Em mais uma entrevista exclusiva para o "Devo Tudo ao Cinema", converso com o amigo Rubens F. Lucchetti, mestre da literatura pulp nacional, roteirista dos melhores filmes do gênero terror já realizados no Brasil, uma legítima lenda viva. E, acima de tudo, uma das pessoas mais generosas e gentis que conheço nesse meio.
O – Sr. Lucchetti, eu quero iniciar dizendo que é um prazer poder
ter conquistado sua amizade e seu respeito como profissional da crítica de
cinema. A primeira versão de “Drácula” que li, por volta dos seis anos, foi
numa edição recontada por você, com ilustrações de Jayme Cortez, que meu pai
comprou na banca de jornal. Foi um dos meus primeiros livros “de adulto”, então
andava pra todo lado com ele debaixo do braço. Claro que ele continua em minha
coleção, conservado com todo carinho. Foi, com certeza, um dos principais
responsáveis por minha paixão pelo gênero do horror em todas as mídias. Então, quais
foram as suas principais referências (livros, quadrinhos, filmes, seriados), as
responsáveis pelo seu despertar profissional na área?
L - Primeiramente, quero agradecer suas palavras.
O prazer também é meu, por ter uma pessoa como você entre o
rol de meus amigos.
As minhas primeiras inspirações foram os quadrinhos, o rádio
e o Cinema, nessa mesma ordem. Nos quadrinhos sempre apreciei as seguintes
histórias: Li’l Abner, de Al Capp; Rádio-Patrulha, de Charlie Schmidt &
Eddie Sullivan; Brucutu, de V. T. Hamlin; Zé Mulambo, de Raeburn Van Buren; Jim
Gordon, de Roy Crane; Capitão César, de Leslie Turner; Brick Bradford (uma
aventura em que ele se envolve com o pirata Martin Cruel); Tim & Tom, de
Lyman Young; Dan Dun. Essas histórias eu lia no tabloide O Globo Juvenil, de
propriedade do sr. Roberto Marinho. E no Suplemento Juvenil, eu gostava de Aninha,
a Pequena Órfã, de Harold Gray; Dick Tracy, de Chester Gould; e Terry, de
Milton Caniff. Também o que me chamou a atenção na época (1942-1943) foi uma
série brasileira chamada A Garra Cinzenta, publicada n’A Gazetinha, escrita por
Francisco Armond e desenhada por Renato Silva. Detestava os super-heróis, por
causa dessa denominação super.
Quanto aos meus livros favoritos, vou citar apenas alguns: Tartarin
de Tarascon, de Alphonse Daudet; Mil Histórias Sem Fim, de Malba Tahan; Os
Mistérios de Paris, de Eugène Sué: Sinfonia Pastoral, de André Gide: Sombras
Que Sofrem e O Monstro e Outros Contos, de Humberto de Campos; A Amazônia
Misteriosa, de Gastão Cruls; O Homem Invisível, de H. G. Wells; Dois Vivos e um
Morto, de Sigurd Christiansen; Poesia e Prosa (em três volumes), de Edgar Allan
Poe; as histórias de Sherlock Holmes, de sir Arthur Conan Doyle; O Caso dos Dez
Negrinhos, de Agatha Christie; Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu; O Médico e
o Monstro, de Robert Louis Stevenson; Drácula, de Bram Stoker; As Mil e Uma
Noites. Não citei todos os livros, mas são os que me lembro no momento.
No que se refere aos filmes, posso citar: O Solar das Almas
Perdidas (foi uma das primeiras fitas que me impressionaram); Êxtase e Jealousy,
de Gustav Machaty; as comédias curtas do Charles Chaplin; Escola de Sereias, de
George Sidney; Ninguém Crê em Mim, um filme de Suspense com Arthur Kennedy e
Ruth Roman; Ódio Que Mata e Concerto Macabro, dirigidos por John Brahm; a série
de fitas de Horror produzidas por Val Lewton para a RKO; os Noir estrelados por
Alan Ladd e Veronica Lake; O Vingador Invisível, baseado em O Caso dos Dez
Negrinhos; Férias de Natal, com Deanna Durbin.
Já os seriados que me marcaram mais foram Os Tambores de Fu
Manchu, O Misterioso Dr. Satan, Os Perigos de Paulina, A Garra de Ferro, Os
Mistérios do Bairro Chinês e A Sombra do Terror.
O – Mesmo sem gostar de faroestes, você escreveu cerca de
sessenta livros no tema. O seu conjunto de obra é fantástico. Você era capaz de
escrever livros inteiros em apenas três dias. Como colega escritor, aplaudo de
pé sua versatilidade e sua energia. O que te inspira na execução literária?
Qual a força motriz que te conduz a criar novos personagens, um novo universo,
sem desanimar com os vários obstáculos que todo escritor conhece? A obra
finalizada, por si só, sem a necessidade da apreciação do leitor, já te
satisfaz?
L - A maioria dos livros que escrevi, incluindo os de Faroeste,
foi escrita por pura necessidade. Os editores pediam, e eu tinha de escrever o
que me pediam.
Agora, o que mais me inspira mesmo a escrever é a
necessidade de escrever. Para mim, escrever é uma necessidade básica, como
respirar, comer, beber, dormir... Essa é a minha força motriz.
E eu me dividia em dois autores: um escrevia por
sobrevivência, ou seja, fazia um trabalho mercenário, cujo pagamento ajudava a
complementar meu ganho como aposentado (então, escrevia o que os editores me
pediam; e esse trabalho era sempre assinado com um heterônimo e eu recebia por
ele uma quantia fixa); já o outro fazia o trabalho que sempre me agradou,
dedicando-se a escrever textos de Fantasia, Horror, Suspense e Mistério.
Quero deixar claro que há mais de dez anos, quando atingi a
incrível cifra de 1.547 títulos escritos e publicados, que deixei de fazer esse
trabalho mercenário. A partir de então, tenho me dedicado somente aos meus
projetos.
Todos os autores de um modo escrevem primeiramente para eles
mesmos, para expor suas ideias, seus sentimentos. E raramente um autor se torna
uma unanimidade entre os leitores, isto é, ele só consegue agradar parte dos
leitores.
O – Como você enxerga a necessidade do cinema nacional de
investir em gêneros, como o terror? Uma geração de estudantes foi incentivada
por seus professores, bitolados na estética da fome do Cinema Novo, a desprezar
o cinema de gênero como lixo estrangeiro. Até mesmo na minissérie “Zé do
Caixão”, recentemente exibida, o roteiro comete o grave equívoco de menosprezar
o trabalho de diretores como Mario Bava. Sempre digo que o prejuízo dessa
conduta foi enorme, criando uma classe imensa de pretensas cópias de Glauber
Rocha, produzindo cacofonias visuais que nem eles mesmos compreendem. Disserte
sobre essa questão, sobre a marginalização do cinema de gênero no Brasil e a
importância dessa nova geração destruir esse obstáculo ideológico.
L - O grande equívoco do cinema nacional começou com o Cinema
Novo (Glauber Rocha, Carlos Diegues, Arnaldo Jabor e cia.), que, como você
mesmo definiu muito bem, produziu “cacofonias visuais que nem mesmo eles
compreendem”. Essa dita estética da fome afastou o público dos cinemas. Porque,
como já foi dito, quem gosta da pobreza é a elite. Ninguém vai ao cinema, para
ver a miséria que ele vê todos os dias nos telejornais ou nos famigerados
programas policiais de fim de tarde. A pessoa vai ao cinema para se divertir.
Deseja esquecer por uma hora e meia ou duas horas os problemas do dia a dia.
A estética da fome prolonga-se até os dias de hoje, com
filmes como Central do Brasil, Carandiru, Cidade de Deus etc. Quando não é a
estética da fome são os filmes globais, que nada mais são do que programas de
tevê para a tela grande. Depois, temos um excesso de biografias
cinematográficas. Tudo malfeito.
E creio que Cinema não se aprende em escola. A maioria das
faculdades de Cinema e de Audiovisual são, em minha opinião, um equívoco. Qual
a bagagem que grande parte dos “professores” dessas faculdades tem para poder
ensinar Cinema. Que eles realizaram na Sétima Arte para poderem ostentar o
título de “professor de Cinema”? E os alunos saem diplomados e, com o nariz
empinado, declaram-se cineastas.
O Brasil nunca privilegiou o cinema de gêneros. Aqui os
cineastas querem mostrar a realidade tal como ela é. Isso não é Cinema. É
documentário. É documentário de mau gosto.
Agora, voltando à questão da estética da fome, não posso
deixar de falar que há cineastas que conseguem abordá-la de maneira exemplar em
seus filmes. Um deles era Ettore Scola, que, por coincidência, nos deixou
recentemente. Um de seus grandes filmes é Feios, Sujos e Malvados, que revi
recentemente.
Feios, Sujos e Malvados é uma sátira ácida, mostrando o dia
a dia de um cortiço de Roma. A fita me fez lembrar, imediatamente, dos painéis
que Richard Felton Outcault fazia para o New York World e New York Journal na
década de 1890 e que tinham como personagem central o Yellow Kid, um garoto
chinês que usava como indumentária um enorme camisolão amarelo.
Feios, Sujos e Malvados teve a atuação brilhante de Nino
Manfredi, no papel de um velho que tem de proteger a todo instante o dinheiro
que conseguiu do seguro por ter perdido um olho. Sua família, um verdadeiro
bando, deseja roubá-lo. As situações beiram o surreal. E as coisas degringolam
de vez quando ele leva para casa uma mulher que conheceu na rua.
Somente um italiano poderia fazer um filme como esse. E
somente um grande diretor poderia torná-lo uma obra-prima.
Em Feios, Sujos e Malvados todos os personagens estão bem
marcados, delineados. Todos funcionam. Mas há três que se destacam, dentre os
demais: o do próprio Manfredi, o patriarca da família. Um personagem que incluo
entre as grandes criações do Cinema. Tem também a velhinha (não sei se ela
é mãe do personagem do Manfredi ou da mulher dele) que passa o tempo todo
diante da televisão, a fim de aprender Inglês, e só é lembrada pelo resto da
família no dia em que vai receber a pensão. O terceiro destaque é a jovem (é a
mais bonitinha da família) que trabalha desde as primeiras horas da manhã.
O final da fita é trágico. Porque deixa entrever que a
situação de pobreza do cortiço vai se perpetuar para todo o sempre.
Para concluir essa minha resposta à sua terceira pergunta,
não posso deixar de citar Mario Bava, que foi menosprezado na minissérie do Zé
do Caixão. Não assisti a essa minissérie; porém, mais de uma pessoa se indignou
com o menosprezo que os roteiristas da série revelaram com relação ao Mario
Bava. Isso só vem demonstrar que esses roteiristas desconhecem por completo a
obra de Bava.
Mario Bava é um esteta da arte cinematográfica, quer queiram
quer não!
O – Você recebeu o troféu Sol de Prata no Rio-Cine-Festival,
pelo roteiro de “O Despertar da Besta/ Ritual dos Sádicos”, um filme que está
na minha lista de melhores da história do cinema nacional. Conte, por
gentileza, pela sua ótica, como foram os bastidores, a gênese desse trabalho. E
como você o enxerga em revisão hoje?
L - O roteiro de Ritual dos Sádicos está entre os melhores que
eu escrevi.
Você me pergunta como foi a gênese desse roteiro...
Bem, certa noite no final de 1968, o sr. Mojica chegou à
minha casa e me contou uma ideia para um filme sobre a proliferação das drogas,
um tema polêmico de ser abordado numa obra, sobretudo devido ao período em que
vivíamos (estávamos em plena ditadura militar e vivendo os primeiros dias do
AI-5). Falei isso para o sr. Mojica. Ele argumentou que não se importava.
Queria realizar o filme de qualquer jeito. Nessa época, o sr. Mojica tinha um
estúdio num prédio bem decrépito na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, no centro
de São Paulo. Subia-se por uma escada de madeira; depois, tinha um corredor com
várias portas, um banheiro e uma cozinha. A porta da cozinha abria para um
terraço, onde havia um velho tanque e, num canto, tijolos, telhas e areia. Esse
foi o ambiente que serviu de cenário para a maior parte do filme.
Durante as filmagens, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, um
dos mais atuantes do DOPS de São Paulo, recebeu uma denúncia de que havia nesse
prédio um grupo de pessoas consumindo tóxicos. Isso era algo intolerável pelos
militares. Então, uma noite, inesperadamente, o delegado Fleury e seus
subordinados, de metralhadoras em punho, invadiram o
estúdio e mandaram todo mundo encostar à parede. Somente quando o sr. Mojica
apareceu e esclareceu que ali estavam fazendo um filme é que os policiais
abaixaram as armas. O sr. Mojica explicou que não havia droga alguma e que o
que eles pensavam que era LSD não passava de água destilada. O delegado Fleury
percebeu que a denúncia era falsa. E um dos policiais da equipe acabou
participando do filme, substituindo o Jô Soares, que não pôde comparecer às
filmagens. E esse delegado contracenou com a atriz Ítala Nandi (nessa cena, um
empresário está comendo, como um porco, uma macarronada com muito molho de
tomate e tentando seduzir uma jovem em busca de emprego). Depois de a cena ter
sido filmada, ele quase vomitou, pois, devido à demora nas filmagens, a
macarronada estava gelada. Então, o que começou como um episódio trágico acabou
terminando como comédia.
O delegado Fleury ficou tão amigo do sr. Mojica que até
permitiu que uma das viaturas participasse das filmagens, na sequência que
mostrava um grupo de traficantes sendo presos. Os guardas eram reais, e a cena
foi tão real que um dos “prisioneiros” teve uma costela quebrada e precisou ir
para o hospital.
Em minha opinião, Ritual dos Sádicos, posteriormente
rebatizado com o título de O Despertar da Besta (o filme ficou preso durante
uns quinze anos na Censura Federal) é um dos raros filmes brasileiros a
denunciar essa tragédia que são as drogas. O sr. Mojica anteviu muitas décadas
antes esse mal que se espalha por todo o mundo e que deixou São Paulo refém dos
traficantes e viciados. E esse parece ser um problema sem solução.
O – Já que mencionei sua parceria com José Mojica Marins, que teve sua biografia relançada recentemente pela editora "Darkside Books", você tem alguma história curiosa de bastidores? Como foi esse encontro para “O
Estranho Mundo de Zé do Caixão”? Como a sua arte complementou a dele? De todos
os trabalhos que fez com ele, quais os seus favoritos (e a razão)?
L - Recordo-me perfeitamente...
Era um anúncio, publicado num jornal de São Paulo. Mostrava umas
caveiras, uma coruja, uma árvore desfolhada, uma urna funerária, tudo em negativo,
e o seguinte texto: “Aguardem! À Meia-Noite Levarei Sua Alma”. Esse
anúncio intrigou-me. Fiquei aguardando. Na época, meados de 1965, eu residia em
Ribeirão Preto; e um dia, apareceu num dos cinemas da cidade, o São Jorge – um
verdadeiro templo do Cinema (ele tinha quase dois mil lugares) que, embora
ficasse no centro, era frequentado por pessoas dos bairros e da periferia –, um
painel com algumas fotos e um cartaz com o tal título, À Meia-Noite
Levarei Sua Alma. Não posso deixar de mencionar que as fotos não eram nada
recomendáveis. O cartaz muito menos (era um calidoscópio de desenhos toscos e
não trazia os nomes dos atores nem indicação alguma de quem havia produzido ou
dirigido o filme). Apesar disso, comprei um ingresso, entrei na sala (ela
estava quase vazia, havia somente umas trinta pessoas em seu interior), sentei
e esperei.
Quando aquilo começou, tive vontade de sair do cinema, acompanhando o cortejo
dos que se desalojavam em direção à liberdade. Eu não estava entendendo nada do
que via. Eram imagens estranhas; e também havia um personagem esquisito,
desconcertante. Eu já começava a ficar arrependido de não ter ido assistir a Um
Amor de Vizinho (com Jack Lemmon e Romy Schneider), que estava sendo
exibido no São Paulo, o cinema da elite ribeirão-pretana. Realmente, senti
vontade de deixar a sala; porém, pelo que me lembro, nunca saí do cinema sem
ver escrito na tela The End ou Fim. De repente, senti um
calafrio na espinha. Percebi que estava diante de um clima de tragédia pura.
Ésquilo, Eurípedes, Sófocles, enfim, todo o teatro grego estava ali, misturado
a Shakespeare. Percebi que assistia a uma fita sem par na História do Cinema.
Ao mesmo tempo em que se assemelhava a uma peça apresentada num circo mambembe
de vilarejo interiorano, tinha algo de tragédia grega ou do teatro elisabetano.
Notavam-se também traços da obra do Marquês de Sade. Às vezes, a desumanização
do personagem principal era total, inconcebível. O ator que o interpretava
gesticulava, gritava, pulava. Suas feições se multiplicavam em máscaras de ódio
e sadismo. Eu nunca vira nada igual. E todas essas cenas iriam me marcar
profundamente. E destaco uma delas: a do agente funerário Josefel Zanatas (mais
conhecido como Zé do Caixão) comendo uma perna de carneiro e olhando através da
janela a procissão da Semana Santa. É uma cena de grande impacto (sobretudo por
causa da expressão de deboche no rosto do personagem). Uma cena verdadeiramente
memorável. Tão memorável quanto aquela que considero a mais bela cena realizada
por Chaplin: a cena de Em Busca do Ouro em que Carlitos, do lado de
fora de um bar, olha pela janela e vê, com uma tristeza infinita nos olhos, a
mulher amada – mulher amada essa que havia prometido cear com ele na noite de
Ano Novo – se divertindo com outros homens...
Na tela, o ator continuava sua pantomima. Eu nunca havia
presenciado nada que pudesse se assemelhar àquelas sequências desconcertantes,
uma mistura de Expressionismo Alemão com a inquietação e a angústia que nos
provocam os contos de Edgar Allan Poe... Tudo feito no melhor estilo
primitivista. Sabia estar diante de um ser único na cinematografia mundial...
um louco genial (não poderia haver outra definição para designar o responsável
por aquela tragédia na sua mais pura concepção clássica). Só alguém dotado de
um espírito genial – um espírito muito acima de nossa vulgaridade – poderia
realizar um espetáculo tão inquietante e paradoxal.
Terminado o filme, lembro-me de que ainda fiquei um tempo sentado na poltrona,
como um paciente que, após uma longa enfermidade, começa a adaptar-se ao mundo
que o rodeia.
Deixei o cinema sob o efeito “daquele anestésico”. Minha casa ficava a uns
quinze quarteirões; e, durante o percurso, que fiz a pé, Josefel Zanatas não
saía de minha mente. Esteve o tempo todo ao meu lado; e, quando entrei em casa,
não me recordava sequer do trajeto que havia percorrido. O estranho personagem
havia saído comigo do cinema e tinha me acompanhado. Sua personalidade e
magnetismo eram por demais marcantes, fazendo com que não se restringisse
somente ao celuloide e criasse vida própria. Cheguei até a imaginar que
cochilara no cinema e havia imaginado tudo aquilo. José Mojica Marins e Josefel
Zanatas se confundiam em minha mente. Criador e criatura eram uno.
Mas quem é José Mojica Marins?
Fiz essa pergunta a mim mesmo durante vários dias, após ter
assistido À Meia-Noite Levarei Sua Alma. E não encontrei para ela uma resposta.
Todas as pessoas de meu relacionamento nunca tinham ouvido falar dele; e nenhum
jornal ou revista fazia qualquer menção à fita, que permanecera apenas um dia
em cartaz em Ribeirão Preto.
Foi somente alguns meses mais tarde, em abril de 1966, que alguém citou o nome
José Mojica Marins. Foi numa carta endereçada a mim e escrita a quatro mãos
pelo meu amigo Sérgio Lima, que na época era secretário da Cinemateca
Brasileira, e por sua esposa Leila (os dois já haviam estado em minha casa,
para conhecerem o trabalho que o artista plástico Bassano Vaccarini e eu
desenvolvíamos à frente do Centro Experimental de Cinema de Ribeirão Preto). Em
determinado trecho dessa carta a Leila dizia:
“Sérgio, eu e alguns amigos (...) temos ido frequentemente visitar
José Mojica Marins. Sr. Lucchetti, este homem é mesmo uma figura de contos
maravilhosos e fantásticos.
Capa preta, pálido, barba desalinhada, unhas enormes e verdadeiras; e o mais
importante: é a única pessoa que vive uma realidade imaginada! (...) Já
falei do senhor a ele e seria delirante o vosso encontro.”
Em julho de 1966, mudei-me para São Paulo e fui trabalhar
como chefe de escritório da Sokofer, uma loja de ferragens pertencente a uns
primos de minha mãe. Eu nem me instalara direito na nova casa, recebi a visita
do Sérgio e da Leila. Então, entre outras coisas, eles disseram que iriam
marcar o tal “encontro delirante” e que, certamente, “o
Mojica e eu iríamos nos dar muito bem.”
Passados alguns dias, o Sérgio me telefonou, a fim de avisar
que marcara o encontro para aquele dia. Informou-me também de que eu deveria
encontrá-los às cinco horas da tarde, no Largo do Paissandu, junto à Fonte das
Lagostas, no centro de São Paulo.
Na hora marcada, eu já estava parado junto à fonte de mármore branco do Largo
do Paissandu. Menos de cinco minutos depois, vi o Sérgio e o sr. Mojica subindo
a Avenida São João, vindos dos lados do edifício dos Correios.
O sr. Mojica que me estendeu a mão nada tinha em comum com Josefel Zanatas, a
estranha e sinistra criatura de barba hirsuta que eu vira em À Meia-Noite
Levarei Sua Alma. O sr. Mojica mostrava barba aparada, um sorriso agradável no
rosto; trajava um terno escuro de qualidade muito superior ao meu, que fora
comprado na Exposição Clipper; usava sapatos pretos bem polidos e totalmente
diferentes dos meus, que sempre foram
cambaios...
O Sérgio Lima, um perfeito dândi (na ocasião, ele vestia um
paletó marrom, calça de flanela cinza; usava uma echarpe em torno do pescoço; e
fumava cachimbo), começou a caminhar em direção à Rua Barão de Itapetininga.
Ele falava muito e, em determinado momento, disse que “a parceria que o
Mojica e eu faríamos iria resultar em algo inédito no cinema nacional”. O
Mojica não dizia nada; e muito menos eu, que sou extremamente tímido.
O Sérgio nos levou a uma casa de chá na Barão de
Itapetininga, a rua onde, na época, estavam instaladas as principais boutiques e
lojas de grife de São Paulo. Por uma escada de mármore coberta por um tapete
carmesim, chegamos a um amplo salão com colunas espelhadas e iluminado por
finos lustres de cristal. Cortinas de renda de cor de caramelo escondiam as
janelas, e uma brisa suave – vinda do teto através de orifícios camuflados por
enfeites de anjinhos – tornava o ambiente extremamente agradável. A um canto,
um quinteto de cordas, acompanhado por um piano, executava uma música de
Brahms. Ou seria Vivaldi? Várias senhoras da mais fina sociedade paulistana
tomavam o seu chá das cinco e, assim que entramos, voltaram seus olhares em
nossa direção. Éramos os únicos varões naquele ambiente suntuoso.
Tão logo nos sentamos a uma mesa com tampão de vidro e
ornamentada com um vaso de flores, surgiu não sei de onde, uma donzela de tailleur cinza,
sapatos envernizados de salto alto e um barrete que lhe prendia os cabelos
dourados. Ela tinha um rosto encantador e, oferecendo-nos o cardápio,
saudou-nos com um “boa-tarde, cavalheiros” que na boca de qualquer
outra jovem soaria totalmente falso. Quem fez o pedido foi o Sérgio, que me deu
a impressão de ser um assíduo frequentador do local.
Assim que a moça se afastou, o Sérgio falou: “Como eu lhe
disse, Mojica, o Rubens já tem vários livros publicados, colabora numa
infinidade de revistas, escreveu novelas de rádio, scripts para a
televisão e fez aqueles filmes desenhados na própria película.” Depois,
voltando-se para mim, ele pediu: “Vamos, Rubens, fale um pouco sobre o seu
trabalho.” Naquele instante, deu um branco em minha mente. Embora eu tivesse
ensaiado exaustivamente o que deveria dizer para impressionar o sr. Mojica,
esqueci tudo. Não sabia o que falar. Sentia-me travado. Fui salvo pela chegada
providencial de um carrinho de chá de metal polido e rodas de borracha que era
empurrado por uma graciosa garota envergando um uniforme azul que contrastava
com sua cabeleira platinada. Ela colocou as chávenas em cima da mesa e despejou
– de um bule com enfeites da cor de ouro velho – o chá em cada uma delas.
Esse espaço de tempo permitiu-me coordenar o pensamento e
fiz um relato sucinto sobre minhas atividades. Ressaltei, então, minha
predileção pelo Horror e acrescentei que estava trabalhando para uma editora de
São Paulo, escrevendo roteiros de histórias em quadrinhos de Suspense e Horror.
O sr. Mojica ouviu tudo sem fazer nenhum aparte ou
comentário. Em seguida, consultou o relógio e disse que tinha outro
compromisso. Mas, antes de nos despedirmos, foi extremamente cortês,
convidando-me para ir ao seu estúdio.
Umas duas semanas depois, num sábado à tarde, fui a pé até o
estúdio do sr. Mojica.
O endereço que o sr. Mojica me dera pertencia à coisa mais
estranha que se podia imaginar. Tinha sido uma antiga sinagoga e,
posteriormente, fora centro espírita. Eu até imaginava que tinha errado o
endereço, mas uma plaquinha de metal sobre uma porta de madeira carcomida e
lascada indicava: “Cia. Cinematográfica Apolo”. Então, eu não errara o
endereço. O estúdio era ali mesmo. A porta estava aberta e dava para uma escada
de madeira toda danificada e tão encardida que devia fazer décadas que não via
limpeza e que fazia jus a tudo o mais. Se o Conde Drácula houvesse pensado em
se mudar para o Brasil e escolhido a cidade de São Paulo para morar, teria
escolhido aquele imóvel como lar.
Parado diante da porta, hesitei em entrar. E, antes de
transpor o umbral, quase desisti. Mas resolvi entrar. Subi cada degrau da
escada com cuidado. As paredes também estavam encardidas e esburacadas,
mostrando em alguns pontos os tijolos e combinando com o aspecto tétrico
daquele covil.
De frente para o topo da escada, uma porta aberta deixava
ver um pequeno escritório, onde havia uma mocinha sentada a uma escrivaninha.
Dirigi-me à mocinha que estava colando, num grande livro de folhas em branco,
matérias saídas na imprensa. Ela olhou-me de forma inquisidora. Cumprimentei-a
e perguntei pelo sr. Mojica.
– Ele foi a um bar aqui perto, mas volta já – respondeu a
mocinha. – Pode esperá-lo, sentado ali – e indicou-me um sofá junto à parede.
O sofá era tão velho quanto o prédio.
Agradeci e falei que iria esperá-lo lá fora. Antes de
descer, arrisquei um olhar para o grande salão, repleto de entulho, ao lado do
escritório. Era difícil, num simples olhar, detectar o que era tudo aquilo. Ali
também estavam alguns rapazes e moças, que me olharam curiosos. No teto, vários
símbolos, que me pareceram cabalísticos. E, ao abaixar a vista, percebi algo
rastejando... Seria uma cobra? E aquelas coisinhas brancas correndo junto ao
rodapé? Seriam ratos? Seria mesmo aquele o endereço da Cia. Cinematográfica
Apolo?
Desci a escada e fiquei na calçada, procurando analisar a
fachada do prédio. Foi quando notei no alto uma grande estrela em relevo e
circundada por outras estrelas menores.
Quando novo, aquele devia ter sido um edifício suntuoso.
Sabe-se lá quando foi sinagoga; mas duas portas largas no térreo indicavam que
em alguma época o prédio abrigara uma firma comercial.
Ao me voltar, vi o sr. Mojica, acompanhado por dois homens,
vindo da esquina. Eu estava um pouco afastado da porta e não sei se o sr.
Mojica me reconheceu. Se me reconheceu, não o demonstrou. O trio entrou e subiu
as escadas. Esperei algum tempo e entrei atrás, com o coração disparando.
Lá em cima, um pouco além da porta do escritório, o sr.
Mojica conversava com seus dois acompanhantes. Quando me viu, ele veio, todo
sorridente, ao meu encontro. Estava longe de ser aquela pessoa fria e distante
do primeiro encontro. Pedi-lhe desculpas por ter vindo sem marcar hora.
– Veio no momento certo – disse-me o sr. Mojica,
convidando-me a entrar em seu escritório. – Estou precisando urgentemente de um
roteirista para o meu próximo filme, que irá se intitular O Estranho Mundo de
Zé do Caixão. Como está muito em voga filmes em episódios, ele terá três
histórias.
Sentamo-nos no velho sofá.
– Você veio mesmo numa boa hora – continuou o sr. Mojica. –
Já tenho o dinheiro para realizar esse filme. E eu queria que você escrevesse o
roteiro dele.
Aquilo era o que eu mais queria, e não deixei de demonstrar
o meu entusiasmo.
– Como eu disse, é um filme composto de três histórias. Cada
uma delas deverá ter mais ou menos meia hora – informou o sr. Mojica. E,
voltando-se para a mocinha que continuava colando os recortes, pediu: – Denise,
arrume uma folha de papel almaço para que o Lucchetti anote o que eu vou lhe
ditar.
– Não é necessário, sr. Mojica – repliquei. – Pode falar.
– Mas você não vai esquecer?
– Não. Pode falar, que eu memorizo.
E o sr. Mojica contou as ideias dos três episódios. O
primeiro deles seria sobre um velho que se utiliza de olhos humanos nas bonecas
que fabrica. O segundo seria sobre um vendedor de balões de gás que se apaixona
por uma moça da sociedade que sequer toma conhecimento da sua existência; a
jovem morre, e o vendedor a possui. O terceiro episódio teria como tema um
cientista que, após ser ridicularizado por um jornalista, irá provar a esse
jornalista que “o instinto supera a razão”.
Após relatar as três ideias, o sr. Mojica disse:
– Vê se dá para me trazer na próxima semana o roteiro do
primeiro episódio. Porque, assim, eu já vou filmando, enquanto você escreve o
roteiro dos outros dois.
Naquela mesma tarde de sábado, comecei a trabalhar no roteiro
de O Estranho Mundo de Zé do Caixão.
Não tive dificuldade alguma de escrever o primeiro e o
terceiro episódios, “O Fabricante de Bonecas” e “Ideologia”. O mesmo já não
aconteceu com o segundo, “Tara”. Lembro que fiz duas ou três versões que não me
agradaram. Foi somente ao imaginar o episódio como uma história muda é que
consegui escrevê-lo.
No sábado seguinte, apareci novamente no estúdio do sr.
Mojica, que não ficava muito distante da minha casa. Eu morava na Rua Catumbi,
e o estúdio ficava na Rua Casimiro de Abreu.
Então, o sr. Mojica pensava que eu estava levando apenas o
roteiro do primeiro episódio, como ele havia me pedido. Ficou admirado, ao ver
que em tão pouco tempo eu havia escrito o roteiro completo de O Estranho Mundo
de Zé do Caixão.
O sr. Mojica sentou no sofá e começou a ler o roteiro. Ao
seu lado, eu prestava atenção em suas reações faciais. Em momento algum, notei
qualquer contração de desaprovação e
percebi-o concentrado na leitura.
Quando terminou de ler, o sr. Mojica virou-se para mim e
falou:
– Espantoso! Nem eu teria feito melhor! É impressionante
como você conseguiu, já na primeira versão e em tempo recorde, captar o meu
pensamento.
Penso que foi uma integração perfeita nossa parceria, porque
tudo quanto ele me pedia eu conseguia transpor para o papel. E, em nenhuma
ocasião, ele me pediu para refazer algum roteiro.
Meus trabalhos favoritos são: os roteiros de O Estranho
Mundo de Zé do Caixão, Ritual dos Sádicos e Inferno Carnal.
O – Como nasceu sua paixão pelos quadrinhos? E como você
enxerga essa onda moderna de adaptações dos quadrinhos para o cinema? É a
mitologia dos nossos tempos?
L - Minha paixão pelas histórias em quadrinhos começou muito
antes de eu saber ler. Meu pai comprava O Tico-Tico e, esporadicamente, o
tabloide O Globo Juvenil e a revista Mirim. Eu ficava empolgado com os desenhos
e procurava adivinhar o que estava escrito nos balões.
Para mim, quem nasceu no século XX e não leu histórias em
quadrinhos não viveu no século XX.
Quanto à onda de filmes baseados em histórias em quadrinhos
é algo deprimente. Porque não vi, até hoje, uma adaptação que faça jus aos
quadrinhos. Tenho certeza de que quem escreve os roteiros dessas fitas não tem
paixão pelos quadrinhos.
Penso que essa mitologia do século XX deve-se a uma única pessoa:
Stan Lee, que, felizmente, se encontra ainda entre nós. E vida longa para ele.
Stan Lee revolucionou os quadrinhos de super-heróis, criando personagens como
Thor, Hulk, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Surfista Prateado, Demolidor,
Quarteto Fantástico, os X-Men. Também ressuscitou o Capitão América e Namor, o
Príncipe Submarino. Ele humanizou os super-heróis e soube escolher os
desenhistas (Jack Kirby, Bill Everett, Wallace Wood, Don Heck, John Buscema,
John Romita etc.) para auxiliá-lo. É o homem que melhor entende a indústria de comic
book.
O – Qual é o mais genial diretor do cinema de horror
clássico (de qualquer nacionalidade)? Quais filmes dele te fazem pensar dessa
forma? Disserte à vontade sobre as razões dessa escolha.
L - Eu sempre tenho dito que o maior homem do cinema de Horror
clássico não é um diretor. É um produtor. Ele tinha uma personalidade tão forte
que conseguiu criar uma obra homogênea, trabalhando com três diretores (Jacques
Tourneur, Mark Robson e Robert Wise). Esse homem é Val Lewton, que produziu a
mais impressionante série de fitas de Horror já realizadas.
Val Lewton é a essência do Horror no Cinema. Recordando-me
de seus filmes, não encontro paralelo na História do Cinema. Outros produtores,
como Roger Corman e William Castle, tentaram imitá-lo, mas não conseguiram.
Cada vez me convenço mais de que ele é o Edgar Allan Poe do Cinema, pois foi
quem melhor soube retratar o medo – segundo o roteirista DeWitt Bodeen, as “histórias
que ele levou à tela são dramatizações da psicologia do medo” – nas telas
cinematográficas.
Toda a obra de Val Lewton – uma obra pequena, diga-se de
passagem, já que ele produziu apenas onze filmes – marcou minha vida. Porém,
foi Sangue de Pantera (Cat People), realizado em 1942, que me
provocou o primeiro espanto. E isso aconteceu por volta de 1948, quando vi a
fita pela primeira vez, num cinema de Ribeirão Preto, e percebi o quanto eram
banais os filmes de Horror a que havia assistido até então.
Seguindo o exemplo de outras fitas de Val Lewton, em Sangue de Pantera o
horror é muito mais sugerido do que mostrado. Na verdade, Val Lewton sempre
evitou mostrar claramente o horror e o terror: preferia obter a expressão
cinematográfica do horror e do terror por meio da sugestão.
Roteirizado por DeWitt Bodeen e fotografado por Nicholas
Musuraca, Sangue de Pantera conta a história da desenhista de moda
Irena Dubrovna (Simone Simon), descendente de uma antiga raça de
mulheres-felinas que, quando excitadas, se transformam em panteras. E o filme
tem inúmeras sequências dignas de figurar na mais rigorosa antologia do Horror
no Cinema – ou do Cinema em geral. Há, porém, uma que merece ser destacada: a
da piscina, com os ecos dos gritos de Alice (Jane Randolph) se confundindo com
os urros de uma fera, que jamais é vista e cuja sombra, deslizando
indistintamente na água agitada pela vítima em pânico, pode tanto ser a sombra
de uma pantera como a de uma mulher. A sequência é de uma simplicidade
espantosa, uma vez que é feita somente por sons e sombras.
E Sangue de Pantera continua tão atual como na
época em que foi realizado. Isso porque é uma obra-prima, e toda obra-prima é
atemporal.
O – Acredito que a música é um elemento essencial em uma
mente criativa. Como é o seu gosto musical? Você já utilizou conscientemente a
música como inspiração em algum trabalho?
L - A música é um elemento tão essencial em minha vida quanto a
escrita. Não posso viver sem nenhuma delas.
Já utilizei diversas vezes a música como fonte de
inspiração. Foi quando eu escrevia uma série de poemas em prosa para um jornal
de Ribeirão Preto. Todos esses poemas eram dedicados àquela que seria minha
esposa. Ela nem sabia de minha existência, mas me apaixonei por ela à primeira
vista. Como eu escrevia tarde da noite, eu ouvia um programa transmitido pela
rádio local e que apresentava músicas eruditas. Os poemas eram dedicados a essa
moça e tinham como fonte de inspiração as músicas apresentadas nesse programa.
Eram poemas escritos com o coração. Parte desses poemas tornou-se um livro,
intitulado Música Secreta e publicado sob minhas expensas.
O – Confidencio aqui que gostaria muito de um dia filmar um
curta adaptado de algum trabalho seu ainda não publicado. Você costuma receber
esse tipo de proposta de jovens cineastas? Como é, para você, absorver o
impacto de seu trabalho nas vidas de seus admiradores? O Brasil é um terreno
inóspito, onde tudo parece jogar contra a cultura, mas, são guerreiros da
resistência como você, dispostos a seguir em frente, que enchem de esperança
esse que vos escreve. Qual conselho você daria hoje para um jovem que está
interessado em desbravar essa área, seja na literatura, ou no cinema?
L - Tenho recebido algumas propostas de pessoas interessadas em
filmar textos meus. Infelizmente, essas pessoas não levam avante essas
propostas. Elas têm boas intenções, mas falta-lhes recursos. Normalmente, ficam
aguardando editais do governo; e as respostas não vêm. Tudo porque nesses
editais os que são contemplados e que conseguem fazer a captação do dinheiro
são sempre os mesmos. Por isso, vejo uma dificuldade imensa para os iniciantes.
Fico mesmo penalizado, diante dessa situação.
Nosso cinema está à mingua e à deriva! Nunca foi tão difícil
filmar como agora! Porque não basta realizar o filme. Ele tem de ser exibido,
ele tem de chegar ao público. Não basta fazer filmes para serem exibidos em
festivais! Isso só acarreta mais despesas e não tem retorno.
Eu nunca imaginei que eu tinha tantos admiradores. Descobri
isso nesse último ano, quando fui obrigado a ter uma página no facebook. Fico
emocionado em ver que meus textos são apreciados por leitores de todo o
território brasileiro.
Concordo plenamente com suas palavras, quando afirma que o
Brasil é um terreno inóspito para a cultura.
Para os jovens sonhadores que, diante do computador,
estiverem lendo estas linhas, tenho a dizer que nunca devem esmorecer e devem
fazer de seu sonho a meta de suas vidas. Levem em consideração as seguintes
palavras da atriz Sharon Stone: “Minha vontade foi o que me fez famosa.
Não foi talento, nem meu charme. Aliás, vontade e inteligência fazem você ir a
qualquer lugar aonde queira ir. O importante é saber aonde você quer ir.”
No meu caso, eu queria ir a vários “lugares”. Tudo
começou quando eu tinha doze anos de idade. Numa manhã, minha professora do
Primário, dona Tomásia Bruni, perguntou à classe o que cada um desejava ser
quando crescesse. Recordo-me de que a maioria respondeu que queria ser
advogado, engenheiro, médico, dentista, professor, jogador de futebol... Eu fui
a única nota destoante naquela orquestra, ao dizer que desejava escrever para o
rádio, para o Cinema, para as histórias em quadrinhos e para as revistas
policiais – só deixei de citar os livros de bolso, porque desconhecia sua
existência; e também deixei de mencionar a televisão, pois ela ainda não havia
chegado ao Brasil. Enquanto alguns colegas riam da minha resposta, dona Tomásia
olhou-me através de seus óculos de aro de ouro e, com um leve sorriso de mofa,
disse-me: “Muito bem. Mas não é muita coisa tudo isso que você quer fazer?
Uma só delas já seria uma vitória!” Ao que respondi categoricamente: “Não,
professora! Quero fazer mesmo tudo isso! E sei que vou fazer!”
Essa arrogância, que não condizia com o meu modo de ser,
tinha uma justificativa. Alguns meses antes, um jornalzinho do bairro onde eu
residia havia publicado o meu conto “A Única Testemunha”. Isso enchia-me de
orgulho. Além disso, por mais de uma vez, escutara o veterano homem de rádio Octávio
Gabus Mendes citar, em seu programa, meu nome e elogiar uns dois ou três
argumentos que eu lhe havia enviado para – imaginem a minha pretensão – que ele
os radiofonizasse. Eram feitos que eu desfrutava sozinho, sem ter um único
familiar ou amigo com quem pudesse compartilhá-los. Em contrapartida, nunca
faltaram forças negativas que falavam: “Isso é impossível de ser
realizado num país como o nosso.” Entretanto, ao invés de me desanimar, essas
palavras serviam de incentivo para que eu perseguisse com maior tenacidade os
meus objetivos. E eu os alcancei! Um a um! E nesta ordem: histórias de Detetive
& Mistério (escrevi para todas as revistas do gênero, publicadas em nosso
país desde os anos 1940; e cheguei a criar e editar algumas dessas revistas), seriados
de rádio, scripts para a TV, livros de bolso, roteiros para histórias
em quadrinhos, roteiros para filmes... Tenho consciência de que, nestes mais de
setenta anos de atividade ininterrupta, consegui construir uma carreira sui
generis, uma carreira sem precedentes em nosso país. Mas sei que isso tem
criado um mal-estar em certos indivíduos, entre os quais estão aqueles que
diziam que eu estava almejando o impossível. E, como provei o contrário, eles
mudaram cinicamente seu discurso e, agora, acusam-me de “alienado”, por
estar exercendo “uma atividade estranha à nossa cultura”. A esses pobres
diabos, que nada conseguiram, respondo com a frase que eu mantinha sobre a
minha escrivaninha na Cedibra (antiga Editorial Bruguera): “A gente pode
comprar a lisonja, mas a inveja tem de ser conquistada.”
O – Sr. Lucchetti, obrigado pela entrevista. E, por gentileza,
deixe uma mensagem especial para meus leitores, apaixonados, como nós, pelo
horror na literatura e no cinema.
L - Devo agradecer a você, Octavio, por ter me dado esta
oportunidade de falar para os seus leitores. Você, eu e todos os apaixonados do
Fantástico bem sabemos que o Maravilhoso existe. E só podemos chegar ao
Maravilhoso por meio de nossos sonhos e pensamentos, e nunca por meio de nossos
pés.
Entrevista fantástica! "Viajamos" através da experiência e maestria do Sr.Lucchetti. Perguntas e respostas maravilhosas.
ResponderExcluir