domingo, 31 de maio de 2015

Faces do Medo - "Zombie - O Despertar dos Mortos"


Zombie - O Despertar dos Mortos (Dawn of The Dead – 1978)
“A Noite dos Mortos-Vivos” é puro instinto, cinema de guerrilha, atmosfera, soco no estômago, claustrofobia, um ato ousado que modificou o cenário do horror no mundo todo, inspirando toda uma geração de cineastas, uma trama simples e apavorante, onde a ameaça não era representada por monstros ou psicopatas, mas, sim, por entes queridos falecidos. Como é salientado em uma das cenas da continuação, o apocalipse zumbi poderia ter sido evitado, caso as pessoas tivessem vencido suas amarras morais e matado seus familiares infectados. Esse conceito revolucionário, que adicionou o canibalismo como recurso visual de impacto, foi, talvez, a última grande criação no gênero, vítima atualmente de reutilizações pouco inspiradas.

Com “Zombie - O Despertar dos Mortos”, George Romero deixou o instinto um pouco de lado, mais confiante enquanto realizador, e calculou cada página de seu roteiro em escala épica. Enquanto o anterior era o exercício apaixonado de um jovem, essa sequência é o trabalho de um profissional maduro, com total domínio de sua pretensão, além de pleno controle criativo. No anterior, os caipiras americanos, que, sorridentes, tiravam fotos com os zumbis mortos, representavam a estupidez humana, os verdadeiros monstros da história, já que não eram acéfalos. A escolha do alvo, dessa vez, foi mais corajosa, uma crítica social mais abrangente e exposta sem sutileza, os zumbis do consumismo, aqueles que, mesmo após a morte, escolhem retornar para o ambiente em que se sentiam mais confortáveis, um imenso centro comercial. A claustrofobia dá lugar ao marasmo padronizado de vitrines e escadas rolantes. O tema é implacavelmente atual, quando analisamos, por exemplo, a comoção popular que sucede cada lançamento de um novo aparelho eletrônico, ou a ansiedade de uma pessoa que gasta o dinheiro suado em caríssimas roupas de grife, pagando pela marca, apenas para satisfazer um subjetivo status social. E se pensarmos que, na época, não havia tantos shopping centers, podemos dizer que Romero foi profético em sua visão. É impossível negar o mérito do maquiador/técnico de efeitos visuais Tom Savini, que deu o tom do gênero nas produções que se seguiram, especialmente as europeias, abusando do gore.

Acho interessante como o roteiro já evidencia a crítica social antes mesmo do primeiro zumbi aparecer, numa curta cena que nunca é lembrada, quando os policiais estão se preparando para invadir o prédio com os porto-riquenhos. Eles vivem abaixo da linha da pobreza, estranhos em uma terra estranha, porém, um dos policiais afirma, com ódio no olhar, que aqueles desgraçados possuem muito mais do que ele. A inveja do ser humano, sintoma de insegurança, é um dos estímulos que o conduz à compensação material, o convite para o consumismo, o que explica a preferência do “ter”, em detrimento do “ser”, que é o refinado resultado de uma mente emocionalmente madura. 

* O filme está sendo lançado em Blu-ray, em três versões, com excelentes extras, pela distribuidora "Versátil", em parceria com a "Livraria Cultura". Dentro do estojo, um belo pôster, que pede uma moldura. 

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Blaxploitation - "A Fúria do Poderoso Chefão"

Link para os textos do especial:


A Fúria do Poderoso Chefão (The Black Godfather – 1974)
Um filme pouco lembrado, da primeira fase do fenômeno blaxploitation, escrito e dirigido por John Evans, com um fiapo de trama trabalhado de forma praticamente amadora, sustentado pelo carisma do protagonista, vivido por Rod Perry, um delinquente que é apadrinhado por um chefão do crime, vivido por um Jimmy Witherspoon cheio de atitude, após uma tentativa desastrada de furto. O homem valoriza a coragem do jovem, que, de uma hora pra outra, acaba se transformando em alguém elegante, educado, e, por incrível que pareça, ele se mostra mais competente que o chefão. Como o roteiro não sabe estruturar um mínimo de suspense, os anos de experiência, na prática, dão a impressão exata de alguns dias na vida do rapaz. Você simplesmente é levado a acreditar que ele é extremamente competente, já que não há uma cena sequer, nesse hiato de transformação, que mostre ele em ação.

Os defeitos agregam à diversão, criticar tecnicamente esses filmes é assinar um atestado de ignorância, desmerecendo o contexto das obras e, especialmente, o descompromisso dominante nas produções. O que vale é perceber o desconforto de grande parte do elenco ao ditar, de forma quase robótica, as linhas de diálogo totalmente artificiais, que contrastam com o tom de naturalidade que as tramas se esforçam em alcançar. Dar risada com os bate-bocas fartos de xingamentos inspirados, alguns intraduzíveis, como na cena de pancadaria com Tony Burton, conhecido pelo papel de treinador do Apollo Creed, nos filmes da franquia “Rocky”, num salão de ginástica improvisado. É impossível não torcer para que o protagonista arrebente a cara do arrogante traficante branco, um racista cruel, vivido por Don Chastain, um personagem tão caricato que parece saído de um desenho animado. A trilha sonora, normalmente um ponto alto nessas produções, não empolga, nem encanta, com uma mistura desconcertante de estilos, com a inclusão de um irritante sintetizador, que parecem ter sido escolhidos na base do uni, duni, tê.

Pegando carona descarada no sucesso da obra-prima de Coppola, o filme não é dos melhores, porém, considero superior, por exemplo, ao respeitado “Sweet Sweetback’s Baadasssss Song”. Com o orçamento que tinham, fizeram milagre. 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Chumbo Quente - "O Homem Que Luta Só"


O Homem Que Luta Só (Ride Lonesome – 1959)
Um caçador de recompensas captura um pistoleiro e ruma a Santa Cruz para entregá-lo às autoridades. 


A motivação do personagem vivido por Randolph Scott, numa camada mais superficial de interpretação, é a vingança pelo assassinato de sua esposa, perpetrado pelo sempre competente Lee Van Cleef, cujo pouco tempo em cena potencializa sua presença como um fantasma do passado. O verdadeiro vilão do filme é o passado. A vingança, algo comum no gênero e, especificamente, dominante no ciclo produzido pela Ranown, com a parceria entre o ator e o diretor Budd Boetticher, pode ser vista nesse caso como um elegante MacGuffin hitchcockiano.

O que faz esse faroeste ser especialmente interessante é o que se esconde por baixo dessa camada, perceptível discretamente na forma como Scott escolhe conduzir as ações do personagem, um silêncio diferente daquele do homem sem nome de Leone, uma espécie de desprendimento moral, um caçador de recompensas que não se importa mais com as recompensas, nada no mundo material irá trazer um mínimo de satisfação. Uma solidão existencial que é enfatizada nos enquadramentos, minimizando ele na imensidão do cenário. O que mantém ele vivo é, mais que executar a vingança, a esperança de poder, algum dia, voltar a ser o homem que era outrora. É interessante também a camaradagem que se estabelece com os dois bandidos, que também estão buscando um redirecionamento, vividos por James Coburn e Pernell Roberts, versões da persona dele, caso não tivesse sido modificado pela tragédia.

O simbolismo da árvore, em formato de cruz, o local que representa a morte e o nascimento. Sem revelar muito, considero brilhante a maneira como o roteiro trabalha esse símbolo, conduzindo a um dos desfechos mais impactantes do gênero. A trama, em setenta e três minutos, muito bem utilizados, acerta na despretensão da forma, exatamente por ter confiança na riqueza de seu conteúdo. 

* O filme está sendo lançado em DVD, pela distribuidora "Versátil", na caixa "Cinema Faroeste", que conta também com: “Comando Negro”, “Audazes e Malditos”, “Almas em Fúria”, “Paixão Selvagem” e “Reinado do Terror”.

Chumbo Quente - "Audazes e Malditos"


Audazes e Malditos (Sergeant Rutledge – 1960)
Sargento negro da cavalaria americana, formada por antigos escravos, é acusado do assassinato do comandante e de sua filha, e tenta provar sua inocência. 


O estúdio queria Sidney Poitier, um ator extremamente competente, porém, o diretor John Ford exigiu que o protagonista fosse vivido por Woody Strode. Alguns críticos da época evidenciaram a opção como equivocada, salientando a pouca desenvoltura dele em várias cenas, sem dúvida, um ator muito limitado. O que os críticos da época falharam em compreender, uma demonstração da lucidez criativa de um cineasta já no crepúsculo de sua carreira, é que o elemento mais importante era a imponência física de alguém que precisava provar seu caráter em uma sociedade predisposta a destruí-lo ao primeiro sinal de fraqueza.

Qualquer entonação calculada ou maneirismo estudado de um ator poderia minimizar a estranheza que a câmera buscava, como que se desse a ele uma aura mítica, que o colocasse em destaque. E percebemos a eficiência dessa escolha analisando as cenas do tribunal, onde podemos enxergar esses maneirismos teatrais no personagem de Jeffrey Hunter, o advogado de defesa, e, em maior intensidade, no alívio cômico representado pela interação constante entre o juiz, seu debochado colega de mesa e sua esposa. E, quando ele explode, na cena mais emocionante, em que ele se defende no tribunal, conseguimos sentir a pungência da angústia de um homem que sabia estar tendo sua melhor chance no cinema. A grandeza mítica fica ainda mais evidente na tomada em que mostra os companheiros homenageando o personagem com uma canção, com o enquadramento, aliado à fotografia expressionista de Bert Glennon e a expressão no rosto de Strode, compondo uma figura heroica que é maior que seu ambiente, acima do mítico Velho Oeste.

Filmes que abordavam a estupidez do racismo só viriam a se popularizar no final da década de sessenta, com “No Calor da Noite” e “Adivinhe Quem Vem Para Jantar”, ambos de 1967. Mas antes mesmo de “O Sol é Para Todos”, de 1962, John Ford atacava o tema com objetividade corajosa, nesse ótimo filme que merece maior reconhecimento. Enquanto o negro da célebre obra protagonizada por Gregory Peck era mostrado como alguém passivo, que precisava ser defendido pelo homem branco, o sargento negro de Ford, após encontrar a menina violentada, foge da cena do crime, por saber, como o personagem afirma numa poderosa cena, que a sociedade não estava preparada para entender a inocência de um negro, ainda que ela fosse provada em julgamento. Um viés mais audacioso, que, mesmo conduzindo a um final feliz, é, em essência, pouco otimista.


* O filme está sendo lançado em DVD, pela distribuidora "Versátil", na caixa "Cinema Faroeste", que conta também com: “Comando Negro”, “O Homem Que Luta Só”, “Almas em Fúria”, “Paixão Selvagem” e “Reinado do Terror”.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Tesouros da Sétima Arte - "Robin e Marian"


Robin e Marian (Robin and Marian – 1976)
Além de ser consideravelmente fiel à lenda de Robin Hood, essa produção dirigida por Richard Lester conta com a irresistível química entre Sean Connery e Audrey Hepburn, que retornou às telas, após um longo hiato, pressionada pelo filho, que ficou entusiasmado com a possibilidade da mãe trabalhar com o eterno 007. Nem mesmo as usuais gags visuais do diretor, de comicidade questionável, conseguem prejudicar o bonito tema central da obra, cuja nobreza é emoldurada pela elegância da trilha sonora de John Barry.

A despeito do elemento de aventura obrigatório, a mensagem transmitida possui uma complexidade rara em filmes do gênero, um conflito adulto estruturado na recusa de um herói em envelhecer, a dor da mulher amada ao constatar que ele nunca irá diminuir o ritmo, caminhando resoluto ao encontro da morte. E, no meio desse fogo cruzado, o inquebrantável xerife de Nottingham, vivido por Robert Shaw, um velho adversário que é incapaz de ignorar a admiração que sente por aquele rebelde, um respeito entre cavalheiros, homens com cicatrizes profundas e que conseguem reconhecer, intrínseca no caráter de ambos, a impossibilidade de virarem as costas para suas convicções. O duelo final minimalista, que enfatiza a exaustão de corpos que não conseguem mais sustentar suas espadas com a desenvoltura da juventude, entrega uma emoção cada vez mais esquecida no cinema moderno, escravo do exagero.

O lindo desfecho, que não agradou ao público na época, é uma prova de como o tempo é mais generoso com as decisões criativas que vão contra o senso comum. Um público que esperava satisfazer apenas a necessidade por ação. O sacrifício da mulher, que havia entregado sua vida à igreja, decidida a impedir que seu herói, o cúmplice de tantas aventuras, sofresse com a obrigatória negação física de seus instintos. E, num ato de devoção suprema, ela percebe que não conseguiria viver sem ele. A flecha lançada, cujo destino é uma incógnita, o símbolo de uma relação que nunca aceitaria a rendição ao comodismo.  

domingo, 24 de maio de 2015

Tesouros da Sétima Arte - "Deus Sabe Quanto Amei"


Deus Sabe Quanto Amei (Some Came Running – 1958)
É impressionante como esse excelente filme é pouco comentado, até mesmo entre os cinéfilos apreciadores dos clássicos. Um dos melhores trabalhos do diretor Vincente Minnelli, realçando a grandiosidade em uma cidade pequena, conseguindo extrair de Frank Sinatra, que foi um ótimo ator, ainda que os críticos usualmente ignorem essa faceta, uma das suas interpretações mais ricas em camadas psicológicas, como um soldado que retorna da guerra e, por ter a sensibilidade criativa de um artista, um escritor, sofre a perturbação potencializada em seu reencontro com a sociedade. Até mesmo Dean Martin, um ator reconhecido por ser um adorável canastrão, consegue surpreender no papel de um jogador de cartas. E, ao final, é linda a forma como seu personagem, num ato raro, respeitosamente tira o chapéu. Um gesto simbólico, que não irei explicar muito, para não estragar a experiência, mas que diz bastante sobre o personagem. 

Após experimentar a brutalidade irracional, sendo transformado em sua essência, o escritor fica incapaz de enfrentar sóbrio o seu próprio passado. É interessante a forma como a trama coloca em confronto o personagem com seu irmão mais velho, vivido por Arthur Kennedy, um hipócrita banqueiro casado que sempre recriminou a relação do caçula com a jogatina e sua atitude de mulherengo, indiferente ao fato de que, em sua função, flerta agressivamente com sua secretária, além de costumar jogar profissionalmente com seus clientes, com menos caráter e ética. A diferença é que o mais novo abraça a sua realidade sem máscaras. Vale salientar também a relação entre o escritor e sua admiradora, a prostituta vivida por Shirley MacLaine, que o ama sem prejulgamentos, como criança, que sofre a cada atitude de desprezo dele. Estimulado pelo desafio autoimposto de conquistar o coração de uma fria professora, como que uma tentativa inconsciente de fazer as pazes com sua própria intelectualidade, ele irá aprender, pela dor, que o verdadeiro amor pode se esconder na flor mais cheia de espinhos.

O roteiro foi adaptado de um livro de James Jones, o responsável por “A Um Passo da Eternidade”, que, cinco anos antes, havia consagrado o cantor com um Oscar de Ator Coadjuvante. A cerimônia que entregou, no mesmo ano do lançamento de “Deus Sabe Quanto Amei”, o prêmio de direção a Minnelli, por uma de suas obras mais fracas, o musical “Gigi”. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

"O Carteiro e o Poeta", de Michael Radford


A emoção em “O Carteiro e o Poeta” (Il Postino – 1994), dirigido por Michael Radford, já nasce nos primeiros segundos, com a linda trilha sonora de Luis Bacalov, que consegue transmitir um profundo sentimento de nostalgia, como que a sociedade gritando por ajuda, a necessidade do retorno de valores já tidos como antiquados e dispensáveis. O homem humilde, vivido por Massimo Troisi, emocionalmente inseguro, que, por hábito, aprendeu a se minimizar, observando ternamente a foto amarelada, enquanto o dia lentamente desperta. Ele tenta estabelecer contato com o pai, um pescador embrutecido pela vida, porém, o velho não escuta suas desajeitadas palavras, preocupado mais com o mecânico saciar de sua fome. Ao conhecer o poeta Pablo Neruda, vivido por Philippe Noiret, em um cinejornal, o homem toca brevemente aquele mundo desconhecido, totalmente diferente de sua simples comunidade pesqueira. A escuridão da sala de cinema potencializa a mágica desse primeiro encontro, posicionando o homem, em sua pequenez, diante do gigante visitante estrangeiro na tela.

Ele tenta conseguir um emprego como carteiro, porém, num toque sutil, a câmera se foca na exigência de uma bicicleta. A sua insegurança é tanta, que, sem pensar duas vezes, ele adentra o local com a bicicleta, como que tentando garantir sua contratação, antes de precisar abrir a boca. Vale notar a postura dele ao avisar ao empregador sua fragilidade intelectual, afirmando que sabe, de forma lenta, ler e escrever, uma mentira que ele é incapaz de disfarçar, quando reage de forma defensiva ao escutar que irá trabalhar apenas para uma pessoa, já que todos na região são analfabetos. Em sua visão, Neruda é o poeta amado pelas mulheres, aquele ser superior idealizado na sala escura. A remuneração é pouca, o trabalho é cansativo, devido ao número expressivo de cartas que ele carregará, ele descobre até que o poeta é um comunista, conotação política que não entende, mas nada disso importa para o carteiro, que, com um emprego, passa a existir novamente para seu pai. Ele é aconselhado a trocar o mínimo de palavras possível com o estrangeiro, sendo submisso e prestativo, evitando incomodar.

No primeiro encontro, ele se encanta com o carinho do poeta com sua esposa, gesto que corrobora sua imagem idealizada. Ele sorri como uma criança que flagra o beijo dos pais. A gorjeta era desnecessária, ele já tinha tido satisfeito o necessário, a confirmação de sua crença. Em sua mente, como todos que idealizam, ele cria até a ilusão de uma conversação, já que afirma ao empregador que o poeta fala de forma diferente, quando, na realidade, ele havia apenas agradecido pela entrega das cartas. No segundo encontro, após efetivamente flagrar o beijo do casal, ele toma um pouco de coragem e tenta, de forma desajeitada, estreitar a relação, colocando-se à disposição dele para qualquer trabalho extra. O carteiro precisa aprender aquele truque de mágica, aquela facilidade de encantar tantas mulheres. Com mais uma frase trocada, ele já expande sua ilusão, afirmando que o poeta também é um exímio contador de piadas. Sem cartas, ele vai até o poeta para conseguir uma dedicatória em um livro, uma prova de que ele é seu amigo, um tesouro que ele pretende utilizar com as mulheres, porém, para sua tristeza, seu nome não consta na breve dedicatória.

O carteiro se esforça, tentando compreender o poder sedutor por trás daquelas linhas, letras pequeninas, exercitando timidamente metáforas com o poeta, ainda que não saiba o que significa a palavra, como que mostrando a ele que poderiam ser amigos. Ele não compreende a razão de algo tão simples possuir um nome tão complicado. E, numa cena bonita em simbolismo, pela primeira vez, o enquadramento mostra o poeta se colocando em posição de submissão, sentado, diante do simples carteiro, que, de pé, tenta impressioná-lo com o resultado de seu estudo dedicado. A poesia explicada torna-se banal, ele aprende que a mágica perde o fascínio quando o truque é revelado. Os dois homens, tão diferentes em teoria, acabam se descobrindo, na prática, iguais. Não há mestre e aprendiz, ambos aprendem. O efeito desse encontro, um evento transformador na vida dos dois, uma amizade nascida da improbabilidade, fortalecida com o amor pela palavra escrita. O carteiro deseja contar para o pai sua felicidade, mas, com sua sensibilidade que está sendo apurada, percebe que o velho bronco não irá compreender sua conquista, ou compartilhar seu orgulho, então, triste, ele silencia. A cultura, único elemento que verdadeiramente modifica o homem, já havia começado a libertá-lo daquela realidade simplória.

O emocionante terceiro ato, as circunstâncias de bastidores, com Troisi cada vez mais fragilizado, o adiamento de uma cirurgia cardíaca que poderia ter garantido mais alguns anos de vida, uma escolha apaixonada pela finalização da obra, decisão que evidencia a importância do filme na vida do querido ator italiano. Sua morte, por ataque cardíaco fulminante, no dia seguinte ao término, trouxe lágrimas aos rostos de cinéfilos do mundo todo. Seu legado é eterno, assim como a influência do poeta na vida do personagem. O filho, que ele não chega a conhecer, carrega o nome do estrangeiro, que, a despeito de todos os avisos do empregador, acabou se encantando pela amizade pura e sincera do tímido carteiro. Seu poema, criação que o ídolo nunca irá conhecer, perdido na revolta dos manifestantes, foi o atestado de independência e segurança emocional. A beleza da gratidão.

"Minhas Tardes com Margueritte", de Jean Becker


“Nas histórias de amor, não há apenas o amor. Nunca dissemos ‘eu te amo’, no entanto, nos amamos”.

A delicadeza inserida nesse poema é a força motriz de “Minhas Tardes com Margueritte” (La Tête em Friche – 2011), de Jean Becker, filho do cineasta Jacques Becker. Conhecemos o personagem de Gerard Depardieu como o estereótipo clássico do bronco, grosseirão, um montanhoso amálgama de Forrest Gump e Kaspar Hauser, incapaz de revidar os ataques debochados diários de seus colegas. É impressionante o contraste visual que se estabelece entre ele e a frágil senhora nonagenária, interpretada com doçura pela veterana Gisele Casadesus, ainda que a aptidão dele com o trabalho suave do entalhe na madeira, aliado à sua maneira simples e pura de enxergar a vida, demonstre que o exterior abrutalhado esconde uma fragilidade existencial quase infantil.

Todas as tardes, enquanto contam os pombos da praça, sem conhecimento algum sobre o passado e o presente do outro, completos estranhos unidos pela casualidade, os dois conversam sobre a vida. Assim como ela inicia a leitura de um livro em qualquer ponto, deixando o folhear da página decidir sua sorte, ambos permitem que o acaso conduza essa amizade. O inexorável tempo é o único inimigo, o ato de desaparecer, minguar sereno em direção ao grande desconhecido, sentindo cada vez mais pesada a luz cálida do amanhecer, por sabê-la representar a incontestável evidência de que mais uma noite terminou. O tempo que se esvai implacavelmente. Como se preparar para exercitar esse desapego pessoal? Aquela complexa máquina que sempre agia em harmonia com seus desejos, quando menos se espera, começa a desaprender dia após dia um antigo hábito. A inevitável perda gradual de visão, a inefável sensação de impotência perante as coisas mais simples, como exercitar a leitura, grande paixão da vida dela. O homem, carente do amor materno, consequência de uma parentalidade irresponsável, começa a depender emocionalmente daquela senhora que conhece apenas pelo nome. A mãe dele, uma estranha que mora ao lado, um enigma que ele encara constantemente, alguém que nunca dedicou um mínimo de ternura em sua criação. A senhora, carente do amor de sua família, que a considera um fardo e a instala em um asilo, começa a depender emocionalmente daquele homem que conhece apenas pelo nome.

“Não precisam cortar a Floresta Amazônica para fazer dicionários que não ajudam aos idiotas. É como dar óculos para um míope. De repente vemos todas as falhas e defeitos”.

O filme aborda o poder transformador da literatura. A cultura é a única maneira real de libertação, ela conforta e traz segurança, incentiva e ensina um leão a disciplinar seu rosnado e sobreviver na selva. Ela o inspira a ler, por conseguinte, ajuda a formar nele um verniz de autoconfiança e amor próprio, afugentando qualquer intenção de se perder em autocomiseração, o caminho mais óbvio em sua complicada situação. Ela se torna a figura materna que ele nunca teve, bondosa e paciente, o símbolo de gentileza que o impulsiona a melhorar como pessoa, aprendendo a, não somente, apreciar melhor a paisagem, outrora embaçada pela mágoa enrustida, como também tomando coragem de abandonar a passividade, como nós percebemos no emocionante desfecho. Ele toma o controle de sua vida, e, nesse processo, acaba se tornando responsável pela vida dela. E, ao crepúsculo de um longo dia, é bonito perceber que tudo iniciou com a leitura de frases soltas de um livro de Albert Camus, num solitário banco de praça, numa tarde como qualquer outra.

“Nesse mundo estamos de passagem, então te passo esse livro”.

sábado, 23 de maio de 2015

A elegância de Audrey Hepburn


Ela não foi somente uma das atrizes mais belas que a Sétima Arte apresentou ao mundo, como também foi um dos mais citados exemplos de dignidade e caráter no meio artístico. Audrey Hepburn era a antítese de Marilyn Monroe. Enquanto a diva dos cabelos dourados representava uma vulgaridade ingênua e provocante, a franzina morena simbolizava a elegância e nobreza, quase uma princesa. Não surpreende que seu primeiro papel tenha sido exatamente a de uma princesa que, entediada com uma vida sem surpresas, foge de seu palácio em busca de um amor verdadeiro, no clássico de William Wyler: “A Princesa e o Plebeu” (Roman Holiday – 1953). Ela conquistou crítica e público sem nenhuma conotação sexual envolvendo sua personagem. Os papéis que ela defendia, diferente de grande parte das atrizes da época, não eram modelados visando conquistar o público masculino, com decotes generosos ou atitude sensual. Hepburn era puro carisma. Impossível tirar os olhos dela. Seus filmes mais famosos são “Bonequinha de Luxo” (Breakfast at Tiffany´s – 1961), “Minha Bela Dama” (My Fair Lady – 1964), o ótimo “Sabrina” (1954) e “Cinderela em Paris” (Funny Face – 1957).

Em “Bonequinha de Luxo”, o roteiro de Truman Capote foi completamente suavizado, deixando o produto final açucarado demais na visão do próprio escritor. Excetuando-se o lindo momento ao som de “Moon River”, de Henry Mancini, que os produtores chegaram a cogitar cortar do filme, no que Audrey se revoltou e afirmou: “só por cima do meu cadáver”, o romance se apresenta um tanto quanto esquemático, com uma participação grosseira de Mickey Rooney como o chinês mais estereotipado que o cinema já mostrou. Cada vez que ele aparece em cena, não consigo conter a vergonha alheia. Esse embaraçoso elemento, além de um apático George Peppard, foram, com o tempo, me afastando da obra. Em seus filmes mais conhecidos do grande público, ela sempre se apresentou, em pequena ou grande escala, como uma variação de sua personalidade. Era sempre a bela e ingênua jovem que vivia nos sonhos refletidos nas vitrines da Tiffany´s, que encontrava um homem culto e disposto a tranformá-la numa mulher da alta sociedade, uma princesa, ou como a editora de uma revista de moda que acaba dançando com Fred Astaire, um sonho para quem iniciou a carreira como bailarina. Por esse motivo, muitos cinéfilos chegam a desmerecer seu trabalho, salientando apenas seus méritos humanitários como embaixadora da UNICEF.

Meu filme favorito dela não é dos mais conhecidos, mas é a prova indiscutível de que ela era uma atriz brilhante e inteligente. “Uma Cruz à Beira do Abismo” (The Nun´s Story – 1959), de Fred Zinnemann, é exatamente tudo o que não se esperaria de uma diva daquela época. Um drama biográfico onde ela vive uma jovem idealizadora que decide virar freira. Muitas atrizes de seu tempo ousaram investir em personagens altamente sexualizados, ou onde pudessem extravasar seus méritos físicos, porém, Hepburn escolheu se minimizar. Ao se enclausurar no hábito opressivo de uma freira, demonstrou ao mundo sua competência. Na maior parte do filme, somente seu rosto fica visível, e ela consegue transmitir nos olhos uma variação de emoções que Monroe nunca conseguiria. Nesse momento ela mostrou ao mundo que pertencia a uma classe superior, digna de se sentar ao lado de Bette Davis no Olimpo das melhores atrizes de seu tempo. A obra de Zinnemann também se mostra eficiente ao mostrar com exatidão de detalhes os bastidores de um convento e da preparação das jovens freiras. Não fica nada a dever aos bons filmes de terror, posso garantir. Uma crítica requintada a um sistema que vende palavras de amor, porém, é revestido por uma lista de preceitos que negam o próprio sentimento.

Audrey faleceu aos 63 anos, deixando um legado de belas ações humanitárias em várias partes do mundo. Grande parte do público identifica-a como a caricatura do mundo fashion, porém, sempre que penso nela, lembro-me da maravilhosa cena final de “Uma Cruz à Beira do Abismo”, onde, durante alguns minutos e sem diálogo, aquela jovem belga demonstrou para uma multidão de detratores, que seu talento era maior que sua beleza.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Faces do Medo - "O Alerta Vermelho da Loucura" e "A Maldição do Demônio"


O Alerta Vermelho da Loucura (Il Rosso Segno della Follia – 1970)
Para qualquer um que duvide da genialidade de Mario Bava, basta prestar atenção nesse filme, que aborda a gradual perda de sanidade de um homem, dono de uma loja de design nupcial, que, abalado por um trauma, acaba se tornando um assassino de noivas. De forma sutil, diferente de suas obras mais famosas, ele demonstra sua preferência pela identidade visual, podendo ser equiparado a outro mestre das minúcias, Alfred Hitchcock. Sem revelar spoilers, algo verdadeiramente prejudicial na experiência com sua filmografia, eu posso citar três exemplos, momentos que me fizeram pausar e voltar essas cenas.

Perceba como ele trabalha o vestuário do protagonista, vivido por Stephen Forsyth, evidenciando a figura da corrente branca no cinto, em destaque nas roupas de tom escuro, que ele usa praticamente o filme todo. Um homem acorrentado ao trauma de sua infância. E, o mais interessante, no exato momento em que ocorre o maior plot twist, que obviamente não revelarei, ele está usando uma espécie de pijama, com correntes desenhadas dos pés à cabeça, mostrando que, daquela cena em diante, não há mais possibilidade de fuga para o personagem. O segundo exemplo ocorre na cena da escadaria, onde ele encontra uma visão aterrorizante, que o encara ameaçadoramente. Em qualquer filme similar, a ação seria resumida ao estabelecer da situação, porém, Bava estende a sequência ao máximo, fazendo com que a aparição volte o olhar para ele diversas vezes, potencializando a arrepiante estranheza e o tom de pesadelo. O terceiro exemplo eu considero, de fato, uma aula. Já próximo do desfecho, o sutil tremor de nervoso em uma personagem que, em teoria, não teria motivo algum para exibir tal reação. Um detalhe que pode até passar despercebido, mas que faz todo sentido na resolução da sequência.

A inteligência visual, essa preocupação de esteta dedicado. As ousadias narrativas, um estilo que diretores americanos copiaram, com o devido crédito apenas depois da morte dele, com a desculpa de estarem homenageando. É fantástico poder ver o trabalho de Mario Bava sendo lançado em home vídeo com o respeito que ele merece, para a apreciação daqueles que genuinamente amam o cinema.


A Maldição do Demônio (La Maschera del Demonio – 1960)
A celebrada estreia do diretor italiano Mario Bava, deixando um pouco de lado o personagem de Bram Stoker, ele se baseou no conto vampiresco russo: “The Vij” de Nikolai Gogol. A atriz Barbara Steele e seus enormes e lindos olhos ficaram para sempre impressos nas retinas dos fãs de horror. Ela interpreta uma bruxa que, ao ser assassinada pela inquisição, tendo recebido a máscara de tortura, coberta de pregos, por seus algozes, retorna após duzentos anos como uma vampira para tomar o corpo de sua descendente. Um fator curioso é que, na versão inglesa, omitiram a relação incestuosa da princesa vampira com o irmão, Javutich.

O produtor Nello Santi queria filmar em cores, mas Bava preferiu filmar em preto e branco, o que acabou entregando uma atmosfera mais onírica, já que o uso generoso de miniaturas e de cenários pintados poderia ter ficado evidente demais, perdendo um pouco da mágica fusão desses elementos. A ambientação gótica, pendendo para o conto de fadas, acabou realçando o simbolismo de algumas cenas. Demonstrando sua maturidade artística, já em seu primeiro projeto, o diretor teve o cuidado de preparar storyboards, algo que não era usual à época, o que diz muito sobre a preocupação essencial dele, desde o início, com a identidade visual das suas obras. A trama vinha em segundo plano, o mais importante eram as formas que ele encontrava para, driblando o baixo orçamento, transportar suas ideias para a realidade das filmagens. 


* Os filmes estão sendo lançados em DVD, pela distribuidora "Versátil", na caixa "A Arte de Mario Bava", contendo ainda: "A Garota Que Sabia Demais" e "Cães Raivosos".

"Cães Raivosos", de Mario Bava


Cães Raivosos (Cani Arrabbiati – 1974)
Esse filme é um vigoroso murro na cara do espectador, um trabalho genialmente despretensioso, bem diferente do que o diretor costumava realizar, com câmera na mão, passado quase que em sua totalidade no confinamento de um automóvel, onde podemos sentir o odor do suor e do sangue dos três sequestradores e de suas vítimas. É uma intensa brutalidade, em tempo real, que se eleva gradualmente, à medida que o desespero toma conta desse microcosmo da sociedade, em que ninguém parece ser verdadeiramente inocente.

Mario Bava, um dos maiores diretores de sua época, praticamente sem uma moeda no bolso, tentava provar para seu público que ainda era capaz de competir com os jovens cineastas e seus filmes policiais. O produtor faliu, o projeto teve que ser cancelado. E, infelizmente, o idealizador faleceu sem conseguir ver sua última obra-prima finalizada, que seria lançada, com uma montagem equivocada, apenas na década de noventa. A versão que consta nesse impecável lançamento da distribuidora “Versátil” é a mais fiel à visão do diretor, restaurada após um esforço dedicado da atriz da obra, Lea Lander, em respeito ao legado artístico do mestre italiano.

É difícil comentar sem revelar spoilers, porém, sinalizo na direção de uma das cenas mais impactantes, a pressão psicológica que a mulher, vivida por Lander, após uma tentativa de fuga, sofre de uma dupla de psicopatas que caberiam perfeitamente na família do Leatherface de “O Massacre da Serra-Elétrica”: O Bisturi, vivido com competência pelo cantor Don Backy, uma espécie de Jerry Adriani italiano, e o pervertido Trinta e Oito, vivido por George Eastman, rosto marcante em vários Spaghetti Westerns. O nível de tensão alcançado, com total simplicidade técnica, faria Sam Peckinpah roer as unhas.

* O filme está sendo lançado em DVD, pela distribuidora "Versátil", na caixa "A Arte de Mario Bava", contendo ainda: "O Alerta Vermelho da Loucura", "A Maldição do Demônio" e "A Garota Que Sabia Demais". 

quinta-feira, 21 de maio de 2015

"O Enigma do Horizonte", de Paul W. S. Anderson


O Enigma do Horizonte (Event Horizon – 1997)
O ano é 2047. Alguns anos atrás, a pioneira nave de pesquisa Event Horizon desapareceu sem deixar vestígio. Agora, um sinal foi detectado e o Comando Aeroespacial dos Estados Unidos responde. Em busca da origem do sinal está um destemido capitão (Laurence Fishburne), sua tropa de elite e o designer que projetou a nave perdida (Sam Neill). Sua missão: encontrar e resgatar a espaçonave de última geração. Mas o que eles encontram é o terror de última geração; eles precisam resgatar suas próprias vidas, pois alguém, ou alguma coisa, está prestes a envolvê-los em uma nova dimensão de pavor inimaginável.


É possível que os cinéfilos mais dedicados tenham percebido uma possível homenagem a esse filme no recente “Interestelar”. Talvez seja só uma coincidência, porém, a explicação dada pelo cientista, vivido por Sam Neill, para a teoria da dobra do espaço tempo, com uma caneta perfurando uma folha de papel dobrada, é exatamente igual à cena da obra superestimada de Christopher Nolan. Esse filme pouco lembrado, do diretor Paul W.S. Anderson, tem uma trama que remete aos trabalhos de H.P. Lovecraft e a “Solaris”, de Stanislaw Lem, que foi adaptado brilhantemente por Tarkovski, mas também tem referências visuais claras ao “O Planeta dos Vampiros”, de Mario Bava, por conseguinte, ao “Alien”, de Ridley Scott, ao “O Iluminado”, de Kubrick, como a cena da nave sangrando, além de uma óbvia homenagem ao “Hellraiser”, de Clive Barker, e, em sua discussão psicológica, ao “Planeta Proibido”, de Wilcox.

Enfim, uma colcha de retalhos muito bem selecionados, versando sobre o leitmotiv do sentimento de culpa dos personagens, representado pelas óbvias simbologias cristãs na nave, como sua semelhança a um crucifixo, que compõe um roteiro que se mantém, pelo menos até o inferior terceiro ato, intelectualmente instigante e eficiente enquanto suspense. A questão do fascínio pelo desconhecido, ainda que ele se apresente como uma ameaça latente, a propensão irresistível do cientista a encarar a unidade gravitacional, explorada como uma espécie de portal do inferno de Dante Alighieri, buscando ter seus estudos desafiados. A nave maldita como o produto tangível de um relacionamento fracassado, no caso, do personagem vivido por Sam Neill, uma lembrança perturbadora de sua culpa pelo fim da relação. Ao final, quando se entrega ao mal e aceita aquele inferno como sua casa, o personagem assume não ter forças para se redimir de seus erros. 

terça-feira, 19 de maio de 2015

Faces do Medo - "Do Além"


Do Além (From Beyond – 1986)
“... Essas ondas abrirão para nós inúmeros panoramas desconhecidos do homem e muitos desconhecidos de qualquer coisa que consideramos como vida orgânica. Haveremos de ver aquilo para o qual os cachorros uivam na escuridão, aquilo para o qual os gatos levantam suas orelhas após a meia-noite. Veremos essas coisas e outras coisas que nenhuma criatura que respira jamais viu...”.

O conto homônimo escrito por H.P. Lovecraft, em 1920, foi transposto para o cinema pelo diretor Stuart Gordon, que conseguiu manter rigorosa fidelidade na trama, incorporando personagens e os deliciosos exageros típicos do produtor/roteirista Brian Yuzna. A equipe que havia comandado o ótimo “Re-Animator”, também adaptado de uma obra do escritor, retornou com o mesmo entusiasmo criativo. Eu nunca me esqueço da capa do VHS na locadora de vídeo, com o rosto deformado do inconsequente Dr. Pretorius, criação do roteiro, vivido por Ted Sorel. Uma época em que, devido a um misto de ansiedade e pavor, o início da vinheta sonora da distribuidora na fita já causava um frio na barriga.

A ambição, o complexo de Deus, de um homem obcecado em alcançar níveis sensoriais superiores, enxergando o além, perscrutando o desconhecido através de estímulos artificiais na glândula pineal, o terceiro olho, como Descartes afirmava. Como resposta para sua ausência de escrúpulos, a máquina desvela uma dimensão de horror inimaginável. É quando o roteiro amalgama referências que nos remetem ao universo fetichista sádico do escritor Clive Barker, inserindo experiências de dor e desejo sexual, expondo a fragilidade da carne. A eficiência visual das horripilantes criaturas, mérito do mestre Mark Shostrom, trabalha esse conceito, entregando um simbolismo maior do que havia no conto.

Vale destacar também a presença do carismático Ken Foree, do clássico “O Despertar dos Mortos”, como o policial azarado que acompanha a belíssima psiquiatra, vivida por Barbara Crampton, e o sempre histriônico, no bom sentido, Jeffrey Combs. O acionamento da máquina por uma alavanca é uma homenagem direta aos clássicos, como “Frankenstein”. O gore, realizado de forma muito competente, é intensificado no terceiro ato, que quase resvala no humor, com a glândula pineal agindo como um personagem, incentivando sua vítima a se alimentar de cérebros humanos. Aliás, é impressionante, ainda hoje, a cena do rapaz sugando o cérebro pelos olhos da vítima. O cinema de terror perdeu muito com a dependência atual pela computação gráfica.

* O filme está sendo lançado, em versão sem cortes, pela distribuidora “Versátil”, na caixa “Lovecraft no Cinema”, com exclusividade pela Livraria Cultura, contendo ainda: “Re-Animator”, “A Beira da Loucura” e o documentário “Lovecraft – Medo do Desconhecido”.

Cine Noir - "Fúria Sanguinária"


Fúria Sanguinária (White Heat – 1949)
James Cagney interpretava de forma intensa, com rompantes imprevisíveis, e, dentre todos os seus papéis, o gângster Cody Jarrett foi seu momento mais inspirado, exalando magnetismo em cada cena. A direção sempre competente de Raoul Walsh consegue transformar um roteiro sem inovações em um produto que se destaca no gênero, impondo um ritmo envolvente desde os primeiros minutos. É o filme que serviu de diapasão para todas as obras posteriores no tema, sendo inspiração para o “Scarface” de Brian De Palma, mais do que o próprio homônimo original, dirigido por Howard Hawks.

Um dos elementos mais interessantes, que é potencializado pela excelência da atuação de Cagney, é que o protagonista não é o bandido clássico do gênero, mas, sim, um psicologicamente frágil e cruel filhinho da mamãe, cujas atitudes debochadas e sádicas, como quando humilha sua vítima após o assassinato, demonstram a violência excessiva como compensação inconsciente de sua insegurança/imaturidade. Virginia Mayo vive a femme fatale, esposa de Jarrett, a loba em pele de cordeiro, que, sem que ele sequer desconfie, foi a responsável pelo ato mais brutal no roteiro. Os personagens que representam a lei, os heróis, representados especialmente pelo policial vivido por Edmond O’Brien, não tem brilho, agem invariavelmente como covardes, até desleais. O roteiro direciona a simpatia do público para o vilão, alguém que age sem remorso, porém, que demonstra alguma coerência, tendo a violência como única ferramenta de expressão. O nível de brutalidade, aproveitando o declínio da censura do Código Hays, um dos responsáveis pelo longo silêncio no subgênero gângster, captado na fotografia de Sidney Hickox, de “À Beira do Abismo”, emoldura o cinismo constante dos diálogos.

Após a morte da mãe, ele se descontrola, reage como uma criança, o gatilho para o seu abraço definitivo na insanidade. O que conduz ao tenso e famoso desfecho, envolto em chamas, onde o personagem, num ato simbólico e debochado, resignado com a morte, o desligamento definitivo de um mundo doente, busca a aprovação materna em uma última afirmação de liberdade das amarras morais da sociedade.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Studio Classic Filmes".

sexta-feira, 15 de maio de 2015

"O Franco-Atirador", de Pierre Morel


O Franco-Atirador (The Gunman - 2015)
É interessante ver Sean Penn arriscando, e convencendo, no papel de herói de ação, num projeto em que o diretor Pierre Morel reutiliza a fórmula de seu ótimo “Busca Implacável”, porém, o roteiro se limita a satisfazer minimamente o público que consumia as fitas B do gênero nas locadoras de vídeo da década de oitenta. Cenas promissoras que se perdem em convenções desgastadas, como as tórridas sequências românticas dos thrillers da década de noventa, com um casal que já percebemos que será formado desde os primeiros momentos. 

Não há organicidade alguma, tudo é calculado como numa produção protagonizada pelo Stallone, nivelado pelos excessos e pela incoerência, até mesmo os alívios cômicos soam datados. Um filme que chega, no mínimo, com um atraso de vinte anos. O que dá mais pena é constatar que o bom elenco de apoio é indesculpavelmente desperdiçado, especialmente Javier Bardem, um ator de competência comprovada, cuja ausência de profundidade em sua caracterização, culpa do roteiro, chega a causar revolta. Numa clara atitude de estudante de cinema, é inserida uma subtrama absurdamente desnecessária, na tentativa óbvia de disfarçar o amadorismo na narrativa, onde o protagonista sofre de um problema de memória. A intenção é agregar mais tensão ao suspense pífio, mas, sem mais nem menos, o foco se perde em um interesse romântico banal, com a personagem vivida por Jasmine Trinca, que parece ter sido escrita por uma criança, desvalorizando qualquer esforço. 

A ação, elemento mais eficiente, rende boas cenas, mas, sinceramente, qualquer produção moderna, com orçamento razoável, entrega diversão satisfatória nesse sentido. O que queremos receber, ao encontrarmos esse elenco no cartaz, é, no mínimo, uma trama que nos faça acreditar nas motivações dos personagens. “O Franco-Atirador” é, infelizmente, esquecido no minuto seguinte ao acender das luzes da sessão. 

"Vingadores: Era de Ultron", de Joss Whedon


Vingadores: Era de Ultron (Avengers: Age of Ultron - 2015)
Há um elemento que diferencia o público nerd daquele que frequenta os festivais de cinema e, invariavelmente, despreza qualquer projeto popular: ele busca a satisfação em, pelo menos, um momento bom do filme. Uma cena empolgante, emocionante, já faz valer a experiência. O sisudo que adora ver a tinta secar na parede por quatro horas, quase sempre, está procurando as possíveis falhas no projeto, querendo saber se a obra passará pelo seu criterioso crivo, satisfazendo, em primeiro lugar, o seu inflado ego. Um roteiro como o de “Vingadores: Era de Ultron”, plenamente consciente de seu público-alvo, acaba se permitindo brincar com as expectativas do fã, conduzindo o leitor de quadrinhos, dos oito aos oitenta anos, em uma viagem genuinamente divertida pelo terreno dos escapistas sonhos infantis. Não importa que existam falhas, como em todos os filmes, tudo é perdoado quando o roteiro consegue fazer com que o adulto na plateia, em alguma cena, com um sorriso nostálgico, estenda a mão para sua contraparte infantil. E, sem exagero, o roteirista e diretor Joss Whedon cumpre inteligentemente esse objetivo, no mínimo, umas três vezes ao longo da trama. É óbvio que não irei revelar as cenas, mas, com certeza, posso afirmar que elas superam, em emoção, os melhores momentos do filme anterior. 

A trama carece de um vilão interessante, um ponto fraco, já que a ameaça de Ultron caberia melhor em um desenho animado. Talvez tivesse sido melhor utilizar o tempo para aprofundar o arco narrativo dos irmãos, Feiticeira Escarlate e Mercúrio, o que intensificaria consideravelmente o investimento emocional do público na participação deles no terceiro ato. Ela, Elizabeth Olsen, com a bela plasticidade dos movimentos, acaba se saindo melhor que ele, já que a atuação de Aaron Taylor-Johnson é inacreditavelmente desinteressada, como se o ator tivesse desistido do projeto logo após assinar o contrato. É compreensível perceber o cansaço de Robert Downey Jr., afinal, já é seu quinto passeio nessa montanha-russa, porém, levando em consideração que o Homem de Ferro é parte essencial da construção do problema que será enfrentado pela equipe, senti falta do entusiasmo que o ator transmitia em seu terceiro projeto solo, onde o personagem já lidava com as consequências mentais da primeira aventura da equipe. Continuo impressionado com a competência de Mark Ruffalo, um ator que está visivelmente adorando fazer parte dessa brincadeira, uma sensação que contagia o público em todas as suas cenas. A Viúva Negra, vivida por Scarlett Johansson, recebe maior atenção, assim como o Gavião Arqueiro, de Jeremy Renner, que se torna protagonista de uma subtrama bucólica, na linha tênue do melodrama de um especial para televisão, salvo apenas pelo carisma do ator. O Thor, de Chris Hemsworth, vive seu momento mais genérico, com direito a algumas piadas que não soam muito orgânicas na voz do personagem que foi estabelecido nos filmes anteriores. É engraçado o recurso, mas, inegavelmente, uma forçada de barra, na tentativa de inventar maior relevância para o Deus do Trovão na narrativa. 

Evitando soltar spoilers, vale destacar que, a despeito de um conflito apático, o ponto alto acaba sendo a forma como o roteiro aborda a camaradagem da equipe, evidenciada de forma épica nas batalhas e, impecável, nas cenas leves de descontração sem os uniformes. Destaco também a beleza dos créditos finais, firmando os super-heróis dos quadrinhos como a mitologia dos tempos modernos. Há uma breve cena após os créditos finais, porém, sinceramente, achei pouco criativa, muito previsível.  

quinta-feira, 14 de maio de 2015

"Meu Pecado foi Nascer", de Raoul Walsh


Meu Pecado foi Nascer (Band of Angels – 1957)
Com certeza o filme mais melodramático do competente diretor Raoul Walsh, um épico de ambiciosas proporções, com a bela Yvonne De Carlo vivendo uma aristocrata que descobre ter sangue negro, sendo então vendida como escrava para o personagem de Clark Gable, um rico comerciante de algodão cujo passado esconde o arrependimento que serve de força motriz para suas ações. Sidney Poitier interpreta o escravo culto, criado com carinho por seu senhor desde a infância, um elo que o perturba sobremaneira, já que seria mais fácil odiar alguém que o desprezasse. Esse conflito existencial é o elemento mais eficiente da obra, conduzindo para o terceiro ato, onde os dois caminhos se cruzam no turbulento início da Guerra Civil, resultando em um duelo de sentimentos.

O roteiro evita os estereótipos, facilitando o investimento emocional nos arcos narrativos. Todos os personagens possuem motivos bem delineados para suas atitudes, desde os momentos de nostalgia infantil captados nas primeiras sequências, até o desfecho simbólico de renascimento nas águas, com o casal deixando definitivamente o passado, abraçando um novo começo. A trilha sonora de Max Steiner alcança o equilíbrio entre o tom de grandeza e o foco nos pequenos conflitos, um excelente complemento. É uma pena que, nas poucas vezes que comentam sobre o filme, sempre optam pelo lugar comum de reduzir os méritos do projeto ao compará-lo com “E o Vento Levou”, apenas pelo contexto histórico e pelo protagonista. A história é ousada na construção dos personagens, estruturalmente à frente de seu tempo, o que explica o fracasso de público e crítica na época de sua estreia. É interessante perceber na trama algumas das possíveis inspirações para o “Django Livre” de Quentin Tarantino.  

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Obras-Primas do Cinema".

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Chumbo Quente - "Comando Negro"


Comando Negro (Dark Command – 1940)
Reunindo o casal do importante “No Tempo das Diligências”, Claire Trevor e John Wayne, como garantia de sucesso com o público, essa produção foi a mais cara dos estúdios Republic Pictures, que despejava nas salas grande quantidade de faroestes B, feitos de forma rápida e com baixíssimo orçamento. Ao entregar a direção nas mãos do competente Raoul Walsh, o produtor Herbert J. Yates afirmava a confiança que depositava no material original, o livro homônimo de W.R. Burnett, um dos mais respeitados escritores de sua época.

No intuito de satisfazer ainda mais os fãs do gênero, ele escalou o “Rei dos Cowboys”: Roy Rogers, que lotava as sessões de seus filmes, fazendo questão de colocar ele como parceiro de armas do personagem de Wayne. Com dois heróis míticos das telas, o projeto precisava de um vilão à altura, alguém que oferecesse perigo físico e mental. Walter Pidgeon, um excelente ator veterano do cinema mudo, que faria no ano seguinte: “Como Era Verde o Meu Vale”, foi escalado no papel do professor gentil que se vê transformado em um bandido, quando perde uma eleição para delegado, vencido pelo personagem de Wayne, um texano analfabeto, o que o faz reavaliar sua conduta e seus valores. Um papel inspirado no caso real de um confederado que se tornou um guerrilheiro saqueador.

Após um primeiro ato conduzido com encantadora leveza e humor, com alguns momentos hilários protagonizados pelo dentista/cabeleireiro/cirurgião, vivido por George Hayes, o roteiro engata um crescendo de ação, com direito a cenas impressionantes, como a queda de uma carroça de um desfiladeiro, mérito do lendário dublê Yakima Canutt. O tiroteio final, onde toda a cidade se junta no confronto, é visualmente impactante. A direção de Walsh, um dos diretores mais competentes, ainda que injustamente pouco citado hoje em dia, elemento decisivo na atemporalidade da obra, consegue manter um ritmo contagiante do início ao fim, com alívios cômicos na medida certa. Wayne pode ter ganhado fama no ano anterior, com o já citado clássico de John Ford, porém, foi com seu papel nesse filme, exercitando maior segurança em cena, equilibrando imponência e humor, que o Duke garantiu seu lugar no olimpo do faroeste.

* O filme está sendo lançado pela distribuidora “Versátil”, na caixa “Cinema Faroeste”, que conta também com: “Audazes e Malditos”, “O Homem Que Luta Só”, “Almas em Fúria”, “Paixão Selvagem” e “Reinado do Terror”.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Entrevista com Cecilia Peck

Quem nunca sonhou em ter como pai o advogado Atticus Finch, de “O Sol é Para Todos”, escolhido como o maior herói do cinema pelo American Film Institute? Um dos filmes mais importantes na carreira do ator americano Gregory Peck, um dos nomes mais respeitados da época de ouro de Hollywood, não somente pelo talento, como também pelo caráter e integridade, tendo presidido, de 1967 a 1970, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, conhecida popularmente por sua premiação anual, simbolizada por uma estatueta dourada, um tal de Oscar, que talvez você, caro leitor, querida leitora, conheça. Brincadeiras a parte, é com enorme prazer que presenteio você com mais uma entrevista exclusiva, com a filha do ator, Cecilia Peck, atriz e diretora competente, que lançou recentemente um ótimo documentário intitulado “Brave Miss World”. Ela, num gesto de carinho, fez questão de me enviar essa linda foto. Thanks, Cecilia!


O – Inicialmente, gostaria de dizer que “Brave Miss World” é um filme fantasticamente corajoso, não apenas pelo tema, mas, especialmente, pela forma como o documentário escolhe examinar o sistema judicial. Parabéns pelo trabalho. Como você decidiu contar a história de Linor Abargil?

P - Quando Linor Abargil foi coroada Miss Mundo em 1998, apenas seis semanas depois de ter sido vítima de um sequestro terrível, tendo sido esfaqueada, e estuprada em Milão, Itália, ela prometeu um dia falar sobre o trauma. Levou dez anos para ela se sentir preparada para falar. Uma vez que ela decidiu contar sua história, ela veio para Los Angeles para se encontrar com os diretores. Foi graças ao meu amigo, o diretor Hugh Hudson, que eu conheci Linor e seu amigo próximo: Motty Reif, que está no filme. Eu fui para a primeira reunião com o nosso editor e produtor Inbal Lessner. Ela nos revelou tudo o que tinha vivido, dizendo que queria falar com sobreviventes em todo o mundo e incentivá-los a não se envergonharem e não ficarem em silêncio. Linor não tinha vergonha em falar sobre ter sido estuprada. "Por que eu deveria ter vergonha?", ela disse, "A culpa foi dele, não minha." Como uma pessoa que estava disposta a trazer à tona o momento mais doloroso de sua vida, porque ela acreditava que, com essa atitude, poderia ajudar os outros nesse processo de cura, ela se dedicou ao extremo. Para mim, como diretora, fazia sentido como um acompanhamento ao meu filme anterior, "Shut Up & Sing", outra história de mulheres corajosas que lutam por algo em que acreditam. Tenho muito interesse em mulheres que expressam coragem em suas convicções, que sacrificam tudo em prol de ajudarem outrem. Por causa da coragem de Linor em contar a sua história, “Brave Miss World” está ajudando sobreviventes em todos os lugares a superarem o trauma. O filme carrega, essencialmente, uma mensagem muito positiva de esperança.

O – Acredito que o silêncio das vítimas, no tocante a esse assunto, explicado parcialmente pelo medo e pela vergonha, tenha sido um obstáculo difícil em suas entrevistas. Como você superou isso? Você teve muitos problemas no processo de filmagem?

P – As mulheres que são entrevistadas no filme querem acabar com o silêncio e a vergonha, vencendo o medo que envolve o estupro. Não foi fácil para elas serem filmadas, mas, fazer parte de algo que poderia ajudar outros sobreviventes pelo mundo as fez se sentirem menos envergonhadas e, principalmente, menos solitárias, isso era muito importante para elas. As entrevistas foram difíceis para elas, para Linor, e uma experiência muito emotiva para todos nós. Mas todas as mulheres entrevistadas no filme têm comparecido nas exibições, ficando no palco com a gente, respondendo às perguntas, com o orgulho de quem optou não manter o silêncio. Uma delas foi perguntada: “Por que você estaria em um filme sobre ser estuprada?" Sua resposta foi: “Eu não queria que ninguém do meu círculo social pensasse que não conheciam alguém que havia sido estuprada”. Sua crença, compartilhada por Linor e todos nós, é que temos de reconhecer que uma entre cada cinco mulheres no mundo foi estuprada, que acontece em todos os lugares, em todos os países, cidades e escolas, em todas as famílias, de todas as classes sociais. Uma vez que paremos de negar isso, então podemos começar a colocar pressão sobre os sistemas de justiça para fazer cumprir as leis que protegem as vítimas. “Brave Miss World” é um dos filmes que está ajudando a aumentar a conscientização global, e, em particular, nos EUA, em torno da questão do estupro no campus universitário. Nosso site, http://www.bravemissworld.com, tem quase 1.000.000 de visitantes.


O – Eu adoro o documentário “A Conversation with Gregory Peck”, que você produziu em 1999. O legado do seu pai deve ter sido uma bênção em sua carreira. Acredito que toda criança no mundo já tenha sonhado em ter, como pai, Atticus Finch. Como o Sr. Peck era nessa função?

P – Eu tive pais extraordinários. Meu pai e minha mãe, Veronique, eles se amavam intensamente, presenteando os filhos com o dom de acreditar que o amor é real e possui um valor muito significativo. Como pai, ele era muito rigoroso, mas, na mesma medida, muito carinhoso. Ele sempre foi justo e muito honesto. Ele estava trabalhando constantemente na época, mas sua presença imponente era sentida na casa quando ele não estava. Ele adorava estar com sua família e era um grande contador de histórias com um maravilhoso senso de humor. Ele era amável e gentil. Ele era inflexível sobre a importância de uma boa educação e do trabalho duro. Crescendo com ele, aprendi que não há nada valoroso que venha fácil, sem esforço. Você precisa sacrificar muito para fazer algo que seja significativo. Claro que seus filmes tiveram um grande impacto sobre mim. Eu não acho que ele escolheu seus projetos pensando apenas no potencial deles de impacto social, mas ele tinha profundo interesse nos temas de justiça social. Eu acredito que ele foi um dos poucos astros de cinema de seu tempo que estava disposto a defender filmes polêmicos, como “O Sol é Para Todos” e “A Luz é Para Todos”. Esses filmes tinham o poder de curar. Os valores e o caráter do meu pai eram muito parecidos com o seu personagem em “O Sol é Para Todos”, e, talvez, além de ser influenciada por aqueles filmes, eu herdei um pouco do caráter desse personagem. Uma espécie de compulsão para defender a justiça. É claro que o meu pai também fez muitos filmes lindos que não abordavam justiça social, grandes histórias que cumpriam a função de divertir o público, criando personagens queridos, como em “A Princesa e o Plebeu”.

O – Eu sempre tive a crença de que seu pai valorizava muito mais o aplauso como ator, ao invés da celebração exagerada como um mítico astro de cinema, exatamente pelas escolhas ousadas e corajosas em alguns projetos, em vários gêneros. Ele nunca se sentou confortável em um estereótipo de “herói”, sempre tentou mais que seus colegas da época. Estou próximo da verdade?

P – Você está certo. Ele foi frequentemente escalado para papéis heroicos porque o público queria vê-lo dessa forma. Mas muitos de seus heróis têm complexidades morais, e, a sua habilidade de ser capaz de enxergar a vida interior e o tumulto psicológico desses personagens, foi um dos elementos que fizeram de meu pai um grande ator. Ele tentou atuar em uma grande variedade de papéis, e, junto com os heróis, ele interpretou muitos personagens obsessivos e vilões. Ele dizia que era mais difícil interpretar os papéis heroicos do que os “bandidos”. Era um desafio muito maior fazer os heróis soarem verossímeis, emocionalmente complicados, em suma, interessantes para o público assistir.

O – Acredito que a música tenha sido um fator importante na mente criativa de seu pai. Qual tipo de música ele escutava em casa?

P – Meus pais escutavam música constantemente na casa. Quando eu era criança, um dos meus trabalhos era colocar os discos de volta nas capas, tomando cuidado para não riscá-los, devolvendo os discos ao seu lugar adequado no armário. Meu pai escutava de tudo, desde ópera (Leontyne Price, Jesse Norman) até música clássica (Beethoven, Brahms, Mozart), jazz (Dave Brubeck, Ramsey Lewis), bossa nova (Jobim, Sergio Mendez), vocalistas femininas (Billie Holiday, Lena Horn, Peggy Lee), Motown (Aretha Franklin, Diana Ross, Stevie Wonder). Havia sempre uma grande mistura desses gêneros tocando o dia todo, juntamente com os Beatles, Frank Sinatra, missas de réquiem, canto gregoriano, e Blues, tudo misturado. Eu acho que seu favorito, dentre todos, foi Sinatra.


O – Cecilia, você tem alguma história interessante, de bastidores, de quando visitava seu pai em alguma produção?

P – Eu trabalhei com meu pai duas vezes. Interpretei sua filha em um filme chamado “O Retrato”, com Lauren Bacall, em 1993. “Betty” Bacall e meu pai contavam histórias engraçadas e, da manhã até a noite, mantinham todos entretidos no trailer de maquiagem e no set. A brincadeira entre eles era deliciosa. Eles haviam trabalhado juntos em 1957, em “Teu Nome é Mulher”, e ficaram grandes amigos por toda a vida. Eles estavam agora por volta dos seus setenta anos, flertavam e realmente adoravam trabalhar juntos novamente. Mas suas histórias engraçadas não eram apenas um para o outro. Eles estavam mantendo todos na equipe em um constante estado de bom humor, certificando que todos tivessem uma grande experiência. Atores mais jovens, por vezes, são mais egocêntricos nos sets de filmagem. Os experientes são mais generosos e inclusivos com aqueles profissionais que doam tanto para o projeto. Tive a chance de constatar isso pessoalmente com o meu pai, muitas vezes, enquanto eu estava crescendo. Ele nunca agia como a estrela. Sempre se considerava parte de um todo, um coletivo criativo. Eu trabalhei com ele novamente em 1999, quando Barbara Kopple e eu fizemos o documentário “Uma Conversa com Gregory Peck”. Era um filme muito pessoal, um olhar terno para o passado, em sua vida e carreira, família e amigos, e o relacionamento com a minha mãe. Estávamos muito nervosos quando mostramos para ele o corte bruto. Havia muitas cenas íntimas e não sabíamos se ele iria querer uma série de mudanças. Ele nos disse que ele amava o filme. Ele só pediu uma mudança. Ele disse: “Você se importaria de incluir um trecho do discurso que proferi sobre a importância de uma legislação de controle de armas mais rigorosa?” Isso foi muito característico dele, não se preocupar com sua imagem ou com ele mesmo, mas, sim, com o bem maior.

O – Como o seu pai se sentia com o reconhecimento pelo trabalho? Como ele lidava com seus admiradores? Gostava do assédio, de ser abordado?

P – Ele sempre foi muito agradável e dedicava tempo para parar, conversar e dar autógrafos. Ele era genuinamente interessado nas pessoas e parecia encontrar um bom equilíbrio entre os lados público/privado de sua vida. Eu escutei tantas histórias de pessoas que ele encontrou uma vez, em um supermercado ou em algum lugar público, e eles sempre falam sobre como ele fazia questão de conversar, chamando a pessoa pelo nome, compartilhando um momento que foi muito memorável. Com o seu trabalho, eu acho que ele estava sempre se esforçando para desafiar a si mesmo, interpretar uma variedade maior de papéis, chegar à verdade de um personagem, contar uma história que teria ressonância.

O – Meus filmes favoritos dele são: “Quando Fala o Coração”, “O Sol é Para Todos”, “A Princesa e o Plebeu”, “Matando Sem Compaixão”, “Da Terra Nascem os Homens”, “Meninos do Brasil”, “O Matador”, “Estigma da Crueldade” e “A Profecia”. Como pode constatar, são vários, de uma filmografia fantástica. Acredito que os seus favoritos modifiquem muito, dependendo da época, mas quais obras você citaria hoje, e por qual razão? 

P – Meu favorito, dentre todos, é “O Sol é Para Todos”. Eu acho que Harper Lee estava certa quando disse que Atticus Finch deu a Gregory Peck a chance de interpretar a si mesmo. Eu era pequena quando ele fez o filme e eu acho que isso influenciou a maneira como ele criou seus filhos. Ele deu muito de sua verdade para o personagem, mas também assimilou muito do personagem em sua vida, e esse papel deu a ele a convicção de que poderia ser um homem, um pai, com o tipo de integridade e decência que Atticus Finch tinha. Quero dizer, ele sempre teve essas qualidades, mas eu acho que foram reforçadas e solidificadas quando interpretou Atticus, e, com sorte, fomos os beneficiários. Meu outro filme favorito é “A Princesa e o Plebeu”. Meu pai também era muito charmoso e muito bem-humorado, como o personagem de Joe Bradley, e ele nem sempre conseguia mostrar esse lado. É também um filme muito bem feito, uma história de amor atemporal, com uma interpretação hipnotizante de Audrey Hepburn. Fizemos questão de mostrar esse lado encantador e engraçado dele no documentário: “Uma Conversa com Gregory Peck”.

O – Cecilia, qual é seu novo projeto? Você pode compartilhar com meus leitores?

P – Eu estou a ponto de ser capaz de anunciá-lo, prometo contar para você assim que eu puder. 

O – Cecilia, obrigado pelo seu generoso tempo. Você poderia deixar uma mensagem especial para os meus leitores, os brasileiros que amam o legado artístico de seu pai? 
P – Obrigada pelo carinho, Caruso. Meu pai adorava a música do Brasil e, embora ele nunca tenha sido capaz de ir para lá, sei que ele teria adorado. Eu estive no Brasil apenas uma vez, a mais maravilhosa longa aventura, que me levou de Manaus e Amazônia, até o Rio, onde eu assisti ao show de Caetano Veloso, e, em seguida, fui até a costa de Fortaleza, e me aprofundei na costa litoral do norte selvagem. O Brasil é muito bonito e eu me apaixonei pelas pessoas, a cultura e a música desse povo. Eu adoraria voltar, em breve, e mostrar “Brave Miss World” lá. 


quinta-feira, 7 de maio de 2015

"A Ameaça Que Veio do Espaço", de Jack Arnold


A Ameaça Que Veio do Espaço (It Came from Outer Space – 1953)
Houve um fenômeno de popularidade do tema na década de cinquenta, com os produtores despejando o máximo possível de produtos genéricos sobre alienígenas nos cinemas drive-in, para uma garotada assistir entre um beijo e outro. Grande parte desses filmes envelheceu mal porque, enquanto jovem, já eram terrivelmente problemáticos, estruturalmente simplórios e com atuações desastrosas. “A Ameaça Que Veio do Espaço”, dirigido por Jack Arnold, do ótimo “O Incrível Homem Que Encolheu”, é diferente. Sendo adaptado de um conto, inédito à época, do excelente escritor Ray Bradbury, mestre da ficção-científica, já valeria a reverência, porém, não é o único motivo que faz esse filme ser, ainda hoje, eficiente.

Os alienígenas não estão invadindo o planeta, um conceito inovador para a época, eles não são a ameaça, ainda que o título nacional assim faça crer, mas, sim, forasteiros que caíram por acidente em uma sociedade estranha. Eles decidem tomar a forma dos humanos, sem causar mal às matrizes, pois sabem que os terráqueos não sabem lidar com o desconhecido, eles temem e agridem aquilo que não compreendem. Os alienígenas precisam conviver com os humanos o tempo suficiente para consertarem sua espaçonave. É ótima a cena em que o protagonista, o astrônomo vivido por Richard Carlson, tenta explicar essa conduta para o xerife, fazendo uma analogia com uma aranha que avistou na areia do deserto: “Você teme a aranha por ela ter oito patas”, segundos antes de o policial meter sua bota na cabeça do bicho. Em outro momento, o astrônomo conversa com o alienígena, que explica para ele a frustração de ter caído no planeta: “Caso fossem vocês, humanos, que tivessem caído no nosso planeta, nós entenderíamos melhor”. A ideia de que não estamos prontos para explorar outras formas de vida é genial, já que não sabemos lidar nem com o vizinho, agredimos verbalmente o colega de trabalho só por ele ser do time adversário no futebol. É uma percepção que, ainda hoje, em pleno 2015, continua, infelizmente, atual.

O design dos alienígenas, criado por Milicent Patrick, remetendo a uma espécie de lesma ciclope, é um dos mais memoráveis no gênero, com a fotografia em primeira pessoa captada por uma câmera dentro de uma bolha de plástico. 

* O filme está sendo lançado pela distribuidora "Versátil", na caixa "Clássicos Sci-Fi", que conta também com: "Planeta Proibido", "Eles Vivem", "O Planeta dos Vampiros", "Os Malditos" e "Fuga no Século 23".