O colega ator/roteirista/diretor Miguel Falabella, grande fã do musical, em uma entrevista exclusiva para o "Devo Tudo ao Cinema", aborda o impacto da obra em sua vida.
Entrevista com Miguel Falabella:
O - Você consegue recordar a experiência de ver o filme
pela primeira vez? Como foi? E nessa primeira sessão, quais aspectos do filme
te cativaram com mais intensidade?
M - Lembro-me perfeitamente de ir ao Cine Palácio, na
Cinelândia, levado por minha avó, com meus irmãos. O filme me causou forte
impacto pois, para além da cinematografia, enredo e canções, trazia um dado
muito especial: um elenco infantil que estabelecia uma imediata identificação
com a plateia mirim. Havia mesmo um menino da minha idade no elenco, de modo
que, de certa forma, o filme assinala a minha primeira vontade de fazer
"aquilo que eles faziam". Há igualmente uma frase que ouvi e que
repito até hoje. "A reverenda madre sempre diz: quando Deus fecha uma
porta, em algum lugar abre uma janela." Lembro também que saímos todos
cantarolando do cinema e fomos assim até à Ilha, numa alegria e despreocupação
que só quem viveu os anos sessenta pode avaliar.
O - Você já gostava do trabalho do diretor Robert Wise
quando viu o filme? Foi um projeto muito diferente de tudo o que ele havia
feito, mesmo sendo um musical (como "Amor, Sublime Amor", feito por
ele dois anos antes), a abordagem era totalmente diferente. Você, como diretor
teatral com experiência no gênero musical, considera que essa opção por
suavizar os elementos da peça original (apresentada pela primeira vez em 1959),
o que resultou em uma narrativa menos "teatral" que sua versão para
West Side Story, foi acertada?
M - Não conhecia o trabalho do Wise, só vim a conhecer
e a identifica-lo como diretor anos mais tarde. Acho que as propostas de West
Side Story e Noviça são completamente diferentes. A própria música conceitua
ambos os produtos de forma diferente. West Side Story tem música provocadora,
inovadora, mais consistente, já a Noviça segue a tradição da velha Broadway,
com canções que qualquer um é capaz de cantarolar após ouvi-las pela primeira
vez. Em termos de produto para o "mainstream" não poderia ter sido
uma decisão mais acertada, haja visto o êxito do filme internacionalmente. De
qualquer maneira, é um clássico e não se imagina mais a obra de outra forma. Eu
vi montagens em que a ascensão do nazismo e a vida no claustro eram olhados com
mais dureza e a coisa simplesmente não funcionava.
O - Você tem alguma história interessante/divertida que
envolva o filme em sua vida? Você costuma rever com frequência?
M - Não vejo o filme há muitos anos, mas acho que a minha
geração toda se imaginou correndo por aquela mítica Salzburg, cantando os
clássicos do filme. Eu ainda tive a sorte de ver a montagem teatral, no teatro
Carlos Gomes, com Norma Suely e Carlos Alberto fazendo o Capitão Von Trapp.
Canto até hoje aquelas versões: Flor da manhã enfeitada de orvalho/Uma chaleira
compondo o fogão/Um passarinho cantando no galho/Coisas que eu guardo no meu
coração! Eu me lembro do programa da peça, acredita? Fiquei impressionado pois
havia três elencos infantis. A Monique Lafond fazia a Louisa, se não me engano.
Djenane Machado e João Paulo Adour eram a filha mais velha e o
namorado-carteiro. Não me lembro quem fazia a baronesa. Era de São Paulo, Mas
tive uma alegria, pois certa vez escrevi uma crônica n'O Globo falando sobre
minha experiência com a peça e a Norma Suely, que ainda estava viva, me ligou
profundamente emocionada. Foi bonito.
O - Na época foi uma atitude arriscada apostar em
Christopher Plummer, um ator respeitado em papéis dramáticos, mas sem
experiência em musicais. Ele brinca até hoje dizendo que considera o filme
sentimental ao extremo, não era o ator que se pensaria como óbvio na época para
o personagem. Você considera que essa atuação, com o sucesso do projeto, acabou
conduzindo ao cenário que vemos hoje, onde não há mais esse equivocado rótulo,
com atores sem experiência em musicais se aventurando no gênero?
M - Ainda que ele não esteja totalmente à vontade no gênero,
Plummer tem um charme e um magnetismo muito fortes e seu Capitão Von Trapp
estabelece a autoridade sem a qual a história não caminharia. Era um homem
muito bonito e, como sua própria carreira demonstrou, um ator de recursos. Acho
que os atores têm uma área de conforto, todos nós temos - aquela região onde
você encontra suas raízes, sua respiração, etc. Mas é interessante aventurar-se
para além dos limites do conforto. O preconceito existe até hoje. Como diria
Hugh Jackman, quem acreditaria em um Wolverine que dança e sapateia? Eu
acreditaria, mas enfim, eu não sou todo mundo, é claro.
O - Julie Andrews quase não foi escalada para o papel. Ela
também foi vítima do rótulo, por ser atriz de teatro. O que a salvou foi que a
Disney mostrou pro diretor alguns rough cuts de "Mary Poppins", que
estava sendo filmado. Você consegue imaginar esse filme sem a presença dessa
talentosa atriz? Fique à vontade pra discorrer sobre os elementos que ela
trouxe para a personagem e que fizeram a diferença.
M - Julie Andrews é insubstituível no papel. Carisma, talento e
voz irretocáveis. É claro que não havia qualquer transgressão (e nem a obra
pedia) em seu trabalho. Ela atravessa o filme sem uma mácula, acho que ninguém
imagina uma transa entre Maria e o Capitão Von Trapp, afinal eles dançam
comportadamente nos jardins da mansão, etc e tal. Mas ela está soberba e faz
tudo aquilo com uma graça e leveza impressionantes. Nunca mais ninguém imaginou
Julie numa cena de sexo e olha que até os seios ela mostrou em S.O.B. Mas é
matadora como Maria, uma lenda do entretenimento e deixou o nome escrito nas
estrelas.
O - Minha cena favorita é a do festival ao final. A canção "Edelweiss" cantada pela família no contexto dramático da fuga da família. E, para você, qual a melhor cena do filme e a razão da escolha.
M - Minha cena favorita, entre tantas, é o balé dos
adolescentes na estufa, logo antes da tempestade, em "I Am
Sixteen...".
A Noviça Rebelde (The Sound of Music - 1965)
Como em todo bom filme, existem várias formas de se assistir
esse musical. Você pode ver pelo ponto de vista da jovem Maria (Julie Andrews),
acompanhando sua jornada de autoconhecimento. As fantasias
adolescentes que a faziam correr e buscar refúgio no topo da montanha, com sua
maturidade personificada pela personagem da Madre Superiora (Peggy Wood), que a
desafia a tomar as rédeas de sua vida. Visto por esse prisma, as músicas nascem
quase que naturalmente e expressam emoções impossíveis de serem contidas. A
alegria incomensurável de “The Sound of Music”, a inocente arrogância frente ao
perigo em “I Have Confidence” e o nascimento da paixão em “Something Good”.
Podemos assistir pelo ponto de vista do amargurado e sisudo
capitão Von Trapp (Christopher Plummer), que após o falecimento de sua esposa,
dedicou-se a uma vida de reclusão. Seus sete filhos são o reflexo perfeito de sua
criação distante e fria. Rebeldes e medrosos, sempre tentam afastar as pessoas
de suas vidas. Ao conhecerem a nova governanta, que os trata como iguais,
respeitam-na como uma amiga. O mesmo ocorre com o capitão, que pouco a pouco
percebe a luz que irradia afastando as sombras de sua mansão, sempre que Maria
está presente. Com a jovem noviça ele reaprende o amor pelo canto e faz por merecer a admiração dos
filhos. Por esse prisma, as canções se tornam protestos velados, pequenas
batalhas interiores, como na bela e patriótica canção “Edelweiss”, que em sua
primeira versão transforma o capitão amargurado no homem admirável que ele
escolheria ser a partir daquele momento. Já em sua versão interpretada no festival de música, torna-se um
grito de protesto contra os nazistas que tomavam o controle de seu amado país.
Numa linda analogia, próximo ao final da música, a voz embargada de Plummer
intenciona perder a força, somente para vermos a união da família que invade a
canção em coro, empolgando toda a plateia que responde em uníssono, com orgulho
e emoção renovados.
Um musical ingênuo, um drama poderoso, uma comédia deliciosa
e, acima de tudo, uma história de superação. A obra eterna do diretor Robert Wise irá continuar a
atrair públicos de todas as idades, não somente por sua excelência técnica ou pelas
atuações carismáticas de todo o elenco, mas pela enorme variedade de emoções contidas e envoltas nas mais
adoráveis canções da dupla Rodgers e Hammerstein.
Nenhum comentário:
Postar um comentário