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Mary Poppins (1964)
Aproveitei que meus afilhados estão passando férias em minha
casa para intermediar o primeiro contato deles com alguns filmes essenciais,
como “De Volta Para o Futuro” e “E.T. – O Extraterrestre”, com emocionantes
resultados. Senti então que havia chegado a hora de apresentar a eles o
primeiro musical live action que eu assisti, aos sete anos, praticamente na
mesma idade deles: “Mary Poppins”, dirigido por Robert Stevenson.
Eu lembro que, naquela época, sempre chorava muito no trecho
onde a Julie Andrews canta a canção favorita de Walt Disney: “Feed the Birds”, alimente
os pássaros. Esse trecho específico me provoca lágrimas até hoje: “ainda que
não possa vê-lo (os santos, o elemento divino), saiba que ele sorri sempre que
alguém demonstra se importar”. Quando penso na trama, analisando os
valores que ela me transmitiu, visualizo a nobre senhora sentada na escadaria
da igreja, dando de comer aos pássaros. A cena despertou uma linda discussão
após a sessão, exatamente como outrora: Crianças, quando estiverem caminhando e
virem essas pessoas alimentando os animais de rua, percebam que estão diante do
potencial humano que muitos de nós não utilizamos; façam amizade com elas, ajudem-nas
se possível; esses abnegados e valorosos seres são o mais próximo de um
conceito universal de “Deus” que eu já conheci. E como é lindo perceber a mesma
sensibilidade nos meus afilhados, inseridos em uma sociedade tão diferente, que
celebra uma completa inversão de valores. A trilha sonora composta pelos irmãos
Richard e Robert Sherman é a alma do projeto. “Sister Suffragette”, cantada por
Glynis Johns, diverte com seu teor feminista, ironicamente defendido por uma
esposa que é totalmente submissa ao marido. “A Spoonful of Sugar”, “Jolly Holiday”
e “Supercalifragilisticexpialidocious”, doces e empolgantes temas que sublinham
a importância dos valores ensinados por Mary.
Outro momento que suscitou discussão, a maneira como o
roteiro trabalhou visualmente a cena do Sr. Banks, vivido por David Tomlinson,
sendo despedido de seu emprego no banco. O evento fundamental que antecede a
modificação de conduta do personagem. Esse trecho me causava tremendo incômodo
naquela época, uma sensação que me fazia, por vezes, avançar o VHS, uma
tristeza profunda. E, na realidade, não há melodrama manipulador, como em
várias animações da empresa, a violência é mostrada de forma inteligentemente sutil,
porém, impactante. Qual a forma que os patrões encontram para humilharem o
empregado? Eles danificam os símbolos de seu conforto social, o chapéu, o
guarda-chuva, a flor na lapela, em suma, o status profissional que ele
considerava mais importante que qualquer coisa em sua vida. E, indo além no
simbolismo, perceba como, segundos antes do filho do dono do banco danificar o
guarda-chuva, um dos seus colegas deixa claro que, optando por aquilo, ele
estava indo longe demais no castigo. O mesmo objeto que Mary Poppins, uma
espécie de Palas Atena, utiliza para visitar os seres humanos e, após a missão
cumprida, retornar para sua realidade. O guarda-chuva que é conduzido ao sabor imprevisível
do vento, o leitmotiv que representa o tempo de atuação da protagonista, com a
afirmação de que ela só irá embora quando o vento mudar de direção, além de se
mostrar presente também, de forma óbvia, no desfecho, “Let’s Go Fly a Kite”, com
as pipas simbolizando a redenção do pai e dos banqueiros.
Um dos aspectos que me encantam nesse filme é o subtexto que
se revela em revisões, como a relação entre Mary, impecável Julie Andrews, e
Bert, vivido por Dick Van Dike. Quando criança, eu enxergava apenas um casal de
namorados, uma amizade muito forte. O que percebi mais tarde, analisando
pequenas dicas que o roteiro e as letras de algumas músicas davam, foi que
havia algo muito mais profundo em jogo. Vale destacar que é algo presente
apenas na adaptação cinematográfica. E, com essa relação em mente, a
experiência se tornou muito mais interessante. Bert foi uma das crianças que
Mary, que não envelhece, ajudou outrora. É um amor que nasce da intensa
gratidão do rapaz. Ele segue sobrevivendo, reconhecendo o valor de sua arte,
mas, na mesma medida, consciente de que a adaptação faz parte do jogo ingrato
da vida. E, o mais importante, ele mantém o sorriso no rosto, não importa a
gravidade do problema que enxerga no horizonte. O status social que o Mr. Banks
buscava é a perfeita antítese do que Bert adota em sua rotina, aceitando um
emprego como limpador de chaminés. Analisando a força desse confronto
ideológico, intensifica a beleza de sequências como a dos limpadores dançando
nos telhados. “Step in Time” não é uma tolice divertida, mas, sim, reforça na
mente das crianças a importância de nunca se buscar prioritariamente a zona de
conforto, correndo atrás de empregos socialmente tidos como mais respeitáveis,
apenas buscando maiores remunerações. A satisfação deve nascer de se realizar
com empenho aquilo que se ama, aquilo que faz os olhos brilharem.
O resultado da sessão: meus afilhados pedem pra rever o filme todos os dias, já estão até cantarolando as músicas. Missão cumprida.
O resultado da sessão: meus afilhados pedem pra rever o filme todos os dias, já estão até cantarolando as músicas. Missão cumprida.
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