terça-feira, 8 de novembro de 2016

Chumbo Quente - "O Homem do Oeste" e "Fúria Selvagem"


O Homem do Oeste (Man of the West – 1958)
Quando se fala no velho Oeste alegórico de Hollywood, todos se lembram das paisagens nos filmes de John Ford, da beleza do Monument Valley emoldurando cavaleiros de trajes coloridos e sem um sinal de pó, como se houvessem acabado de sair das páginas dos contos de aventura adolescente. Alguns afirmam que os italianos foram os responsáveis por incutirem a cruel realidade em seus spaghetti westerns, onde deixavam transparecer o suor escorrendo por barbas desalinhadas, com cavaleiros trajando vestes devidamente maltratadas pelas intempéries locais. A realidade é que antes dos italianos decidirem parar de imitar os americanos, em filmes como “Adiós Gringo” e “O Dólar Furado”, e evoluírem o conceito do Western, apropriando-se com competência e subvertendo-o, houve em Hollywood um cineasta genuinamente autoral que já ousava no gênero décadas antes. 

Anthony Mann iniciou como auxiliar do competente Preston Sturges na obra prima “Contrastes Humanos” (Sullivan´s Travels – 1941) e logo imprimiu seu estilo narrativo em alguns bons filmes noir. Seu interesse era em aprofundar-se nas motivações de seus protagonistas, normalmente ligados por algum laço familiar ou afetivo. Diferente dos clássicos heróis americanos do gênero, os de Mann usualmente escondiam algum segredo soturno, obedecendo apenas uma lei ditada por conveniências pessoais. Conflituosos internamente e perceptivelmente angustiados, eles buscam quase sempre a redenção por erros antigos. Visceral mas simples, sua câmera busca apenas os ângulos que favorecem sua narrativa, nunca ambicionando aparecer mais do que a trama que se propõe a contar, contrastando com o senso comum de muitos diretores, até hoje, que se vangloriam por serem “autorais”, mas que com seus arroubos visuais egocêntricos apenas seguem, inconscientemente, uma cartilha ditada pelo primeiro que filmou uma árvore de cabeça para baixo e escutou alguém afirmar ser genial. O ato elegante de haver em vida se escondido por trás de seu talento, ao invés de ter buscado os holofotes, como tantos outros diretores autorais, tornou Mann um cineasta de qualidade rara e preciosa.

Gary Cooper (Link Jones) vive um homem disposto a apagar suas tortas pegadas e refazer seus passos, constantemente disciplinando em si mesmo o desejo pela violência. Negando-se a aceitar a realidade que a vida havia lhe oferecido, tendo como única referência paterna um tio, vivido pelo fantástico Lee J. Cobb, inconsequente e violento, decide provar a si próprio a força de seu caráter. Desde o primeiro momento fica evidente seu desespero em manter-se incógnito, estabelecendo identidades falsas para cada cidadão que o aborda. Como seu nome deixa implícito, ele representa um elo (“link”) entre o antigo Oeste violento/solitário e o Oeste domado que se principiava no horizonte, onde a união de forças iria encaminhar o progresso. Deixando para trás a violência, caminhando firme em direção ao homem moderno que ele precisa ser. O símbolo desta mudança é a confiança adquirida, já que o povo de sua cidade (Good Hope = Boa Esperança) aceita sua nova conduta e entrega em suas mãos uma considerável soma monetária, para que ele viaje ao encontro de uma professora e a convença a trabalhar para as crianças de sua cidade. Ele conseguirá manter-se íntegro quando forçado a reviver seu sombrio passado? Com roteiro do competente Reginald Rose, da obra prima “Doze Homens e uma Sentença”, e uma sensibilidade pouco usual no gênero, “O Homem do Oeste” merece constar na coleção de qualquer cinéfilo, fã ou não do Western.


Fúria Selvagem (Man in the Wilderness – 1971)
Na época do lançamento do superestimado “O Regresso”, de Iñárritu, eu custei a entender a razão de tanto falatório, apesar da massiva publicidade conquistada com as indicações pros prêmios da Academia, e do infantil meme que pedia a estatueta para o protagonista, o resultado inchado esbanjava pretensão artística e pseudofilosofia de botequim, mas era irritantemente vazio. O melhor filme sobre a história de Hugh Glass já havia sido feito e acumulava poeira na memória dos cinéfilos: “Fúria Selvagem”, de Richard C. Sarafian. Esse importante resgate proposto pela distribuidora “Versátil” pode ajudar na necessária reavaliação desse clássico. Somente a perturbadora cena real do búfalo sendo devorado pelos lobos já garantiria a superioridade, sequência extremamente tensa em que o protagonista, vivido pelo grande Richard Harris, já bastante ferido, precisa lutar pelo seu alimento. 

Os flashbacks inteligentemente inseridos vão revelando aspectos interessantes sobre o caráter do personagem, a sua relação conflituosa com o conceito de religiosidade, elemento que adiciona camadas interessantes de simbologia ao conto de sobrevivência, a aventura inconsequente como fuga da realidade triste da morte da esposa, o sentimento de culpa pelo abandono do filho nesse processo, conduzindo de forma emotivamente eficiente o espectador até o poderoso desfecho, o embate com o líder da expedição, que o deixou indefeso perante o que parecia ser a morte certa. Vivido pelo imponente John Huston, um tipo ególatra que, assim como Herzog faria uma década depois em “Fitzcarraldo”, puxa um grande barco em terra firme. O que engrandece a obra é a beleza na constatação de que a suprema redenção, a recuperação física e psicológica após tantos traumas, passa obrigatoriamente pelo difícil obstáculo do perdão.





* Os filmes estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito, na caixa "Cinema Faroeste, Vol. 4", que conta ainda com os seguintes títulos: "Nas Margens do Rio Grande" (1959), "Barquero" (1971), "Paixão de Bravo" (1952) e "Fora das Grades" (1955).

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