“Nas histórias de amor, não há apenas o amor. Nunca dissemos
‘eu te amo’, no entanto, nos amamos”.
A delicadeza inserida nesse poema é a força motriz de
“Minhas Tardes com Margueritte” (La Tête em Friche – 2011), de Jean Becker,
filho do cineasta Jacques Becker. Conhecemos o personagem de Gerard Depardieu
como o estereótipo clássico do bronco, grosseirão, um montanhoso amálgama de
Forrest Gump e Kaspar Hauser, incapaz de revidar os ataques debochados diários
de seus colegas. É impressionante o contraste visual que se estabelece entre
ele e a frágil senhora nonagenária, interpretada com doçura pela veterana
Gisele Casadesus, ainda que a aptidão dele com o trabalho suave do entalhe na
madeira, aliado à sua maneira simples e pura de enxergar a vida, demonstre que
o exterior abrutalhado esconde uma fragilidade existencial quase infantil.
Todas as tardes, enquanto contam os pombos da praça, sem
conhecimento algum sobre o passado e o presente do outro, completos estranhos
unidos pela casualidade, os dois conversam sobre a vida. Assim como ela inicia
a leitura de um livro em qualquer ponto, deixando o folhear da página decidir
sua sorte, ambos permitem que o acaso conduza essa amizade. O inexorável tempo
é o único inimigo, o ato de desaparecer, minguar sereno em direção ao grande
desconhecido, sentindo cada vez mais pesada a luz cálida do amanhecer, por
sabê-la representar a incontestável evidência de que mais uma noite terminou. O
tempo que se esvai implacavelmente. Como se preparar para exercitar esse
desapego pessoal? Aquela complexa máquina que sempre agia em harmonia com seus
desejos, quando menos se espera, começa a desaprender dia após dia um antigo
hábito. A inevitável perda gradual de visão, a inefável sensação de impotência
perante as coisas mais simples, como exercitar a leitura, grande paixão da vida
dela. O homem, carente do amor materno, consequência de uma parentalidade
irresponsável, começa a depender emocionalmente daquela senhora que conhece
apenas pelo nome. A mãe dele, uma estranha que mora ao lado, um enigma que ele
encara constantemente, alguém que nunca dedicou um mínimo de ternura em sua criação.
A senhora, carente do amor de sua família, que a considera um fardo e a instala
em um asilo, começa a depender emocionalmente daquele homem que conhece apenas
pelo nome.
“Não precisam cortar a Floresta Amazônica para fazer
dicionários que não ajudam aos idiotas. É como dar óculos para um míope. De
repente vemos todas as falhas e defeitos”.
O filme aborda o poder transformador da literatura. A
cultura é a única maneira real de libertação, ela conforta e traz
segurança, incentiva e ensina um leão a disciplinar seu rosnado e
sobreviver na selva. Ela o inspira a ler, por conseguinte, ajuda a formar nele
um verniz de autoconfiança e amor próprio, afugentando qualquer intenção de se
perder em autocomiseração, o caminho mais óbvio em sua complicada situação. Ela
se torna a figura materna que ele nunca teve, bondosa e paciente, o símbolo de
gentileza que o impulsiona a melhorar como pessoa, aprendendo a, não somente,
apreciar melhor a paisagem, outrora embaçada pela mágoa enrustida, como também
tomando coragem de abandonar a passividade, como nós percebemos no emocionante
desfecho. Ele toma o controle de sua vida, e, nesse processo, acaba se tornando
responsável pela vida dela. E, ao crepúsculo de um longo dia, é bonito perceber
que tudo iniciou com a leitura de frases soltas de um livro de Albert Camus,
num solitário banco de praça, numa tarde como qualquer outra.
“Nesse mundo estamos de passagem, então te passo esse
livro”.
Este filme é espetacular, gostaria muito de rever. Há filmes que nos sensibiliza e este é um deles.
ResponderExcluir