Birdman (2014)
É um desserviço tentar menosprezar a importância da
metalinguagem na eficácia do resultado final. A angústia de um ator que tenta
provar sua competência ao reflexo do espelho e aos seus colegas, tentando
sobrepujar seus problemas pessoais, já foi contada diversas vezes pelas lentes
do cinema, não é algo novo. Os aspectos técnicos, a fotografia de Emmanuel
Lubezki, os planos-sequência, as trucagens visuais, são um deleite de impecável
execução, mas a real beleza está em seu conteúdo. O que torna o filme especial
é estar sendo lançado para a apreciação de uma geração que acompanhou a
carreira de Michael Keaton, um comediante que ganhou a atenção do mundo ao
interpretar um dos maiores heróis dos quadrinhos, um papel que marcou sua
trajetória e eclipsou qualquer outro esforço posterior. O que “JCVD” fez com
Van Damme, guardadas as devidas proporções, “Birdman” faz com Keaton.
Quando Iñárritu se inspira no “Stalker” de Tarkovski, fazendo o protagonista
mover objetos com o poder da mente, nós podemos imaginar a disputa interna de
um ator que anseia ser levado a sério, vivendo o pesadelo de estar inserido em
uma realidade de uma indústria que prioriza obras defendidas por personagens
superpoderosos de trajes exóticos. O indisfarçável sentimento de culpa, em
conflito constante com a gratidão profissional, por ter contribuído para que
esse gênero passasse a ser respeitado e tido como lucrativo pelos executivos. A
voz interna que o acompanha, no rouco inverossímil típico de um universo onde a
presença dos óculos disfarça a identidade de um herói, clama que ele vista
novamente o traje e abrace o lucro certo de uma nova produção. O roteiro
inteligentemente critica a indústria, apontando o dedo para algo que estamos
presenciando, atores veteranos que estão evitando o risco, retornando aos seus
papéis populares clássicos, ao invés de estarem experimentando novas emoções,
reinventando-se sem a preocupação com o aplauso do público, o que é essencial
para um ator.
Como é explicitado nos intertítulos que iniciam a obra, tudo se resume à
necessidade de se sentir querido. Esse é o real vilão da trama, o Coringa do
Birdman: o desejo de se sentir amado, não somente pelo público, mas também pela
filha problemática, vivida por Emma Stone, alguém cujo relacionamento foi
prejudicado pela rotina profissional que ele escolheu. A busca pelo carinho dos
outros, o reconhecimento artístico, que acabou afastando-o daqueles mais
próximos. Outra antagonista é representada pela crítica teatral, vivida por
Lindsay Duncan, uma faceta odiosa que generaliza a função do crítico como um
parasita cruel que não tem nada a perder, porém é capaz de destruir em um texto
o produto dos riscos de outrem. É uma visão simplista, mas, infelizmente, não
muito distante da verdade em alguns casos. Existem maus profissionais em todas
as áreas, aqueles que verdadeiramente analisam com pedantismo, sem interesse em
críticas construtivas, sem estofo cultural. O erro do filme, ainda que
compreensível narrativamente, é generalizar essa imagem. “Ratatouille”, por
exemplo, conseguiu trabalhar esse tema de forma muito mais justa. Um pequeno
equívoco em um projeto que prima pelos acertos.
A crítica à sociedade, um ambiente que o protagonista não consegue aceitar,
pode ser simbolizada na excelente cena que acompanha sua corrida, trajando
apenas uma cueca, em plena Broadway. O evento bizarramente onírico, o que
realça o contexto metafórico, conduz o personagem a descobrir que ele pode se
esforçar em sua Arte por toda sua vida, arriscar nas mais diversas
interpretações, que nada disso irá se igualar ao sucesso popular obtido pelos
incríveis acessos nas redes sociais advindos de uma tolice qualquer. Vivemos em
um período onde a vergonha alheia recebe atenção no horário nobre da televisão,
enquanto os verdadeiros artistas morrem esquecidos. Essa melancólica
constatação potencializa ainda mais o conflito interno do protagonista. E,
celebrando o trabalho meticuloso do diretor, sem correr risco de soltar
spoilers, sinalizo para que redobrem a atenção ao desfecho, onde, pela primeira
vez, o diretor opta por uma construção convencional, com cortes tradicionais e
iluminação comum, como se, enfim, a fantasia tivesse sido abraçada pelo filme.
A questão que fica ao final é: o público prefere a fantasia ou a realidade? Há
uma função lúdica para a utilização predominante dos planos-sequência e, por
conseguinte, a opção por modificar essa estrutura ao final.
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