Snowden - Herói ou Traidor (Snowden – 2016)
Em seu primeiro projeto de ficção filmado com câmeras
digitais, Oliver Stone entrega seu melhor trabalho desde “Assassinos por
Natureza”, de 1994. O roteiro escrito com Kieran Fitzgerald, do excelente western
“Dívida de Honra”, injeta referências da cultura pop que vão do anime “Ghost in
The Shell”, que também lida com os questionamentos morais de soldados
trabalhando para o governo, até o clássico “1984”, de George Orwell, uma obra
que traça um paralelo perfeito com o caso abordado na trama.
O péssimo título nacional, sintomático do nível educacional de
uma nação onde tudo precisa ser mastigado antes de ser disponibilizado para o
público, propõe um julgamento que não é coerente à proposta do diretor. Edward
Snowden fez algo espetacular, sacrificou a possibilidade de uma vida tranquila
e financeiramente estável por não conseguir agir contra os seus princípios. Ao
descobrir que a Agência de Segurança Nacional norte-americana estava conduzindo
um monitoramento abusivo e invadindo a privacidade de pessoas comuns,
rastreadas por ações banais em suas redes sociais, ou apenas por estarem
relacionadas a alguém que, por exemplo, escreveu alguma palavra-chave suspeita
numa ferramenta de busca, o rapaz sentiu que não conseguiria ficar em paz com
sua consciência, ele expôs toda a verdade sobre os serviços de espionagem para o
jornalista Glenn Greenwald, atitude que virou o mundo de cabeça pra baixo em
2013. O governo quer a cabeça dele, o que é compreensível, mas não há atitude
mais heroica na história recente. Eu recomendo como impecável complemento o
documentário “Citizenfour”, de Laura Poitras, que registra os encontros
secretos entre Snowden, Greenwald e a diretora, momentos que são reencenados
com elegância pelas lentes de Stone.
Joseph Gordon-Levitt realiza um trabalho assustadoramente
competente, conseguindo captar com riqueza de nuances os trejeitos e a voz do
protagonista, compondo uma caracterização tão fiel que, mais tarde, quando o
próprio Snowden é mostrado, o espectador não sente qualquer abalo na imersão, o
recurso potencializa o investimento emocional e não soa forçado. É curioso que seja
mostrado em flashback o sofrimento do personagem ao ser afastado do exército,
após um tolo acidente, como forma de estabelecer a motivação inicial do jovem,
alguém que comprou o ilusório sonho americano e que enxergava os rituais
militaristas como a mais digna representação de patriotismo. Em seu arco
narrativo, ele vai de um ingênuo idealista fã da escritora Ayn Rand que se
incomoda quando algum cidadão critica seu próprio país, até se tornar um pária
tido por parte da opinião pública como um traidor da nação. E o roteiro dedica
tempo generoso à relação romântica com a namorada, vivida por Shailene Woodley,
o que pode frustrar quem procura algo mais focado nas questões políticas. A
intenção clara é fazer com que o público se identifique com o protagonista,
buscando entender o escopo brutal do sacrifício, o incômodo sentido ao perceber
que a omissão é o pior crime que pode ser cometido. Como é salientado em uma
das cenas mais impactantes, o que se pode esperar de dignitários que são
capazes de qualquer coisa, até mesmo utilizar o conceito da ameaça terrorista
em um povo já doutrinado diariamente pela cultura do medo a “deixar o dedo no
gatilho”, como bem mostrou Michael Moore em seu documentário “Tiros em
Columbine”, como atroz desculpa para operar total controle social? Como prever
o que será feito por aqueles que não possuem escrúpulos?
É impressionante constatar que o material que era tido como
ficção científica altamente engenhosa outrora, o Grande Irmão orwelliano,
acabou se tornando uma preocupante realidade.
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