem que dificilmente seria escolhida nos dias de hoje, já que o público anseia cada vez mais pelo entretenimento imediatista. O símbolo de um jornalismo que dificilmente seria possível nos dias de hoje, onde a política do “em cima do muro”, muito mais lucrativa, parece ter contaminado todas as vertentes da comunicação. 


2 - Z (1969)
Em 1965, Lambrakis, um professor de medicina, é assassinado quando saía de uma manifestação de paz em praça pública, a investigação sobre sua morte acabou por revelar uma rede de escândalos, corrupção e ilegalidades na polícia e no governo na qual o líder do partido de oposição se tornou Premier. Porém, em 1967, um golpe militar derrubou o governo legal. O filme revive o assassinato e a investigação numa tentativa de demonstrar como o mecanismo da corrupção fascista pode se esconder atrás da máscara da lei e da ordem.


Obra-prima de Costa-Gavras, inspirada no romance homônimo do escritor grego Vassilis Vassilikos e no regime militar ocorrido na Grécia nos anos sessenta. A trama narra um crime político, um assassinato, de um popular deputado de esquerda durante uma manifestação e sua investigação por parte de um juiz, enquanto as forças armadas fazem de tudo para encobrir o fato e os verdadeiros culpados. E a população, cansada de ser controlada por incompetentes, parte para o revide. Obviamente, o filme sofreu enorme censura no seu lançamento em nossa “justa” nação, num notório caso, dentre vários, de carapuça bem servida. Vale salientar a excelente fotografia do francês Raoul Coutard, de “Acossado” e vários outros projetos de Godard.


1 - O Candidato (The Candidate – 1972)
Bill McKay (Robert Redford), o candidato do Partido Democrata ao Senado dos Estados Unidos, um homem de integridade e ideais, não se deixará manipular pela máquina política americana. O filme é uma incisiva visão de como publicitários, assessores de imprensa e empresários de comunicação se unem durante uma campanha eleitoral. 


Esse filme de Michael Ritchie é uma aula sobre como funciona esse grande teatro que é a política, um verniz frágil de boas intenções para o coletivo, mas que esconde apenas um intenso interesse no poder individual. O roteiro entrega os vários elementos dessa engrenagem podre, como a importância de firmar a imagem do candidato como um homem de família, com uma bela esposa (de fachada ou não), um corte de cabelo comportado, ainda que genuinamente ele não saiba qual a sua função no esquema. O filme mostra também a nada ética ajuda de empresários da comunicação, que acabam favorecendo descaradamente aquele político que irá devolver o favor quando eleito. A estratégia espúria, que vai da forma como o candidato deve se posicionar frente à câmera e a sua maneira de olhar para a lente, passando pelas abordagens com populares nas ruas, até o tipo de assunto que deve ser evitado em um debate. O protagonista, vivido por Robert Redford, foi inserido em um sistema que pouco conhece, como um peão na mão de publicitários. A sua reação ao final, inseguro como criança quando descobre que venceu a eleição, resume perfeitamente a coragem dessa obra: “E agora, o que faremos?”. Não é coincidência que esse ótimo filme nunca seja exibido na televisão.