sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Cine Samurai - "Lobo Samurai" / "Lobo Samurai 2", de Hideo Gosha

Link para os textos do especial:


Lobo Samurai (Kiba Okaminosuke – 1966)
O solitário ronin Kiba chega a uma aldeia para defender uma bela mulher cega de homens inescrupulosos.
Lobo Samurai 2 (Kiba Okaminosuke: Jigoku Giri – 1967)
O solitário ronin Kiba se envolve com os planos de vingança de um prisioneiro que se parece com seu falecido pai. 


Buscando inspiração em “Yojimbo”, de Kurosawa, e nos faroestes italianos, Hideo Gosha desconstrói as expectativas do chambara já nos créditos de abertura, onde, após uma rápida demonstração de técnica do protagonista com a espada, com direito a freeze frame sublinhando uma postura de agressividade, o foco da atenção acaba sendo conduzida para o trivial ato da alimentação, com ele, já adotando uma atitude brincalhona, devorando uma tigela de arroz. Com uma pegada de humor muito similar a “Três Samurais Fora da Lei”, de 1964, resgatado pela Versátil na primeira caixa “Cinema Samurai”, ele cria Kiba, vivido com carisma por Isao Natsuyagi, um personagem que foge da abordagem amarga e cínica usuais no gênero, uma espécie de variação do que viria a ser o cowboy Trinity, vivido por Terence Hill, combinado ao Sartana, de Gianni Garko. O segundo filme, ainda que consideravelmente mais sombrio, explorando as origens familiares dele, também ganha pontos pela leveza na abordagem.

Gosto muito de uma cena que ocorre no terceiro ato do primeiro, uma atitude de Kiba que sintetiza os códigos de honra de uma sociedade mais nobre, além de distanciar ele, positivamente, de grande parte dos heróis do gênero. Ao perceber que seu oponente está com um dos braços imobilizado, ele interrompe o confronto, atando sua mão à cintura, para que ambos estejam lutando nas mesmas condições. Há uma espécie de leitmotiv discreto, envolvendo um macaquinho e, no segundo filme, uma tala que protege o pulso, símbolos que, sem revelar momentos da trama, irão reforçar o valor do sacrifício e a necessidade de se sublimar os obstáculos físicos, temas recorrentes nas duas tramas. Gosha consegue injetar nessas sequências de ação, aparentemente minimalistas, um classudo tom de reverência, transformando os homens em mitos, com o uso generoso da câmera lenta e, principalmente, do silêncio. Vale salientar também a trilha sonora de Toshiaki Tsushima, um misto de gaita e piano, que me remeteu imediatamente aos trabalhos de Ennio Morricone.

O bonito desfecho do segundo filme, com o protagonista sofrendo uma traição inesperada, pode ser visto como a gênese do anti-herói amargo típico dos chambara. É uma pena que o diretor não seguiu adiante com a história de Kiba “Presas de Lobo” em outros projetos. O ronin, tendo aprendido com o sofrimento, caminha em direção a um precipício literal, e, principalmente, existencial. 

* Os filmes estão sendo lançados em DVD pela distribuidora Versátil na caixa “Cinema Samurai 4”, que inclui também: “A Última Espada”, “Juramento de Obediência”, “Crônicas dos Shinsengumi” e “Guerra de Espiões”. 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

"Glória Sem Mácula", de Ronald Neame


Glória Sem Mácula (Tunes of Glory – 1960)
Um dos aspectos mais interessantes dessa injustamente esquecida pérola do cinema britânico, ainda que não seja algo proposital na trama, é sua crítica bem-humorada ao militarismo. O absurdo inerente às cenas que representam o conflito entre os dois oficiais experientes, vividos por Alec Guinness e John Mills, uma guerra de egos envolvendo a questão da dança tradicional escocesa ter uma pegada mais formal ou mais descontraída, parece material do grupo Monty Python. A direção sóbria de Ronald Neame ajuda, involuntariamente, a reforçar esse tom.

A vulnerabilidade emocional do personagem de Guinness, em um de seus melhores momentos no cinema, sofre um abalo considerável com a chegada do seu substituto no comando, alguém que simboliza perfeitamente esse sistema, um indivíduo que verdadeiramente se considera um ser superior apenas por sua posição na hierarquia militar. Ele, um idealista que vive e morreria para manter sua posição no regimento, despreza o relacionamento de amizade que se formou entre os companheiros, além de considerar um ultraje que os oficiais se divirtam e bebam enquanto dançam ao som de suas melodias de guerra. Jock, por outro lado, começou como um gaiteiro, tendo escalado os degraus até sua posição atual. Ele manteve em sua alma o espírito livre daquele jovem que entrou no sistema por amor à pátria, não pela ganância do acúmulo de poder, o que estimula naturalmente o respeito de seus comandados.

O que engrandece o roteiro de James Kennaway, muito eficiente em revisões, é a riqueza de motivações nos dois personagens. Você pode acompanhar cada sessão pelo ponto de vista dos dois, tomando partidos diferentes, encontrando vários argumentos que sustentem a razão em suas atitudes. Não há herói ou vilão, apenas dois homens com abordagens distintas sobre um tema em comum. O poderoso desfecho é desconcertante, um dos mais emblemáticos em sua década. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Obras-Primas do Cinema", em "Coleção Dose Dupla - Ronald Neame", tendo como extra uma entrevista com o diretor. O segundo filme é "O Homem Que Nunca Existiu", de 1956. 

"Apanhadora de Sonhos", de Kim Longinotto


Apanhadora de Sonhos (Dreamcatcher - 2015)
Brenda Myers-Powell sobreviveu a uma infância imersa na violência, sofreu abuso sexual desde os quatro anos, adentrando, em sua juventude, no ingrato mundo da prostituição. Ela lutava para manter alguma paz interior de forma lúdica, conversando com amigos imaginários, seus ídolos na música: Elvis Presley e Diana Ross, com quem dançava na solidão de seu quarto, inconscientemente fortalecendo seu espírito. Com quatorze anos, já tinha duas filhas. Anos depois, ao invés de buscar fama relatando suas experiências, ela preferiu trabalhar nas sombras, investindo seu tempo na construção da Fundação Dreamcatcher, visitando os bairros mais pobres e presenteando mulheres tão sofridas quanto ela, vítimas de todo tipo de agressão física e psicológica, com a esperança de quem percebe um reflexo diferente no espelho da vida.

A esperança envolta em um sorriso acolhedor, uma alegria que encoraja e afasta o danoso, porém, nesse caso, compreensível vitimismo. A diretora Kim Longinotto acompanha essa heroína, que, numa demonstração de tremenda resiliência, conseguiu manter intacta sua autoestima, sempre cuidando de sua imagem, em suas visitas regulares a prisões e centros de detenção juvenil. É impossível não se encantar por ela, pura simpatia e gentileza, provendo estranhas com auxílio prático, distribuindo camisinhas, além de dedicar também um tempo generoso ao ato mais precioso: escutar, sem julgamento, sem aquela superioridade típica dos hipócritas, o clássico tão popular no Brasil: “agora encontrei Jesus e sou melhor”, nada disso. Sua bondade é genuína, conseguindo, com seu olhar carinhoso, transformar o local mais opressivo, por alguns minutos, em um espaço de plena tranquilidade, possibilitando terreno fértil para que os corações mais sofridos consigam desabafar.

A câmera apenas observa à distância, a diretora não tem interesse em deixar sua impressão digital em cada cena, equívoco comum em documentários. Sem apelar para qualquer recurso de estilo que pudesse manipular o registro, evitando o sensacionalismo até mesmo nos momentos mais impactantes, “Apanhadora de Sonhos” é um documentário verdadeiramente essencial. 

"Pecados Antigos, Longas Sombras", de Alberto Rodriguez


Pecados Antigos, Longas Sombras (La Isla Mínima - 2014)
A trama é ambientada em um período de incerteza política na Espanha, cinco anos após a morte do general Franco. Dois policiais da cidade grande são enviados aos pântanos sulistas, com o objetivo de traçar o rastro de um serial killer que se aproveita de meninas interessadas em melhorar de vida, a dura consequência da instabilidade social.

De forma inteligente, o roteiro não se preocupa em delinear as motivações desses personagens, eles quase não conversam. Ao invés dos diálogos expositivos, o diretor opta por inserir sutis dicas que encaminham o público de maneira orgânica até essas contundentes revelações. Ainda que boa parte das críticas revele a questão, prefiro respeitar a experiência do público. Por exemplo, logo no início, em uma cena de perseguição a um possível suspeito, o policial mais novo, vivido por Raúl Arévalo, demonstrando a impulsividade inconsequente de um idealista, gasta seu fôlego correndo, enquanto o mais velho, vivido por Javier Gutiérrez, numa atitude arrogante, simplesmente dispara seu revólver para o alto, sabendo que o suspeito iria se amedrontar e desabar no solo. Essa divergência de atitudes encontra eco no terceiro ato.

Vale destacar a excelente fotografia de Alex Catalán, que, ao contrastar a magnitude do cenário com a mente pequena dos residentes, ajuda a construir uma aura de claustrofobia moral que parece dominar o local e seu povo, um clima macabro que me remeteu diretamente ao “Seven”, de David Fincher. O bem azeitado suspense e as digitais claras do noir não seriam suficientes para que a obra se destacasse, qualquer “True Detective” televisivo consegue resultado semelhante. O interesse do roteiro não está na resolução do crime. O que engrandece o filme é seu corajoso elemento de alegoria política, o conflito entre um sistema ditatorial mantido por egoístas e o gradativo levante daqueles que buscam estabelecer uma sociedade mais democrática. 

"O Pesadelo - Paralisia do Sono", de Rodney Ascher


O Pesadelo – Paralisia do Sono (The Nightmare - 2015)
A princípio, a execução do tema parece ser simplória, o recurso de depoimento seguido por uma reencenação soa repetitivo, mas, por algum motivo, o interesse se mantém. Conheci o trabalho do diretor Rodney Ascher através do engenhoso “O Labirinto de Kubrick”, então, quando soube que ele exercitaria sua criatividade no fascinante tema da paralisia do sono, eu fiz questão de prestigiar. Quem for à sala escura buscando um documentário padrão, vai se decepcionar, pois, felizmente, nada nele é real. Todos os depoentes são atores recitando um roteiro. O interesse do diretor, assim como no trabalho anterior citado, consiste na elaboração meticulosa do truque, no poder de sugestão criado artificialmente pela câmera.

A vida real é chata, comum, e os seres humanos, conscientes disso, aprenderam a depositar todas as suas esperanças em rituais, do manto do padre ao jaleco branco do médico. Quando pensamos que o filme irá abordar o fenômeno como uma desordem cientificamente explicável, uma imobilidade muscular causada por duas substâncias químicas no cérebro durante o estado REM, o roteiro nos joga novamente para os braços da fantasia, com uma ótima fotografia, de Bridger Nielson, que utiliza generosamente a cor vermelha, o que me remeteu diretamente, em várias cenas, aos trabalhos de Mario Bava. É muito eficiente a forma como a obra consegue criar, abusando de enquadramentos bizarros, um senso de pavor que, nesse período fraco para o gênero do terror, poucas tramas conseguem igualar.

As vítimas são filmadas com pouca luz, por vezes, dando a impressão maravilhosa de que, a qualquer momento, algo sobrenatural irá emergir das sombras e interromper a gravação. Ótimo experimento em estilo e substância, despertou ainda mais o meu interesse em acompanhar a carreira desse diretor. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"Cabra Marcado Para Morrer", de Eduardo Coutinho


Cabra Marcado Para Morrer (1984)
Nesse final de semana senti necessidade de rever alguns trabalhos de Eduardo Coutinho. É esse tipo de cinema, intensamente emocional, original, corajoso, que forja um público criterioso e consciente, elemento essencial em uma indústria. E, por mais que eu goste muito de “Edifício Master” e “Jogo de Cena”, nutro carinho especial por “Cabra Marcado Para Morrer”. Não apenas por ter sido meu primeiro contato com ele, um impacto sensorial que nunca esqueci, mas, principalmente, pela maneira correta com que sua câmera aborda um tema que, em outras mãos, poderia se tornar algo panfletário, manipulativo, reduzindo o ocorrido a uma visão simplista. Coutinho não era um moleque polemizador como Michael Moore, mas, sim, um artista verdadeiramente sensível que sumia perante as histórias importantes que se dedicava a contar. O documentarista nunca deve se considerar mais importante do que o foco de seu trabalho.

Uma frase, dita com veemência por um dos filhos da viúva do líder da Liga Camponesa, cristaliza a máxima que segue pungentemente atual: “Todos os regimes são iguais, nenhum governo presta para o pobre”. Quando a sensação inebriante de poder turva os olhos, até mesmo o mais bem-intencionado cidadão cogita, nem que seja por um ínfimo momento, abandonar seus ideais e dar as costas para seus valores. O caráter, esse traço mágico que independe de qualquer elemento externo, é o único antídoto capaz de deter essa avassaladora ambição. A meta, outrora altruísta, se torna a permanência naquele sistema corrupto. Os pobres da sociedade, ainda que teoricamente priorizados em regimes populistas, são apenas joguete eleitoreiro, números que precisam ser administrados, o óleo que mantém operando a engrenagem do enriquecimento daqueles que conquistaram o poder. O pobre pode passar a comer melhor, morar em um local mais digno, porém, nunca será minimamente estimulado pelo sistema a transcender essa condição de subserviência existencial, consequentemente, agregando conhecimento suficiente que o faça compreender como está sendo massa de manobra de interesses espúrios.

O filme original, gravado em 1964, sobre a luta de João Pedro Teixeira, líder camponês assassinado na Paraíba a mando de latifundiários, utilizando não atores em cenas roteirizadas, com a própria Elizabeth Teixeira revivendo dramaticamente suas experiências, ao que tudo indica, caso não tivesse sido interrompido pelo golpe militar, teria resultado em algo medíocre, provavelmente não teria relevância alguma hoje. O diretor, que foi obrigado a fugir, na época, com sua equipe, não desistiu da história, retornando ao local das filmagens dezessete anos depois, alquimicamente utilizando o produto de dois eventos historicamente vergonhosos: o assassinato do líder camponês e a repressão da ditadura militar, como gênese para um documentário que, de certa forma, serve como redenção e um forte pressionar do dedo na ferida. Ao se reencontrar com aquelas pessoas, a viúva, que havia até trocado de nome, e seus dez filhos dispersados pelo golpe, o cinema, através das lentes de Coutinho, atua como ferramenta que restaura a identidade desses indivíduos, injetando autoestima, reposicionando-os como cidadãos com voz. Só de escrever essas palavras, fico emocionado. É uma obra essencial, que merece ser revista com frequência. 

domingo, 25 de outubro de 2015

Nos Embalos do Rei do Rock - "Estrela de Fogo"

Links para os textos anteriores do especial:


Na tentativa de manter sua mina de ouro trabalhando sem parar, o Coronel Parker nem esperou ele voltar do exército, já havia fechado contrato para duas produções nos estúdios Fox, as últimas que viriam a primar pela elegância do material e pela qualidade técnica. Com o fracasso comercial desses filmes com uma pegada mais séria, Elvis se veria forçado a repetir, durante boa parte da década, variações de seu personagem cômico em “Saudades de Um Pracinha”. O segundo faroeste, e o melhor, dos três em sua carreira, um roteiro que havia sido pensado como veículo para Marlon Brando e Frank Sinatra, inicialmente intitulado “Flaming Lance”, o título do livro original do respeitado autor do gênero: Clair Huffaker, depois “Black Star”, até chegar ao meio-termo: “Flaming Star”. A decisão foi de última hora, já que o cantor chegou a gravar a canção-título em sua segunda versão.


Estrela de Fogo (Flaming Star – 1960)
Durante os anos que se seguiram à Guerra Civil dos Estados Unidos, a região oeste do Texas era palco do encontro nada tranquilo entre duas culturas: os brancos e os nativos. Pacer Burton (Elvis Presley), o filho de um rancheiro branco (John McIntire) e de sua bela esposa da tribo Kiowa (Dolores Del Rio). Quando a luta entre colonizadores e indígenas torna-se um fato, o jovem se vê envolvido na brutal violência, apesar de seus esforços para promover a paz.


Elvis estava inspirado nas filmagens, trabalhando nas horas vagas em seu primeiro álbum gospel: “His Hand in Mine”, onde ele se reencontrava com suas origens musicais e familiares. O roteirista Nunnally Johnson, de “Vinhas da Ira”, e que viria a escrever o clássico popular “Os Doze Condenados”, ficou responsável pela adaptação do livro de Huffaker e era a primeira opção para a cadeira de direção. Outra curiosidade interessante, a rainha do terror Barbara Steele, figura marcante em “A Maldição do Demônio”, de Mario Bava, estava contratada para ser a namorada do cantor na trama, porém, após um desentendimento com o diretor Don Siegel, que havia comandado o marco do sci-fi: “Vampiros de Almas”, foi trocada por Barbara Eden, que, anos depois, receberia fama internacional como a protagonista da série “Jeannie é Um Gênio”. Siegel receberia maior atenção no início da década de setenta, comandando “Dirty Harry”, com Clint Eastwood. A direção de fotografia ficou a cargo de Charles G. Clarke, que havia trabalhado no musical “Carrossel”, de 1956.

A trama trabalha de forma muito consciente a espinhosa questão da miscigenação e, principalmente, os direitos dos índios, usualmente retratados no cinema de maneira pejorativa, com uma abordagem que foge de qualquer estereótipo, dez anos antes de “Pequeno Grande Homem”, com Dustin Hoffman. Ao contrário de “Rastros de Ódio”, realizado quatro anos antes, por exemplo, o racismo não é retratado como aberração de alguns indivíduos ou um governo insensível, mas, sim, algo enraizado em toda uma cultura. É interessante comparar essa corajosa conduta, para os padrões do início da década de sessenta, com o filme que Elvis protagonizaria em 1968: “Joe é Muito Vivo”, que impressiona por agir de maneira completamente antagônica, reforçando todos os clichês em uma farsa bastante equivocada, que foi considerada ofensiva pelos simpatizantes da causa indígena. Mas isso será tema de um texto posterior no especial.

Uma preocupação compartilhada pelo diretor e, especialmente, por Elvis, que desejava ser desafiado como ator, era referente às canções que estavam programadas, algo em torno de dez, como estipulava o plano original do empresário do cantor. Não havia coerência alguma em colocar o personagem, inserido naquele drama familiar intenso, cantando um material que fosse comercialmente válido. Então, após alguma luta com os executivos, o diretor conseguiu amenizar o problema, limitando a uma canção que emoldurava os créditos iniciais e outra bem breve e esquecível, “A Cane and a High Starched Collar”, ambientada em uma festiva reunião familiar, nos primeiros cinco minutos. Na cena, dá pra perceber a felicidade do cantor ao terminar aquele interlúdio musical e se desfazer do violão, elemento totalmente alienígena no cenário. Siegel, que, a princípio, tinha preconceito sobre o talento do protagonista, não demorou a defender publicamente Elvis, afirmando que havia conhecido poucos atores tão sensíveis e dedicados quanto ele. Em momentos como a forte cena seguinte ao funeral da mãe, vivida por Dolores Del Rio, ou o trágico desfecho, podemos enxergar o comprometimento dele no subtexto de sua atuação.

Esse ótimo filme, o tipo de trama socialmente relevante que Elvis sonhava defender no cinema, sofreu com um péssimo timing e uma desastrosa campanha de marketing que prometia um musical, lançado apenas quatro semanas depois do bem-sucedido “Saudades de Um Pracinha”, que o cantor se arrependia de ter feito, amargou o desinteresse do público, que procurava aquele mesmo clima divertido e descompromissado. O próximo projeto, também resultado da luta dele por melhores papéis, seria roteirizado pelo respeitado Clifford Odets, de “A Embriaguez do Sucesso”.

A Seguir: “Coração Rebelde” (Wild in The Country)

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Razzle Dazzle - "Violetas Imperiais"


Violetas Imperiais (Violetas Imperiales – 1952)
Durante um passeio por Sacromonte, a cantora e cigana Violeta (Carmen Sevilla) lê a mão da bela jovem Eugênia de Montijo (Simone Valère), onde vê que um dia ela se tornará imperatriz. Algum tempo depois, Violeta se muda para Paris, onde se estabelece como criada pessoal de Eugênia, agora imperatriz da França e casada com Napoleão III (Louis Arbessier). Junto a Eugênia, vive seu primo, Don Juan de Ayala (Luis Mariano), um galanteador que, ao se apaixonar por Violeta, resolve conquistar o seu coração de cigana.

Conheci o tenor Luis Mariano através da homenagem que ele recebeu no belo filme “O Oitavo Dia”, interpretado por um sósia, com suas músicas emoldurando os sonhos do jovem com síndrome de Down. É muito importante esse trabalho de resgate da distribuidora “Classicline”, que me fez ter contato com essa bela opereta, filmada com o limitado processo de cores da Gevacolor, contando com o carisma do protagonista e da belíssima Carmen Sevilla. É interessante perceber a semelhança com o posterior sucesso popular “Sissi”, na visão açucarada e fantasiosa das cortes europeias, um contexto onde as canções, o gênero musical como um todo, nunca soam antinaturais.

A trilha é muito boa, com destaque para “Gitana”, acompanhado pela dança encantadora de Sevilla, e a elaborada sequência de “Milagro de París”. Uma das canções, a principal e mais famosa, “El amor es um ramo de violetas”, composta pelo francês Francis Lopez, poderia tocar várias vezes mais durante o filme e não enjoaria, uma declaração de amor emocionante, e que, em nossos tempos cínicos modernos, faz com que tenhamos vontade de voltar a esse passado de elegância. Espero que a “Classicline” continue lançando essas produções protagonizadas por Mariano, como “El Cantor de México”, dirigida pelo mesmo austríaco Richard Pottier, uma lacuna que merece ser preenchida em nosso mercado de home video. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

Tesouros da Sétima Arte - "Trágica Obsessão", de Brian De Palma


Trágica Obsessão (Obsession - 1976)
Brian De Palma é, numa análise comparativa, o Tarantino profissionalmente maduro, um cineasta que consegue amalgamar suas referências de forma bastante consciente, pensando obras que claramente homenageiam suas matrizes, porém, demonstram a ousadia criativa de quem reverencia um colega de vocação, não o beija-pé de um fã adolescente com seu ídolo. “Trágica Obsessão” não costuma figurar no topo das listas de melhores filmes dele, algo que efetivamente não consigo compreender. Sempre considerei muito superior a “Vestida Para Matar”, “Síndrome de Caim” e “Dublê de Corpo”, outros momentos hitchcoquianos do diretor.

Algo me faz retornar com frequência ao dueto proustiano entre Cliff Robertson e Geneviève Bujold, essa relação que evoca “Um Corpo que Cai” com tanta propriedade, um roteiro corajoso de Paul Schrader, que, com toda classe e elegância romântica, valorizada na trilha de Bernard Herrmann e na fotografia difusa de Vilmos Zsigmond, sugere situações mais aterrorizantes do que encontramos em muitos filmes de terror. Revelar muito sobre a trama é altamente prejudicial, então tentarei focar numa leitura complementar. O protagonista, um homem que valoriza tremendamente o confortável status social que seu trabalho garante, acaba se vendo em uma situação onde precisa, pela primeira vez em anos, tomar uma decisão intempestiva, instintiva, o que ocasionará na tragédia que irá transformar sua vida. Dezessete anos depois, um período que a trama contundentemente omite, dando a impressão de que foi um coma existencial, ele terá uma chance única de revisitar o seu trauma e se livrar do peso que carrega em sua consciência.

Acho fantástica a forma como o diretor evidencia o senso de perigo logo na cena inicial, a cerimônia festiva no lar do casal, convidados dançando valsa, mas, sutilmente, jogando diretamente com o público, a câmera flagra um revólver escondido na cintura de um dos sorridentes garçons. A violência que aguarda à espreita em um ambiente aparentemente tranquilo, complementada pelo leitmotiv que se apresenta numa cena dentro de uma igreja, com o discurso sobre manter, ou não, uma pintura restaurada de um artista, ainda que se descubra que ela esconde uma arte desconhecida, um esboço ou algo mais interessante. Vale a pena se desfazer do garantido, a projeção do desejo, motivado pela curiosidade sobre o novo? O desfecho intensamente perturbador, emoldurado pela fotografia onírica estabelecida em cenas anteriores, insinua que a realidade pode ter sido radicalmente diferente desse “final feliz” em freeze frame. Essa dúvida, esse diálogo constante com o espectador, é um dos aspectos que mais me fascina na obra. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil".

"Sicario - Terra de Ninguém", de Denis Villeneuve


Sicario - Terra de Ninguém (Sicario - 2015)
Os dois últimos filmes do diretor, “Os Suspeitos” e “O Homem Duplicado”, entraram em minhas listas de dez melhores em seus respectivos anos, então nem preciso salientar o quanto aprecio o trabalho de Denis Villeneuve. Ele retorna com a mesma pegada tensa, esbanjando sua facilidade na construção do clima, porém, infelizmente, acaba sendo vítima de um roteiro fraco, cheio de situações convenientes e incoerentes, escrito pelo estreante Taylor Sheridan.

Os fios tão bem manipulados por esse titereiro, desta feita, ficam claramente visíveis, ainda que a belíssima fotografia de Roger Deakins consiga, em diversos momentos, atuar como um mágico competente, iludindo para que não enxerguemos a frágil composição dos arcos narrativos, um roteiro que liga os pontos e conduz o espectador pela mão, na tênue linha do panfletário em seu tema. Ainda assim, é impressionante a competência do diretor ao estabelecer o senso de perigo em cenas teoricamente tranquilas, onde a movimentação frenética que ocorre é interna, nas motivações dos personagens. 

Algo que me incomodou foi o desleixo na representação estereotipada do contexto mexicano, que contrasta com o senso de realidade presente na obra. Os vilões são facilmente discerníveis, como em uma revista em quadrinhos. Sempre que a trama se afasta da personagem vivida por Emily Blunt, uma agente do FBI que busca confrontar um chefão do crime mexicano, com motivações bem desenvolvidas e uma atuação plena em nuances, deixando em evidência suas transformações internas, o tédio toma conta, com sequências e soluções convencionais. Benicio del Toro também consegue dar tridimensionalidade às suas ações, sugerindo com sua projeção vocal uma tensão que agrega um misto de perigo e fragilidade, ainda que defenda um texto fraco em poucos diálogos. Não é algo que irá incomodar o cinéfilo casual, o filme está longe de ser ruim, mas, conhecendo o talento do diretor, mestre em desafiar o público, dá certa frustração constatar essa derrapada. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Kung-Fu Fighting - "Cão de Briga", de Louis Leterrier

Link para os textos do especial:


Cão de Briga (Danny The Dog – 2005)
Desde que Bart tirou Danny da rua, com a idade de quatro anos, sempre o tratou como um cão, treinando-o literalmente para o ataque. Danny é hoje sua arma total, capaz de se atirar sobre qualquer um, após uma simples ordem, sem a menor chance de defesa. Isolado do mundo, Danny não tem outra escolha que não aceitar essa existência de animal, até que, por acaso, encontra Sam, um cego afinador de pianos.


O que parece, a princípio, uma trama tola servindo de desculpa para as cenas de ação, na realidade, pode incitar até análises psicológicas comportamentais profundas. Em qual filme de artes marciais você pode complementar a sessão com um debate filosófico sobre o condicionamento operante, como estudado por B.F. Skinner? Ok, eu não vou forçar a barra, o roteiro do Luc Besson não estimula essa reflexão de forma adulta, por mais interessante que seja o arco narrativo do protagonista, vivido por Jet Li, é um elemento tratado timidamente em cena, que chama a atenção exatamente por estar inserido em um gênero onde esse tipo de refinamento é usualmente ignorado. O segundo ato, especialmente, é bastante irregular, arrastado, com subtramas desnecessárias e uma direção pouco segura, como se Louis Leterrier estivesse sofrendo para evitar transformar a história estabelecida no primeiro ato em uma comédia burlesca.

O que verdadeiramente importa é a eficácia das cenas de luta, um show de técnica marcial que envolve Wushu, Judô e Kung-Fu, com o mestre coreógrafo Yuen Woo-ping criando um estilo animalesco impactante, sem utilização excessiva de cabos, e que, defendido pela ótima atuação de Li, inserindo um subtexto emotivo fundamental nas cenas mais importantes, enfatiza o estado bruto de um personagem que não foi treinado formalmente e, nesse processo de progressão gradativa, de um cão de guarda acéfalo a um lutador que conscientemente engendra estratégias de ataque, engrandece sobremaneira um resultado que tinha tudo para ser banal. O ponto alto é o confronto entre Li e Michael Ian Lambert, aproveitando genialmente o confinamento do ambiente, um minúsculo banheiro. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Devo Tudo ao Cinema - S01E09 - É Possível Fazer Cinema Sem Recursos? (3 de 5)

É possível fazer cinema sem recursos? Nessa terceira parte, falo, entre outras coisas, sobre o processo de filmagem do meu terceiro curta: "Surpresa!", mostrando também um vídeo dos bastidores das gravações.


Links para as partes 1 e 2:
http://www.devotudoaocinema.com.br/2015/09/devo-tudo-ao-cinema-s01e05-e-possivel.html
http://www.devotudoaocinema.com.br/2015/09/devo-tudo-ao-cinema-s01e07-e-possivel.html

Rebobinando o VHS - "Space Camp - Aventura no Espaço"

Link para os textos do especial:


Estava eu, numa manhã chuvosa, revendo esse filme que marcou minha infância, após dezessete anos. Uma das gravações em VHS que eu mais colocava pra rodar no aparelho, um milagre que a fita esteja viva, ainda que a imagem tenha amarelado bastante.


Space Camp – Aventura no Espaço (Space Camp – 1986)
Andie, uma astronauta que nunca foi para o espaço, é escalada para treinar um grupo de estudantes num curso de férias organizado pela NASA. Numa das aulas, ela e os adolescentes de seu grupo entram num ônibus espacial, que é acidentalmente lançado ao espaço.


Tive dúvidas sobre onde postaria esse texto, já que ele poderia, com folga, fazer parte do especial “Cine Bueller”, porém, esse faz parte da minha primeira fase de consciência cinematográfica, aquela época retida ludicamente na memória, por volta dos seis anos, antes do período escolar se firmar com a “Sessão da Tarde”. E, anos mais tarde, quando ele passava frequentemente na televisão, no período em que sofria o auge do bullying na escola, eu me sentia mal ao assistir a cena do robô sofrendo uma avaria técnica, tentando atender a todos os jovens que o haviam descoberto e estavam abusando dele. A decepção do menino, que cuidava do robô, era algo que me perturbava bastante, a ponto de evitar todo aquele trecho do filme. Ao rever hoje, claro, sem o processo de identificação imediata, ainda considero um momento esquisito, estranhamente sombrio, em um projeto que é, em essência, totalmente leve e alegre.

O primeiro choque, logo nos créditos iniciais, algo que nunca tinha percebido: Joaquin Phoenix, celebrado de forma justa atualmente por obras-primas como: “Ela”, interpretou o pequeno Max. Eu não me identificava com ele, apesar da idade, porque nunca tive aquele sonho típico de ser astronauta. Quando me perguntavam o que eu queria ser, apenas porque eu estava lendo um livrinho ilustrado sobre a teoria da relatividade de Einstein, comprado na banca de jornal, fascinado com tudo aquilo, eu dizia que queria ser cientista. Bom, o que realmente importa é que a trama parte de um pressuposto absurdo: adolescentes no espaço, ou, vale ressaltar, adolescentes incrivelmente estereotipados no espaço. Tem o mulherengo tonto, a riponga descolada, a patricinha esforçada, vivida pela linda Lea Thompson, mãe do Marty McFly, e o esportista que vive mascando chiclete. Caso eles tivessem ganhado superpoderes nessa viagem, poderia ser facilmente a base para um projeto dos “Power Rangers”. Ah, tem também o Tom Skerritt, vivendo o comandante da missão, levando a sério demais o seu papel, o que me faz crer que deram uma versão alternativa do roteiro pra ele. E, claro, Kate Capshaw, a eterna namorada de Indiana Jones, em “O Templo da Perdição”, fazendo com charme, basicamente, uma variação da mesma personagem que interpretou em toda a sua carreira: ela própria. Com esse elenco desafinado, uma direção pouco criativa de Harry Winer, uma das piores trilhas sonoras da carreira de John Williams, e, para piorar, o péssimo timing de lançamento, meses depois da tragédia com o ônibus espacial Challenger, essa produção estava fadada ao fracasso comercial.

Um ponto que vale salientar, algo que me incomodou bastante nessa revisão, o arco narrativo da patricinha. Ela inicia com um discurso corajoso, desejando ser a primeira comandante mulher de um ônibus espacial, arruma confusão, encara o desafio, vence seus medos, ok. Em dado momento crucial, na hora em que tudo leva a crer que veremos a jovem provar seu valor e realizar seu sonho, ela percebe que seu namoradinho, o mulherengo tonto, está mais capacitado para a tarefa. Ela então entrega sorridente o comando nas mãos dele. Caso tivesse uma cozinha no ambiente, com certeza, o roteiro a colocaria vestindo um avental e se prontificando a limpar a louça da equipe. É simplesmente uma subtrama que não leva a lugar algum, sem nenhuma coerência. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Cine Bueller - "O Bagunceiro Arrumadinho", de Frank Tashlin

Link para os textos do especial:


O Bagunceiro Arrumadinho (The Disorderly Orderly – 1964)
O desastrado enfermeiro Jerome, que, na tentativa de conquistar seu sonho de se tornar um médico, peca por tentar demais, como afirma a hilária Kathleen Freeman, é um dos personagens mais carismáticos de Jerry Lewis, ainda que o filme tenha se revelado, nessa revisão, menos engraçado do que minha memória jurava ser, ou, como prefiro pensar, apenas um exemplo de veículo na filmografia dele pensado especificamente para crianças pequenas. O erro está em analisar a obra com o olhar crítico do adulto. Eu passava mal de tanto rir, aos nove anos, nas sessões do “Festival de Férias” global, que substituía a “Sessão da Tarde”, com a cena dele tentando escovar os dentes de um senhor desdentado, com o protagonista, dublado pelo ótimo Nelson Batista, quebrando a quarta parede e desabafando com o público. Minha mãe deve ter ficado enjoada de tanto que eu imitava as expressões dele nessa cena.

A estrutura do roteiro é bastante irregular, sem ritmo, com repetições de gags, como o da perturbação do silêncio, executada muito melhor em “O Professor Aloprado”. Toda a subtrama envolvendo a bela paciente de temperamento forte, vivida por Susan Oliver, é desenvolvida aos tropeços e reutiliza a fórmula que Chaplin imortalizou em “Luzes da Cidade”, com o rapaz se matando de trabalhar para, sem que ela saiba, poder pagar o seu tratamento. Apenas dois momentos são verdadeiramente brilhantes, daqueles que fazemos questão de retroceder e assistir novamente: 1) A penúria do enfermeiro, um show de humor físico de Lewis, que escuta a descritiva explicação de uma senhora hipocondríaca, hilária Alice Pearce, sobre seus vários problemas de saúde. Quando a lamúria chega ao relato sobre os frágeis rins, desafio você a segurar o riso. 2) O tour de force no terceiro ato, onde acompanhamos uma estranha perseguição de carros, com Lewis correndo mais rápido deitado em uma maca. A execução é impecável, material pra deixar os mestres do cinema mudo orgulhosos.

Dos seis filmes que o diretor Frank Tashlin fez com Lewis, após o término da dupla com Dean Martin, esse só perde para “O Detetive Mixuruca”, uma bobagem das mais dispensáveis. O melhor momento na parceria, após rever todos, é “Errado pra Cachorro”, que será o tema de um próximo texto no especial “Make 'Em Laugh”. Mas eu não poderia deixar de incluir nesse espaço, em que resgato as memórias da infância e adolescência, o filme que, com todos os defeitos que percebo hoje, segue sendo uma das lembranças mais ternas daquela época. Como era bom ser criança nos anos oitenta, ter como babá eletrônica artistas desse nível.  

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

"The Warriors - Os Selvagens da Noite", de Walter Hill


The Warriors - Os Selvagens da Noite (The Warriors – 1979)
Nova York, 1979. A cidade está tomada pelas gangues de rua que guerreiam entre si e contra a polícia. Cyrus (Roger Hill), o líder da maior gangue da cidade, os Gramercy Riffs, declara uma trégua e convoca uma reunião geral no Bronx com a intenção de unir todas as gangues para a dominação total da cidade. No entanto, durante o seu pronunciamento, é assassinado. Para se salvar, o assassino imediatamente acusa os Warriors, que passam a ser perseguidos por toda a cidade.


Sem dúvida alguma, objeto de adoração por aqueles que acompanharam seu lançamento, com todas as polêmicas que despertou, incluindo brigas de gangues que marcavam encontro nas sessões. O estúdio se viu obrigado a deixar de lado as propagandas, já que muitos exibidores desistiram de passar o filme. No Brasil, passava nas madrugadas televisivas da década de 80.

A trama, baseada livremente em obra homônima de Sol Yurick (inferior, em alguns aspectos, especialmente por não conter a subtrama da injusta perseguição pela morte do líder) e no conto grego “Anábase”, de Xenofonte, é muito simples e esconde uma camada filosófica, além de um refinamento de estilo, que poucos se dedicam a reconhecer. Seus créditos iniciais são criativos e já evidenciam características importantes dos personagens centrais, com exceção de Swan, vivido por Michael Beck, cuja incógnita existencial é essencial em seu arco narrativo. São traços rápidos, propositalmente caricaturais, como é usual nos roteiros de Walter Hill. Swan inicia como o segundo em comando, sem experiência alguma e sem demonstrar nenhum interesse escapista nos atos do grupo, reparem que ele não sorri em nenhum momento, apenas simbolicamente no final, quando sutilmente reconhece em sua frente o verdadeiro assassino do líder, porém, atua naquela noite como se tudo não passasse de um teste que ele impôs a si mesmo. Ele não ambiciona ser líder por satisfação do ego, mas, sim, por um senso de responsabilidade para com seus colegas. Ele é o único personagem que se modifica tremendamente ao longo da duração do filme. Não é por acaso que ele é mostrado nos créditos finais caminhando atrás de todo o grupo, ressaltando que havia decidido internamente que não queria mais viver aquela vida.

Detalhes sutis de iluminação, do veterano Andrew Laszlo, ressaltam o trabalho minucioso da direção, como na transição das luzes do semáforo (vermelho e amarelo), para Swan e sua garota caminhando no túnel do metrô, sendo imediatamente banhados pela luz vermelha, exatamente no momento em que seu personagem experimenta uma agressiva mudança de humor. Vale ressaltar também que, ao clarear o dia, quando os Warriors terminam sua ronda, a câmera evidencia que eles saltam do trem (outro leitmotiv) na “Stillwell Avenue” (algo como: “Avenida ainda a salvo”), como que um sinal de que tudo não passou de encenação inofensiva. Basta perceber que Luther, vivido por David Patrick Kelly, supostamente o grande vilão, não passa de um esquisito franzino cômico de voz esganiçada, numa composição que beira a vergonha alheia. 

O fato de haver poucas cenas de batalha entre as gangues já serve como um sinal, aliado à ingenuidade inerente, por exemplo, aos uniformes de cada gangue, de que tudo se resume a uma alegoria fantástica, uma metáfora envolta em entretenimento politicamente incorreto, com forte inspiração nas histórias em quadrinhos. Interessante é a forma como algumas cenas são melhoradas na edição, com cortes de frames, intensificando a velocidade de movimentos e aumentando a noção de fantasia. Diferente de outros projetos similares da época, Hill não buscava veracidade alguma em seu passeio na “roda gigante” (leitmotiv estabelecido desde o início), onde os personagens estão eternamente presos em seus próprios paradigmas. 








* A editora "Darkside Books" está lançando, com o refinamento já reconhecido pelos leitores, a obra original de Sol Yurick, escrita em 1965, inédita no Brasil. É uma pérola essencial na estante do cinéfilo mais dedicado. 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

"Perdido em Marte", de Ridley Scott


Perdido em Marte (The Martian - 2015)
Estreando com um timing perfeito, já que a NASA recentemente afirmou haver água em Marte, esse é o primeiro grande filme de Ridley Scott em muito tempo. Arrisco ir além, após algumas incursões desastradas no gênero da ficção científica, o diretor consegue aqui um resultado que faz justiça aos seus clássicos: “Blade Runner – O Caçador de Androides” e “Alien – O Oitavo Passageiro”. Um misto de “Gravidade”, “Náufrago” e “Interestelar”, que consegue ser melhor que essas três produções. E vale mencionar que a solução encontrada para aprofundar o arco narrativo de um personagem que passa todo o tempo isolado, o ato de se manter gravando o registro de sua jornada, é mais verossímil que Tom Hanks e sua superestimada bola Wilson.

O elemento da ciência, especialmente, raramente foi tratado com tanto respeito no cinema, com o astronauta, vivido brilhantemente por Matt Damon, utilizando-a amplamente na superação de seus vários obstáculos, dado como morto por sua equipe em solo marciano, trabalhando o leitmotiv da potencialidade humana, uma visão otimista e intelectualmente madura, um contraste interessante em um período dominado pela distopia na indústria. Até mesmo o recurso do 3D, usualmente dispensável, é utilizado com esperteza pela fotografia de Dariusz Wolski, sempre se beneficiando da profundidade de campo, explorando a dimensão do planeta, o que intensifica sobremaneira a tensão e a claustrofobia de algumas cenas importantes. 

A composição tridimensional de Damon, indo da resiliência inconsequente ao desespero existencial, que facilita tremendamente o investimento emocional do público no terceiro ato, injeta humor na medida certa, demonstrando a segurança do roteiro de Drew Goddard, que adapta com fidelidade o ótimo livro de Andy Weir, sobrando espaço para referências inteligentes de várias mídias. Só por não haver qualquer envolvimento romântico clichê, o texto já merece palmas de pé. É contagiante testemunhar o esforço criativo do astronauta, numa elegante montagem que, com grande senso de ritmo, alterna suas aventuras, pequenas grandes conquistas e eventuais frustrações, com a angustiante interação de sua equipe na Terra, com destaque para as fortes presenças dos sempre competentes: Jessica Chastain e Chiwetel Ejiofor. 

“Perdido em Marte” é, acima de tudo, muito divertido. Elemento que gradativamente foi sendo extirpado da ficção científica, um reflexo de nosso tempo mais cínico. 

domingo, 11 de outubro de 2015

O. Henry e "Páginas da Vida"


Páginas da Vida (O. Henry’s Full House – 1952)
Escrever sobre esse filme foi uma ótima desculpa para reler “Os Melhores Contos de O. Henry”, edição do Círculo do Livro, saboroso fruto de um dos meus garimpos nos sebos cariocas. Gosto demais do estilo desse autor injustamente tão pouco conhecido no Brasil, crônicas objetivas, traços rápidos que estabelecem bem os personagens e o contexto das situações, sempre com uma espirituosa reviravolta no final. Um humor que continua tão eficiente quanto em sua época, talvez, até mais moderno em sua estrutura, do que grande parte dos textos cômicos atuais. E aprecio, principalmente, a mensagem inerente aos textos, que celebram valores e princípios há muito esquecidos, como no meu favorito: “O Presente dos Magos”, que recebeu uma excelente adaptação nessa antologia, dirigida por Henry King e protagonizada por Farley Granger e a belíssima Jeanne Crain, fechando de forma magnífica a obra. O sacrifício de um casal, que aprende, na véspera do Natal, o real significado do amor.

A cereja no bolo é a participação do escritor John Steinbeck, em rara aparição na frente das câmeras, como o narrador de cada trama. Como em toda antologia, a qualidade varia bastante, porém, dentre as cinco histórias, não há sequer uma ruim. A mais irregular, “O Resgate do Chefe Vermelho”, dirigida por Howard Hawks, consegue atingir pontos hilários, com a dupla de sequestradores atrapalhados percebendo que o pequeno refém é osso duro de roer, conduzindo a um desfecho brilhante, que obviamente não revelarei. A terceira, o ponto alto do projeto, “A Última Folha”, dirigida por Jean Negulesco, adaptada de um dos contos mais emocionantes do autor, consegue acertar no tom do melodrama, sem se debruçar demais na sacarina. Acredite nesse escriba, quanto menos você souber sobre essa trama, melhor será a experiência, e, não tenha dúvida, você vai precisar de muitos lenços ao final.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora: “Obras-Primas do Cinema”, com ótimo material extra, curtas e um bom documentário sobre a vida e obra do escritor O. Henry.

"Mentes Que Brilham", de Jodie Foster


Mentes Que Brilham (Little Man Tate – 1991)
Aos sete anos, Fred (Adam Hann-Byrd) demonstra ter talentos extremamente precoces, se destacando em áreas distintas como matemática e artes. Ele tem consciência de seu dom, da mesma forma que conhece a responsabilidade que ele lhe traz, o que o torna uma criança hipersensível. Sua mãe (Jodie Foster) é solteira e trabalha como garçonete em um restaurante chinês. 


Jodie Foster, nesse que foi seu primeiro trabalho na direção, consegue estabelecer, no superior primeiro ato, a beleza na relação entre a mãe, a garçonete vivida pela própria Jodie, e o filho superdotado, o elemento mais bem desenvolvido na trama. O garoto, vivido por Adam Hann-Byrd, uma das melhores interpretações infantis do cinema, evita os radicalismos do estereótipo de uma criança-gênio. A sua segurança, seu controle emocional, chega a contrastar com a abordagem equivocada de alguns colegas em cena, como a do menino arrogante que pratica bullying, sempre alguns tons acima do necessário.

O roteiro de Scott Frank, que anos depois faria “Minority Report”, acerta ao manter os personagens longe da caricatura. Ninguém é totalmente bom ou ruim, o que engrandece o conflito entre a mãe e a personagem de Dianne Wiest, que, apesar de querer ajudar a criança, com quem se identifica, demonstra pedantismo e certa tendência ao abuso de poder, por se considerar, devido ao seu intelecto, um degrau acima dos comuns. O tema da integração da criança superdotada na sociedade é muito bem trabalhado, evidenciando o conflito entre o método materno de superproteção/isolamento e o método da psicóloga, que estimula a valorização do diferencial dele como algo a ser exposto, colocando ele em competições, um farol das potencialidades humanas. O garoto acaba descobrindo que o melhor caminho é o meio-termo, a união do carinho protetor e da consciência do talento. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora: “Classicline”.

Guilty Pleasures - "Top Gang 2 - A Missão"

Link para os textos do especial:


Top Gang 2 – A Missão (Hot Shots! Part Deux! – 1993)
Como tentar transportar o leitor adolescente de hoje para o contexto em que vivi a experiência desse filme? Era uma realidade tão diferente. Pra começo de conversa, consigo me lembrar da exata sensação de euforia que sentíamos ao adentrar uma locadora de vídeo, com o intuito de selecionar quais títulos iriam nos consumir o tempo do final de semana. Uma boa comédia, mais do que qualquer outro gênero, era o sinônimo de família reunida. Num final de tarde, estava eu, com meu pai, na “RG Vídeo”, quando o atendente sinalizou a devolução do mais novo fenômeno de locações, a sequência de “Top Gang – Ases Muito Loucos”. O grande atrativo, você veja só, era um bônus que vinha antes do filme, um trecho do grande sucesso da época: “Mr. Bean”, se não me falha a memória, o encontro dele com a rainha da Inglaterra. Eu juro, tinha gente que alugava mais pra poder rir do Rowan Atkinson, em franca ascensão no Brasil naquele ano.

O pôster que eu tinha no meu quarto na infância não deixa negar, o Rambo era um dos meus heróis favoritos, o livro de David Morrell, a versão de bolso da série: “Campeões de Bilheteria”, era minha “Turma da Mônica”, então fiquei entusiasmado com aquela paródia, esse era o grande atrativo. O primeiro filme é tecnicamente melhor, mais redondo, focando as brincadeiras em apenas um projeto, porém, não tinha me agradado muito. Já o segundo, inferior em todos os aspectos, sempre me fez rir. O letreiro inicial, com o datilógrafo tendo dificuldade em escrever uma palavra, dá o tom da palhaçada, um humor menos elegante do que “Apertem os Cintos, O Piloto Sumiu” e “Corra Que a Polícia Vem Aí”, com um clima constante de brincadeira da galera do fundão da sala de aula. Comparado aos vergonhosos similares realizados hoje em dia, pode ser considerado uma obra-prima.

Saddam Hussein vibrando ao assistir Arsenio Hall na televisão, biscoitinhos servidos de um busto de Abraham Lincoln, duas das várias piadinhas bobas que o roteiro joga logo nos primeiros minutos. É trivial, não há como disfarçar, risada sem contundência. O negócio começa a melhorar quando acompanhamos a viagem do Coronel Trautman genérico, vivido pelo próprio Richard Crenna, para a Tailândia, ao encontro de Topper Harley, Charlie Sheen na melhor fase de sua carreira, antes de virar uma paródia de si mesmo. Essa sequência conseguia homenagear, ao mesmo tempo, “Rambo 3” e “Kickboxer – O Desafio do Dragão”, duas das fitas que eu mais alugava. Nunca mais eu conseguiria ver a cena dos punhos dos lutadores no vidro sem sentir falta das jujubas e do doce de leite. Era a maior curtição ficar tentando captar todas as referências, que, vale dizer, não eram nada sutis. O mais interessante é que muitas das falas mais engraçadas eram tiradas quase que ipsis litteris dos diálogos em “Rambo 3”, salientando o fato de que o diretor Jim Abrahams estava conduzindo a paródia de uma paródia que se levava a sério. São muitas as cenas que funcionam no segundo ato. Só de me lembrar do momento de tensão sexual no banco de trás da limousine, ao som de “I’m So Excited”, com o motorista aproveitando a vista com óculos 3D e comendo pipoca, não consigo segurar o riso. Eu veria um filme inteiro composto dos bastidores das filmagens desse filme, imagino a diversão desse elenco no set.

É uma pena que não tenham realizado uma terceira parte. Com certeza seria mais um prazer culposo nesse especial.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Entrevista com Alice Gonzaga, da "Cinédia"


Em mais uma entrevista exclusiva para o “Devo Tudo ao Cinema”, um verdadeiro presente para os cinéfilos dedicados, dona Alice Gonzaga, filha do visionário criador do primeiro estúdio de cinema brasileiro, a “Cinédia”, aborda a situação cultural do Brasil de hoje, as dificuldades de se manter um legado em uma nação que não valoriza sua memória.


O - O seu nome, Alice, não virou sinônimo apenas da Cinédia, como guardiã desse legado, mas, também, sinônimo de resistência cultural em uma nação onde o sistema parece querer, gradativamente, desestimular na juventude o apreço pelo passado. Sem o respeito pelo passado, é impossível compreendermos o presente, além de facilitar tremendamente a manipulação no futuro. Como exemplo, eu cresci assistindo aos clássicos do cinema em exibições na televisão, horário nobre e horário da tarde. Hoje isso é quase uma utopia. Como você enxerga essa espécie de indústria nacional do desinteresse?

A - Não sei se sou sinônimo de resistência, mas luto pela memória do cinema, do cinema brasileiro e da cultura brasileira. Rejeitar a memória é rejeitar a experiência e a possibilidade de descobrir algo que não está lá no passado, mas aqui ao lado. Tudo que sobrevive ao passado está sempre em nosso presente. É um tiro na cabeça desperdiçar conhecimento, afeto, sentimento, emoção, lazer e tudo o mais que a cultura pode proporcionar, além de ser um ativo que o país não deveria jogar fora. Vivo agora um momento kafkiano na trajetória da Cinédia. Existimos como empresa, temos 85 anos de existência, filmes que são considerados clássicos, e, agora, quando surge um mercado promissor com a TV a cabo, os filmes anteriores a 2008 não preenchem cota de lei, apenas “meia cota”, que leva ao desinteresse comercial, cultural, histórico. É um absurdo! Na era da internet, quando a lógica é a disseminação do conhecimento, é a disponibilização das obras, a televisão brasileira, que já foi assim no passado, chega ao absurdo de colocar tudo on demand e negar à quase totalidade dos brasileiros o acesso ao que esses mesmos brasileiros financiam com o suor do seu rosto. É uma baita contradição e uma injustiça.

O – Como era o Adhemar Gonzaga, pai? Acredito que a música exerce uma importância enorme na vida de mentes criativas. Quais músicas ele gostava de escutar em casa? Quais livros ele apreciava ler? 

A - Adhemar Gonzaga era criativo, mas à sua maneira. Ele não ouvia música ou lia regularmente. Toda sua vida foi voltada para o mundo do cinema, desde pequeno. Mas por conta do cinema ele entrou em contato com os espetáculos ao vivo, frequentou os espaços do samba, viveu as plateias e os bastidores do teatro da praça Tiradentes. Das artes, a que ele praticou mesmo foi o desenho e a caricatura, e, obviamente, o cinema, para onde tudo convergia.

O -  Lá fora, cineastas como Martin Scorsese, Coppola e Spielberg, verdadeiramente apaixonados, contribuem para manter viva a história da arte, patrocinando restaurações de obras que se perderiam. Acredito que essa é uma das razões que impedem que, no Brasil, amadureça uma indústria de cinema de nível competitivo: os atores e cineastas enxergam o trabalho de forma muito imediatista, pouco valor dão ao passado. Os poucos que tentaram nutrir uma indústria autossustentável, como seu pai e Mazzaropi, foram massacrados pela crítica, desestimulados de todas as formas possíveis. O governo tem sua parcela de culpa, claro, porém, não falta aos realizadores de cinema brasileiros o mesmo tipo de empenho pela própria classe? 

A - Olha, fazer cinema no Brasil sempre foi muito difícil e isso criou uma cultura imediatista, que teve seu lado bom – brigar pela existência de um cinema brasileiro – e ruim – verdadeiramente não se olha para o passado. O ponto central dessa questão é que não formamos uma tradição e isso está diretamente ligado ao reconhecimento de um passado, de uma história, de uma cultura cinematográfica própria. Meu pai, Adhemar Gonzaga, tinha consciência disso e insistiu em preservar documentos, filmes, tudo. Só assim poderia criar um sentimento de classe, um projeto de cinema que soubesse de onde vinha, para onde iria. Fazer por fazer, todo mundo pode fazer, mas, fazer consciente, dando uma contribuição efetiva, já é outra coisa.

O – Como a senhora enxerga a valorização atual das chanchadas pela crítica, quando, durante muito tempo, elas eram injustamente tratadas como um produto menor? A qualidade de produção era impecável, os figurinos e os cenários, grandiosos. Os musicais da MGM, da década de 50, muitos deles eram bregas, inferiores aos musicais que nós fazíamos, porém, ninguém reclamava. Essa reação era uma variação do complexo de vira-latas? 

A - Essa questão é muito complexa. Vem da própria formação do Brasil, que teria um povo de segunda classe, inferior, sem capacidade de criação sofisticada. Por outro lado, sabemos que o colonialismo não é apenas uma questão de “complexo de vira-lata”. O colonizador cria uma situação mental, como argumentava Fanon, e isso atravessou boa parte da crítica cinematográfica brasileira, que partia sempre da premissa de que o filme estrangeiro era melhor por ser “mais” (caro, luxuoso, grandioso etc.). O equívoco está em desconsiderar o próprio filme brasileiro como fonte do que se quer argumentar, pró ou contra, e sem comparações em um primeiro momento. E quando se comparar deve-se sempre ter em mente que os contextos são sempre diferentes. Há racismo no Brasil e nos Estados Unidos, como há cinema nos dois países, mas o racismo de lá não é da mesma natureza e intensidade do daqui. Compreender, um e outro, é se abrir às especificidades e características locais, sem partir de um ideal ou paradigma.


O – Comente um pouco sobre o profissionalismo das equipes que conduziam a Cinédia. Eram filmes realizados sem qualquer apoio governamental, muito pelo contrário, o governo quase sempre atrapalhava o processo. A paixão era o que movia o empreendimento. O que o cinema nacional de hoje poderia aprender com o cinema que era realizado pela Cinédia?

A - A Cinédia fez a maior parte de seus filmes em outro momento histórico. O cinema realizado pela Cinédia era uma vontade de ser um cinema forte, visto pelo público, um cinema brasileiro com temas brasileiros. O padrão de produção era profissional na medida em que o sistema de estúdio é muito mais regrado e hierarquizado do que hoje, quando se tem grandes equipes, mas muitos parecem apenas estar vagando pelo set, estando ali às vezes apenas para servir o cafezinho. O que talvez a Cinédia pudesse ensinar aos cineastas e profissionais de hoje é o comprometimento com uma causa, a da arte do cinema, qualquer que seja a sua convicção a esse respeito. Sobre o papel do governo, é preciso lembrar que meu pai já solicitava essa participação, embora a definição do que o governo deve fazer seja sempre uma discussão a ser feita dependendo do contexto.

O – A senhora acredita que deveria haver uma isenção do pagamento da Condecine, para a exibição de filmes clássicos brasileiros restaurados na televisão? Esse tipo de coisa não é mais um empecilho, um elemento desmotivador, que trabalha contra a preservação da memória cultural brasileira? 

A - Deveríamos sim criar uma isenção, pois o que a Condecine fez com o filme antigo foi promover a sua desvalorização. Paga-se pouco porque é antigo, e o líquido desse pagamento fica com o estado, que deveria estar trabalhando para difundir o patrimônio acumulado junto à sociedade e não taxando filmes que já pagaram top do tipo de imposto no passado e estão depreciados economicamente, mas não culturalmente. Caso seja preciso cobrar a Condecine, que o dinheiro acumulado com a Condecine estimule a indústria, preservação e difusão do cinema brasileiro. Por que apoiar apenas filmes novos se cobra de todos? Por que financiar distribuição de filmes e desprezar a distribuição de clássicos e obras antigas? Por que não apostar em todos os tipos de ativos, os novos e os antigos?

O – Como foi para a senhora abraçar a responsabilidade desse legado, após o falecimento de seu pai?  Foi uma atitude muito bonita, mas, tenho certeza, uma decisão tremendamente difícil, ainda mais tendo encarado esse trabalho sozinha, cara e coragem. 

A - Sempre estive acompanhando o movimento do estúdio, da empresa, da vida de meu pai. Sempre tive consciência dos filmes da Cinédia. Desse modo, a responsabilidade já existia bem antes da morte de meu pai. Muito antes, talvez, desde minha infância. Na hora h, não sabia bem o que fazer, pois como mulher não tinha formação para assumir um negócio, ainda mais de cinema, mas segui em frente. Para mim tratava-se de preservar tudo, pois pensava no arquivo de documentos, que sempre fora cuidado por mim e por meu pai. Assim, não foi uma decisão propriamente difícil, em 1971, quando virei diretora. A rigor, não tinha noção do que vinha pela frente. Hoje, com o conhecimento e vivência que adquiri, talvez não aceitasse. A decisão foi repentina. Assumi sem saber o que vinha em seguida. Até hoje me surpreendo com minha coragem e desinibição, pois não fui educada para tal. E nunca me passou pela cabeça assumir. Entrei, gostei, mudei minha vida por completo. E não me arrependo! Fiz um trabalho que considero bonito, sério e importante. E espero continuar. Temos muito ainda a fazer.


O – Em qualquer nação séria, que valorizasse a cultura, a senhora seria considerada um patrimônio nacional, guardiã do legado da Cinédia, amparada de todas as formas, no intuito de seguir realizando seu trabalho, restaurando e preservando as obras, com conforto. Essa, infelizmente, não é a realidade. Como as pessoas podem ajudar efetivamente, com doações para a ONG? Comente isso e, também, como se pode contribuir.

A - Todos devem trabalhar e lutar pelo que acreditam. Uma das lutas atuais do campo da cultura é criar um comportamento novo no empresariado e na sociedade brasileiras, comprometendo-os não só com os tão necessários recursos financeiros, mas com uma atitude de valorização pública das obras artísticas e culturais. Nada de aplicar o dinheiro em sua própria “instituição cultural”, mas apoiar e apostar em quem dedica uma vida a criar e a preservar. Em vez de comprar um quadro (ou um filme) para sua coleção particular, doar a obra a um museu (ou a uma cinemateca). Isso é consciência pública e não apenas mero negócio. Tenho uma ONG, o Instituto para a Preservação da Memória do Cinema Brasileiro – IPMCB, que cuida não só dos filmes da Cinédia, mas dos de muitos outros produtores e diretores, como os do Moacyr Fenelon. Aceitamos sim, doações e patrocínios, pois não é um trabalho simples ou barato.

O – Sou apaixonado por “Limite”, de Mário Peixoto. É um filme que eu adoraria ter em DVD, na minha estante, lançado por uma distribuidora séria, como a “Versátil”, que já lançou “O Ébrio”, outra pérola. Imagino que seja difícil responder isso, mas, dentre todos os filmes da Cinédia, qual é o seu favorito? 

A - "Limite" foi lançado em DVD pela Cinemateca Brasileira. Os meus preferidos são “Bonequinha de Seda”, “O Ébrio”, “Alô! Alô! Carnaval!” e “O Cortiço”. Mas gosto de todos os filmes. Todos estão debaixo de minha asa. Todos tem uma característica que os diferenciam. Todos documentam uma época, costumes, a cidade,  a maneira de ser,  guarda roupa etc. Mas precisamos nos colocar na época em que foram produzidos e com os recursos disponíveis. A juventude tem que ter uma ideia do que foi produzido e reverenciar os atores e a equipe técnica, pois todos os filmes foram produzidos com muito sacrifício e garra.  

O – Dona Alice, eu quero agradecer muito sua generosa participação. Em nome de todos os brasileiros apaixonados pelo cinema, te agradeço pelo empenho incansável por todos esses anos. Por gentileza, deixe uma mensagem final para meus leitores.

A - Eu é que agradeço a oportunidade de dizer algumas palavras a você e seus leitores. A mensagem que deixo é que cada um de nós cuide do que temos sob nossa guarda. É um passo importante para o Brasil. É assim que se constrói a memória, a despeito da indiferença daqueles que tem a responsabilidade nas mãos e não a exercem. Se eu não entrasse na Cinédia, não corresse atrás, os filmes estariam todos perdidos. As palavras Restauração ou Recuperação não existiam. Garanto que servi de exemplo para alguns...


quinta-feira, 8 de outubro de 2015

"Fomos os Sacrificados", de John Ford


Fomos os Sacrificados (They Were Expendable – 1945)
Logo após o ataque a Pearl Harbor, um esquadrão da Marinha é enviado à Península de Bataan, onde tropas japonesas estão prontas para uma sangrenta batalha. 


O diretor estava inicialmente relutante em aceitar o projeto, mas, com a insistência do roteirista e amigo Frank Wead, ele foi liberado de seu serviço na guerra, com um acordo que o remuneraria em quantia suficiente para que ele investisse em um centro recreativo, chamado “Field Photo Farm”, para seus colegas que também registravam a batalha, um local que serviria para celebrar os falecidos e promover a amizade dos familiares. O objetivo era tentar atingir um nível de realismo documental nas sequências de conflito, elemento que engrandece ainda mais o resultado.

A mensagem de coragem é óbvia, porém, tratada de forma mais poética que muitos similares do período, com uma estrutura que favorece a imersão do espectador. O interesse do roteiro não se limita às vitórias e derrotas, como a dispensabilidade no título original já insinua, mas, sim, com o mesmo carinho, registrar eventos simples e sem relevância à trama principal, desenvolvendo com tranquilidade o relacionamento entre os soldados, facilitando a empatia com esses personagens. O processo de trabalho com os atores ajudou uma das melhores cenas do filme, uma crítica bem-humorada ao tolo valor dado às medalhas de mérito na hierarquia militar. Ford insistiu, diariamente, para que o ator Marshall Thompson, novato no estúdio MGM, dissesse sua fala, rápida e simples, informando os colegas sobre o recebimento de uma medalha. O resultado foi perfeito, o rapaz, já enfastiado, entrega a fala de forma mecânica, antinatural, exatamente como o diretor queria. O contraste dessa intenção com a reação debochada dos soldados, totalmente desinteressados, ignorando o colega, transforma um momento pequeno em verdadeira obra-prima. Como dar importância a algo tão tolo, enquanto a vida humana é tratada como algo sem importância alguma?

Outra sequência que considero especialmente marcante, o jantar improvisado dos soldados, recepcionando a adorável Donna Reed, que vive uma enfermeira que se apaixona pelo personagem de John Wayne. Com generoso uso do silêncio, podemos perceber a emoção tomando conta da jovem, impressionada com o impacto de sua presença naquele pequeno grupo. Os jovens se tornam crianças com saudade de suas mães, com suas falas agradecidas evidenciando a carência afetiva daqueles pobres iludidos, manipulados pela máquina de propaganda da guerra. 

* O filme está sendo lançado, em versão restaurada em DVD, pela distribuidora "Versátil", na caixa "A Segunda Guerra no Cinema", que contém também: "48 Horas!", "Também Somos Seres Humanos", "Proibido!", "Amargo Triunfo" e "Mercenários Sem Glória".