quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Make 'Em Laugh - "Esse Mundo é dos Loucos"

Link para os textos do especial:


Esse Mundo é dos Loucos (Le Roi de Coeur - 1966)
A trama dessa charmosa fábula antimilitarista parte de um conceito simples, instigando uma profunda reflexão que, a despeito da estética compreensivelmente datada, ainda ressoa implacavelmente atual. Durante a Primeira Guerra, o soldado Charles Plumpick, vivido por Alan Bates, um especialista em ornitologia, é enviado por engano a um vilarejo na França para desativar uma bomba deixada pelos alemães. Ao chegar, ele percebe que os moradores do local foram embora e que a cidade foi tomada pelos pacientes de um hospício.

O dedo do diretor Philippe de Broca, que aparece em uma breve e hilária ponta como o soldado Adolf Hitler, estava obviamente apontado para os horrores da Guerra do Vietnã, mas o discurso proposto era mais abrangente. A ideia, trabalhada por Maurice Bessy e Daniel Boulanger, nasceu de uma notícia sobre o assassinato de cinquenta doentes mentais franceses por soldados alemães, em uma invasão a um hospital durante a Primeira Guerra. Eles tinham se vestido com o uniforme de soldados americanos mortos e foram andando pelo campo, quando os alemães os fuzilaram por engano.

Os loucos de Broca, essencialmente sonhadores que se recusam a sentir medo, possuem uma compreensão mais profunda da vida, preferindo nobremente apreciar o momento em sua redoma de criatividade, enquanto aqueles considerados sãos, presos aos seus estúpidos rituais militares, estão dispostos a desperdiçarem futilmente suas vidas, acatando ordens que sequer entendem. É linda a cena que mostra os pacientes recuando ao alcançarem o portão principal, com a trilha sonora festiva de Georges Delerue dando lugar ao sepulcral silêncio, enquanto acenam melancolicamente para seu rei de copas, que parecia decidido a retornar ao mundo real. O personagem escuta ao longe o som das máquinas da guerra, sentindo internamente o conflito entre a genuína alegria e o companheirismo que havia sentido no reino dos loucos e os ilusórios conceitos de virtude e grandeza que o aguardavam do lado de fora. Contraste que é visualmente impactante graças à fotografia de Pierre Lhomme, que trabalha de forma propositalmente caricatural o uso de cores vibrantes contra a paleta sóbria e pastel que emoldura os militares.

* O filme, até então inédito em nosso mercado, está sendo lançado pela distribuidora Versátil. 

"Os Mercenários 3", de Patrick Hughes


Os Mercenários 3 (The Expendables 3 - 2014)
A computação gráfica é fraca, sim, faz parecer por vezes que estamos assistindo um filme de ação da década de noventa. É óbvia a utilização de tela verde nas cenas em que os personagens interagem dentro de automóveis. Mas essa não seria exatamente parte da proposta nostálgica do projeto, cujo público alvo principal é o adulto que cresceu assistindo esse entretenimento americano simbólico da era Reagan na década de oitenta e noventa? O que importa é se o resultado diverte e se consegue se conectar emocionalmente com aquela criança interna que brincava com a bandana vermelha do Rambo na cabeça. Criticar possíveis falhas num roteiro que é estruturado como uma celebração das mesmas cometidas outrora, não apenas é uma estratégia equivocada, como também uma declaração pública de insuportável chatice. Queremos uma overdose de frases de efeito, metralhadoras disparadas apoiadas na cintura, demonstrações de camaradagem estapafúrdias, clichês desgastados, momentos melodramáticos que são resolvidos com a aproximação da câmera em olhares de ódio que prometem vingança, tudo isso faz parte da tremenda brincadeira. E é isso que Stallone entrega ao público, pela terceira vez, com a mesma competência. 

Analisando friamente o conjunto da obra, esse pode ser até o resultado mais recompensador da franquia, graças ao vilão vivido por Mel Gibson, o primeiro que realmente vende bem o conceito da ameaça. Eric Roberts e Van Damme eram canastrões interpretando caricaturas, mas Gibson é um excelente ator, outro nível. Até mesmo as limitações da classificação etária contribuíram para que o humor, elemento de grande importância no subgênero, soasse mais fluido, retirando um pouco os excessos típicos de grindhouse dos anteriores e assemelhando-se mais com a violência das revistas em quadrinhos. Não eram as mortes sangrentas que nos atraíam naqueles filmes, mas sim a personalidade daqueles que as cometiam. As referências visuais continuam eficientes e, felizmente, nada sutis, sobrando até para “Risco Total”, de Renny Harlin. Mas o que considero genial nessa proposta de resgate é a forma como Stallone sabe inserir o contexto real no seu universo fantasioso, interagindo assim diretamente com o público alvo, como quando colocou Chuck Norris para brincar com sua própria persona no anterior. 

A indústria pode ter virado as costas para Gibson, mas Sly corajosamente bate de frente e coloca-o em destaque como um frio e cruel traidor amargurado. Antonio Banderas fez sucesso recente em uma animação, então sua introdução é digna de um personagem de desenho animado, um alívio cômico que funciona muito bem. Wesley Snipes foi manchete durante anos nas páginas policiais e acabou de sair da prisão, nada mais coerente que apresentá-lo sendo libertado de uma, fazendo disso o espetáculo que inicia o filme. E como inserir Harrison Ford no projeto sem, mesmo que em um breve momento, fazer com que ele reviva Han Solo, antes de seu retorno oficial no próximo “Star Wars”? São esses detalhes que tornam a experiência saborosa, fazendo com que os defeitos não pesem tanto na balança. Jet Li incompreensivelmente não diz a que veio, a equipe jovem tem pouco carisma e é utilizada descaradamente apenas como artifício narrativo, mas, fora isso, eu não tenho do que reclamar. O filme é como o reencontro de uma turma escolar que marcou sua vida, uma festa despretensiosa na qual somos convidados a esquecer as mazelas do mundo real e, por duas horas, entrarmos novamente em contato com a criança interna que se camuflava com tinta guache nas brincadeiras de guerra com os vizinhos. 

"Guardiões da Galáxia", de James Gunn


Guardiões da Galáxia (Guardians of The Galaxy - 2014)
Eu assumo que não conhecia essa equipe antes do anúncio de que a Marvel a utilizaria no seu ambicioso projeto cinematográfico. E é exatamente a constatação de sua aparente irrelevância e desprestígio que funciona como metalinguagem no roteiro, que utiliza livremente como base o ótimo arco atual escrito por Brian Michael Bendis, que devorei em preparação para o filme. O interessante é constatar que tinha tudo para dar muito errado, um material que caberia perfeitamente nas debochadas páginas dos livros de Douglas Adams, mas que resultou em um produto que se conecta emocionalmente com o público, elemento que era o tendão de Aquiles das produções do estúdio, satisfazendo todos os requisitos de um industrial blockbuster infanto-juvenil. 

O segredo do roteiro está na assimilação das melhores qualidades dos filmes de Indiana Jones e Guerra nas Estrelas, com uma pegada espertamente despretensiosa de um diretor que nasceu no berço dos projetos do estúdio Troma. Um senso de camaradagem entre personagens que não se levam a sério, que constantemente piscam para o público, como que o convidando a entrar na brincadeira. Como não se identificar com o herói que, acreditando estar sozinho em um planeta distante, aproveita para dançar e cantar, segurando em um pequeno animal como microfone improvisado, ao som de canções retrô da década de setenta em um toca-fitas portátil? É a aceitação do absurdo pela diversão que ele oferece. Quando o roteiro nos desarma, faz com que deixemos o raciocínio adulto de lado, abraçando com saudade o escapismo que empolgava nossa criança interior. É impressionante como o filme consegue tornar relevante um personagem como o Groot (Diesel), que só pode se comunicar utilizando três palavras, entregando corajosamente a ele o peso da cena mais tocante. Já Rocket (Cooper), o diminuto guaxinim falante, pode ser considerado um milagre. Os diálogos espirituosos conseguiram fazer dele um elemento mais interessante que muitos dos humanos presentes. Em nenhum momento meu cérebro desativou a suspensão de descrença, algo que sinceramente achava que ocorreria logo no primeiro ato. Até mesmo o típico brutamonte, representado por Drax (Bautista), consegue surpreender por seu timing de humor. Somos conduzidos conscientemente por uma fórmula consagrada, mas realizada com esmero e ternura. 

Ao se conectar com seu passado através de um objeto tão frágil como um toca-fitas, Quill (Pratt) nos evidencia que sua anarquia é uma resposta imatura para os obstáculos da vida adulta. A lembrança triste da morte de sua infância, com seu desapegar forçado da mãe, não pode ser empecilho para a aceitação de sua missão ao lado de seus novos amigos. Somente quando ele abraça essa constatação, optando por verter a lágrima ao invés de retê-la, o jovem se mostra preparado para singrar o espaço sideral, como Luke Skywalker ao aceitar deixar seu conforto para acompanhar Ben Kenobi. É o clássico conto de amadurecimento que se repete a cada geração. Algumas cenas de “Os Vingadores” e de “Capitão América 2”, os melhores até então, podem ter ficado guardadas com carinho na memória, mas “Guardiões da Galáxia” é o único filme da Marvel que eu genuinamente tenho vontade de assistir novamente pelo todo que ele representa. Os desajustados heróis desconhecidos acabaram eclipsando os medalhões da empresa, garantindo meu interesse em revê-los em próximas aventuras. E, caso ocorresse, como é usual nos quadrinhos, um crossover entre as duas equipes, já sei para quem eu torceria... 

"Amantes Eternos", de Jim Jarmusch


Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive - 2013)
Chega a ser divertido imaginar a reação da garotada que for procurar esse filme acreditando ser mais um na linha de produção industrial sobre vampiros, aliás, uma palavra que não é citada sequer uma vez. Como o roteiro deixa transparecer em suas ricas referências literárias, estamos conhecendo os desiludidos pontos de vista de dois seres evoluídos sobre a mediocridade da sociedade contemporânea, formada por verdadeiros zumbis que, a despeito de seus brinquedos eletrônicos ultramodernos, continuam estúpidos nas questões que realmente importam, considerando mais importante em seu cotidiano as desventuras de personagens midiáticos medíocres que os impressionantes avanços da ciência. 

A ideia de iniciar o filme com um vinil sendo operado em um antigo toca-discos salienta o desejo inconsciente de Adam (Hiddleston), que remete visualmente e ideologicamente ao protagonista Sonho de Sandman, pelo resgate emocional de uma época menos fútil, mais romântica. Como o Stephen Dedalus do escritor James Joyce, nome adotado em uma viagem de avião, ele é um solitário extremamente culto que aprecia a boa música, em busca eterna por entender a complexidade de sua existência. Como ele afirma debochadamente, coerentemente emoldurado por seu ambiente vintage, esses mortos-vivos ainda implicam com Darwin, assim como os antepassados deles rejeitaram e demonizaram Copérnico, Galileu e Newton. Só as roupas e os cortes de cabelo mudaram.

Aqueles zumbis que poluem o mundo exterior à luz do dia continuam apegados a crenças religiosas que os colocam em guerra, fazendo-os odiarem outrem por motivos tolos, poluindo também o próprio organismo, infectando o sangue com estilos de vida desregrados. Esse elemento precioso degustado pelo casal noturno que parece nunca pentear os cabelos, como se brindassem à triste e irremediável extinção desses terráqueos incompetentes, zumbis imediatistas que sequer valorizam os esforços daqueles que ousaram confrontar o conformismo. As “pessoas da sala de jantar”, como dizia a música dos Mutantes, que se preocupam apenas com a aparência/imagem, sendo analisados por um casal de amantes, “Adão e Eva”, que testemunharam várias páginas da História humana, atravessando séculos e culturas diferentes, surpresos com a constatação do quanto nós involuímos. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sétima Arte em Cenas - "Vidas Secas"

Link para os textos do especial:


Vidas Secas (1963)
A esperteza da fotografia de Luiz Carlos Barreto, com lente nua, sem filtros, deixando a luz estourar, esmagando os personagens no terreno escaldante. O angustiante ranger das rodas do carro de boi é a ensurdecedora trilha sonora, colocando o espectador num estado alterado, desconfortável, imediatamente imerso na realidade desesperadora da família de retirantes sertanejos. Numa adaptação fiel à obra de Graciliano Ramos, o diretor Nelson Pereira dos Santos consegue reter o essencial e transcender de forma poética a mensagem das páginas, como na bela sequência onde o filho mais velho questiona os pais sobre o significado da palavra “inferno”. A mãe, Sinhá Vitória, vivida por Maria Ribeiro, responde ríspido como quem tenta afugentar a dor, dizendo que é um lugar ruim demais, antes de agredir o filho. O que poderia ser pior do que a realidade que o menino já enfrentava de sol a sol? Ele então, com uma maturidade adquirida precocemente, passa a identificar com tristeza o inferno na paisagem que o rodeia.

O pai, Fabiano, vivido por Átila Iório, tenta continuar vivo naquele ciclo sem fim de desolação, consciente de que nunca irá estabelecer moradia pelo tempo suficiente de se acostumar com o conforto que a sombra oferece ao seu corpo castigado. Mas ele precisa iludir diariamente para sua mulher, induzindo ela a crer por um prazeroso momento que eles só precisam andar mais um pouco, que em breve o infinito horizonte trará algo mais que oportunidades de injusta exploração de sua mão de obra; ele precisa também se forçar a acreditar que será reconhecido como um indivíduo, ele precisa acreditar que não é um bicho. Sua mulher, motivada pela fome, não pensa duas vezes antes de comer o papagaio que era de estimação. Há apenas o impulso primitivo animal.

Já sua cadela Baleia, como fica claro no livro, representa o elemento humano, recusando-se a tombar mesmo após receber o tiro de misericórdia. A poderosa cena que emociona nas duas mídias pode ser tida como a mais simbólica. O personagem cujo nome traduz a esperança daqueles que sobrevivem na seca, uma baleia em busca da água como o sertanejo que busca o conforto da cidade, ambos tentando escapar da metafórica mira do fuzil. As patas que outrora se esforçavam para garantir o alimento de seus entes queridos, agora não conseguem mais suportar o peso do macilento corpo. Enquanto o menino aprende o que é o inferno, a cadela é a única na família que é presenteada com um vislumbre do paraíso, segundos antes de cerrar para sempre seus olhos cansados, admirando um grupo de preás que parecem convidá-la ao jogo da caça. O convite para se manter vivo, apesar de tudo.

sábado, 25 de outubro de 2014

"Amor Bandido", de Jeff Nichols


Amor Bandido (Mud - 2012)
Existe algo de Mark Twain e Charles Dickens nesse conto sobre maturidade, envolvendo dois adolescentes, vividos por Tye Sheridan e Jacob Lofland, e um misterioso fugitivo da justiça (Matthew McConaughey). Na direção, Jeff Nichols, de “O Abrigo”, mantém sua característica autoral de utilizar generosamente os elementos da natureza como simbolismo para reforçar sua mensagem, que é potencializada pela excelente fotografia de Adam Stone, que captura a beleza turva do Mississippi. 

Quando Ellis, Sheridan, em mais uma atuação impecável, decide se aventurar numa ilha com seu amigo, ele busca negar a triste realidade de um relacionamento familiar destruído, procurando abafar o barulho das discussões dos pais na promessa de um novo mundo a ser desbravado. Ao perceber que aquele mundo não estava deserto, enfrenta o forasteiro com a bravura típica de um organismo ainda não tocado pela corrupção humana. O estranho acaba se tornando uma espécie de “Shane”, de “Os Brutos Também Amam”, herói idealizado que acaba se provando falível. O homem conta que as motivações de suas ações eram passionais, uma bela jovem, vivida por Reese Witherspoon, que ele declara ser seu verdadeiro amor, que aguarda seu retorno numa cidade próxima. O roteiro escrito por Nichols trabalha o senso de cavalheirismo ingênuo, assim como a eventual perda da inocência, que essa missão desperta nos garotos, especialmente o fator compensatório em Ellis, que anseia ver o casal apaixonado reunido, já que sabe não ser possível encontrar esse sentimento em casa.

Dizer muito mais sobre a trama é um desserviço a essa intelectualmente instigante, algo cada vez mais raro na indústria americana, experiência cinematográfica. Com uma duração desnecessariamente longa e falhas perceptíveis na construção de diálogos, ponto fraco do diretor, mas compensando plenamente na eloquência com que estabelece suas imagens, belas analogias que são favorecidas em uma revisão, e no trabalho impecável do elenco, o filme prova a competência de um autor que, em seu terceiro projeto, demonstra a segurança típica dos grandes mestres nessa Arte.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

"Capitão Phillips", de Paul Greengrass


Capitão Phillips (Captain Phillips - 2013)
O filme de Paul Greengrass, que utiliza com excelência suas origens como documentarista, é baseado nos eventos que ocorreram em 2009, envolvendo o audacioso ataque pirata de somalis a um cargueiro americano e retratando a bravura de seu capitão em seu posicionamento no sequestro. Tom Hanks (Richard Phillips), pela primeira vez em muito tempo, defende um personagem fora de qualquer arquétipo e que, devido à força e verissimilitude do roteiro, possibilita com que ele explore diversas camadas de interpretação. 

Como a crescente tensão é trabalhada evitando artifícios usuais sentimentalistas, podemos nos focar exclusivamente nas emoções humanas que são despertadas em situações de perigo, como a compaixão. Não somos manipulados, mediante uma dramatização exagerada, mas sim convidados a testemunhar o heroísmo que nasce nos momentos breves em que a humanidade é colocada à prova. Sem fórmula industrial, somos apresentados a dois personagens tridimensionais com generoso tempo de cena, suficiente para que seus conflitos atinjam níveis de reflexão impossíveis em patrióticos projetos similares. Muse, excelente atuação natural de Barkhad Abdi, o líder dos piratas, compartilha dos mesmos medos e crenças que o estranho cuja cabeça está sendo pressionada pelo cano de seu revólver. Ele e seus comandados não são caricatos terroristas, mas homens simplórios que vivem em condições sub-humanas, porém capazes de admirar a valentia de seus reféns.  

Como a força sobre-humana que faz uma mãe levantar um carro com as mãos para salvar um filho, assistimos angustiados um homem comum, inicialmente não muito simpático, caminhando sob o fogo, consciente de que as cicatrizes das queimaduras nunca abandonarão seu corpo. A catarse que sua atuação provoca em certas cenas, algumas infelizmente prejudicadas por um desnecessário “overacting” do diretor, compensa pelo tédio dos primeiros 15 minutos, que obedece a cartilha básica do suspense confortável, com diálogos truncados, tentando abraçar todas as motivações de personagens subutilizados com frases de efeito, e subtramas que nunca são plenamente aproveitadas. Mas no exato instante em que o cargueiro inicia sua viagem, a cartilha é atirada ao mar e o timão está nas mãos competentes de Greengrass, conduzindo a câmera dinâmica de Barry Ackroyd (de “Guerra ao Terror”), que captura com perfeição a sensação claustrofóbica vivida pelos tripulantes. Entregando um thriller eficiente, com arcos narrativos complexos e 15 minutos finais extremamente empolgantes, “Capitão Phillips” é um dos melhores filmes em seu gênero nos últimos anos.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Nos Embalos do Rei do Rock - Entrevista com Ginger Alden / Introdução


A bela Ginger Alden, que estava noiva de Elvis Presley no ano da morte do eterno Rei do Rock, está lançando o livro de memórias “Elvis and Ginger”, onde conta com riqueza de detalhes sua história ao lado do músico. Ela esteve com ele durante sua fase mais complicada de saúde, enquanto outros viraram as costas. Com extrema gentileza, ela concordou em responder algumas perguntas minhas sobre um aspecto pouco abordado: o amor que ele sentia pelo cinema. E, num gesto de extremo carinho, elogiou minhas gravações cantando o repertório de Elvis e repetiu o gesto de Laura Truffaut (http://www.devotudoaocinema.com.br/2014/09/entrevista-com-laura-truffaut.html), fazendo questão de me enviar essa foto abaixo. Thanks, Ginger!



O – Durante o tempo em que viveu com Elvis, você se recorda de conversas sobre o período em que ele se dedicou ao cinema? Ele nutria carinho nostálgico por sua carreira como ator?

G - Elvis não comentava muito comigo sobre sua carreira no cinema. Nas vezes em que falava, sempre reforçava, como em uma tarde, que ele se sentia frustrado por ambicionar mais papéis sérios. Quando estávamos assistindo televisão e, eventualmente, um dos seus filmes estivesse sendo transmitido, ficávamos vendo um pouco. Ele então trocava de canal, virando pra mim e dizendo: “O mesmo roteiro, apenas locações diferentes”.

O – Quais eram os filmes favoritos de Elvis no período em que viveram juntos? Ele costumava assistir filmes em casa?

G - Ele era apaixonado por cinema e amava uma boa comédia, era seu gênero favorito. Nós assistíamos Monty Python, os filmes da “Pantera Cor-de-Rosa”, mas ele também gostava demais das aventuras de James Bond. Alguns nós assistíamos em casa, outros nas salas de cinema. Ele adorava especialmente Peter Sellers, ao ponto de ficar imitando ele, como o Inspetor Clouseau, em casa.

O – Elvis tinha alguma trilha sonora de cinema favorita que costumava escutar em casa?

G - Eu não me recordo de alguma trilha sonora específica que ele escutasse em casa, mas ele sempre deixava o rádio ligado, costumava dizer que: “Música é a linguagem universal”.

O – Elvis era um cinéfilo, costumava fechar salas de cinema nas madrugadas para poder assistir aos filmes. Você tem alguma história curiosa, interessante, sobre essa paixão dele pelo cinema?

G - Ele alugava com frequência toda uma sala de cinema durante a madrugada. Ninguém se sentava em nenhuma poltrona em sua frente ou atrás. E, quando ele estava pronto pra assistir, ele só olhava para trás de seu ombro, gritando diretamente para o projecionista: “Roll em!” (algo como “pode rodar!”).

O – Dentre os filmes que ele protagonizou, qual é seu favorito? E, no cinema em geral, quais filmes/diretores você mais gosta?

G - Eu ainda preciso ver todos os filmes dele, mas quando criança eu lembro que adorava “Feitiço Havaiano” e “Amor a Toda Velocidade”. Gosto bastante de “Balada Sangrenta”. Os filmes dele fazem você se sentir bem, já que são muito divertidos, “pra cima”. Você acaba se surpreendendo, ao final, caminhando pela casa e cantando as canções. Eu gosto muito de cinema, mas como sou sulista, meu preferido sempre foi “E o Vento Levou”, dentre muitos outros.

O - Por favor, indique seu livro para os leitores brasileiros, que, como eu, são fãs do legado artístico de Elvis. E, por gentileza, deixe uma mensagem para os meus leitores.

G - O meu livro foi uma jornada muito emocional e espero que os fãs de Elvis o terminem com uma melhor compreensão dos últimos meses dele, do amor que sentíamos um pelo outro. Quero te agradecer pelo carinho e, para todos os seus leitores, fiquem bem, divirtam-se com o cinema e “Roll em!”.

***
Elvis amava o cinema e sonhava em se tornar um ator, como seu ídolo James Dean, cujas falas no clássico “Juventude Transviada” ele sabia memorizadas, depois de assistir inúmeras vezes. Assim que conseguiu se destacar no mundo da música, ele já sinalizou ao seu empresário, o mítico Coronel Parker, o interesse em adentrar o universo de Hollywood. Ele atuou em trinta e um filmes, num curto período de treze anos, conseguindo manter um incrível sucesso nas bilheterias, carregando sozinho nos ombros todas as produções. É comum se acreditar que foi uma década desperdiçada pelo astro, mas poucos estudam esse fenômeno com atenção. Seus filmes salvaram estúdios, proporcionaram a verba necessária para que clássicos hoje reverenciados recebessem luz verde. Os roteiros eram, em sua maioria, simples, mas continuam eficientes em seu propósito. Muitas das canções compostas para esses projetos são pérolas injustamente pouco valorizadas. Elvis contracenou com vários nomes importantes do cinema, como Barbara Stanwyck e até o inesquecível “Garoto” da obra-prima de Charles Chaplin: Jackie Coogan. Ele era um profissional amado e respeitado por todos aqueles com quem trabalhou, recebendo elogios por sua atuação até do diretor de “Casablanca”: Michael Curtiz. É fácil se unir ao coro do senso comum e afirmar que Elvis era um péssimo ator que fazia péssimos filmes... Mas a realidade é bem diferente, como irão descobrir nesse especial.

A Seguir: “Ama-me com Ternura”

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Cine Samurai - "Harakiri"

Link para os textos do especial:


Harakiri (Seppuku – 1962)
O elemento que me emociona nessa história, que considero a mais bonita dentre todos os filmes do gênero, reside essencialmente em ser a antítese do que se espera encontrar num chambara tradicional, sendo na realidade uma obra anti-samurai, com uma crítica poderosa, envolta em simbologia, ao vazio que existe também no Bushido, o código samurai, o que se esconde por baixo do verniz de grandeza, um embate entre a forma e a substância de uma filosofia. A refilmagem de Takashi Miike é bastante fiel ao superior original de Masaki Kobayashi, conduzindo com dinamismo o conto trágico de vingança roteirizado por Shinobu Hashimoto, a partir do conto de Yasuhiko Takiguchi, para um público muito menos paciente. Kobayashi vinha de vários projetos ambientados no Japão contemporâneo, abordando inclusive a Segunda Guerra Mundial, o que faz essa sua primeira incursão no jidai-geki, os filmes de época, ainda mais corajosa, optando por um tema espinhoso.

A armadura que permanece no altar como símbolo da honra dos ancestrais e da estabilidade de sua instituição, todos os rituais de teatralidade, um conjunto de dogmas que banalizam a filosofia, que míngua nos escombros dos templos do ego, símbolo maior da busca pelo poder, o respeito que é conquistado pelo medo, formando guerreiros padronizados que não reconhecem um homem genuinamente honrado, mesmo quando ele se encontra a poucos metros de distância, sangrando o solo sagrado com sua bravura líquida. O perigo que ocorre quando os dogmas de uma instituição se tornam mais importantes que a humanidade dos indivíduos que são o alicerce da instituição.

Aqueles homens esperavam humilhar severamente o visitante, eles nunca imaginariam que o desesperado rapaz iria cometer o seppuku com sua espada de bambu, um ato extremo que apenas os deixou ainda mais revoltados, por reconhecerem naquele jovem uma força de espírito que eles sequer sonhavam um dia conquistar. O samurai acredita que falhou como ser humano, já que vendeu sua espada, o símbolo máximo de sua honra, então o filme capta perfeitamente a agonia do rapaz que se mantém consciente o tempo todo, enquanto atravessa lentamente sua barriga com o bambu, de que está se despedindo do mundo da forma menos honrada possível. E é exatamente esse conceito de honra que o roteiro critica; um conceito que, para ser preservado, fazia uso de práticas desonrosas. Um valor contraditório que é cristalizado em imagens, não em atitudes. O casal apaixonado, diferente do que a sociedade com resquícios feudais ditava na época, não se une por conveniência, mostrando que o amor é mais forte que a honra.

O personagem que representa a figura paterna, vivido de forma espetacular no original por Tatsuya Nakadai, não toma a atitude necessária a tempo de ajudar sua família; ele, mesmo na miséria, ainda se apega demais ao conceito cristalizado de honra, sendo incapaz de vender suas espadas para pagar os tratamentos médicos de sua filha e de seu neto. Ele irá se arrepender disso. O ato de desespero do jovem, tentando blefar um desejo pelo suicídio, na tentativa de conseguir por piedade o valor exato que precisa para tentar curar sua esposa e filho, nasce após seu maior gesto de abnegação, quando vende suas espadas, sua alma. Ele, ao adentrar no solo sagrado de seus algozes, já não existe mais como homem aos olhos de sua sociedade, mas é inconscientemente movido apenas por sua honra. Uma nobreza que não necessita de símbolos, templos ou ídolos; figuras de autoridade ilusória, como a armadura, que a câmera de Yoshio Miyajima capta alegoricamente em meio à bruma logo nos primeiros momentos, realçando ainda mais seu aspecto mítico, irreal. 

* A distribuidora Versátil está lançando o filme numa versão recentemente restaurada, com a refilmagem moderna de Takashi Miike, em DVD e Blu-ray, com quase uma hora de valiosos extras. 

Razzle Dazzle - "Louca por Música"

Link para os textos do especial:


Louca por Música (Mad About Music – 1938)
Gloria (Deanna Durbin) é a filha de Gwen Taylor (Gail Patrick), uma conhecida atriz de Hollywood que a enviou para um colégio interno na Suíça. As colegas de sua escola ficam impressionadas quando ela começa a contar cada vez mais sobre as aventuras itinerantes de seu pai milionário. No entanto, na realidade, a menina não tem pai, e depois de algum tempo, as amigas tornam-se céticas e exigem algum tipo de evidência física de que ele existe. Quando Gloria conhece Richard (Herbert Marshall), um compositor britânico, ela pergunta se ele não se importaria de passar por seu pai para que seus amigos pudessem conhecê-lo.

Um dos mais adoráveis veículos para a encantadora canadense Deanna Durbin, a pequena que foi a estrela favorita de Winston Churchill e chegou a salvar os estúdios Universal da falência. Então se você hoje é fã de “De Volta Para o Futuro”, “Tubarão” e tantos outros novos clássicos, agradeça ao carisma da menina. E pensar que um acaso do destino também acabou favorecendo Judy Garland, já que as duas estavam disputando a atenção da MGM. Após um teste, um curta protagonizado pelas duas, o chefão mandou que se livrassem da “gordinha”. Ele se referia à Garland, mas, por um tolo engano, quem saiu foi Durbin, deixando o caminho livre para a mãe de Liza Minnelli.

Ela carregava os roteiros nos ombros, com uma das mais belas vozes da indústria e uma capacidade incomum de investir emoção até mesmo nas letras mais bobinhas. As tramas nunca eram desafiadoras, mas ela conseguia hipnotizar o público. Poucos foram os artistas da música que conquistaram isso no cinema com a mesma competência, uma seleta lista que inclui Frank Sinatra, Bing Crosby e Elvis Presley. E, por falar no rei do rock, vale salientar que o seu diretor favorito, Norman Taurog, aquele com quem trabalhou em nove produções, é também o diretor desse filme.

Como esquecer a cena em que a menina passeia de bicicleta com as amigas, cantando “I Love to Whistle”, ou a emocionante sequência em que entoa “Chapel Bells”, sendo acompanhada ao piano pelo homem que outrora se regozijava de sua solidão, mas que aprende com a dedicada garota a compartilhar sua vida? Ambas compostas por Jimmy McHugh e Harold Adamson, responsáveis por vários hits de Sinatra a Ella Fitzgerald. Mas o grande momento musical, aquele que acredito ser o melhor de sua carreira, é sua interpretação para a “Ave Maria” de Gounod, cantada com o coral dos meninos de Vienna. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Faces do Medo - "Somos o Que Somos"

Link para os textos do especial:


Somos o Que Somos (We Are What We Are - 2013)
Refilmagem americana do mexicano "Somos Lo Que Hay", de 2010, trazido para os cinemas brasileiros pela produtora DarkSide Books, em seu debut cinematográfico. Na trama, uma reclusa família vê seus bizarros costumes ameaçados quando uma chuva torrencial atinge sua cidade, o que força as irmãs adolescentes Iris (Ambyr Childers) e Rose (Julia Garner) a assumir a responsabilidade de defender os segredos da casa. E acredite, quanto menos você souber sobre a trama, melhor será a experiência. O gênero caminha de forma trôpega nos últimos anos, com poucos rompantes de criatividade, elemento essencial. Quando encontramos uma obra que nos surpreende, apresentando-se a princípio de forma paciente, tomando cada minuto na elaboração de algo que somente será entregue ao final (exemplo clássico: O Bebê de Rosemary), precisamos aplaudir o esforço.

O usual recurso, na necessidade de manter a atenção dos mais novos, de explodir sangue e vísceras nos olhos do público, acaba cansando, anestesiando, limitando a capacidade do horror que reside na imaginação, potencialmente mais terrível do que qualquer roteirista poderia imaginar. Ele merece crédito por apostar no fator psicológico. O diretor Jim Mickle, responsável pelo bom filme de vampiros: "Stake Land – Anoitecer Violento", de 2010, e o roteirista Nick Damici se inspiram no que de melhor havia na imperfeita produção mexicana dirigida por Jorge Michel Grau, superando-a em clima e nível das atuações, especialmente Bill Sage, como o patriarca da família. Trocar os filhos do original pelas duas meninas foi um toque de gênio. Esse é um exemplo de refilmagem que é melhor que o original. A forma como a trama trabalha o subtexto da alegoria bíblica, como a sutil referência a Abraão e Isaque, reforçando o poder dos rituais e tradições que mantém um clã unido, com foco no valor do sacrifício, sem se preocupar em “jogar migalhas”, aqueles sustos artificiais que pululam na tela pra nos manter acordados em filmes ruins do gênero.

A intenção clara é nos pegar pela mão, conduzindo-nos minuto a minuto para dentro dessa situação assombrosa, até o momento em que percebemos que não há escapatória. A imersão, algo tão desvalorizado no gênero atualmente, pode ser tido como o maior mérito do filme. Outro ponto alto, que colabora na execução dessa imersão, é a fotografia de Ryan Samul, que nos faz sentir em um período de tempo alternativo, evocando ideias perturbadoras, sem a necessidade de explicitá-las em imagens. O filme é um conto gótico elegante que nos remete visualmente aos melhores exemplares da década de 70. É como um passeio pela Deep Web, e o desfecho dificilmente vai sair da sua mente.

"Kick-Ass 2", de Jeff Wadlow


Kick-Ass 2 (2013)
Jim Carrey se recusou publicamente a participar da campanha de divulgação, dizendo que sente vergonha de ter participado de algo tão violento. Grande parte dos profissionais da crítica mundial abraçou essa indignação e está utilizando o mesmo critério. Acho hipocrisia o argumento de quem cita a violência real de adolescentes nas chacinas em escolas americanas, com o nível de violência no filme. Quer dizer que se um taxista parar nas manchetes de jornais como um serial killer, “Taxi Driver” passará a ser visto de forma negativa pelos críticos? Cinema é escapismo. A proposta não é refletir a realidade, mas sim contar uma fábula cheia de referências pop, excelente a mensagem na camiseta do protagonista: “I hate reboots”, sobre vigilantismo, uma grande brincadeira com vários clichês dos quadrinhos. Tudo nele é estilizado, exagerado e visando as gargalhadas. 

Existem problemas estruturais no filme, mas passam longe do tema ou da forma com que ele é abordado. O principal erro foi dar a responsabilidade da direção nas mãos incapazes de Jeff Wadlow, com poucos e péssimos filmes no currículo, como “Cry Wolf”. Substituindo a rebelde elegância de Matthew Vaughn, ele deixa passar falhas grosseiras de continuidade em cenas simples, como o girar de uma cabeça que se repete de forma amadora ou um perceptível sorriso no contracampo, que no mesmo diálogo e apenas um segundo depois se torna pura seriedade. A opção de seguir fielmente a obra original de Mark Millar também trabalha contra o resultado, já que ela não chega nem perto da ousada criatividade que existia em cada página do primeiro. Existem conceitos promissores e que poderiam ser enriquecidos na adaptação, como o casal de heróis urbanos motivados pelo desaparecimento do filho, mas são tratados como caricaturas. Não há como negar que Chloe Moretz (Mindy) novamente é a responsável pelos melhores momentos, favorecida por seu carisma natural e pelo melhor trabalha do arco narrativo de sua personagem, um clássico conto de amadurecimento e autodescoberta. 

Assim como no original, a brincadeira consiste em imaginarmos personagens exóticos em um cenário real. Como seria se realmente os jovens quisessem se tornar super-heróis ao invés de astros pop? Eles apanhariam bastante, com certeza. Mas o subtexto além da camada de diversão é o mais interessante: uma crítica ao comodismo de uma juventude que se espelha nos exemplos de futilidade e que enaltece ídolos como Charlie Sheen, apenas por serem grosseiros. A inversão de valores que leva uma jovem como Miley Cyrus, acreditar estar sendo rebelde apenas por ficar nua e estirar a língua pras câmeras. Os heróis da equipe “Justice Forever”, uma bela homenagem à “Liga da Justiça” e “Watchmen”, entre outros, sabem que não são reconhecidos em suas rotinas diárias, mas sentem-se bem por fazerem parte de algo nobre. O contraste é feito com as fúteis garotas populares que atravessam o caminho de Mindy. Elas não intencionam nada mais que a aceitação dos seus iguais, mediante a realização de tolos rituais diários que não dizem nada à madura garota que combatia o crime desde criança com seu pai. Ao fazê-la questionar suas escolhas, o roteiro eleva a qualidade do produto, proporcionando algumas conclusões interessantes entre um decepamento e outro. 

“Kick-Ass 2” não busca superar o original, apenas utilizar aquele molde estabelecido para outras interessantes discussões. 

"O Lugar Onde Tudo Termina", de Derek Cianfrance


O Lugar Onde Tudo Termina (The Place Beyond The Pines - 2013)
O diretor Derek Cianfrance repete sua parceria com Ryan Gosling, após o excelente "Namorados Para Sempre" (Blue Valentine), prejudicado no mercado brasileiro pela péssima escolha de título, explorando as escolhas de um homem marcado por sua própria inconsequência e desapego, tendo que aprender a lidar com a responsabilidade de ser pai.

O problema é que Luke, Gosling em um papel confortável, só conhece a sobrevivência através dos erros, fazendo com que ele opte pela solução mais coerente com seu modo de vida: a ilegalidade. Ele busca manter sua família unida, dando ao seu filho tudo o que ele próprio não recebeu, porém será perseguido pelo policial Avery, Bradley Cooper, em excelente atuação. O roteiro, escrito por Cianfrance, Ben Coccio e Darius Marder, inteligentemente se alterna entre acompanhar esta jornada e vislumbrar o futuro, mostrando o relacionamento entre o filho de Luke e o filho do policial que confrontava seu pai, quinze anos antes. 

A evolução narrativa de Avery, no segundo ato, ponto alto da produção, favorecida pela presença de coadjuvantes impecáveis, como Ray Liotta e Harris Yulin. Vale destacar também a atuação de Dane DeHaan, que vive o filho de Luke. Alguém que acredita estar predestinado às decisões erradas, escolhendo caminhar os mesmos passos de seu pai. O filme conta também com uma excelente fotografia de Sean Bobbit e uma boa trilha sonora do roqueiro Mike Patton, entregando o tom certo de opressão que envolve todos os arcos narrativos.

O filme é um poderoso tour de force que enfoca o legado de pais para filhos. Derek Cianfrance é um diretor que, nesse terceiro projeto, já demonstra priorizar as boas histórias, em detrimento do marketing. Ele pode não estar na boca do povo, mas já deixa claro ser um cineasta autoral dos mais competentes.

"Killer Joe", de William Friedkin


Killer Joe - Matador de Aluguel (Killer Joe - 2011)
O diretor William Friedkin realiza seu melhor filme desde "O Exorcista" (1973). Impressionante como o cineasta continua provocador, utilizando um senso de humor peculiar, alguns considerarão ofensivo, e comandando um elenco impecável. A condução do primeiro ato como uma comédia de humor negro e a transição para um segundo ato filosoficamente instigante, a caracterização dos personagens, o vestuário de Joe e Dottie, que diz mais que páginas de roteiro, o suspense orquestrado em cenas angustiantes, a perseguição dos motoqueiros, por exemplo, a naturalidade com que a nudez, coerente ao tema, é trabalhada, tudo regido com extrema franqueza.

Como não quero estragar a experiência, pouco direi sobre a trama. Matthew McConaughey, em excelente atuação, interpreta um elemento visceral nascido de seu próprio meio corrupto. Um detetive que faz bicos como assassino contratado. Cada reação contida e fala murmurada evidencia seu profundo desequilíbrio emocional. A sua reação em seu primeiro encontro com a jovem, demonstra o quanto eles dois são almas gêmeas perturbadas, dois seres que fingem para não sofrerem. Juno Temple, perfeita em cada nuance, vive uma mulher infantilizada, presa em traumas passados, que busca esconder com uma fingida timidez excessiva, seu profundo desejo sexual. A calculada escolha por inicialmente evitar utilizar um vestido negro, sensual, em um encontro amoroso contrasta com a rapidez com que ela aceita entrar no jogo de sedução.

Nenhum filme é para todos os gostos, posto que consideremos nessa equação pessoas com algum senso de critério seletivo e personalidade. Friedkin entrega uma obra muito corajosa, flertando até com o surrealismo, sem inibições. Com um terceiro ato que deixaria Sam Peckinpah orgulhoso e uma excelente fotografia, de Caleb Deschanel, de "A Paixão de Cristo", em seu primeiro trabalho com digital, que acentua com uso intenso de sombras, a tênue linha que separa a consciência do homem, entre manter-se íntegro ou abraçar a violência.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

"Rush - No Limite da Emoção", de Ron Howard


Rush – No Limite da Emoção (Rush – 2013)
O filme foca na rivalidade entre o playboy inglês James Hunt (Chris Hemsworth) e o metódico austríaco Niki Lauda (Daniel Brühl); o roteiro de Peter Morgan, retomando sua parceria com o diretor Ron Howard após o excelente “Frost/Nixon”, resgata a temporada de 1976. Inteligente, não repete os erros de projetos similares do passado, utilizando a corrida de carros como uma analogia dos conflitos que todos nós podemos enfrentar. Os personagens são identificáveis e as cenas de ação realmente empolgam. O grande mérito nasceu de uma decisão nos primeiros rascunhos, quando Morgan acreditava que, caso o trabalho chegasse a ser filmado, seria com baixo orçamento, o que fez com que ele priorizasse o confronto que ocorria fora das pistas.

A lente intrusiva da fotografia de Anthony Dod Mantle resgata a elegância de uma década em que o esporte permitia a saudável competitividade e a inconsequência dos corredores; uma época em que a competência individual era o fator decisivo em uma vitória. A obra também marca o crepúsculo dessa era gloriosa, simbolizada pelas atitudes bon vivant do mulherengo Hunt, colocando-o em contraste com a rígida disciplina de Lauda, que simboliza um esporte menos guiado pela emoção. O confronto em cena entre esses dois pilotos com atitudes distintas resulta em momentos bastante engraçados, um alívio cômico na medida certa. Algumas liberdades tomadas, totalmente compreensíveis numa narrativa cinematográfica, como o encontro inicial dos dois na F3 e, especialmente, a agressão de Hunt contra o repórter que havia ofendido Lauda, comprovam a esperteza do roteiro.

A ótima trilha sonora de Hans Zimmer evidencia cada derrapagem e batida como se estivesse emoldurando uma guerra, o que garante o peso emocional necessário, fazendo até mesmo o espectador menos interessado em Fórmula Um se contorcer na poltrona e se emocionar com a trama. Quando somos conduzidos ao momento de maior resiliência de Lauda, retornando às corridas após seu acidente, somos levados a colocar em dúvida os estereótipos, sem nunca limitar os personagens ao cômodo viés: herói/vilão, como equivocadamente fez o documentário “Senna”. A mensagem, ainda que exposta sem nenhuma sutileza, desnecessariamente, no monólogo de desfecho, é de grande beleza e atemporal. O desafio é que nos estimula a superar nossas limitações.

Muitos saudosistas afirmam que não houve melhor projeto sobre o tema que “Grand Prix”, de 1966, mas provavelmente ignoram que, com exceção das pioneiras cenas de corrida, a trama era um excelente sonífero. Steve McQueen protagonizaria o superior, ainda que pouco lembrado, “As 24 Horas de Le Mans”, em 1971, mas me arrisco a dizer que esse é o melhor projeto a abordar o esporte. Competente como espetáculo, eficiente como cinebiografia e corajoso como estudo de personagens.

sábado, 11 de outubro de 2014

O corajoso "A Dama e o Vagabundo", de Walt Disney


A Dama e o Vagabundo (Lady and the Tramp – 1955)
Sempre lembrada pela adorável cena, ao som de “Bella Notte”, que mostra a dama e o vagabundo compartilhando um fio de spaghetti, poucos contextualizam a obra e reconhecem o quão corajosa foi essa produção para os estúdios de Walt Disney.

Após o fim da guerra, o mundo havia modificado bastante, principalmente o papel da mulher na sociedade americana e no mercado de trabalho. E é possível notar nuances feministas na cena em que os outros cães debocham do pedigree da Dama, fazendo com que a cadela vira-lata Peg parta em sua defesa, da mesma forma que também é perceptível o ranço do preconceito contra asiáticos da época dos projetos de propaganda, nos terríveis gatos siameses, que falam com dificuldade, trocando letras e visam apenas o caos. É interessante salientar a abordagem de temas espinhosos, levando em consideração o público alvo, como a disputa de classes e as variadas formas de abandono, desde a rejeição com que uma criança pode se identificar ao ver nascer um irmão, até o abandono social dos marginais, aqueles que, na alegoria de Disney, não possuem coleira.

Com uma trama simples, sem antagonistas fortes ou grandes desafios, a beleza do desenho, realçada pelo widescreen na primeira tentativa do estúdio com o CinemaScope, acaba chamando mais atenção. A opção por nomear os donos simplesmente como Jim querido/querida, além do enquadramento baixo, mostrando a ação pelo ponto de vista dos cães, evidenciam a perspectiva canina e elevam a qualidade de momentos como a perseguição ao rato dentro de casa, no terceiro ato. A conexão emocional, ponto forte do estúdio, é estabelecida logo na primeira sequência, quando a Dama é dada como presente dentro de uma caixa, exatamente como Walt outrora havia feito com sua esposa. É notório o carinho do criador com esse produto, um veículo para a bela mensagem que é apresentada no início, sobre o amor verdadeiro que representa o abanar do rabo de um cão.

O que acho mais bonito nesse filme é que, diferente de outros clássicos do estúdio, ele nunca apela para o sentimentalismo exagerado, preferindo solucionar conflitos sem diálogos expositivos e piegas. Um exemplo está no desfecho da sequência que mostra a Dama se sentindo ignorada pelos donos, com o nascimento do bebê. Ela rodopia entre os pés deles, ansiosa para descobrir a razão de todo aquele rebuliço em sua casa, até que silenciosamente seu dono a pega no colo e a ajuda a enxergar o bebê dentro do berço. Os dois então acarinham seu pelo, como que para deixar ela segura de que ainda é importante para os dois. Sem exageros, num revés silencioso de muita sensibilidade, o roteiro deixa claro que a cadela se sente responsável pela segurança do bebê.

Disney arriscou tocar em temas muito mais adultos e profundos do que em suas produções anteriores, incluindo até um cão comunista que cita Gorky, um bloodhound com crise existencial após perder o faro, sem falar no protagonista Vagabundo de libertária vida amorosa, que nos remete ao Carlitos de Chaplin, ao lidar com uma figura de autoridade policial. Uma linda animação que sobreviveu muito bem ao árduo teste do tempo.

"Uma Vida Roubada", de Curtis Bernhardt


Uma Vida Roubada (A Stolen Life - 1946)
Realizado no mesmo ano do tematicamente similar Espelho d’Alma (The Dark Mirror), onde Olivia de Havilland também interpretava irmãs gêmeas, mas abusando de artifícios facilitadores, como estilos de vestuário antagônicos ou joias com as diferentes iniciais em cordões, o filme dirigido por Curtis Bernhardt se entrega plenamente à competência monstruosa de sua protagonista. 

Por mais eficientes que fossem as técnicas de super-imposição do diretor de fotografia Ernest Haller, truque que ele iria melhorar ainda mais em Alguém Morreu em Meu Lugar (Dead Ringer, de 1964), também protagonizado por Davis, o mérito vai todo para a espetacular atriz, que realiza quatro variações totalmente distintas: Kate (tímida, sensível e desajeitada), Pat (sensual, sofisticada e intempestiva), mas além dessas interpretações mais visíveis, temos a sutileza de Pat emulando a personalidade de Kate e vice-versa. E, em nenhum momento, nenhuma dessas variações soa forçada ou se apoia em clichês de temperamento. 

O roteiro evita o lugar comum de demonizar uma das irmãs, desenhando caricaturas. Somos brindados com duas mulheres altamente falíveis e vítimas de suas próprias ambições. O choque entre as duas nasce com a paixão em comum pelo marinheiro vivido por Glenn Ford. O personagem do rude pintor, vivido por Dane Clark, responsável por libertar Kate de seu complexo de inferioridade, levando-a indiretamente a assumir o lugar da irmã no terceiro ato, é o elemento do caos, necessário para instigar a revolução pessoal que ocorre com ela. 

O leitmotiv da manipulação é simbolizado numa cena breve, quando Kate está fingindo ser sua irmã e voltando para a casa dela, onde é mostrado que até a lealdade de um cão pode ser comprada. O desfecho pode ser preguiçoso, algo perdoável quando analisado no contexto da época, mas esse filme é um testamento eterno da genialidade de Bette Davis, uma das melhores atrizes da história do cinema. 

"Capitão América 2" - O Melhor Filme Solo da Marvel



Capitão América 2 - O Soldado Invernal (Captain America: The Winter Soldier - 2014)
O Capitão América dos quadrinhos nasceu apenas como um símbolo de esperança na Segunda Guerra, com um desenvolvimento narrativo tolo e que só encontrou alguma relevância nos dez anos de domínio criativo do escritor Mark Gruenwald, especialmente no arco em que o personagem questionava duramente o próprio governo que defendia, levando-o a refletir sobre a ideologia que o mantinha íntegro perante a óbvia manipulação de seus superiores. E uma das coisas que mais me agradaram em “Capitão América 2: O Soldado Invernal” foi perceber esse tom corajoso no filme, um posicionamento crítico político verossímil e análogo ao que os jornais nos apresentam diariamente, como nas melhores mitologias através dos tempos.

A Marvel entrega, num equilíbrio perfeito dessa vez, o que a DC/Warner está tentando de forma desesperada, mas não consegue: um projeto que respeita fielmente suas origens e seus leitores novos e antigos, com seriedade em intensidade suficiente para ser relevante para todos os públicos, mas sem ser sorumbático. O roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely inteligentemente movimenta as peças desse grande tabuleiro que a produtora está criando, ousando bastante nos plot twists e elaborando uma trama que caberia tranquilamente em uma galeria ao lado das obras literárias de Robert Ludlum. É perceptível que os diretores Anthony e Joe Russo, que haviam dirigido episódios das séries “Community” e “Arrested Development”, estudaram bastante os filmes de Michael Mann, para comporem as ótimas cenas de ação, nunca distribuídas em detrimento do desenvolvimento narrativo, como é usual no subgênero “adaptações de quadrinhos”. Cada uma delas existe com uma função lógica no contexto que o roteiro propõe, normalmente utilizando as emoções dos personagens como elemento motivacional, algo mais raro ainda caso levemos em consideração que o próprio filme anterior era, estruturalmente, um videogame ruim.

Chris Evans (Steve Rogers), sendo um ator mediano, consegue transmitir naturalmente o desconforto de um homem preso em um tempo que não é o dele, defendendo noções éticas ultrapassadas em uma sociedade hipócrita. E o fator mais interessante no personagem, mesmo nos quadrinhos, é esse conflito interno entre a segurança de um militar e seu caráter, que o faz entender que ele vive por regras já há muito tempo modificadas por interesses escusos. Sem me aprofundar na trama, por respeito à experiência do público, descobrimos que nem a S.H.I.E.L.D. estava imune à corrupção, introduzindo espertamente o personagem vivido por Robert Redford (Alexander Pierce). O renomado ator que, em décadas passadas, sempre foi cogitado pelos fãs para interpretar o herói, entrega uma atuação segura, contida. Nada melhor que o protagonista de um dos melhores thrillers de espionagem da década de setenta: “Três Dias do Condor”, estar presente nessa homenagem ao gênero. Anthony Mackie (Sam Wilson) e Scarlett Johansson (Natasha Romanoff) acabam sendo responsáveis pelos vários alívios cômicos, com o primeiro especificamente resultando um tanto quanto caricatural, o ponto mais fraco.

O melhor de tudo é constatar ao final, o que inclui as já costumeiras cenas pós-créditos, um desejo genuíno de saber o que está por vir na sequência. Pela primeira vez nesse universo cinematográfico da Marvel, não serão apenas os fanboys que estarão salivando de ansiedade ao final. Quem diria, o personagem mais fraco dos “Vingadores” protagonizou um projeto melhor que o próprio filme da equipe. 

"Sem Evidências", de Atom Egoyan


Sem Evidências (Devil's Knot - 2013)
O diretor egípcio Atom Egoyan, em sua primeira produção americana, escolhe abordar um caso real muito divulgado em sua época, com o mesmo frescor e senso de suspense que o recente filme nacional “O Lobo Atrás da Porta”, que também tinha a missão de tornar interessante uma história que muitos já conheciam.

A estrutura utilizada é didática em excesso, como se o roteiro de Scott Derrickson e Paul Harris Boardman não quisesse correr riscos, mas um rápido detalhe visual que depende da cultura geral do espectador insinua o traço de coragem ideológica que compensa as falhas. Em uma das cenas no escritório do protagonista vivido por Colin Firth, o único interessado em averiguar a fundo o caso de homicídio das três crianças encontradas no fundo de um rio, nós podemos enxergar uma foto do guitarrista de blues Robert Johnson, cujo legado ficou marcado por um boato de que ele teria vendido sua alma ao diabo para conquistar a perfeição em seu ofício, algo que o conduziu a uma morte precoce (aos interessados, recomendo o filme “Encruzilhada”, de 1986). Desse momento em diante, temos a certeza de que estamos assistindo o relato de um conto de injustiça, ao invés de um filme de tribunal convencional, onde se busca descobrir culpados.

Reese Witherspoon, como a mãe de uma das vítimas, já dá o tom logo em uma de suas primeiras cenas, quando reage retirando brutalmente com as mãos, chumaços de seu próprio cabelo, entregando ao policial que pedia amostras de DNA. Uma mulher que já era desequilibrada emocionalmente antes da tragédia, tendo tendências ao fanatismo religioso, alguém facilmente manipulável, casada com um homem violento. A trama evita explorar o melodrama, optando por uma frieza coerente à atitude do investigador Ron (Firth), porém a emoção nasce naturalmente em breves cenas, como a que mostra a mãe recebendo o carinho dos colegas da escola do filho.

A obra mostra como é fácil desinformar, criar vilões no inconsciente de um coletivo que já está propenso ao linchamento público, com o apoio incondicional de uma imprensa irresponsável, preguiçosa e que se interessa pelo espetáculo da manchete chamativa, preferindo publicar a partir de moldes já trabalhados, do que investigar a fundo, desconstruindo o caso. Era muito mais interessante, vendia mais jornais, o homicídio ser fruto de uma seita satânica, composta obviamente por jovens fãs góticos de Heavy Metal. E, basta analisar casos recentes em nossa nação, para constatar que o ocorrido no início da década de noventa é, infelizmente, bastante atual. Avançamos tecnologicamente, mas instintivamente continuamos homens das cavernas na busca pelo próximo apedrejamento, odiando aquelas figuras que a mídia decide que temos que odiar, comprando a farsa e fazendo sangrar inocentes nesse processo. 

"Tudo por Justiça", de Scott Cooper


Tudo por Justiça (Out of The Furnace – 2013)
O diretor Scott Cooper, em seu segundo projeto, tem facilidade de extrair interpretações viscerais de seus atores. Conseguiu isso com Jeff Bridges no anterior “Coração Louco”, repete o feito com Woody Harrelson (Harlan) e Christian Bale (Russel), que definitivamente deveria ter sido indicado ao Oscar por esse trabalho. Revelar muito sobre a trama nesse caso é um desserviço ao espectador, então irei me ater ao básico.

Sem se preocupar em obedecer as regras estruturais do gênero, o roteiro, de Brad Ingelsby e do próprio Cooper, toma bastante tempo no desenvolvimento da relação do protagonista com seu irmão caçula problemático, vivido por Casey Affleck. O cenário é uma depressiva cidade de interior, cujos habitantes sofridos não compram a ideologia esperançosa de um recém-eleito Barack Obama, o filme se passa em 2008. Arrumar trabalho numa caldeira já é considerado por eles uma grande conquista. Assistimos com os personagens o declínio das indústrias pesadas na América e o consequente impacto que esse declínio causa nas pequenas comunidades que dependem delas. Como o ótimo título original insinua em metáfora, não existe possibilidade de eles saírem de perto da fornalha, apenas aprendem resilientes a tolerar o calor infernal.

São perceptíveis óbvias referências ao trabalho de Michael Cimino em “O Franco Atirador”, explorando a caça como analogia, a recusa de Russel em atirar, mesmo quando o animal está na mira, e com breves questionamentos sobre o tratamento dado aos veteranos de guerra, sendo que a intenção não é tanto o panfletarismo político/social, mas sim compor um clima ideologicamente opressivo o bastante para que nos levemos a questionar, assim como os personagens, a linha tênue que separa a justiça do vigilantismo e aquela praticada nos tribunais. 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Cine Noir - Entre Dois Fogos

Links para os textos do especial:



Entre Dois Fogos (Raw Deal – 1948)
Joe Sullivan escapa da prisão e busca vingança contra o mafioso Rick Coyle, um sádico piromaníaco que encomendara a sua morte. 


Nesse filme de Anthony Mann, que considero um dos mais importantes do gênero, um dos conceitos elementares do Noir é subvertido, inserindo duas personagens femininas com motivações complexas, vividas por Marsha Hunt e Claire Trevor. No lugar de uma femme fatale disposta a conduzir o protagonista até sua ruína, deixando sempre nas sombras a inocente apaixonada por ele, o roteiro evita os estereótipos ao entregar a melancólica narração da trama, normalmente defendida pelo trágico herói, nas mãos daquela que, no que se espera em projetos similares, simboliza sua derrocada.

As duas mulheres que disputam o amor do personagem, vivido por Dennis O’Keefe, são fortes e moralmente falhas, o que possibilita atitudes surpreendentes como a bravura de Ann (Hunt), a boa moça, defendendo o amado, ainda que acredite que ele deva se entregar às autoridades, sendo capaz também de confrontá-lo em uma discussão que evidencia a qualidade do texto de Leopold Atlas e John C. Higgins, quando ele a rotula como uma mimada privilegiada. Após ela sentir na pele o impulso violento, a jovem inicialmente condena sua atitude, mas acaba entendendo que o conceito de bom ou ruim é subjetivo, compreendendo finalmente a ambiguidade moral do amado.

Esse tipo de arco narrativo não era comum no gênero, quase sempre limitado a uma visão de mundo simplista, ainda que esteticamente emoldurado em tons de cinza. E, num revés muito criativo, a ruína do herói é consequência de sua relação com a boa moça, não com a femme fatale, que, vale salientar, não possui outro interesse que não seja o amor que genuinamente sente por ele. A boa moça, que descobre a violência como conduta aceitável, acaba sendo a única corrompida na trama, algo que se espera sempre do herói.

Mann, com o auxílio da ótima fotografia de John Alton, consegue estabelecer visualmente essa dinâmica ao optar por mostrar os três quase sempre no mesmo quadro. Vale destacar também, como elemento que ajuda na imersão sensorial, o teremim que o compositor Paul Sawtell utiliza para pontuar as narrações, criando um clima ainda mais sombrio e enigmático, quase fantasmagórico, nesses momentos. É incrível pensar que essa obra-prima seja tão pouco valorizada, considero uma das cinco melhores de todo o ciclo do gênero, nascida em sua melhor década.

* A distribuidora Versátil está lançando o excelente box “Filme Noir”, que reúne seis importantes obras do gênero, como “A Morte Num Beijo”, “Fuga do Passado” e “Entre Dois Fogos”, com quase uma hora de extras. 

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

"Batman - O Filme", de Tim Burton


Batman – O Filme (Batman – 1989)
Analisando no contexto de sua época, essa seria a primeira vez que o público iria pagar para assistir uma aventura do personagem após décadas em que ele esteve imerso na cultura do deboche, com a série protagonizada por Adam West marcada indelevelmente pela exótica cena do herói dançando num bailinho riponga. Nos quadrinhos, a mudança de atitude já havia ocorrido três anos antes, com a obra-prima “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, inspirada na trama de “Impacto Fulminante”, único filme de Dirty Harry dirigido por Clint Eastwood. E, para combinar com essa radical mudança de atitude, os produtores demonstraram coragem ao selecionar o jovem Tim Burton para a tarefa de comandar essa lúdica ressurreição. Um realizador cujo currículo se resumia a curtas-metragens melancolicamente góticos e comédias com protagonistas absurdamente histriônicos.

Foram vários os fatores que ajudaram no sucesso, como a fantástica trilha sonora de Danny Elfman e o impecável trabalho de marketing em seu lançamento, mas o grande mérito no sucesso desse projeto é do roteiro escrito por Sam Hamm, que pegou um rascunho equivocado onde a origem do personagem era recontada sem personalidade, tendo como molde a fórmula para o clássico “Superman”, jogou fora e começou do zero uma narrativa calcada em flashbacks. Mas nada disso seria possível sem a contribuição de um apaixonado pela Nona Arte, Michael Uslan, que, em 1971, havia convencido a Universidade de Indiana a deixá-lo ensinar no primeiro curso focado em revistas em quadrinhos. Seu amor era tamanho, que ele comprou os direitos para uma adaptação cinematográfica no final daquela década, com a promessa de que iria ser o responsável pela tradução mais fiel, sombria, o olhar definitivo sobre o homem-morcego. O projeto acabaria no colo dos executivos da Warner.


O mais incrível ocorreu quando o mundo descobriu que um comediante baixinho, Michael Keaton, que, no máximo, seria imaginado pelos fãs como coadjuvante, capanga do vilão, tinha sido escolhido para viver Bruce Wayne. E, por mais que hoje em dia a mídia tente comparar a recepção negativa dele com a de Ben Affleck, não há forma lúcida de comparar essas duas rejeições. Affleck é um ator mediano, mas é muito respeitado como diretor e representa dinheiro certo na bilheteria, enquanto Keaton simplesmente não era respeitado, sequer conhecido, pela grande maioria dos fãs na época. E o estúdio precisava desesperadamente que essa garotada abrisse a carteira nas primeiras semanas de exibição. São dois casos muito diferentes.

A ideia do diretor era arriscada, mas fazia sentido, já que o vigilante mascarado deixava de ser o fruto de um intenso treinamento, para ser a projeção psicológica dos impulsos primitivos de um homem de meia-idade franzino, incapaz de meter medo em qualquer pessoa. Essa projeção fica clara, em seu viés sexual, nos encontros com Vicki Vale, vivida pela estonteante Kim Basinger. A câmera parece gostar de salientar o fato de que aquela deusa da beleza nunca iria prestar atenção nele, caso não enxergasse inconscientemente aquele impulso. Não é coincidência o fato de que o ator que vive Alexander Knox, Robert Wuhl, constantemente flertando com ela, seja fisicamente muito parecido com Keaton. Knox é tratado exatamente como Wayne seria, caso ele não fosse internamente motivado por aquele impulso. Ela percebe no milionário, muito antes de suspeitar de sua identidade secreta, aquele brilho no olhar de quem, ainda que grandioso, se permite minimizar, desaparecer na multidão.

O Coringa, vivido brilhantemente por Jack Nicholson, como símbolo do caos, não somente externo, desorientando os cidadãos de Gotham ao fazê-los enxergar sua ganância, mas também interno, tendo sido o catalisador da ruptura emocional no garoto que outrora assistiu os pais sendo assassinados por ele. A decisão de modificar o arco narrativo do personagem foi eficiente no sentido de, inserindo ele no trauma do herói, possibilitar uma complexidade maior no conflito entre os dois. Quando Batman, a projeção do superego de Wayne, esmurra o rosto do palhaço, podemos enxergar aquele menino levantar da poça de sangue e investir com toda sua raiva no pistoleiro. Ele tem a chance de finalmente revidar, obliterando para sempre aquela sensação terrível de impunidade que o motivou até aquele momento, quiçá sagrado, não por coincidência, ambientado em uma catedral. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Chumbo Quente - Tambores da Morte / Estigma da Crueldade / Irmão Contra Irmão

Link para os textos do especial:


Tambores da Morte (Drums Across the River - 1954)
Crown City pode se tornar uma cidade fantasma, pois todo o seu ouro está localizado em terra indígena. Gary Brannon (Audie Murphy), um homem honesto que odeia índios, se junta a uma missão para tentar concessões de mineração, mas o líder do grupo, o ganancioso Frank Walker, planeja em segredo começar uma guerra contra os índios para tomar suas terras. Gary e seu sábio pai Sam têm agora nas mãos a manutenção da paz e terão de juntar forças com os índios para impedir os planos de Walker. 


Hoje injustamente esquecido, Audie Murphy foi um dos heróis de guerra mais condecorados e famosos da Segunda Guerra Mundial. Ele prezava tanto sua imagem como modelo de boas condutas, que recusava participar de comerciais de álcool e cigarro. Incentivado por James Cagney, estudou métodos de atuação. Durante vinte anos, teve sua respeitabilidade utilizada pela indústria de cinema, como o mocinho de obras de guerra e, em sua maioria, faroeste. Ainda que não tenha participado de nenhuma obra-prima no gênero, "Tambores da Morte", dirigido por Nathan Juran, que quatro anos depois viria a comandar "Simbad e a Princesa", clássico do saudoso Ray Harryhausen, é um dos mais divertidos, com a presença sempre carismática de Walter Brennan. Os dois vilões, vividos por Lyle Bettger e Hugh O´Brien, elevam a qualidade do roteiro, mastigando cada cena, como Steve McQueen fazia muito bem, como se fosse a última. Murphy atua de forma correta, mas é eclipsado sempre que contracena com os dois.


Estigma da Crueldade (The Bravados - 1958)
Jim Douglas (Gregory Peck) chega à cidade às vésperas do enforcamento de quatro bandidos. Eles os tem perseguido, pois acredita que violentaram e mataram sua mulher. Mas horas antes da execução, os quatro conseguem escapar, levando uma bela moça como refém, para tentar atravessar a fronteira para o México. Enfurecido, Douglas persegue e aniquila um a um seus inimigos, até que finalmente se revele um segredo que o deixará mais desesperado por salvação do que por vingança.


O diretor Henry King realizou com esse ótimo faroeste, uma experiência no gênero, apostando em um viés psicológico. O personagem vivido por Gregory Peck está tão devotado à vingança, que nega seus princípios e se cega perante seu compasso moral. Stephen Boyd, um ano antes de viver "Messala" em "Ben-Hur", e Lee Van Cleef, que anos depois viraria sinônimo de "Spaghetti Western", excelentes em cena, reforçam o elenco como dois dos quatro foras-da-lei. Emoldurado por uma bela trilha sonora de Alfred Newman e Hugo Friedhofer, que traduz melodicamente a determinação psicótica que move o protagonista, mas deixando claro em seus acordes que existe um herói honrado enterrado naquela montanha de amargura e ódio. O desfecho continua poderoso, surpreendente e corajoso.


Irmão Contra Irmão (Saddle The Wind – 1958)
O pistoleiro aposentado e ex-soldado confederado Steve Sinclair (Robert Taylor) está vivendo como um fazendeiro em uma pequena comunidade. Ele colabora com o proprietário principal Dennis Deneen (Donald Crisp), de quem aluga o rancho, para preservar a estabilidade comunal. Sua vida tranquila é interrompida pela aparição de seu irmão mais novo, o emocionalmente instável Tony (John Cassavetes) e a bela namorada de Tony Joan (Julie London). 


Muitos cinéfilos iniciantes, por não terem assistido muitos filmes do gênero, costumam apontar “Os Imperdoáveis” como original em seu tema sobre os efeitos corrosivos da violência nos pistoleiros. Mas existem vários projetos, especialmente na década de cinquenta, quando o faroeste ganhou contornos psicológicos, que lidam com o assunto de forma muito eficiente, como “Irmão Contra Irmão”. Por trás do clássico confronto entre irmãos, existe uma profunda análise sobre as repercussões psicológicas de se puxar um gatilho e tirar a vida de alguém. Já na cena que é emoldurada pelos créditos iniciais, numa ousadia narrativa, somos levados a crer que estamos assistindo a cavalgada do herói, quando na realidade estávamos acompanhando o trajeto de um cruel bandido, vivido por Charles McGraw. Outro aspecto interessante é que o roteiro foi escrito por Rod Serling, o criador da série de ficção científica “Além da Imaginação”. Uma ótima trilha sonora de Elmer Bernstein é a moldura perfeita, incluindo uma bonita música-tema cantada por Julie London.