O Quarto de Jack (Room - 2015)
* Quanto menos souber da trama, melhor será a sua experiência.
E não dá para analisar com alguma profundidade certos aspectos do filme sem abordar
pontos relevantes. Então, caso não tenha lido o livro, recomendo fortemente que
leia o texto após ver o filme.
O livro de Emma Donoghue, lançado em 2010, foi inspirado no
Caso Fritzl, ocorrido na Áustria alguns anos antes. Uma mulher foi mantida pelo
pai por vinte e quatro anos em cativeiro com seus sete filhos, nascidos da
relação incestuosa forçada. No livro, a autora provavelmente buscou inspiração
também na clássica obra “O Colecionador”, de John Fowles, aliviando um pouco a
carga trágica da história real, substituindo o elemento do incesto por um caso
de sequestro muito parecido com o do psicopata do livro. O fator mais
interessante foi narrar tudo pelo ponto de vista do menino Jack, de cinco anos,
que não conhece o mundo fora do quarto onde é mantido prisioneiro com sua mãe. O
filme, roteirizado pela própria autora, emula isso ao inserir eventuais
narrações da criança, recurso intrusivo raramente eficiente em outras produções,
mas que nesse caso trabalha a favor da história, funcionando melhor devido à
atuação impecável do pequeno Jacob Tremblay.
Antes de salientar os muitos pontos positivos, preciso citar
alguns detalhes que me incomodaram. O filme revela o rosto do sequestrador
muito cedo, ainda no primeiro ato, e, pior, numa câmera subjetiva,
representando os olhos do menino. No livro, quando eventualmente ele o encontra
pela primeira vez, aquele monstro desconhecido, Jack chega a cogitar que ele
tenha um rosto de pedra. Quando o homem abre os olhos, o menino então fica
apavorado por descobrir que ele é humano. Donoghue, conhecedora da linguagem
literária, mas sem experiência com a linguagem cinematográfica, minimizou um
aspecto importante: o deslumbramento da criança com o desconhecido. Como o
tempo é menor do que no livro para estabelecer essa rotina dos dois no
cativeiro, esse tipo de deslize prejudica o resultado.
Mais pra frente, numa cena noturna onde um carrinho de
controle remoto tem uma função angustiante no livro, o roteiro desleixadamente
tira toda a força dramática da cena. Com tanta fidelidade às páginas durante a
maior parte da produção, diálogos literalmente transportados para o filme, porque
escolher modificar desajeitadamente um dos momentos mais impactantes? Teria
sido mais eficiente dramaticamente deixar para revelar a aparência do homem na
cena em que mãe e filho tentam escapar, o que potencializaria o medo da criança
na situação.
O primeiro aspecto brilhante que saliento é a atuação de
Brie Larson. Vale perceber como ela reage quando o filho pede um cachorro. “There’s
not enough room... Space, there’s not enough space”. Ela se pune internamente
por ter dito a palavra “quarto” (room) levianamente, substituindo rapidamente
pela palavra “espaço”, já que ela fez a criança acreditar que nada havia além daquele
ambiente em que eles vivem: o Quarto (com letra maiúscula). Já fora do
cativeiro, perceba como ela segue falando em tom extremamente baixo, até mesmo
quando não há ninguém por perto, evidenciando o trauma de anos sendo levada a
não chamar atenção. Pequenos detalhes que demonstram o cuidado do filme,
sublinhando sutilmente as consequências psicológicas da terrível experiência na
personagem.
Esse recurso da ilusão mantida como forma de proteção incita
reflexões que vão muito além do tema, que pode ser visto como alegoria para o
sistema de crenças humano. O menino questiona a mãe sobre o mundo do sonho: “Quando
sonhamos, nós entramos na TV?”. Ele acha que além das paredes há apenas o
espaço sideral. Aquele é o universo que ele conhece como prisioneiro na caverna
de Platão, criando possibilidades a partir dos elementos que enxerga ao seu redor.
O real é apenas o que ele consegue tocar. A comida e as roupas, aos olhos dele,
são trazidas pelo “Velho Nick”, o fator amedrontador, desconhecido e
onisciente, que opera através da TV, por mágica. O que ele desconhece é
explicado pelo sobrenatural.
A mãe, em dado momento, começa a entender que o filho, com
cinco anos, já tem idade para deixar de se apoiar na muleta da ilusão, então
deixa de incentivar isso nele. O objetivo outrora era fazer com que ele se
acostumasse a viver naquele ambiente. Mas a única forma dela conseguir reunir
forças para escapar daquela prisão é com os dois pés fincados no mundo real. Ao
explicar para ele como o mundo funciona, o menino se revolta, não consegue compreender,
ele precisa viver aquela ilusão, por mais desumana que seja. Num toque genial,
o roteiro mostra que Jack era mais alegre em seu Quarto. Ele descobre que o
mundo real, aquele universo que ele desconhecia, é todo em tons de cinza.
É no terceiro ato que o diretor Lenny Abrahamson executa uma
crítica social poderosa, complementando essas reflexões despertadas desde o
início. A mulher, já em casa, está sendo preparada para uma entrevista televisiva.
Os maquiadores e as luzes artificiais, auxiliados pelos ângulos da câmera, reforçam
o desconforto dela na situação. Não seria aquilo uma forma de prisão? O
enquadramento coloca a protagonista sentada no centro, cercada de forma
opressora pelos operadores de câmera. Quando a apresentadora oportunista deixa
claro o enfoque sensacionalista da reportagem, pedindo que ela especule sobre o
dia em que pretende contar ao filho sobre o pai dele, a mulher se mantém firme,
diz que não há pai, que Jack é só dela. A apresentadora e sua equipe não
conseguem esconder a frustração, já que não conseguiram extrair lágrimas e
declarações melodramáticas. Ela segue tentando provocar a jovem, sem sucesso. A
mídia se aproveita de seu sofrimento como forma de conquistar melhores números
de audiência. A vítima é apenas uma estatística que precisa ser bem maquiada para
aparecer na tela. Assim como em “Violência Gratuita”, de Michael Haneke, o roteiro
insinua que o psicopata encontra cumplicidade no comportamento do povo.
“O Quarto de Jack” é uma ótima adaptação cinematográfica de
um dos melhores livros dos últimos anos.
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