segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"Cabra Marcado Para Morrer", de Eduardo Coutinho


Cabra Marcado Para Morrer (1984)
Nesse final de semana senti necessidade de rever alguns trabalhos de Eduardo Coutinho. É esse tipo de cinema, intensamente emocional, original, corajoso, que forja um público criterioso e consciente, elemento essencial em uma indústria. E, por mais que eu goste muito de “Edifício Master” e “Jogo de Cena”, nutro carinho especial por “Cabra Marcado Para Morrer”. Não apenas por ter sido meu primeiro contato com ele, um impacto sensorial que nunca esqueci, mas, principalmente, pela maneira correta com que sua câmera aborda um tema que, em outras mãos, poderia se tornar algo panfletário, manipulativo, reduzindo o ocorrido a uma visão simplista. Coutinho não era um moleque polemizador como Michael Moore, mas, sim, um artista verdadeiramente sensível que sumia perante as histórias importantes que se dedicava a contar. O documentarista nunca deve se considerar mais importante do que o foco de seu trabalho.

Uma frase, dita com veemência por um dos filhos da viúva do líder da Liga Camponesa, cristaliza a máxima que segue pungentemente atual: “Todos os regimes são iguais, nenhum governo presta para o pobre”. Quando a sensação inebriante de poder turva os olhos, até mesmo o mais bem-intencionado cidadão cogita, nem que seja por um ínfimo momento, abandonar seus ideais e dar as costas para seus valores. O caráter, esse traço mágico que independe de qualquer elemento externo, é o único antídoto capaz de deter essa avassaladora ambição. A meta, outrora altruísta, se torna a permanência naquele sistema corrupto. Os pobres da sociedade, ainda que teoricamente priorizados em regimes populistas, são apenas joguete eleitoreiro, números que precisam ser administrados, o óleo que mantém operando a engrenagem do enriquecimento daqueles que conquistaram o poder. O pobre pode passar a comer melhor, morar em um local mais digno, porém, nunca será minimamente estimulado pelo sistema a transcender essa condição de subserviência existencial, consequentemente, agregando conhecimento suficiente que o faça compreender como está sendo massa de manobra de interesses espúrios.

O filme original, gravado em 1964, sobre a luta de João Pedro Teixeira, líder camponês assassinado na Paraíba a mando de latifundiários, utilizando não atores em cenas roteirizadas, com a própria Elizabeth Teixeira revivendo dramaticamente suas experiências, ao que tudo indica, caso não tivesse sido interrompido pelo golpe militar, teria resultado em algo medíocre, provavelmente não teria relevância alguma hoje. O diretor, que foi obrigado a fugir, na época, com sua equipe, não desistiu da história, retornando ao local das filmagens dezessete anos depois, alquimicamente utilizando o produto de dois eventos historicamente vergonhosos: o assassinato do líder camponês e a repressão da ditadura militar, como gênese para um documentário que, de certa forma, serve como redenção e um forte pressionar do dedo na ferida. Ao se reencontrar com aquelas pessoas, a viúva, que havia até trocado de nome, e seus dez filhos dispersados pelo golpe, o cinema, através das lentes de Coutinho, atua como ferramenta que restaura a identidade desses indivíduos, injetando autoestima, reposicionando-os como cidadãos com voz. Só de escrever essas palavras, fico emocionado. É uma obra essencial, que merece ser revista com frequência. 

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