Elle (2016)
Terminei a sessão e corri para ler o roteiro, disponível na
internet, para absorver ao máximo a experiência. E leria o livro “Oh...”, de
Philippe Djian, caso fosse possível encontrar ele em inglês. São raros os
filmes hoje em dia que despertam esse tipo de garimpo. O que o roteiro de David
Birke faz com maestria é utilizar a estrutura de uma típica história de
vingança, material que caberia perfeitamente em qualquer thriller exploitation B
da década de noventa, como ponto de partida para explorar a psique dos
personagens, inserindo críticas corajosas envoltas em um senso de humor
peculiar. Ao prestar atenção em pequenos momentos, aparentemente sem
importância no desenrolar dos acontecimentos, você consegue enxergar a
genialidade do projeto.
A protagonista Michèle, vivida por Isabelle Huppert, está em
uma cafeteria, recebe a ligação do amante que a trata friamente, ela tenta o
fazer entender que não está no clima pra um encontro sexual, mas o homem despreza
a desculpa utilizada com o argumento mais machista possível, um egoísmo
monstruoso. Uma mulher sentada numa mesa próxima escuta tudo e, ao se levantar,
propositalmente derrama o café nela, demonstrando revolta pela atitude passiva
que testemunhou. Ainda que a cena no filme, sem sutileza alguma, evidencie que a atitude é uma espécie de vingança da senhora contra a filha de um serial killer, há espaço para interpretações menos óbvias no roteiro. A curta sequência, surreal, dedica especial atenção à reação
apática da protagonista, que sequer busca compreender o ocorrido, ela apenas
aceita o revide da natureza. Esse leitmotiv reverbera em várias cenas, estabelecendo
os alicerces alegóricos da trama, que não pede em nenhum momento para ser
levada a sério. Quem buscar realismo no comportamento dos personagens vai se
frustrar terrivelmente, não vai aproveitar a experiência.
Logo em seguida ela entra na casa da mãe, com muitas
plásticas aparentes no rosto, a incapacidade de lidar de forma madura com o
conceito da mortalidade, e a vê com um garoto de programa, algo que a deixa
revoltada, reação que ressalta a hipocrisia dela. E, segundos depois, o roteiro
mostra que a filha estava preocupada mesmo era com os gastos da mãe com esses
encontros sexuais. A importante cena se encaminha para a revelação da mãe, que
diz querer se casar novamente e pede sua opinião, ao que a filha rejeita sem
pensar duas vezes. A mãe então diz: “Você sempre quis uma versão higienizada da
vida”. As peças do quebra-cabeça emocional da personagem vão se encontrando
nesses pequenos detalhes. O cineasta Paul Verhoeven, como de costume, utiliza a
violência gráfica como veículo para tratar de assuntos espinhosos. O estupro
sofrido logo na primeira cena, repetido em detalhes depois em flashback, existe
como forma de colocar em confronto Michèle e suas muitas travas emocionais, os
obstáculos que a impedem de seguir em frente, presa aos fantasmas do passado
criminoso do pai, presa ao sentimento de culpa na criação do filho, presa à
insegurança que o marido deixou de legado ao abandonar ela por uma mulher mais
jovem, presa a uma imagem reducionista dela mesma.
Perceba que o estuprador não teve interesse em roubar nada
na casa, ele desejava apenas satisfazer seu impulso sexual. Ela, que
frequentemente se sente inferior como mulher perante as figuras femininas mais
jovens, descobre da pior forma possível que ainda é desejada. Não é
coincidência que, após o estupro, ela conquiste confiança pra seduzir
abertamente o vizinho na mesa de jantar de sua casa. Ela deixa de ser passiva
sexualmente, cansa de ser vítima da deselegância do amante que a enxerga apenas
como objeto, e parte para o ataque, com plena consciência da necessidade de
satisfazer seus desejos. Quando ela vê que a esposa do vizinho é uma jovem
recatada, altamente religiosa, nasce o desafio. Outra cena muito importante
ocorre em um restaurante, o encontro com o ex-marido. Ele diz, sobre a namorada
psicótica do filho: “Esse tipo de garota costuma ser boa de cama”. E ela
responde ofendida: “Boa de cama? O que isso quer dizer? Eu nunca entendi”. Como
mulher em transformação, ela, enxergando claramente o machismo repulsivo na
sociedade, ganha a coragem de revidar.
E, momento chave, Michèle então faz a pergunta relacionada à
indecorosa mensagem de texto que recebeu do estuprador após o ato. No rosto
dela você nota o selvagem conflito interno. Ela sentiu que o estuprador apreciou
mais ela como mulher, ao contrário do ex-marido insensível e grosseiro, que, ao
que tudo indica, trocaria ela por qualquer garota mais nova. E, detalhe
importante, ela escolhe revelar o que aconteceu com ela na mesa, quando está
presente também seu amante e a esposa dele, a amiga mais próxima. Novamente o
leitmotiv da reação se faz presente. A única que realmente demonstra
preocupação com o estado psicológico dela é Anna, a amiga, única mulher na
mesa. Os dois homens, em estado de choque, parecem mais preocupados em obter
uma descrição sádica do ocorrido, duvidando e, o mais cruel, inconscientemente
julgando a vítima, o colega de trabalho chega até a checar o cardápio, quando o
garçom se apresenta, mostrando indiferença, total falta de empatia. Ela não se
surpreende com isso, muito pelo contrário, ela buscava exatamente a constatação
de sua representatividade na vida daqueles homens que, de uma forma ou de
outra, usufruíram de seus gestos sinceros de carinho.
Várias cenas criam variações desse mesmo tema, a natureza
constantemente a desafia, mas ela segue forte, rejeitando absolutamente a autocomiseração
como resposta aceitável, ela não aceita entregar a responsabilidade nas mãos
dos policiais, do sistema patriarcal, o problema tem que ser resolvido de
dentro pra fora, a questão é existencial. É compreensível que muitas feministas
estejam se revoltando com o filme, não há espaço na mente da protagonista para
discursos padronizados. Todos ao redor de Michèle se mostram frágeis, a começar
pelo filho imaturo que é tratado como lixo pela namorada, interessada mais em
se aproveitar da verba da família. A jovem desafia a autoridade da sogra, a
provocação atinge níveis absurdos, mas a protagonista não se permite se mostrar
afetada por aquilo. Até mesmo quando um agressor tenta humilhá-la publicamente em seu local de trabalho, sodomizada por um demônio lovecraftiano em
um jogo eletrônico, a resignação subjuga o medo, ela não aceita entrar no jogo
psicológico dele, ela se mostra superior.
Ao encontrar a nova namorada do ex-marido, jovem professora
de yoga, elemento fisicamente opressor, ela brinca dizendo que aquele dia
pouparia um desconforto num próximo encontro. A jovem sutilmente deixa escapar o
deboche, ela considera que a mulher mais velha, que já é avó, não tem condição
alguma de reaver aquele homem, Michèle absorve a informação subliminar e não se
abala, já que tem consciência plena de que continua atraente, ela ganha mais
segurança a cada dia que passa. As travas emocionais já foram destruídas, ela é
capaz até de criticar abertamente a hipocrisia do ritual religioso, perfeita
simbologia, exatamente na ceia de Natal. Ela encara o sistema mentiroso nos
olhos e tem a capacidade de bravamente negar sua influência. Em uma cena de sutil simbolismo no terceiro ato, ela desafia
até a morte, caminhando lentamente na frente de um carro, sabendo que pode ser
atropelada. Essa é uma Michèle
radicalmente diferente daquela que o roteiro nos apresenta nas primeiras cenas.
Claro que não vou revelar pontos importantes da trama, para não prejudicar a
experiência, mas vale destacar que todos os personagens periféricos recebem o
mesmo tratamento cuidadoso em seus arcos narrativos.
“Elle” é muito mais do que aparenta na superfície. Um dos
filmes mais instigantes dos últimos anos.
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