Atirem no Pianista (Tirez Sur Le Pianiste – 1960)
A recepção da crítica da época foi morna com essa segunda
incursão de François Truffaut, o que, analisando o nível alto de qualidade da
obra, reflete o tremendo impacto de “Os Incompreendidos”, e, por conseguinte, a
expectativa que se formou sobre o passo seguinte de um jovem que prometia uma
revolução na linguagem cinematográfica. O que os intelectuais franceses não
compreenderam, foi que, ao contrário de Godard, mais interessado em
revolucionar a estética, quebrar as estruturas e começar do zero, o enfant
terrible não escondia sua paixão devotada ao cinema, com profundo respeito
pelos alicerces que o sustentavam.
A opção consciente de filmar uma adaptação de um livro de
David Goodis, um autor de romances policiais, trabalhado como uma carinhosa homenagem
ao gênero noir americano, uma de suas grandes influências, desagradou aqueles
que esperavam uma atitude cínica de desconstrução. Truffaut era um cineasta que
não pensava em satisfazer somente o próprio umbigo, ele fazia filmes para quem
amava essa arte tanto quanto ele. Coerente com as atitudes de sua
contraparte crítica, evitava se escravizar em um molde confortável e subjetivo
de anarquia, algo que, por exemplo, Godard sempre abraçou desesperadamente.
Antes de tudo, ele amava todas as vertentes do cinema. E, exatamente por isso,
suas obras sobreviveram tão bem ao teste do tempo, o que não se pode dizer de
grande parte dos seus colegas de Nouvelle Vague.
O que muitos não perceberam na época é que, por baixo da
camada narrativa aparentemente convencional, o diretor inseriu grandes tiradas
ousadas, sempre pendendo para a comédia. O desejo de desconstrução está lá,
porém, não da forma sisuda e fria de um Antonioni, ou um Bresson. Quando, em
uma breve cena, o personagem de Charles Aznavour, deitado na cama, cobre com o
lençol os seios da linda Michèle Mercier, dizendo que “no cinema é assim”,
Truffaut realiza uma crítica muito mais eficiente que filmes inteiros de seus
colegas mais mimados pelos intelectuais. Analise atentamente a maneira como ele
filma as cenas com os sequestradores, chegando a flertar deliciosamente até com
o humor pastelão, tirando toda a tensão que se espera delas, subvertendo
totalmente a expectativa do público.
Ele exercita esse jogo desde a primeira sequência, com o
personagem que corre pelas ruas, até se chocar com um poste, símbolo do acaso,
conduzindo a cena para algo totalmente inesperado. O roteiro corajosamente não
entrega o elemento da ação, identidade do romance policial, tampouco o
existencialismo típico dos personagens da Nouvelle Vague, requisito que o
diretor parecia prever que se tornaria uma zona de conforto, já que ninguém na
trama, especialmente o protagonista, parece se levar a sério. Ele pratica o
experimentalismo de forma adorável, sem soar chato e arrastado. Conseguimos
enxergar o crítico desafiador presente, por trás das câmeras, de mãos dadas com
o cinéfilo apaixonado, do início ao impressionante desfecho, que me remete ao
lirismo das melhores obras de D.W. Griffith.
* O filme está sendo lançado em DVD pela excelente distribuidora "Versátil", em parceria com a "Livraria Cultura", na caixa "A Arte de François Truffaut", que conta também com documentários, além de "A Noite Americana" e "De Repente, Num Domingo".
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