sexta-feira, 3 de outubro de 2014

"Batman - O Filme", de Tim Burton


Batman – O Filme (Batman – 1989)
Analisando no contexto de sua época, essa seria a primeira vez que o público iria pagar para assistir uma aventura do personagem após décadas em que ele esteve imerso na cultura do deboche, com a série protagonizada por Adam West marcada indelevelmente pela exótica cena do herói dançando num bailinho riponga. Nos quadrinhos, a mudança de atitude já havia ocorrido três anos antes, com a obra-prima “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, inspirada na trama de “Impacto Fulminante”, único filme de Dirty Harry dirigido por Clint Eastwood. E, para combinar com essa radical mudança de atitude, os produtores demonstraram coragem ao selecionar o jovem Tim Burton para a tarefa de comandar essa lúdica ressurreição. Um realizador cujo currículo se resumia a curtas-metragens melancolicamente góticos e comédias com protagonistas absurdamente histriônicos.

Foram vários os fatores que ajudaram no sucesso, como a fantástica trilha sonora de Danny Elfman e o impecável trabalho de marketing em seu lançamento, mas o grande mérito no sucesso desse projeto é do roteiro escrito por Sam Hamm, que pegou um rascunho equivocado onde a origem do personagem era recontada sem personalidade, tendo como molde a fórmula para o clássico “Superman”, jogou fora e começou do zero uma narrativa calcada em flashbacks. Mas nada disso seria possível sem a contribuição de um apaixonado pela Nona Arte, Michael Uslan, que, em 1971, havia convencido a Universidade de Indiana a deixá-lo ensinar no primeiro curso focado em revistas em quadrinhos. Seu amor era tamanho, que ele comprou os direitos para uma adaptação cinematográfica no final daquela década, com a promessa de que iria ser o responsável pela tradução mais fiel, sombria, o olhar definitivo sobre o homem-morcego. O projeto acabaria no colo dos executivos da Warner.


O mais incrível ocorreu quando o mundo descobriu que um comediante baixinho, Michael Keaton, que, no máximo, seria imaginado pelos fãs como coadjuvante, capanga do vilão, tinha sido escolhido para viver Bruce Wayne. E, por mais que hoje em dia a mídia tente comparar a recepção negativa dele com a de Ben Affleck, não há forma lúcida de comparar essas duas rejeições. Affleck é um ator mediano, mas é muito respeitado como diretor e representa dinheiro certo na bilheteria, enquanto Keaton simplesmente não era respeitado, sequer conhecido, pela grande maioria dos fãs na época. E o estúdio precisava desesperadamente que essa garotada abrisse a carteira nas primeiras semanas de exibição. São dois casos muito diferentes.

A ideia do diretor era arriscada, mas fazia sentido, já que o vigilante mascarado deixava de ser o fruto de um intenso treinamento, para ser a projeção psicológica dos impulsos primitivos de um homem de meia-idade franzino, incapaz de meter medo em qualquer pessoa. Essa projeção fica clara, em seu viés sexual, nos encontros com Vicki Vale, vivida pela estonteante Kim Basinger. A câmera parece gostar de salientar o fato de que aquela deusa da beleza nunca iria prestar atenção nele, caso não enxergasse inconscientemente aquele impulso. Não é coincidência o fato de que o ator que vive Alexander Knox, Robert Wuhl, constantemente flertando com ela, seja fisicamente muito parecido com Keaton. Knox é tratado exatamente como Wayne seria, caso ele não fosse internamente motivado por aquele impulso. Ela percebe no milionário, muito antes de suspeitar de sua identidade secreta, aquele brilho no olhar de quem, ainda que grandioso, se permite minimizar, desaparecer na multidão.

O Coringa, vivido brilhantemente por Jack Nicholson, como símbolo do caos, não somente externo, desorientando os cidadãos de Gotham ao fazê-los enxergar sua ganância, mas também interno, tendo sido o catalisador da ruptura emocional no garoto que outrora assistiu os pais sendo assassinados por ele. A decisão de modificar o arco narrativo do personagem foi eficiente no sentido de, inserindo ele no trauma do herói, possibilitar uma complexidade maior no conflito entre os dois. Quando Batman, a projeção do superego de Wayne, esmurra o rosto do palhaço, podemos enxergar aquele menino levantar da poça de sangue e investir com toda sua raiva no pistoleiro. Ele tem a chance de finalmente revidar, obliterando para sempre aquela sensação terrível de impunidade que o motivou até aquele momento, quiçá sagrado, não por coincidência, ambientado em uma catedral. 

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